Services on Demand
article
Indicators
Share
Revista Subjetividades
Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.14 no.3 Fortaleza Dec. 2014
ARTIGO ORIGINAL
O nome de flechsig e os patronímicos no delírio de Schreber
The flechsig's name and the patronymics on Schreber's delirium
El nombre de flechsig y los patronímicos en el delirio de Schreber
Le nom de flechsig et le patronyme dans le délire de Schreber
Fabiano Chagas Rabêlo
Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - EPFCL - Professor Assistente do curso de psicologia da Universidade Federal do Piauí - Campus Parnaíba
RESUMO
O objetivo deste trabalho é discutir o modo singular como Schreber transmuta o nome de Flechsig e o transforma no esteio de seu sistema delirante. Logo no início de suas memórias, na carta aberta a Flechsig, Schreber diz que o nome de seu ex-médico exerceu grande influência no desenvolvimento de seu delírio, inclusive citando-o por extenso. No entanto, esse nome, tal qual é transcrito, destoa do verdadeiro nome de Flechsig. Trata-se do nome de um antepassado de Flechsig. Os prenomes e sobrenomes desse antepassado, agregados ao nome de Flechsig, quando analisados à luz de seu delírio, revelam a mobilização dos significantes patronímicos das gerações anteriores da família Schreber em sua literalidade. A partir da análise dessa questão, tecemos algumas considerações sobre a articulação na psicose entre fenômeno e estrutura. Valorizamos na nossa discussão a tese de Lacan segundo a qual são necessárias várias gerações para a produção de uma psicose. Em seguida, relacionamos a imissão dos significantes patronímicos da família Schreber no nome de Flechsig, ao que Freud denominou de compulsão à projeção e ao conceito lacaniano de foraclusão. Por fim, faremos algumas considerações acerca da direção do tratamento na psicose. Este trabalho constitui, portanto, um esforço de articular estrutura e fenômeno na psicose, a partir do comentário das Memórias de Schreber.
Palavras chaves: foraclusão; delírio; alucinação; psicose; patronímico.
ABSTRACT
This paper aims to discuss how Schreber transmutes the name of Flechsig and transforms it on the mainstay of his delirium's system. Early in the beginning of his memoirs, in the open letter to Flechsig, Schreber says that the name of his former doctor operated a great influence on the development of his delirium, even quoting him in full. However this name, as it is transcribed, deviates from the true name of Flechsig. This name is from an ancestor of Flechsig. The forenames and surnames of this ancestor - when examined in the light of Schreber's delirium - reveals the mobilization of the patronymics significant of the previous generations of Schreber's family in its literal meaning. From the analysis of this issue, we will weave some questions about the articulation between structure and phenomena on psychosis. We will support, in our discussion, the Lacans thesis that is required several generations to produce a psychosis. Then, we interpretate the intrusion of patronymic's significant of Schreber's family on the Flechsig's name from the perspective of what Freud called projection of compulsion and the Lacanian concept of foreclosure. Finally, we will make some considerations about the direction of the treatment in psychosis.
Keywords: foreclosure; delirium; hallucination; psychosis; patronymic.
RESUMEN
El objetivo de este trabajo es discutir la forma como Schreber transmuta el nombre de Flechsig y lo convierte en la raíz de su sistema delirante. En el inicio de sus memorias, en la carta abierta a Flechsig, Schreber dice que el nombre de su ex-medico ejerció gran influencia en el desarrollo de su delirio, citándolo en su totalidad. Sin embargo, este nombre como se transcribe, se desvía del verdadero nombre de Flechsig. Se trata del nombre de un antepasado de Flechsig. Los nombres y apellidos de este antepasado, agregados al nombre de Flechsig cuando se analiza a luz de su delirio, revelan la movilización de los significantes patronímicos de las generaciones anteriores a la familia de Schreber en su literalidad. Desde el análisis de esta cuestión hacemos algunas consideraciones de la articulación de la psicosis entre el fenómeno y la estructura. Valoramos en nuestra discusión la afirmación de Lacan según la cual son necesarias varias generaciones para producir una psicosis. En seguida, relacionamos la imisión de los significantes patronímicos de la familia Schreber en el nombre de Flechsig a lo que Freud llamó compulsión a la proyección y el concepto lacaniano de forclusion. Por último, hacemos algunas consideraciones acerca de la dirección del tratamiento de la psicosis.
Palabras clave: forclusion; delírio; alucinação; psicosis; patronímico.
RÉSUMÉ
L'objective de cet article est de discuter la façon comme Schreber transmute le nom de Flechsig et le transforme dans le sillage de son système délirant. Dans la préface de ses mémoires, Schreber dit que le nom de Flechsig a exercé une grande influence sur le développement de son délire, et il l'écrit entièrement. Cependant, l'écriture de ce nom s'écarte du vrai nom de Flechsig : c'est le nom d'un ancêtre de Flechsig. Les noms et prénoms de cet ancêtre, lorsqu'il est analysé à la lumière de son délire, révèlent la mobilisation du patronyme significative des générations précédentes dans la famille Schreber dans sa littéralité. À partir de l'analyse de cette question, nous allons prendre des renseignements sur la relation entre la psychose entre les phénomènes et la structure. Nous detacherons dans notre discussion ce que Lacan avait dit: il y a le besoin de plusieurs générations pour produire une psychose. Nous allons faire le rapport entre l'immission des significants patronymique de la Famille Schrebers dans le nom de Flechsig avec ce qui est nommé par Freud comme la compulsion à la projection et au concept lacanien de forclusion. Enfin, nous allons discuter la direction du traitement de la psychose. Ce travail se configure comme l'éfort pour articuler l'estructure et le phénomène dans la psychose, à partir du commentaire de Memórias de Schreber.
Mots-clés: forclusion; délire; hallucinations; psychose; patronyme.
Propomos nesse trabalho tomar algumas afirmações de Schreber sobre sua relação com Flechsig, no contexto do endereçamento singular que aí ocorre, para perguntar de que modo esse vínculo funciona como catalizador da construção de seu delírio.
Partiremos de algumas passagens da autobiografia de Schreber (1905/1984), em especial a carta aberta a Flechsig e os capítulos 6 e 7, nos quais é possível ler que o pivô do laço criado entre os dois é o nome de Flechsig, ou melhor, os nomes de antepassados de Flechsig que agregam prenomes e sobrenomes comuns à família paterna do presidente Schreber.
No decorrer de nossa exposição, resgataremos alguns tópicos sobre a estrutura da psicose. Constituirá o núcleo de nossa argumentação a afirmação de Lacan (2003) de que é necessário o trabalho de duas gerações para se constituir uma psicose. Do mesmo modo, será de grande importância para nossa fundamentação teórica as suas contribuições sobre a foraclusão na década de 1950.
Também faremos referência à tese explicitada por Freud (1914/1997d) no texto sobre o Narcisismo de que há uma diferença qualitativa na psicose entre o estado anterior à eclosão da primeira crise, o estado que se segue ao seu desencadeamento e à sua estabilização. Em seguida, comentaremos a expressão compulsão à projeção, que Freud (1910/1997e) traz à baila no artigo sobre o caso Schreber para descrever a dinâmica dos fenômenos psicóticos, assim como o termo que Lacan (2002) utilizou para definir a direção do tratamento nas psicoses: secretariar o alienado.
Na parte final, retomaremos nossa questão principal - a intermediação dos patronímicos da família Schreber na relação com Flechsig - para discutir as consequências técnicas, éticas e políticas da adoção do conceito de foraclusão. Nosso intuito é interrogar o modo - nem sempre claro e evidente - pelo qual, através vínculo transferencial, o terapeuta está concernido no delírio do psicótico. Menosprezada por Flechsig, essa implicação vem à tona, com toda a sua intensidade e vigor, no texto de Schreber.
Desse modo, justificamos o valor desse trabalho pela investigação na textualidade do relato de Schreber do mecanismo psíquico da foraclusão, conceito que Lacan, a partir de sua leitura de Freud, elevou ao patamar de processo fundamental das psicoses.
Foraclusão, Linguagem E Realidade
Segundo Soler (2007), "a foraclusão não é um fenômeno. Não faz parte do observado: é uma hipótese causal" […] "Não identificamos a foraclusão, mas seus efeitos" (p. 12). Daí ser necessário articular estrutura e fenômenos na investigação clínica das psicoses, tomando como ponto de apoio a singularidade da fala do sujeito psicótico.
Dando continuidade ao esforço de inúmeros psicanalistas, dedicar-nos-emos à interpretação do delírio do Presidente Schreber, colocando em destaque as contribuições de Freud e Lacan. Tomamos como ponto de partida um trecho das Memórias de um Doente dos Nervos, especificamente na "Carta Aberta a Flechsig", na qual encontramos a seguinte declaração:
[…] não tenho dúvida que o seu nome desempenha um papel essencial na gênese das circunstâncias a que me refiro na medida em que certos nervos extraídos do seu sistema nervoso se transformaram em "almas provadas", no sentido descrito no capítulo I das Memórias, nesta qualidade adquiriram um poder sobrenatural, em consequência do qual vêm exercendo uma influência nociva sobre mim e até hoje ainda exercem. (Schreber, 1905/2011, p. 22)
No capítulo referido, Schreber dirige-se ao seu antigo médico para esclarecer que as abundantes referências ao seu nome constituem uma necessidade lógica para a explanação de seu sistema de ideias. Na frase citada, o autor é enfático ao salientar a importância da mediação do nome próprio de Flechsig. Schreber poderia ter se referido à pessoa, à imagem ou à figura de Flechsig, mas ele é claro e específico ao mencionar o nome. Ao final desse capítulo, cita o nome de um antepassado de seu antigo médico, completo e por extenso: "Daniel Fürchtegott Flechsig" (Schreber, 1905/1984, p. 24). Lembramos aqui o nome do médico que tratou o presidente Schreber, "Paul Theodor Flechsig" (Schreber, 1903/1984, p. 37), para pô-lo em contraste com o nome citado.
Convém nesse momento fornecer um esclarecimento prévio. Tomamos o nome mencionado por Schreber como obra de seu delírio. Como tal, esse nome reflete a sintaxe de pensamento que é inerente a sua estrutura psíquica. Nesse sentido, colocamos em segundo plano no contexto de nossa investigação os aspectos históricos concernentes ao referido antepassado de Flechsig. Nossa abordagem irá pôr em destaque o nome deste antepassado como um elemento de forte relevância para o entendimento do vínculo transferencial com Flechsig, haja vista que este nome põe em questão os nomes próprios da linhagem paterna do presidente Schreber.
Santder (1997) não deixa escapar o jogo de palavras constituintes do delírio de Schreber, que, de modo fantástico, põe em cena os patronímicos dos antepassados das famílias Schreber e Flechsig. Sua discussão, contudo, enfatiza outro aspecto do problema: a influência da organização de poder na Alemanha na ordenação do delírio de Schreber.
Niederland (1981) ressalta a presença de muitos detalhes da realidade e elementos factuais no delírio de Schreber. Isso não é motivo de espanto, uma vez que Freud (1924/1997b) sustenta que o elemento determinante da psicose não é a perda da realidade. Para Freud, a perda da realidade não é um fenômeno exclusivo das psicoses. Ela também ocorre nas neuroses. A especificidade da psicose está na forma como essa realidade perdida é restituída. Situando esse argumento no caso de Schreber, o problema está em apreender o modo pelo qual seu delírio se apropria de alguns traços da realidade para fazer suplência àquilo que não obteve inscrição psíquica.
Desse modo, diferentemente de Santder, em vez de priorizar os componentes sociológicos da discussão (mas também sem excluí-los), colocaremos o acento de nossa investigação no trabalho psíquico subjacente à construção do sistema delirante do presidente Schreber, que incorpora eletivamente alguns elementos de seu ambiente cultural, social e familiar.
Chamamos a atenção do leitor para um fato que é insistentemente posto em relevo pelo próprio Schreber em diversas passagens de suas Memórias: Ele se esmera em demonstrar que suas palavras não devem ser tomadas como ofensas ao seu antigo médico. O alvo de suas declarações é um desdobramento da pessoa de Flechsig, uma manifestação de sua alma desencarnada antes do tempo. Trata-se, portanto, de um avatar de Flechsig, ou melhor, do produto da fusão da pessoa de Flechsig com seus antepassados e, principalmente, com os patriarcas da família Schreber. Esse desdobramento se materializa no nome citado por extenso na "Carta Aberta".
Propomos, portanto, situar essa transmutação do nome de Flechsig na própria estrutura de linguagem do pensamento de Schreber. Aqui seguimos o ensinamento de Freud (1914/1997c) forjado a partir do comentário de um caso clínico de Tausk: 1) que há uma transformação da linguagem na esquizofrenia; 2) que as relações entre as representações de coisas e de palavras não se dão da mesma forma como na neurose; 3) que na esquizofrenia as palavras são tratadas como coisas; 4) que o dito esquizofrênico assume o caráter de uma linguagem de órgãos. Desta forma, não tomaremos o enunciado de Schreber de modo metafórico. Tentaremos abordá-lo como um elemento de seu sistema delirante que pode indicar algo da estrutura singular de sua foraclusão.
Lacan (2002), em consonância com Freud, insiste na diferença entre a linguagem do neurótico e do psicótico. No seminário, livro 03, lemos que na psicose o inconsciente funciona a descoberto. Essa tese desdobra-se noutra afirmação: "Tudo o que em outro sujeito haveria entrado no recalque, encontra-se suportado por uma outra linguagem [...] de alcance bastante reduzido chamada dialeto" (Lacan, 2002, p. 73).
Para estudar a lógica interna desse dialeto psicótico, Lacan dedica sua atenção à descrição do que Clérambault denominou automatismos mentais: ecos de palavras, pensamentos antecipados por vozes, pensamentos impostos, telepatia etc. Daí, porque algo da relação mais fundamental do psicótico com a linguagem sofre de uma anomalia (efeito da foraclusão), o discurso dá mostras de uma linguagem automatizada.
Em função dessa linguagem peculiar, alguns pensamentos se manifestam como algo exterior ao funcionamento do psiquismo. Daí que em muitos casos os produtos do pensamento do psicótico são descritos como fenômenos sensoperceptivos disruptivos ou como ideias alienígenas invasoras. Um exemplo disso exposto no delírio de Schreber é o processo pelo qual seus nervos e sua ideias se fundem e se misturam, independente de sua vontade, com os nervos de Deus e de Flechsig (Schreber, 1905/1984).
Aqui uma comparação com o que ocorre na neurose pode ser elucidativo. Na neurose, a divisão psíquica se expressa na forma de um compromisso. As tentativas de recusa de elementos da realidade na neurose implicam em um reconhecimento simbólico inicial daquilo que é negado. Em função disso o sintoma neurótico incomoda. Embora seja vivenciado como um corpo estranho, ele traz a marca de que é um produto do próprio psiquismo. Daí o embaraço que algumas modalidades do retorno do recalcado suscitam.
Na psicose, ocorre um processo diferente. Aquilo que é negado não se beneficia desse processo de simbolização primordial. Seguindo o ensino de Lacan (2002), lemos que, em consequência da foraclusão, alguns elementos encontram-se isolados da cadeia de significantes e, por isso, adquirem uma intensidade exacerbada, tanto de significação como de investimento libidinal. Esse isolamento do significante no real é função da não-operatividade de uma lei simbólica fundamental, cuja regulação é mediada pela inscrição de um significante de exceção, o significante do nome-do-pai. Trata-se, nesse caso, do significante que substitui a mãe como objeto real de satisfação, operando uma perda de gozo no corpo, engajando a criança na dialética do falo e possibilitando a significação do desejo materno.
Através da significação do desejo da mãe operado pela metáfora paterna processa-se uma mudança no lugar que o sujeito ocupa frente a esse desejo. Em consequência do reconhecimento de que há algo indicado pelo desejo da mãe para além dela, coloca-se para a criança a questão do seu próprio desejo sob o móbil da dialética fálica. Ela descobre que não é o falo da mãe. Lastreado pela indicação do desejo materno, o pai surge como aquele que é suposto possuir aquilo que é capaz de satisfazer a mãe e que tem o direito de gozar sobre o seu corpo. Assim, a criança é desestabilizada do lugar que inicialmente ocupava, o de falo materno (ser o falo), e é introduzida na dialética do ter (e não ter) o falo.
O falo é entendido aqui como o objeto destacado do corpo, um objeto efêmero e cambiante, que orientará o sujeito na tomada de posição frente à diferença sexual e servirá como elemento ordenador do gozo. Ele é definido por Lacan (1998a) como o significante do desejo do Outro. Trata-se de um operador psíquico que tornará possível que o Pathos (campo dos afetos e das paixões) seja atravessado pelo Logos (ordem da linguagem e da razão).
Fizemos essa breve resenha da metáfora paterna para assinalar que o mecanismo da foraclusão consiste na não-operatividade do significante do nome do pai nessa operação pela qual Lacan traduz o complexo de Édipo freudiano. Como consequência lógica, podemos dizer que os efeitos da foraclusão irão se fazer notar na linguagem, nos fenômenos corporais sensoperceptivos, nos vínculos sociais e na constituição da identidade sexual.
Apresentamos aqui outra consequência dessa hipótese etiológica. Se aceitamos que o delírio de Schreber constitui o principal suporte de um trabalho psíquico que engendra a estabilização de sua psicose é porque, de alguma maneira, os significantes ordenados pelo seu sistema delirante efetuam uma suplência em relação ao significante do nome-do-pai foracluído.
Nesse momento, inserimos aqui dois argumentos que Soler (2007) desenvolve que, em nosso entendimento, corroboram para adoção de uma atitude de cautela no tratamento de psicóticos, no sentido de que não estamos no mesmo campo operativo da clínica das neuroses.
O primeiro argumento especifica e situa o que se costuma denominar de metáfora delirante. De acordo com a autora não se trata no delírio do psicótico, rigorosamente falando, de uma metáfora. Isso quer dizer que, ao adotarmos o pressuposto de que a linguagem possui efeitos no psicótico, não podemos defender que tais efeitos advêm de uma operação de substituição metafórica. Se o disséssemos, estaríamos aceitando o pressuposto de que uma nova metáfora paterna seria construída ou que ela preexistiria, de algum modo, em um estado latente ou inativo. Neste caso, o objetivo do tratamento seria a mobilização de uma metáfora paterna inativa, não-operante, mas preexistente. Não é essa a leitura da direção de tratamento nas psicoses proposta por Lacan (2002).
O segundo argumento de Soler (2007) diz respeito à estabilização da psicose. A autora salienta que o termo estabilização provém da psiquiatria e do senso comum e que ainda carece de uma teorização clínica mais apurada. Entendemos que a autora não refuta essa terminologia, mas aponta para uma insuficiência no esforço de elucidação dos fatos clínicos que seu emprego carrega.
Na conjunção dessas duas teses, deparamo-nos com a necessidade de investigar com mais precisão as vias de estabilização na psicose e as estruturas de linguagem que lhe dão suporte. Como consequência disso, impõe-se o caminho de percorrer as produções linguageiras singulares dos sujeitos psicóticos, tomando como pano de fundo a estrutura.
Advertidos e instigados por esses dois argumentos, retornamos à nossa questão central. Ao abordarmos o tratamento que é dado ao nome de Flechsig dentro da gramática do delírio de Schreber, perguntamo-nos por qual caminho - por intermédio de quais elementos - este nome, conforme a declaração do próprio Schreber, exerceu tamanha influência em sua estabilização, entendida aqui como o erigir de uma barreira ao gozo invasivo do Outro.
Sua autobiografia é a estória de seu delírio e o delírio é o instrumento de sua cura. É pelo delírio que se dá o ordenamento de certos eventos de sua vida em torno de alguns significantes. O livro de Schreber é a defesa que ele próprio redigiu para demonstrar que está de posse de suas faculdades mentais e, por conseguinte, apto para deixar o internamento institucional e retornar ao convívio em sociedade.
Schreber nos ensina que sua cura se processa a partir de seus próprios recursos, à revelia das intervenções às quais foi submetido. Se não fosse a insistência de Schreber em publicar o seu livro, todo o testemunho desse árduo e complexo trabalho estaria perdido. As suas Memórias constituem, portanto, a manifestação explícita da potencialidade do sujeito psicótico em produzir um tratamento para os fenômenos dos quais padece. Essa lição de Schreber continua atual e prenhe de valor clínico e político.
A partir de seu texto, cabe indagar como seu delírio responde às necessidades de reordenamento impostas por sua estrutura psíquica. Para responder a essa questão, faz-se necessário perguntar pelas diversas formas de manifestações da foraclusão nas diferentes etapas da vida de um sujeito psicótico.
Fenômenos De Linguagem E Fenômenos Corporais Nos Sujeitos Psicóticos
Soler (2007) insiste na solidariedade entre estrutura e fenômeno na psicose. No entanto, alerta para a especificidade das manifestações clínicas das psicoses: "Os fenômenos da psicose se apresentam de forma muita mais descontínua do que os fenômenos da neurose" (Soler, 2007, p. 192). Em seguida, acrescenta:
A psicose […] apresenta-nos desencadeamentos repentinos, inesperados, desencadeamentos-surpresas, assim como remissões às vezes enigmáticas. A questão, portanto, é apreender qual é o móbil das peripécias descontínuas das psicoses, se quisermos ter alguma chance de saber onde e como podemos dirigir o tratamento […]. (Soler, 2007, p. 32)
O problema da descontinuidade dos fenômenos psicóticos é tema do comentário freudiano no texto sobre o narcisismo (Freud, 1914/1997d). Nele lemos que há três etapas dos desdobramentos patológicos na esquizofrenia. Cada uma dessas etapas possui uma característica própria e uma manifestação particular no que concerne à articulação entre fenômeno e estrutura. A primeira delas é descrita como análoga à normalidade. Ou melhor, há uma semelhança com a neurose no que diz respeito à manifestação dos fenômenos, contudo isso não permite estender as semelhanças ao campo da estrutura. Para Freud, as manifestações psíquicas da esquizofrenia nessa etapa assemelham-se à neurose porque os investimentos objetais estão mantidos, de forma mais ou menos estáveis, sob condições especiais. Essa etapa é característica do que Lacan (2002) denomina pré-psicótico, o psicótico antes da primeira crise. As manifestações patológicas são sutis, o que exige um cuidado no diagnóstico diferencial com a neurose.
No segundo momento, Freud situa o desencadeamento dos processos patológicos. Essa etapa é caracterizada pelo desligamento dos investimentos libidinais dos objetos, o que gera em contrapartida uma série de fenômenos invasivos no corpo. A libido se destaca dos objetos e segue o caminho da introjeção narcísica. Como consequência, temos o que Freud chama de linguagem dos órgãos.
A última etapa consiste na restituição do investimento objetal. Sobre essa derradeira fase, Freud alerta: esses novos investimentos são constituídos sob condições diferentes dos investimentos anteriores ao desencadeamento da doença. Isso quer dizer que a estabilização não consiste no retorno a um estado anterior à eclosão da doença.
Nessa última fase podemos situar o trabalho de construção do delírio de Schreber, que promove o reordenamento dos investimentos libidinais. O trabalho da terceira fase se articula com os dois momentos anteriores, mas o faz a partir de suas próprias condições. Isto é, o delírio retoma os fenômenos relacionados às etapas anteriores, porém a partir de um patamar diferenciado, utilizando-se de uma gramática própria e de uma nova conjunção da economia libidinal. O que no primeiro momento estava latente, aqui se torna manifesto.
Soler (2007) desenvolve essa linha de pensamento freudiano e chama atenção para a necessidade de diferenciação entre os fenômenos elementares e as construções delirantes. Assim, ressalta a importância de avaliar diferenciadamente os "fenômenos primários da doença das elaborações que se acrescentam a eles e pelas quais o sujeito reaje aos fenômenos a que padece" (Soler, 2007, p. 185). Entendemos os fenômenos primários como as primeiras manifestações psíquicas de um excesso de significação que se constitui em decorrência de um furo no simbólico, de uma impossibilidade de dialetização pela via do significante.
À título de descrição das vicissitudes da psicose de Schreber, podemos estabelecer a seguinte sequência que perfaz o caminho de que vai de sua primeira crise à sua estabilização: 1) há inicialmente um fenômeno enigmático caracterizado por uma ausência de significação concomitante à irrupção de um gozo anômalo, 2) ocorre a instauração de uma pregnância de sentido, 3) a partir dessa significação que se condensa, ocorre a construção do delírio. O delírio possibilita concomitantemente uma dialetização simbólica dos significantes e um tratamento ao gozo.
Esse percurso retrata um movimento que vai da irrupção da esquizofrenia - demarcada pela emergência de fenômenos corporais e de pensamento relacionados à vivência de um gozo invasivo e anômalo - à ordenação de seu delírio em torno de alguns significantes destacados de sua estória de vida.
Dedicamos atenção à análise do desenvolvimento da esquizofrenia de Schreber, pois consideramos essencial na clínica das psicoses a investigação de como se dá a escolha dos significantes condensadores de gozo que emergem como ponto de esteio da construção do delírio.
Sobre essa questão, Soler (2007) escreve que o psicótico não cria novos significantes. Toma-os emprestado do Outro, mas de modo diferente do neurótico, que o faz pela via da identificação simbólica. Daí ser pertinente atentar para a relação desses significantes que são incorporados ao delírio do psicótico com as diversas modalidades do retorno do foracluído.
É o que tentaremos desenvolver da leitura de algumas passagens da autobiografia de Schreber. Pela complexidade da questão, estaremos satisfeitos se conseguirmos resgatar um fio dessa lógica intricada e sobredeterminada e, daí, segui-lo por alguns passos.
Lacan (2002) insiste que a alucinação verbal é o fenômeno da psicose que mais se aproxima de sua estrutura. Ela é o modo pelo qual o significante foracluído retorna do real. Quinet (2007) descreve a alucinação como um significante que, isolado da cadeia significante, no real, visa o sujeito e designa o seu ser de objeto. Ele insiste no fato que o significante-mestre da alucinação mortifica o sujeito; enquanto o delírio representa uma tentativa de situar esse significante alucinado em relação a outros significantes, por associação, pela via de uma construção metonímica.
A direção do tratamento na psicose consiste em situar o gozo no Outro através da ordenação no delírio dos significantes que emergem pela via dos automatismos mentais, alucinações etc. É a esse esforço que Lacan chama de secretariar o psicótico, ou seja, auxiliar o psicótico na construção de uma organização delirante que permita situar os significantes foracluídos que retornam no real dentro de uma ordem simbólica.
Propomos aqui tomar esses fenômenos de linguagem relacionados aos automatismos mentais do psicótico ao que Freud (1911/1997, p. 187) denominou "compulsão a projeção" (Projektionszwang). Trata-se da combinação de termos oriundos da psicologia do neurótico que Freud se utiliza para descrever os fenômenos inerentes ao funcionamento da psicose. A partir da leitura de Lacan (2002), podemos afirmar que na base dessa compulsão está o significante foracluído que insiste em retornar no real.
Por outro lado, ao citar o termo projeção, acreditamos que Freud nos indica que esses significantes foracluídos quando retornam no real mobilizam a dimensão psíquica do imaginário como uma tentativa, ainda que incipiente, de estabilização. Como consequência dessa impregnação imaginária, há o risco do psicótico tomar as pessoas que estão concernidas no seu delírio - e consequentemente, no seu tratamento - como um Outro consistente, sem faltas.
Esse é o alerta que Quinet (2009) e Soler (2007) lançam. Ambos chamam atenção para a tênue distância que separa os lugares de secretário do psicótico e do Outro consistente, ameaçador e invasor que pode encontrar suporte no delírio. O risco que paira na clínica da psicose em relação ao qual o psicanalista deve estar advertido é o da passagem ao ato como uma tentativa de fuga do sujeito psicótico da ameaça de invasão do Outro ou para pôr fim a irrupção de gozo anômalo.
Essas considerações ressaltam a importância de, na clínica de psicóticos, situar o momento do surto com o intuito de mapear na história do sujeito o instante de irrupção do gozo anômalo. Entendemos que isso possibilita um reordenamento subjetivo a partir do resgate de alguns significantes que desempenham o papel de índice daquilo que não foi simbolizado pela metáfora paterna.
Em Uma Questão Preliminar a Todo Tratamento Possível das Psicoses, Lacan (1998a) sugere que podemos situar a primeira grande crise de Schreber, a que desencadeia a sua doença, a partir do momento que seu nome é indicado ao cargo de presidente do supremo tribunal de Dresden. Há aí uma questão com o nome próprio, uma dificuldade em adotá-lo, de apropriar-se dele e de se situar dentro da linhagem de sua família. Acreditamos que essa questão - a indicação de seu nome - pode também constituir uma ponte entre a irrupção da primeira grande crise desestabilizadora e o desenvolvimento futuro de seu delírio.
Sabemos da leitura de sua autobiografia como o delírio de Schreber conjuga sexualidade e religião numa alusão a um messianismo redentor de uma catástrofe sempre adiada para um futuro próximo. O lugar que ele ocupa na redenção do mundo é o de mulher de Deus. Para isso, ele vivencia transformações no seu corpo que levarão à uma mudança de sexo.
A respeito da sexualidade de Schreber, Lacan (2003b) propõe o termo "empuxo à mulher" (p. 466). Trata-se de um fenômeno encontrado nas psicoses que surge em consequência da ausência da referência simbólica ao falo. Nesse contexto, a mudança de sexo relatada por Schreber difere de um devir feminino. Da mesma forma, não pode ser subsumido a uma posição homossexual masculina. Em ambos os casos, a operatividade simbólica do falo na operação da castração é o que permite ao sujeito uma tomada de posição frente à diferença sexual. A eviração de Schreber, por sua vez, mais se aproxima de uma resposta à experiência de um gozo anômalo sem o lastro da inscrição simbólica do falo, do qual se produz a tomada de um caminho ímpar no que diz respeito à sexuação.
A respeito do teor religioso do delírio de Schreber, é importante frisar que não se trata de professar uma fé, pelo menos como acontece no neurótico. Mesmo nos casos mais extremos, a fé pressupõe a dúvida, de onde se produz uma convicção. Para Schreber, há uma certeza. Sua crença não está submetida à necessidade de se conjugar a convicção de seus pares. Por mais fantástica que sejam suas ideias, ele não tem receio de externá-las. Para ele, seu sistema de ideias deve interessar tanto aos homens da ciência quanto aos da religião, pois constitui um elo entre esses dois campos.
Essa relação particular com o conhecimento é uma idiossincrasia de sua estrutura psíquica, o que exige em contrapartida - por parte de quem acolhe sua fala - uma escuta que leve em consideração os meandros da urdidura de sua linguagem.
A certeza do delírio do psicótico possui uma raiz libidinal. Os significantes isolados na cadeia acabam por adquirir um excesso de significação e de valor psíquico. Em função disso, tais significantes começam a congregar ao seu redor outras representações, mas de modo autoreferenciadas e não-dialetizáveis (Quinet, 2007).
Desta forma, Schreber testemunha que a cura do psicótico não ocorre pelo caminho de uma pedagogia ou de um esforço de convencimento. A inserção do psicótico à realidade acontece pelo crivo de seu delírio e dos novos investimentos libidinais que são constituídos através dele.
Salientamos que Flechsig não foi o único médico a cuidar de Schreber. Além do mais, a referência recorrente e acentuada ao nome de seu ex-médico mesmo após um período considerável do término do tratamento mostra que o vínculo transferencial estabelecido com Flechsig não ocupa um lugar fortuito ou acessório no delírio de Schreber.
Dito isso, voltamos ao nosso problema central: qual é a relação do sistema delirante de Schreber com o nome de Flechsig, que ele transmuta e eleva à categoria de sustentáculo de sua cura pelo delírio? Para avançar nessa questão, compararemos o nome de Flechsig e o de seus antepassados aos nomes da linhagem paterna da família Schreber.
Os Patronímicos Da Família Schreber E O Nome De Flechsig
Lacan, no texto Alocução Sobre as Psicoses da Criança, escreve: "para obter uma criança psicótica, é preciso ao menos o trabalho de duas gerações, sendo ela seu fruto na terceira" (Lacan, 2003a, p. 360).
A partir dessa afirmação, consideramos pertinente discutir os procedimentos metodológicos que aplicaremos na interpretação do texto do delírio schreberiano.
Muito se fala da influência da participação do pai do presidente Schreber no engendramento da psicose do filho, todavia a maioria dos argumentos arrolados para respaldar essa tese baseiam-se em informações oriundas da biografia do pai e de suas publicações, tal como faz Niederland (1981). As deduções aferidas por esse caminho, como assinala Ribeiro (2011), não precisam necessariamente encontrar acolhida na estrutura subjetiva do presidente Schreber. Ou seja, tais argumentos permanecem no campo da conjectura, carecendo de respaldo nas manifestações concretas de linguagem do sujeito em questão.
Diante dessa advertência, cabe perguntar: como e a partir de que elementos podemos verificar essa dimensão transgeracional na psicose de Schreber? A partir da leitura de um comentário de Lacan (1998b) situado no pósfacio De uma Questão preliminar... (pp. 586- 587), propomos um caminho de investigação: Na imissão dos patronímicos da família Schreber no nome de Flechsig. Consideramos, portanto, os significantes patronímicos mobilizados na relação transferencial com Flechsig a base do sistema delirante de Schreber. Levantaremos a seguir alguns elementos do texto de Schreber que acreditamos respaldar essa hipótese.
Schreber refere-se às suas vivências relacionadas às primeiras grandes crises como uma "fratura, estreitamente ligada ao meu destino pessoal". Diz tratar-se de "processos obscuros, cujo véu apenas parcialmente posso levantar". E arremata:
[…] devo notar que, na gênese da evolução em questão, cujos primórdios vão longe, remontando talvez ao século XVIII, desempenharam um papel importante por um lado os nomes de Flechsig e Schreber (provavelmente sem se limitar a um indivíduo particular das respectiva famílias) e por outro o conceito de assassinato de alma. (1905/1984, p. 34)
Buscaremos situar esse aspecto transgeracional que une as famílias Schreber e Flechsig no delírio do presidente Schreber a partir de um comentário de Freud. Segundo ele, há uma mudança de perspectiva de Schreber no que tange a fé e a sexualidade após o desencadeamento de sua doença. Inicialmente Schreber adotava uma atitude de dúvida em relação às questões da religião para, depois da crise, tornar-se temente a Deus (gottesfürtchig) (Freud, 1911/1917, pp. 158-159). Essa mudança acontece articulada a outra: a transformação de uma postura marcada pela ascese quanto aos assuntos sexuais para uma atitude voluptuosa.
Após a leitura desse comentário, ocorreu-nos uma correspondência entre o nome de Schreber, o nome de seu pai e o do antepassado de Flechsig (conforme ele cita na Carta Aberta) (Schreber, 1905/1984).
A partir de Niederland (1981, p. 22) e Lacan (1998b, p. 587), elencamos os nomes dos Schreber (destacamos em itálico os nomes que serão objeto de nossos comentários):
- Johann Gotthilf Daniel Schreber (Avô);
- Daniel Moritz Gottlob Schreber (Pai);
- Daniel Paul Schreber (Presidente Schreber);
- Daniel Gustav Schreber (Irmão).
Listamos agora os nomes dos Flechsig:
- Daniel Fürchtegott Flechsig: Nome de um parente de Flechsig tal como citado na Carta Aberta (Schreber, 1903/1984, p. 39);
- Abraham Fürchtegott Flechsig: Outro parente de Flechsig, desta vez mencionado no cap. 02 (Schreber, 1903/1984, p. 39);
- Paul Theodor Flechsig: Nome de Flechsig tal como citado por Niederlander (1981, p. 119).
De forma preliminar, destacamos a discrepância quanto ao segundo a escrita do nome de Paul Flechsig. Emil, de acordo com a tradutora da edição brasileira das Memórias (Schreber, 1905/1984, p. 308); Theodor, a partir de Niederland. Adotaremos o último em função da nominação escolhida pelo presidente Schreber (Schreber, 1905/1984, p. 38).
Contrapondo os sobrenomes intermediários do pai de Schreber e de Flechsig, encontramos o núcleo daquilo que resiste a toda tentativa de dialetização e que é colocado em primeiro plano no delírio. De um lado, o amor divino, o amor de deus (Gottlob), de onde por homofonia podemos derivar (Gottes Liebe); de outro, o temor de Deus, que podemos interpretá-lo como temor a deus (Fürchtegott), temor de origem divina (Furcht Gottes) ou mesmo o temor de Deus (Gottes Furcht).
Acreditamos que esses três sentidos podem ser, por metonímia, aferidos no contexto do desenvolvimento do delírio de Schreber. De início, acossado pelo medo da emasculação agenciada por Deus, o presidente Schreber se opõe e se rebela contra o plano divino. Em um segundo momento, Schreber consente com esse projeto ao perceber que Deus é vulnerável, que não entende os homens e que há um plano em andamento que visa destruí-lo. A partir desse ponto, descobre para si um papel de destaque na redenção de Deus e da humanidade. Ele será a mulher que copulará com Deus e dará origem a uma nova raça de homens.
A palavra Furcht pode ser encontrada nos textos de Freud (1932/1997a) - nas novas conferências introdutórias - formando uma tríade ao lado dos termos Angst e Schreck, angústia e susto, respectivamente. Defendemos que a referência a esse afeto põe a castração em causa, ao mesmo tempo em que, por uma questão de estrutura, toca no âmago da falha simbólica constituinte da foraclusão que impede a dialetização da castração pela via que é acessível ao neurótico. É em relação a essa falha simbólica que seu delírio busca fazer suplência.
Retornemos aos nomes da família Schreber. O prenome Daniel se repete e oferece uma via de continuidade entre o Schreber pai, o presidente Schreber, um antepassado de Flechsig e o irmão do presidente Schreber. Além disso, Daniel também é o sobrenome do avô de Schreber.
Ainda com Quinet (2009), encontramos informações sobre o suicídio do irmão mais velho do presidente Schreber, Daniel Gustav. Já frisamos que o nome Daniel se repete como prenome no presidente Schreber e no Flechsig do delírio. Gostaríamos de acrescentar o argumento de que, dos cinco filhos da família (três mulheres e dois homens), todos os homens sucumbiram a um destino sombrio. Talvez essa questão remeta a uma fragilidade no que diz respeito às respostas desses dois sujeitos diante de uma injunção fálica a partir dos lugares que eles ocupavam dentro da linhagem familiar.
Também nos nomes listados encontramos a repetição do significante Paul. Em especial, como sobrenome em Schreber e prenome em Flechsig. Tal fato, no nosso entendimento, pode servir de suporte para um endereçamento marcado por um viés imaginário. Além disso, Paul é um nome que não se repete do lado dos Schreber. Entre os irmãos, pais e avós, o único membro da família onde encontramos esse significante é no presidente Schreber.
No que tange aos sobrenomes da família, tomando-os na perspectiva do desenvolvimento posterior de seu delírio, podemos levantar a hipótese de que o nome de seu pai (Gottlob) faz alusão a um outro não-castrado que o toma como objeto de satisfação: o Deus que ama Schreber sexualmente, tal qual um homem a uma mulher.
Também podemos ler no Livro de Niederland (1981) informações acerca do avô paterno do presidente Schreber. Nele, além do prenome Daniel, encontramos em seu sobrenome o significante Gotthilf, o que podemos traduzir ao pé da letra por ajuda de Deus. Esse patronímico da segunda geração traz, por metonímia, duas possibilidades de significação: pode ser tanto o deus que ajuda (Gotthilf) como também o Deus que é ajudado (Hilfgott), que precisa ser socorrido.
Tomamos aqui outra passagem da autobiografia de Schreber. Trata-se do trecho em que ele relata a emergência paradoxal de um pensamento antes de sua primeira grande crise, o qual Lacan (2002) toma por um fenômeno elementar:
Uma vez, de manhã, ainda deitado na cama (não sei mais se meio adormecido ou já desperto), tive uma sensação que me perturbou da maneira mais estranha, quando pensei nela depois, em completo estado de vigília. Era a ideia de que deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito - esta ideia era tão alheia a todo o meu modo de sentir que, permito-me afirmar, em plena consciência eu a teria rejeitado com tal indignação que de fato, depois de tudo que vivi neste ínterim, não posso afastar a possibilidade de que ela me tenha sido inspirada por influências exteriores que estavam em jogo. (Schreber, 1905/1984, p. 45)
Entendemos essa passagem como o relato da um fenômeno elementar, uma experiência enigmática que se desenvolve sobre um vazio de significação. Em um momento posterior, Schreber relata outra vivência, que se encadeia e se relaciona com a anterior. Trata-se de um sussurro alucinado que repetia de forma pouco amistosa a palavra Luder (Schreber, 1905/1984, p. 102), palavra cujo significado aproximado em português é o de cadela. Em uma acepção mais conotativa pode ter o sentido de mulher fácil ou lasciva.
O delírio de Schreber o coloca nesse lugar de mulher de Deus - objeto das investidas divinas, do amor lascivo de Deus - e, ao mesmo tempo, no lugar de redentor de Deus e da Humanidade.
Aqui faremos uma pequena digressão. Niederland (1981, p. 118) escreve que, dentre os procedimentos terapêuticos adotados por Flechsig com seus pacientes, havia o recurso à castração como expediente de atenuar os sintomas psicóticos, principalmente com as pacientes mulheres. Trata-se de um detalhe difícil de se aferir: se Schreber sabia desses procedimentos e, caso tenha tomado conhecimento, em que momento isso aconteceu e de que forma essa informação teria lhe influenciado na construção de seu delírio.
De todo modo, essa questão nos alerta para o fato de que a Erotomania - na condição de um fenômeno recorrente na psicose - não era algo que tenha passado desapercebido a Flechsig. Da mesma forma, tal fato aponta para algo da relação de Flechsig com o saber.
Em todo caso, acreditamos que essa informação, se de fato ela exerceu influência na construção do delírio de Schreber, desempenhou uma função suplementar. Seguindo o seu relato nas Memórias, o cerne do problema, o que remete à estrutura, deve ser procurado na relação deste com o seu nome próprio e na sua inserção paradoxal na linhagem familiar. Portanto, antes do internamento de Schreber na clínica de Flechsig.
O terceiro capítulo da autobiografia, o que não foi publicado (dele só é conhecido o tema, o lugar na sequência do livro e o destino que sofreu, a censura), nos leva a conjecturar que algo dessa não-transmissão pela via das relações familiares muito provavelmente foi explicitado pelo próprio texto de Schreber, de modo distorcido, pela ótica de seu delírio, o que desencadeou o repúdio dos seus familiares.
Por outro lado, a sistematização do delírio, que sabemos ter sido impulsionada pelo encontro com Flechsig, revela no nome desse último um suporte: o temor de Deus. Como destacamos há pouco, o Deus schreberiano é vulnerável, não é nem onisciente, nem onipotente. Ele não entende a humanidade. Além do mais, há um complô para destruí-lo. Nesse complô, Flechsig ocupa um lugar de destaque.
Com a sistematização do delírio, torna-se possível fazer barreira ao gozo invasivo e conceder-lhe alguma significação, tornando-o suportável. Em seu delírio, caberá a Schreber salvar Deus e redimir a humanidade, o que o faz consentir com a mudança miraculosa de sexo.
O encontro com Flechsig, contudo, não propícia de imediato uma solução estável, haja vista que, pela impregnação imaginária, Flechsig duplica o lugar do Grande Outro absoluto, precipitando mais um ciclo de crises. A esse respeito, citamos Quinet no livro Teoria e Clínica da Psicose, no capítulo O Outro de Schreber:
Antes do desencadeamento de sua psicose, o Professor Flechsig, cuja eloquência causara profunda impressão em Schreber, era por este investido de uma idealização imaginária patente […] Flechsig, em posição de ideal do Eu, será levado a ocupar a posição do duplo especular de Schreber dentro do campo de uma agressão erotizada. (Quinet, 2009, p.32)
Na mesma página, podemos ler a respeito do lugar de Flechsig para Schreber logo após a deflagração da crise: "Nessa época, Flechsig se erigia como a alteridade absoluta de consistência única" […] "só mais tarde em seu delírio será imposta a ideia de que Deus era cúmplice dessa conspiração" (Quinet, 2009, p. 32).
A respeito desse lugar do Outro radical detentor de um saber massivo ocupado por Flechsig, Quinet (2009) destaca a alusão a Deus no radical grego presente no nome de Flechsig (o médico): Theo, de Theodor.
Conclusão
Nossa hipótese de trabalho consistiu em situar o nome de Flechsig como pivô de um momento prévio de elaboração que mobiliza os nomes próprios da família Schreber em sua literalidade, operando um tratamento à irrupção do excesso de gozo. A construção do delírio schreberiano vai no sentido da formação de uma barreira a esse Outro, que inicialmente era consistente e invasor e que depois se torna tolerável.
Acreditamos que os argumentos aqui expostos corroboram a tese da influência da literalidade dos patronímicos da família Schreber no delírio do presidente. Algo não foi suficientemente levado a cabo na transmissão de gerações - a simbolização da castração - o que desencadeia o retorno do significante foracluído no real através da lenta transformação de Schreber em mulher.
Optamos por seguir um fio da exposição do delírio do Presidente Schreber. Podemos identificar que seu sistema de ideias resgata os significantes dos patronímicos de sua família, promovendo um trabalho de costura a partir da gramática que é peculiar ao seu pensamento.
Esses significantes mobilizados no delírio podem ser tomados como os pivôs do endereçamento de Schreber a Flechsig. Através do vínculo com seu médico, Schreber apropria-se desses significantes, concedendo-lhes tratamento simbólico e reconhecendo neles produções de seu psiquismo.
Nesse sentido, consideramos o que aconteceu entre Schreber e Flechsig paradigmático a respeito do tratamento das psicoses, tanto no que concerne aos riscos como às potencialidades de cura. Sobre as potencialidades, apontamos o trabalho de secretariar a construção do delírio pelo psicótico como estratégia de promoção da estabilização através do remanejamento dos significantes que emergem através dos automatismos mentais. Já a respeito dos riscos, remetemos à possibilidade de uma passagem ao ato como consequência de uma impregnação imaginária ou de uma erotização exacerbada (pela via da erotomania) daqueles que se ocupam do tratamento dos psicóticos.
Levar em consideração os significantes que emergem do discurso do sujeito psicótico e secretariá-lo no seu esforço de barrar a irrupção de um gozo anômalo, sem que com isso o Outro torne-se absoluto e ameaçador, é o desafio trazido pela clínica dos psicóticos. Desta leitura clínica produz-se uma abertura para pensarmos criticamente as intervenções políticas e sociais no campo da saúde mental.
Referências
Freud, S. (1997a). Neu Folge der Vorlesung zur Psychoanalise - Vorlesung XXXII: Angst und Triebleben. In Studienausgabe (Vol. I). Frankfurt a. M.: S. Fischer. (Originalmente Publicado em 1933) [ Links ]
Freud, S. (1997b). Der Realitätverlust bei Neurose und Psychose. In Studienausgabe (Vol. III). Frankfurt a. M.: S. Fischer. (Originalmente Publicado em 1924) [ Links ]
Freud, S. (1997c). Die Metapsychologische Schriften von 1915: Das Unbewusste. In Studienausgabe (Vol. III). Frankfurt a. M.: S. Fischer. (Originalmente Publicado em 1915) [ Links ]
Freud, S. (1997d). Zur Einführung des Narzissmus. In Studienausgabe (Vol. III). Frankfurt a. M.: S. Fischer. (Originalmente Publicado em 1914) [ Links ]
Freud, S. (1997e). Psychonalytische Bemerkungen über einen Autobiographisch Beschriebenen Fall von Paranoia. In Studienausgabe (Vol. VII). Frankfurt a. M.: S. Fischer. (Originalmente Publicado em 1911) [ Links ]
Lacan, J. (2002). O seminário - livro 3: as psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores. [ Links ]
Lacan, J. (1998a). A Significação do Falo. In Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editores. [ Links ]
Lacan, J. (1998b). De uma questão preliminar a todo tratamento de psicóticos. In Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editores. [ Links ]
Lacan, J. (2003a). Alocução sobre as psicoses da Criança. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores. [ Links ]
Lacan, J. (2003b). O Aturdito. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores. [ Links ]
Niederland, W. G. (1981). O Caso Schreber: Um Perfil Psicanalítico de uma Personalidade Paranóide. Rio de Janeiro: Campus. [ Links ]
Quinet, A. (2009). Teoria e Clínica da Psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária. [ Links ]
Quinet, A. (2006). Psicose e Laço Social: esquizofrenia, paranóia e melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores. [ Links ]
Ribeiro, M. A. C. (2011). Bola de Fogo, uma história de amor: o presidente Schreber e sua mãe. In S. Borges, & S. Abramovitch (Orgs.), O amor e suas letras (pp. 33-39). Rio de Janeiro: 7Letras. [ Links ]
Santner, E. L. (1997). A Alemanha de Schreber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores. [ Links ]
Schreber, D. P. (1905). Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken. Recuperado de http://gutenberg.spiegel.de/buch/4989/1 [ Links ]
Schreber, D. P. (1984). Memórias de um doente dos Nervos. Rio de Janeiro: Edições Graal. (Originalmente Publicado em 1905) [ Links ]
Soler, C. (2007). O Inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores. [ Links ]
Endereço para correspondência:
Fabiano Chagas Rabêlo
Endereço: Rua Marc Jacob, nº 484, Apt. 203, São Benedito
Parnaíba/PI. - CEP: 64.202-510
E-mail: fabrabelo@hotmail.com
Recebido em: 19/06/2013
Revisado em: 21/10/2014
Aceito em: 25/11/2014