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Clínica & Cultura

versão On-line ISSN 2317-2509

Clín. & Cult. vol.8 no.2 São Cristovão jan./jun. 2019

 

DOSSIÊ REDE INTERAMERICANA DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E POLÍTICA

 

Vidas menores, política das intensidades

 

Minority lives, a policy of intensity

 

Vidas más pequeñas, política de intensidades

 

 

Maria Cristina G. VicentinI; Beatriz Akemi TakeitiII

IPontifícia Universidade Católica de São Paulo. Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, Departamento de Psicologia Social, Programa Pós-Graduação em Psicologia Social. E-mail: mvicentin@pucsp.br
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Medicina. Curso de Terapia Ocupacional. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: biatakeiti@gmail.com

 

 


RESUMO

No contemporâneo, a subjetivação política de crianças e adolescentes se potencializa seja pela consolidação de direitos específicos desses segmentos, seja pela construção de novos atores que interrogam o lugar da discursividade política hegemônica. A partir da hipótese, derivada dos Estudos Sociais da Infância, de que a perspectiva do "sujeito de direitos" é insuficiente para a emancipação de crianças e adolescentes, pretendemos pensar a subjetivação política de crianças e adolescentes em dois movimentos: o primeiro, a partir da apresentação de uma perspectiva crítica da construção histórica da incapacidade política de crianças e adolescentes, a partir da revisão de literatura; e, em um segundo momento, com base em dados de pesquisas realizadas com adolescentes, sugerimos que certas experimentações juvenis, especialmente aquelas que se dão corporalmente, produzem novos sentidos sobre o político (e sobre os direitos).

Palavras-chave: direitos, subjetivação, política, infância, adolescência.


ABSTRACT

In contemporary times, the political subjectivation of children and adolescents is enhanced either by consolidating the specific rights of these segments, or by establishing new actors who question the place of hegemonic political discursivity. Based on the hypothesis, derived from Childhood Social Studies, that the perspective of "subject of rights" is insufficient for the emancipation of children and adolescents, we aim to discuss the political subjectivation of children and adolescents within two movements: by presenting a critical perspective of the historical construction of the political incapability of children and adolescents, based on a revision of the literature; by suggesting, with basis on data from research carried out with adolescents, that certain juvenile experimentations, especially the physical ones, produce new meanings with regard to politics (and rights).

Keywords: rights, subjectivation, politics, childhood, adolescence.


RESUMEN

En la época contemporánea, la subjetivación política de los niños y adolescentes se ve potenciada tanto por la consolidación de derechos específicos para estos segmentos, como por la construcción de nuevos actores que cuestionan el lugar del discurso político hegemónico. A partir de la hipótesis, derivada de los Estudios Sociales de la Infancia, de que la perspectiva del "sujeto de derechos" es insuficiente para la emancipación de los niños y adolescentes, nos proponemos pensar la subjetivación política de los niños y adolescentes en dos movimientos: el primero, a partir de la presentación de una perspectiva crítica de la construcción histórica de la incapacidad política de los niños y adolescentes, basada en una revisión bibliográfica; y en un segundo momento, a partir de los datos de la investigación realizada con adolescentes, sugerimos que ciertas experimentaciones juveniles, especialmente las que se producen corporalmente, producen nuevos significados sobre lo político (y sobre los derechos).

Palabras clave: derechos, subjetivación, política, infancia, adolescencia.


 

 

No contemporâneo, o campo da infância e da adolescência se potencializa politicamente seja por conta da consolidação de direitos específicos desses segmentos, seja ainda pela construção de novos atores que descentram e interrogam o lugar da discursividade política hegemônica (Castro, 2007; Melo, 2018).

Esta segunda forma de pensar o processo de subjetivação política escapa à acepção, hoje largamente difundida, da criança e do jovem enquanto sujeitos de direitos como a via por excelência para pensar a inserção de crianças e adolescentes na comunidade política. E escapa também à judicialização crescente das sociedades modernas que toma a regulação jurídica das relações sociais como o principal modo de construção e regulação ética e moral.

Consideramos que pensar a infância e a adolescência na perspectiva do seu deslocamento em relação à uma discursividade política hegemônica nos parece um caminho interessante porque, como aponta Castro (2007), o reconhecimento formal da criança e do adolescente como sujeitos de direitos não assegura a entrada dos mesmos na comunidade política e nem deve ser encarada como um momento pleno dos vínculos sociais entre crianças e adultos. Dito de outro modo: o reconhecimento formal de subjetividade jurídica de crianças e adolescentes não é suficiente para a promoção de sua emancipação. De fato, os direitos só podem ser operativos se forem constituintes de uma estratégia de transformação social, articulados com sentidos comuns e com práticas sociais (Freeman, 1997, p. 16).

Entendemos, na pista aberta por Castro (2007), que são especialmente os momentos instituintes criados por estas vidas menores que podem configurar o campo da posição política de crianças e adolescentes, quando os vínculos da infância e da adolescência para com a sociedade mais ampla podem ser ressignificados e redefinidos: "sujeitos da história são aqueles que, retrospectivamente, estariam descentrando a sociedade, recompondo seus vínculos, introduzindo transformações" (p.15). Por "vidas menores"i pretendemos enfatizar de um lado a condição etária dos que não são ainda adultos, mas principalmente sua distinta condição de subjetivação, condição minoritária, de abertura e multiplicidade que evita sua codificação às formas normalizadas ou universalizantes (Deleuze, 1992). Ou, como sugere Orlandi (2008), condição de "suspensão do encadeamento extensivo, espacial e cronológico nos estados de coisas".

Não estamos negando que tal caminho - o da consolidação de direitos específicos - não seja, sem dúvida, um passo à frente no contexto histórico em que crianças e jovensii foram - e ainda são - considerados apenas objeto de cuidado e tutela dos adultos (Pinheiro, 2001). Sinalizamos, com outros estudiosos, que é necessário construir outros sentidos para a visibilidade de crianças e jovens no cenário social, que vão além daquelas determinadas pela sua visibilidade enquanto portadores de direitos ou pela visibilidade mais recente dada a eles pelo consumo (Castro, 2007; Souza, 2009; Melo, 2018).

Uma segunda razão para seguirmos esta pista é que ela faz frente à histórica declaração de incapacidade ou vulnerabilidade da infância como argumento de outorga de sua proteção (Méndez, 1994, p. 47).

Neste texto pretendemos pensar a subjetivação política de crianças e adolescentes numa perspectiva distinta daquela que se constituiu historicamente: a da incapacidade política de crianças e adolescentes. Para isto, traçamos dois movimentos: num primeiro momento, a apresentação de uma perspectiva crítica da construção histórica da incapacidade política de crianças e adolescentes, a partir de revisão de literatura; e, num segundo momento, traçamos algumas pistas, a partir de certas experimentações juvenis, especialmente aquelas que se dão corporalmente, quanto à produção de novos sentidos sobre o político (e sobre os direitos).

 

Subjetivação política de crianças e adolescentes

Na base da construção dos direitos de crianças e adolescentes, "há a crença comum de que os adultos podem envergar a bandeira da proteção e do cuidado em relação a crianças e jovens assegurados pelo saber que os qualifica" (Castro, 2007, p.03). De fato, a leitura do que é o interesse da criança e do adolescente tem sido, nas sociedades ocidentais modernas, desempenhada pelos adultos, qualificados como mais experientes ou detentores de um saber. Fica, assim, ocultado ou minimizado o papel criador de crianças e jovens no processo de transmissão intergeracional, legitimando que adultos passem à frente de crianças e adolescentes na articulação de suas necessidades e interesses, suplementando a identidade da criança e do jovem com a maneira (adulta) de ver o mundo e com os valores do mundo adultos (Corazza, 2000; Castro, 2007; Rosemberg & Mariano, 2010). Lourau (1991) chamará de "hipercomunicação" essa sobreimplicação imposta à criança pelo adulto, pela qual a criança fica sem voz e sem lugar.

De fato, o "dispositivo da infância" (Corazza, 2000) ao mesmo tempo que constituiu a particularidade da infância, situou a criança no centro de potentes modos de codificação de natureza sanitária, pedagógica e política, reduzindo a "capacidade sociopolítica dessas camadas, rompendo os vínculos iniciáticos adultos/criança, a transmissão autárquica dos saberes práticos, a liberdade de movimento e de agitação que resulta do afrouxamento de antigas coerções comunitárias" (Donzelot, 1986, p.76). Daí a proposição de Godard: "as crianças são prisioneiros políticos" (Deleuze, 1992, p. 55) e a de Castro (2007) quanto a crianças e jovens estarem "posicionados numa situação de total invisibilidade política, uma vez que seus interesses são, necessariamente, articulados por outros, e não por eles mesmos, sem que qualquer outro dispositivo possa ser acionado a seu favor, no caso dessa representatividade ser uma mentira" (p.05).

É verdade que, ao longo do século XX, uma nova sensibilidade e uma nova atitude em relação às crianças começou a se construir, visível especialmente na direção ético-política da "doutrina da proteção integral", que considera crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direitos, como seres humanos em condição peculiar de desenvolvimento e com prioridade absoluta para promoção, proteção e defesa de seus direitos. No caso do Brasil, a redemocratização ocorrida na década de 1980 e a promulgação, em 1988, de uma nova Constituição Federal introduziu uma consciência jurídica e social reconhecedora de crianças e adolescentes como sujeitos plenos de direitos, cabendo ao Estado, à família e à sociedade, garantir seus direitos com prioridade absoluta (Brasil, 1990).

Tal construção - dos direitos da infância - produziu alguma inflexão e reflexão em torno do direito à autodeterminação de crianças e adolescentes (Melo, 2011) que se traduziu na promulgação simultânea de direitos à proteção, à provisão e à liberdade, expressão e participação (ou, como também são conhecidos: os três P's da promoção, proteção e participação) e na inflexão de uma visão fundada nas necessidades das crianças para outra visão baseada em seus interesses e direitos (Melo, 2011, p. 24).

De fato, o reconhecimento da capacidade de ação por parte de crianças e adolescentes está limitado por uma estruturação histórica da concepção de autonomia e de direitos fundada em referenciais adultocêntricos e racionais de que crianças e adolescentes não seriam detentores por completo" (Melo, 2011, p. 46), assim como num conjunto de saberes que legitimam uma posição de subordinação das infâncias nas sociedades contemporâneas (Castro, 2001; Souza, 2009; Melo, 2011; Rosemberg & Mariano, 2010) ou de sua vulnerabilidade estrutural nas sociedades contemporâneas.

Sabemos que um obstáculo central à participação jurídico-política de crianças e adolescentes é a pressuposição da sua falta de desenvolvimento cognitivo para a participação, argumentação e deliberação; sua falta de capacidade e, por conseguinte, de capacidade de consentimento político (Melo, 2018). Tal pressuposição invisibilizou e legitimou a pulsão de dominação sob a égide da imaturidade dos mais novos.

Seja pela "estrutura de racionalização adulta" (Jenks, 2002, p. 212), seja pela perspectiva da infância como veículo da reprodução social, "pouca atenção é dada à contradição e ao conflito: uma criança ou se conforma, ou é tida como desviante" (Rosemberg & Mariano, 2010, p. 694). Não é inusual, então, que a resistência de crianças e adolescentes em relação a sua esperada posição tutelada e submissa seja interpretada como mostras de desvio ou anormalidade e muito raramente possa ser acolhida como experimentação de si, da vida e do mundo, como resistência a modos de sujeição e como invenção de outras formas de viver.

Aqui cabe uma necessária observação quanto ao nosso contexto. No Brasil, a construção dos direitos de crianças e adolescentes se dá no âmbito de uma sociedade desigual. O cenário de pobreza, vulnerabilização e violências vivenciados por parcela da população infanto-juvenil persiste: 61% de crianças e adolescentes vivem em situação de extrema pobreza, mais da metade das 59.080 pessoas mortas por homicídios eram jovens (31.264, equivalentes a 54,1%), das quais 71% negras (pretas e pardas) e 92% do sexo masculino (BRASIL, 2017). Ainda, como aponta Marchi (2007), as crianças excluídas da promessa da modernidade da infância, que estão 'fora da norma da infância' são, via de regra, tematizadas como expressão de uma 'patologia social', senão de uma 'patologia ontológica'. Por meio das lógicas da patologização, que são estratégias de individualização e de desresponsabilização coletiva, passam a ser consideradas pessoalmente responsáveis por complexas forças econômicas e sociais que afetam suas vidas. Desse modo, também se agudiza a necessária tomada de posição ético-política de não aceitação tácita da supressão ou subalternização dos direitos das crianças em condições especialmente precárias ou vulneráveis (Marchi & Sarmento, 2017), no contexto brasileiro de desigualdades.

Diferentemente da posição política da criança, ainda alvo sistemático da força tutelar, há certamente algo de importante em curso quanto a certos segmentos da adolescência hoje. Ainda que de forma dispersa e assumindo formas variadas, delineiam-se gradualmente expressões cada vez mais nítidas de subjetivação adolescente que tentam dar conta, por meio de uma solução discursiva ou performática, daquilo que os oprime, de modo a inscreverem no social sua voz e sua forma de interpretar sua condição de existência ou de resistência.

De outro lado, os conflitos protagonizados pelos adolescentes têm sido sistematicamente objeto de criminalização e/ou de patologização, forjando a juventude pobre como uma categoria de risco, na medida de sua "sociopatia difusamente perigosa" (Castel, 2008).

Deste modo, estes setores da adolescência e da juventude transformam-se em receptáculos privilegiados da cristalização dos temores e das demandas por segurança que atravessam o conjunto da sociedade, sendo confinados a espaços de exclusão e de controle em função da radicalização da política punitiva e da redução das políticas sociais a eles dirigidas.

Tais lógicas, criminalizantes ou patologizantes, impetradas pelo mundo adulto (na forma das violências técnicas, como a dos agentes das políticas de assistência, educação ou saúde ou das violências de estado, como a dos agentes das políticas de segurança, especialmente as forças policiais), agem na direção do esvaziamento do coletivo, na impossibilidade de produção do comum e tornam limitadas as possibilidades de acordos, estratégias, negociações ou, ainda, a emergência de outras formas de lidar com a conflitualidade social.

 

Performatização de si, políticas intensivas

Sabemos, especialmente os que estudam adolescências e juventudes periféricas, que as experiências de exclusão têm sido produtivas no sentido de provocarem novos lugares a partir dos quais a posição destes atores pode ser nomeada e significada, como é o caso do rap e do funk, aprofundando certas rachaduras do tecido social assim como movimentos de singularização (Castro, 2007; Takeiti, 2014, Arruda, 2017).

No contexto brasileiro em que os jovens são passíveis de morte em um grau sem precedentes, principalmente na forma da violência por parte do aparato estatal, os atos de contestação e resistência que eles protagonizam evidenciam a invenção de uma linha de fuga em relação às lógicas tanatopolíticas. É o caso das rebeliões que forjam um espaço-tempo fronteiriço entre a insubordinação e a captura institucional, entre a norma e a vida, entre a violência e a política. Lançados na impossibilidade, estes jovens encarnam uma performance do real da morte, "projetando-se na mais audaz das vidas", levando a vida a uma radicalidade. Tais atos forjam também um modo de subjetivação, quando a resistência se faz re-existência: uma rebelião de si. Uma espécie de "experiência direta, concreta, dramática e corpórea da realidade" (Pasolini, 1990), uma paradoxal combinação de vida e morte, de utopia e limite, de projeto e finitude (Vicentin, 2005).

Vemos outras rebeliões de si na experiência dos rappers, que revertem o estigma de jovem da periferia em emblema , fazendo operar como signo contrário as qualificações negativas que lhe são imputadas (Reguillo, 2002; Takeiti, 2014): cantam e exaltam o orgulho da raça negra e a lealdade para com os irmãos de etnia e de pobreza, evocando um sentimento de fratria (Khel, 2007).

Além do rap, outras culturas juvenis como os punks, darks, funkeiros ressaltam por meio de uma performance corporal a natureza impactante de sua presença pública no cenário urbano. Eles adotam o "movimento", a "velocidade" e a "superexposição" como referentes centrais nas suas "encenações", fazendo da cidade um campo de "ocupação" e "extensão" (Abramo, 1994; Spósito, 1994; Caiafa, 1989). Abramo (1994) destaca, em pesquisa sobre os punks, que a cidade é palco onde "vêm realizar um 'aparecimento' na cena pública (...), vêm se expor, apresentar suas questões através do espetáculo em praça pública" (p.xv). Caiafa (1989) assinala que, entre os punks do Rio de Janeiro, um "andar a esmo, sem meta, sem rumo", como "tribo que nomadiza em ruas perigosas", revela, por meio da rotatividade e dos gestos, uma estetização que se sobrepõe à palavra, uma comunicação "em movimento" (p. 46). Diógenes (1998) vê nas gangues e no hip-hop "uma inversão no uso da cidade; ao invés de proteger-se, de esconder-se, de resguardar-se, cria-se uma contraordem: exibir e movimentar-se nos escuros, nos becos e até mesmo, se necessário, nos esgotos" (p.154). A autora encontra também tal performatividade na expressão da violência entre as gangues, como uma caricatura da sociedade do espetáculo e do medo: a sensação do excesso, do exagero está no ritmo do conjunto de suas experiências. (p.16).

Mais recentemente, alguns estudos têm evidenciado o caráter político do "pixo" que enseja uma relação tátil, sinestésica, sensorial entre corpo e cidade, entre a política das palavras feitas para entender e o regime estético de uma intervenção pautada no dissenso, no desentendimento que, por vezes, faz-se ler.

Essa política fora da política é agenciada pela potência rebelde dos pichadores que se lançam em desafios extremos de "vitrinizar" e multiplicar pelas ruas das cidades uma potência do corpo, um modo de arriscar a vida para além do seu valor instrumental. Como assinala Mittmann (2013, p. 75) "dessa forma podem escrever pela cidade inteira, serem vistos, mas não identicados. Corpos que conguram uma escrita-fantasma". Como bem lembra Lapoujade (2002, p. 81), "a questão 'do que pode o corpo?' se refere não à atividade do corpo, mas à sua potência". Vale ressaltar que a categoria rebeldia emerge como palavra nativa dos atores do pixo, constituindo quase sempre o universo das siglas e subsiglas de muitas das "famílias" de pichadores.

As recentes ocupações das escolas públicas - a primeira delas, em 2015, mais conhecida como "a primavera secundarista" - também colocaram em cena os corpos juvenis compondo este campo de luta autonomista, compartilhando uma certa cultura política cujo repertório privilegia a ação direta, valoriza a horizontalidade das relações estabelecidas e recusa formas institucionalizadas de se fazer política. Esta "cultura política autonomista" (Januário, et. al., 2016), em distintos momentos históricos, foi capaz de "detonar processos inovadores em relação ao cenário de lutas sociais".

E, ainda, como sugerem Castro e Grisolia (2016) fazem-se por ações e experimentações em espaços intersticiais abertos pelas disputas e pelas perplexidades do cotidiano, buscando construir e fazer valer dimensões comuns e de relevância para a vida compartilhada.

Vemos, assim, aparecer uma forma de participação mais orientada a circunscrever uma estratégia de existência: "Os jovens podem, portanto, tornarem-se atores de conflitos porque (...) fundam-se na incompletude que lhes define para chamar a atenção da sociedade inteira para produzir sua própria existência ao invés de submetê-la (Melluci, 2001, p.102).

 

Considerações Finais

Este conjunto de experiências indicam um exercício político em outras bases, a saber:

- o gesto radical que constitui a rebelião/expressão artística/ocupação tem a primazia em relação a vida de cada um;

- estes gestos recusam a vida como “projeto” e põem, no centro de seu movimento, a vida como potência;

- estes gestos parecem escapar às políticas de normalização e de assujeitamento na medida em que não defendem horizontes ou identidades;

- estes gestos produzem, em ato, movimentos de encurtamento do hiato que separa a formalidade dos direitos de cidadania e a prática destes direitos.

Tal singular ação política encontra em Rancière (2014) algumas pistas: elas perturbam a ordem consensual de funcionamento do Estado, pelo dissenso e pelo litígio, inventando sujeitos imprevisíveis, que redesenham constantemente a instância da vida comum, produzindo a igualdade como potência de inscrição destes que não contam. Configuram, como sugere Lapassade (1973), uma espécie de “entrismo”, um “movimento permanente pelo qual o homem se esforça em entrar na vida” (p. 278).

Tal percurso sugere que para pensar avanços democráticos no trato político de crianças e adolescentes é necessário assumir o caráter conflitivo e polêmico da subjetivação jurídico-política de crianças e adolescentes de forma a abrir outras linhas de força (Melo, 2018) e outras derivas para crianças e adolescentes. Isto é, não basta não reduzir a subjetivação política à subjetivação jurídica como conquista formal de direitos; não basta não reduzir a garantia formal de direitos à conquista de cidadania, especialmente quando os direitos sequer estão implementados (ou estão diferentemente implementados, conforme as diferenças de classe, raça e gênero que atravessam as vidas de crianças e adolescentes). O caráter conflitivo e polêmico deste campo de subjetivação coloca em questão modificações concretas nas formas de relação com crianças e adolescentes e na assunção de sua condição de ator de conflito.

Tal direção necessita que nós, adultos, nos desalojemos da segurança de valores “supostamente protetivos”, mas que desconsideram as perspectivas das próprias crianças e adolescentes, sob o risco de comprometer “possibilidades de ação e de resistência política por parte de crianças e adolescentes” (Melo, 2018, p.6). Isto porque, os direitos de liberdade dos adolescentes se veem também ressignificados pelos “limites determinados pelas políticas públicas e pelos riscos reais derivados de nós adultos e das instituições que criamos, ao impingirmos à infância uma posição de subordinação” (Rosemberg & Mariano, 2010, p. 721).

 

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Vicentin, M. C. G. (2005). A vida em rebelião. Jovens em conflito com a lei. São Paulo, Hucitec.         [ Links ]

Vicentin, M. C. G. & Gramkow, G. (2018) Pistas para um agir criançável nas experiências de conflito. Rev. Educ. Temática Digital, 20, 368-390p.         [ Links ]

 

 

i Admitimos o risco da associação da expressão 'via menor' ao efeito histórico de "menorização" das crianças/adolescentes quando menor é uma dupla condição de "irregular" e pleno objeto de tutela. Em outro texto, chamamos também de agir criançável ao ethos que pretende sustentar, na relação com as crianças e adolescentes, a abertura a situações e problemáticas que não estão dadas a priori, mas que são produzidas nas relações, e que requerem a sustentação de territórios de convivência, a experimentação do pensamento e a intervenção contextualizada e coletivizada (Vicentin e Gramkow, 2018).
ii A utilização das noções jovens/juventudes quando discutimos o campo de direitos de crianças e adolescentes tem menos o sentido empírico (ainda que dos 15 aos 18 anos se sobreponham os parâmetros etários definidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, para adolescente -12 a 18 anos- aos definidos pela OMS para jovens: 15-24 anos) e mais um sentido conceitual, como bem sinalizado por Abramo (1994) É importante sinalizar que a tensão conceitual no campo das políticas públicas entre as categorias de adolescência e juventude já indicam modos de subjetivação jurídico-políticos distintos, aproximando a juventude do campo dos direitos políticos, mas sob o risco de subtraí-la do campo da proteção: a discussão da redução da maioridade penal atrelada à conquista do direito de voto aos 16 anos é um bom exemplo desta tensão.

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