Servicios Personalizados
Revista
Articulo
Indicadores
Compartir
Revista Subjetividades
versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.16 no.2 Fortaleza ago. 2016
https://doi.org/10.5020/23590777.16.2.71-81
ESTUDO TEÓRICO
Psicanálise e literatura: Thomas Ogden e a poesia de Robert Frost
Psychoanalysis and literature: Thomas Ogden and the poetry of Robert Frost
Psicoanálisis y literatura: Thomas Ogden y la poesia de Robert Frost
Psychanalyse et littérature: Thomas Ogden et la poésie de Robert Frost
Lucia Beatriz Pitanguy Sampaio (Lattes)I; Maria Inês Garcia de Freitas Bittencourt (Lattes)II
IPsicanalista. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio
IIDoutora em Psicologia Clínica. Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio (Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica)
RESUMO
Convidamos você a dialogar com psicanálise e poesia através da leitura de Thomas Ogden e Robert Frost. Com Ogden, bom leitor de Bion, Winnicott e Frost, observamos a instrumentalização do aparelho de pensar com formas criadas na experiência de leitura a partir da interseção com as formas de pensar do escritor. Em Frost, pescamos os sons vivos do discurso, sobressons que reverberam o som do sentido na voz do outro que nos constitui. Este caminhar partilhado com a voz do outro que a imersão em uma obra literária proporciona é experiência cultural de aliveness por excelência. Compreendendo o corpo como locus da experiência e a voz como contorno psíquico, consideramos que os devaneios poéticos apontam para a ideia de que a arte, assim como a verdade, é uma construção que tem como referências as experiências de criador e observador - na literatura, da dupla escritor e leitor. Partindo de alguns conceitos elaborados por Ogden na leitura de poemas de Frost, enfatizamos neste artigo o ato de ler como um encontro que abre portais imaginários para muito além da dimensão intelectual.
Palavras-chave: psicanálise; literatura; Ogden; Frost; voz; sons vivos do discurso.
ABSTRACT
We invite you to dialogue with psychoanalysis and poetry by the reading of Thomas Ogden and Robert Frost. We observe with Ogden, a good reader of Bion, Winnicott, and Frost, the instrumentalization of the thinking apparatus with forms created in the reading experience from the intersection with the writer's ways of thinking. In Frost, we fished the living sounds of speech, oversounds that reverberate the sound of meaning in the voice of the other that constitutes us. This walk shared with the voice of the other that the immersion in a literary work provides is a cultural experience of aliveness per excellence. Understanding the body as the locus of experience and the voice as a psychic contour, we consider that poetic reveries point to the idea that art, like the truth, is a construction that has as references the experiences of creator and observer - in literature, the duo writer, and reader. Starting from some concepts elaborated by Ogden in the reading of Frost's poems, we emphasize in this article the act of reading as an encounter that opens imaginary portals far beyond the intellectual dimension.
Keywords: psychoanalysis; literature; Ogden; Frost; voice; living speech sounds.
RESUMEN
Invitamos usted a dialogar con psicoanálisis y poesía por medio de la literatura de Thomas Ogden y Robert Frost. Con Ogden, buen lector de Bion, Winnicott y Frost, observamos la instrumentalización del aparato de pensar con formas creadas en la experiencia de lectura desde la intersección con formas de pensar del escritor. En Frost, pescamos los sonidos vivos del discurso, sobresonidos que reflejan el sonido del sentido en la voz del otro que nos constituye. Este caminar compartido con la voz del otro que la inmersión en una obra literaria proporciona es una experiencia cultural de aliveness por excelencia. Comprendiendo el cuerpo como locus de la experiencia y la voz como contorno psíquico, consideramos que los devaneos poéticos apuntan para la idea de que el arte, bien como la verdad, es una construcción que tiene como referencias las experiencias de criador y observador - en la literatura, de la dupla escritor y lector. Partiendo de algunos conceptos elaborados por Ogden en la lectura de poemas de Frost, enfocamos en este trabajo el acto de leer como un encuentro que abre portales imaginarios para más allá de la dimensión intelectual.
Palabras clave: psicoanálisis; literatura; Ogden; Frost; voz; sonidos vivos del discurso.
RÉSUMÉ
Nous vous invitons à dialoguer avec psychanalyse et poésie à travers la lecture de Thomas Ogden et Robert Frost. Chez Ogden, bon lecteur de Bion, de Winnicott et de Frost, nous observons l'instrumentation de l'appareil de penser avec les formes créés dans l'expérience de lecture à partir de l'intersection avec les façons de penser de l'écrivain. En Frost, c'est possible pêcher les sons vivants du discours, des "sursons" qui réverbèrent le son du sens dans la voix de l'autre qui nous constitue. Cette promenade partagé avec la voix de l'autre que l'immersion dans une œuvre offre est une expérience culturelle de vivacité par excellence. Comprendre le corps comme un lieu de l'expérience et la voix comme contour psychique, nous considérons que les rêveries poétiques pointent vers l'idée que l'art, et aussi la vérité, est une construction qui fait référence à l'expérience du créateur et observateur - en littérature, du duo écrivain et lecteur. À partir de certains concepts développés par Ogden dans la lecture de poèmes de Frost, nous soulignons dans cet article, l'acte de lecture comme une rencontre qui ouvre les portails imaginaires bien au-delà de la dimension intellectuelle.
Mots-clés: psychanalyse; littérature; Ogden, Frost; voix; sons vivants du discours.
Quando um homem se senta com caneta e papel para escrever, declara seu propósito de ser original (...). Eu gosto mais de um garoto que inventa para si próprio - que tira uma palavra ou frase de onde ela está e a move para outro lugar (Frost, 1918, p.695).
Desde seus primórdios, a psicanálise dialoga com a literatura. Esta comunicação é fonte fecunda de compreensão dos processos psíquicos e de criação de conceitos para descrevê-los. Inserindo-se nesta tradição, Thomas Ogden tem se dedicado, ao longo de sua obra, à leitura de autores provenientes de diversas culturas, entre os quais se destacam o argentino Jorge Luís Borges e o americano Robert Frost, inspiradores da criação de ferramentas teóricas utilizadas na sua clínica. Mais recentemente, Ogden publicou dois romances de sua própria autoria.
A leitura é uma experiência criativa e transformadora; envolvendo um universo de sensações e afetos, nos remete aos níveis mais íntimos da vida psíquica. Esta comunicação escritor/leitor opera transformações no aparelho de pensar, que adquire novos instrumentos de significação, novas metáforas e outros sentidos para as velhas metáforas. O leitor se constitui a partir da experiência de construir sentido no texto. O diálogo interno com o autor possibilita a construção de múltiplos sentidos.
Buscando compreender os processos de pensar desde seu início, nas experiências primordiais do corpo, Ogden tem como ponto de partida as contribuições teóricas de autores da escola inglesa, notadamente Bion e Winnicott. Em seus primeiros trabalhos, elabora diversas ideias sobre os primórdios da vida psíquica, entre as quais se destacam as noções de aliveness e deadness, entendidas como dois eixos - vida e morte - entre os quais se equilibra a experiência. A partir de seu quinto livro (Ogden, 1997), o autor leva seu foco de atenção, inicialmente concentrado na dimensão primordial da comunicação intersubjetiva, para o aqui e agora da experiência de aliveness/deadness no espaço de devaneio, herdeiro da rêverie materna das primeiras relações, como postula Bion (1962/1997). A maior contribuição de Ogden neste livro é a elaboração sobre o conceito de devaneio como um pensar vivo que integra diversas formas de interação com a alteridade. Inicia então uma viagem pela literatura a que dará continuidade em seus trabalhos seguintes.
Uma das modalidades do encontro com o si mesmo mediado pelo outro, a experiência de leitura de uma obra literária sustenta e é sustentada pelo processo de amadurecimento psíquico. Como propõe Winnicott (1990), o contato com o outro - realizado primordialmente na dimensão da indiferenciação eu/não eu - passa progressivamente a ocorrer, no decorrer do processo de amadurecimento, no contexto da realidade compartilhada. Em Ogden (1986; 1989) encontramos um estudo detalhado da obra de Winnicott, onde destacamos ainda dois outros conceitos pertinentes para este trabalho: o primeiro é o espaço potencial, herdeiro das primeiras experiências do bebê com o objeto transicional. A dimensão transicional entre sonho e realidade - processos primário e secundário, mundo interno e mundo externo - é também, na medida em que amadurecemos, o lugar em que vivemos criativamente e nos apropriamos de modo singular dos elementos fornecidos pela realidade externa. Trata-se do primeiro e eterno lugar no qual expressamos algo em nome próprio, contexto das verdadeiras partilhas, espaço no qual nos constituímos e nos desconstruímos. Neste espaço, no qual a abertura para a alteridade se faz maior, podemos nos misturar sem medo de nos perdermos. Trata-se de um lugar onde somos Nós, com letra maiúscula. Nós em nome próprio, subjetividade coletiva.
Da colisão com o texto emerge uma borda de onde ecoa o ruído da destruição da subjetividade anterior à leitura e sobressoam novas melodias. Um campo de influências presentifica uma intercorporeidade que abre espaço para a verbalização de símbolos constituídos a partir das protoemoções que fazem parte de um universo comum. O Eu é sentido, percebido e constituído no corpo e pelo corpo. Apesar de não serem da mesma ordem, o mental, o físico e o ambiente fazem parte de um só sistema. Nós pensamos com todo o nosso corpo e é nele que as profundas transformações são operadas. Importante instrumento de elaboração, o brincar metafórico a partir das próprias sensações em confronto com o texto instrumentaliza percepção e comunicação. Essa dimensão espacial de profundidade, traçada na interseção das perspectivas de si e do outro, é o lócus da imaginação, instrumento de criação do brincar mediado pela interação com a alteridade.
Nesse espaço partilhado com o escritor, que se cria no aqui e agora da experiência da leitura, o leitor faz uso da palavra (ideia análoga ao uso do objeto de Winnicott) para dizer algo em nome próprio. Através dos sons vivos do discurso, a voz do outro nos constitui. A experiência de aliveness proporcionada pela própria voz acolhe e dá contorno psíquico ao corpo, lócus de toda experiência. Pescando palavras no discurso do escritor, o leitor se envolve em um brincar metafórico, que integra camadas de experiência, como a leitura e a memória da história pessoal, em um processamento imaginativo. Nesse devaneio afinamos o som do sentido.
A força transformacional inerente à ficção se situa no senso de realidade do trabalho concreto sobre o material imaginativo. O trabalho da imaginação associa - em interpretação transformadora - a leitura do material ficcional à experiência. O leitor, aberto à alteridade, se aproxima do universo do escritor e se apropria de palavras, narrativas, metáforas, para transformar a própria maneira de pensar. Desencadeando portais que transportam a imaginação para a ressignificação de sua experiência pessoal, as palavras pescadas no texto se incorporam à própria voz. Os sobressons reverberam da leitura como sons vivos de um discurso próprio. Os processos de criação de sentido envolvidos incitam transformações na realidade.
No processo de leitura de uma obra poética, podemos observar a maneira como a língua é trabalhada na construção de verdades subjetivas, que abrem portais imaginários onde o leitor vive uma experiência verdadeira. Inspirado em Frost, Ogden sublinha algumas expressões - como sobressons, sons vivos do discurso, o som do sentido, pescando palavras - que contribuem para a importante ideia da voz do outro que nos constitui. A experiência é necessariamente corporal. Compreendendo o corpo como lócus da experiência e a voz como contorno psíquico, pontuamos que os devaneios poéticos apontam para a ideia de que a verdade é sempre uma construção que tem como referência as experiências do criador e seu interlocutor, constituídos, no caso da literatura, pelo escritor e pelo leitor. Isso nos remete ao segundo conceito winnicottiano ilustrado neste artigo: a ideia de experiência cultural, que, para Winnicott, refere-se à concepção da criação individual realizada no espaço potencial sobre uma base de tradição. A leitura de uma obra poética pode ser considerada como experiência cultural por excelência.
Criando Sentidos Para O Viver
Ogden (1995) ressalta que, com Winnicott (1967/1975, pp. 133-143), a problemática central da psicanálise deixa de ser o desejo, como em Freud, ou amor, ódio e reparação, como postulou Klein (1946/1996), e transforma-se nas experiências antagônicas de estar vivo (quando o ambiente/ outro se adequa às necessidades do ser) e de ruptura na continuidade do ser. Os dois estados fundamentais aos quais Ogden se remete, nomeando-os aliveness e deadness, fazem referência a uma potência de investimento (em direção ao interior e/ou ao exterior) e a seu oposto, um esvaziamento dessa possibilidade de movimento. O equilíbrio entre as dimensões de aliveness e deadness parece sempre estar ligado ao investimento do outro e no outro; um pensar partilhado assegura um ambiente de devaneio no qual os sonhos se transformam em projetos e atos criativos. A busca de uma trilha, que advém da confluência equilibrada entre os movimentos de aproximação e afastamento da alteridade, marca tanto o pensamento de Ogden quanto o de Winnicott. Neste espaço de acolhimento conjunto, é possível sentir, visualizar, experienciar, falar. A dimensão de deadness se transforma de coisa impensável (Bion, 1963; Winnicott, 1974) em experiência viva, simbolizada. Deixa de ser um fato cristalizado e se torna um sentimento passível de percorrer outras vicissitudes.
Facilitando o curso das associações simbólicas, a experiência da leitura proporciona uma dimensão eminentemente de encontro. Encontro com outro de si e troca com o próprio Eu identificado no texto - estranhamento e familiaridade de si no outro e do outro em si. Uma rede de sentidos partilhados se desdobra na experiência metafórica. Ogden entende que a metáfora realiza um holding simbólico. Esta metáfora do holding simbólico sintetiza as funções de holding de Winnicott e continente de Bion. Com a ampliação do espaço de jogo, facilitando um descolamento, outras construções sensoriais e afetivas se entrelaçam em um brincar metafórico. Sentimentos e percepções interagem recebendo e processando sensações; sentimentos e pensares participam de uma construção conjunta de sentido.
Muitas vezes o texto literário objetiva mais um efeito transformador do contexto existencial do que a transmissão de um conteúdo formal - a ampliação do campo comunicacional advinda dessa leitura possibilita a escuta do que antes era inaudível, a visão do que fora invisível, vivências que antes só existiam como impassíveis elementos fora da área do brincar. Ao atravessar o limiar da audibilidade, mobilizamos camadas profundas que podem incitar regressões, flexibilizar defesas, dar vivacidade (aliveness) às regiões mórbidas (deadness) do contexto. Sempre associadas à vivência sensorial, as experiências de aliveness dizem respeito às sensações de estar vivo no próprio corpo.
A Voz - Transformação Do Devaneio Em Palavras
O que relaciona literatura e psicanálise como fontes inspiradoras de Ogden? A voz como capacidade de expressão. Em sua leitura de Frost, Ogden fala sobre processos de pensamento e percepção, e pesca expressões, as quais eleva à condição de conceitos, como: ouvido imaginário, sobressom, feitos de associação (feats of association), etc. Ogden, realizando uma experiência cultural no sentido winnicottiano, se apropria de noções sugeridas nos textos literários de Frost, devolvendo-as ao campo da psicanálise como ferramentas conceituais para compreender a comunicação em diversas modalidades: o diálogo interpessoal, a escrita, a leitura, etc. Qualquer ato criativo ligado ao dia a dia tangencia a dimensão da poesia. Nos poetas, Ogden busca metáforas capazes de expressar qualidades de experiência que abrem canais de imaginação e comunicação, possibilidades de associação e desdobramento de sentido no olhar sobre o cotidiano que tornam percepção e ação mais criativas. O ser se compõe num pluralismo que não se fusiona em uma unidade de sentido.
Ogden se sustenta em Winnicott (brincar, transicionalidade, viver criativo, experiência cultural) e Bion (continente/contido, identificação projetiva como meio de comunicação, processos de pensamento, devaneio) para, com palavras - faladas, ouvidas, lidas, escritas - criar experiências. Espaço intermediário entre realidade e imaginação, o devaneio é um campo de interação criativa. Nesse campo de pensamento e comunicação, surgimos imaginativamente para a vida.
Poesia é ação, interferência da linguagem nos modos de pensar e sentir. Poesia é devaneio que se faz ato na criação do texto. Mas também são poéticas as ações cotidianas mais simples quando as colorimos com criatividade e prazer. Ler e escrever são maneiras de dialogar consigo mesmo que conduzem a mais íntima relação com o próprio ser, sempre intermediada por esse outro que dentro em nós habita e não se cala, mesmo em silêncio. O outro é território de nossa experiência sensorial, sentir seu pensar é terreno fértil para as próprias sensações e sentimentos. A experiência simultânea de se ver refletido no texto e estranhar aspectos próprios ali espelhados sustenta a percepção da diferença e possibilita a elaboração de uma importante qualidade subjetiva, a reflexão. Nesse espaço reflexivo é possível estranhar-se como outro de si. A voz do outro é rico objeto de criação e expressão; sentimentos encontram espaço e percepções interagem recebendo e processando sensações. A experiência da leitura possibilita uma distância ideal entre os processos de identificação e diferenciação, facilitando o curso das associações simbólicas.
Com o uso inesperado e interessante de corpo, voz e palavras, comunicamos o desdobramento simbólico das metáforas. A dimensão de aliveness na comunicação pode ser experienciada nos movimentos corporais de aproximação e distanciamento do outro e de si. A voz, com seu desenho ocupando o espaço sonoro, forma um continente que, com seus timbres característicos que bordeiam o volume no tempo de seu ritmo, sustenta um esboço de alteridade e o constitui integrando-se ao mesmo. A voz da alteridade presentifica o senso de Eu, ninado, falado, cantado por um outro que faz parte da constituição da própria superfície. Criar uma voz com a qual se fala ou escreve poderia ser pensado como uma maneira, talvez a principal maneira, de um indivíduo trazer a vida para si, vir à vida (Ogden, 2001, p.49).
Os sons das palavras encadeiam-se em sentenças que, por sua vez, têm seus próprios sons. Que qualidades de experiência de vida estão sendo criadas no movimento das metáforas, na dança das vozes que reverberam na música do que acontece? Ogden (2001, p.52) sugere que, para escutar e encontrar maneiras de falar sobre as experiências de transformação provocadas pela linguagem, o melhor é ouvir com o ouvido (não um ouvido metafórico, mas o real) e, desta maneira, sentir no corpo as sensações e na boca as formas das palavras enquanto as pronunciamos em voz alta.
Podemos dizer, com Ogden, que falar a partir da experiência de devaneio é diferente de falar sobre ela. A compreensão de Ogden de mente corporificada e corpo mentalizado incorpora a ideia de voz à unidade corpo/psique. Pensamento e comunicação concluem sua função transformacional com o corpo e a voz. Produto de corpo e alma, a voz seria o amálgama das duas outras entidades, que somente são assimiladas de forma integrada. Simultaneamente sensorial e cognitivo, o senso de identidade vem à vida pela mídia da voz, sendo o confronto com a alteridade refletido tanto no som da voz quanto no conteúdo do que é dito. Essa eu-dade (I-ness), "altamente pessoal e ao mesmo tempo o produto da experiência inconsciente partilhada" não é inteiramente conhecida antes de "escutá-la na própria voz e senti-la no corpo" (Ogden, 2001, p.156).
A voz funciona como suporte da vivência de aliveness e, dessa forma, contribui para a percepção da própria identidade na interação com a alteridade. A capacidade de dar voz às próprias sensações corporais é condição essencial para a experiência de vir à vida integrando físico, emoção e cognição. A poesia é entendida por Ogden como a expressão máxima da voz, a poesia conseguiria captar a essência das palavras e multiplicar seus sentidos de forma a provocar as mais profundas transformações.
Ogden lança mão dos conceitos de Winnicott de verdadeiro e falso self para esboçar características da voz (por um lado, a voz seria um veículo através do qual experienciamos a nós mesmos, o que iria ao encontro da ideia de verdadeiro self; por outro, ao dar voz ao falso self, podemos nos projetar fora de nosso núcleo verdadeiro e assumir posturas - falsas, irônicas, sarcásticas, etc - nas quais acreditamos ou não), mas depois conclui que estes não são os melhores instrumentos para se pensar a questão e enfatiza a operacionalidade de suas noções de aliveness e deadness. "Dirigir a atenção à experiência de aliveness e deadness na linguagem me parece ser uma maneira mais frutífera de abordar a questão da voz do que as noções mais estáticas de sinceridade e falsidade, verdade e desilusão" (Ogden, 2001, p.51). A estagnação da voz caracterizaria uma experiência de deadness, já a qualidade de aliveness, criada no uso de uma voz própria, seria a medida do que é mais real, tanto para o falante e o ouvinte como para o escritor e o leitor.
Qual o som de minha voz? Com a voz de quem ela se parece? Como cheguei a soar assim? Eu quero continuar a soar assim? Para quem ela é endereçada? Como minha voz transforma e é transformada nos atos de falar, ouvir e ser ouvida? Vir a ser na linguagem, esta é uma função da voz que confere identidade ao narrador. A voz não é algo dado, é necessário conquistá-la. A construção de uma voz própria é um movimento fundamental na constituição da subjetividade. Voz é uma qualidade de experiência. o uso simultaneamente consciente e inconsciente que se faz da linguagem é uma das muitas avenidas que levam ao senso de aliveness, à experiência de si.
Pensar não é somente o que se faz no aparente silêncio de palavras inaudíveis por outrem. Falar e escrever (assim como qualquer processo elaborativo, como desenhar, fotografar, compor uma música) são formas distintas de pensar. Para Ogden (2001, pp.49-50), o pensar silencioso (sem palavras expressas) e o ato de traduzir o pensar em uma voz (falada ou escrita) são qualidades de experiência totalmente distintas. "Escrever e falar vinculam uma qualidade de alteridade que nos proporciona uma oportunidade de escutar como chegamos a ser [ao nosso próprio ser] na maneira pela qual usamos a linguagem". Ele também trabalha bastante a diferença entre a voz que se escuta e a que se lê. Na verdade, ele afirma que usando somente os olhos (não lendo com os ouvidos) não se é possível captar os sentidos metafóricos da linguagem - "não sabemos o que a voz na página é, ou como chegou lá, ou como desenvolvê-la, mas simplesmente sabemos quando a escutamos" (p.50). Para o autor, pensa-se na própria linguagem e escreve-se em uma linguagem estrangeira, traduzida no diálogo com a alteridade.
Pescando Palavras, Colhendo Imagens: O Poema Como Via Para A Experiência De Si Mesmo.
"Minha definição de poesia (se eu fosse forçado a dar uma) seria esta: palavras que se tornaram ações" (Frost, 1923/1995, p.701).
Robert Frost (1874-1963), embora considerado um dos maiores poetas americanos do século XX, não é leitura difícil, pelo contrário, como Vinícius de Moraes, era um poeta do povo. Estrofes como "boas cercas fazem bons vizinhos" contribuíram para a popularização de sua obra, tornando-se provérbios. Assim como Winnicott, Frost utiliza metáforas que permitem leituras em vários níveis de profundidade e sentido. Ogden (2001, p. 208) afirma que "o trabalho de Winnicott tem fortes semelhanças à compacta, inteligente, brincalhona, às vezes charmosa, às vezes irônica, sempre irredutível escrita (...) da prosa e poesia de Frost". O poeta não tenta fugir da linearidade comum ao discurso coloquial, "sua poesia não desloca pelos sentidos de narrativas desconexas ou ausentes, imagens fragmentadas, alusões literárias obscuras" (Ogden, 1997, p.239). Frost não utiliza uma linguagem intelectual ou pedante, ele diz que "gostaria de ser sutil de modo a parecer totalmente óbvio ao leitor comum" (Frost, 1918/1995b).
Em 1918, Frost (1918/1995b) deu uma palestra que denominou 'A palavra não feita', na qual explorou a ideia de "pescar palavras" (fetch words) de seu uso diário e fazer outro uso delas transformando-as em metáforas, símiles, analogias, alegorias. Para ele, a linguagem tradicionalmente literária soa artificial. O autor diz que "poderia se dar muito bem sem toda essa linguagem livresca". O que ele aprecia é o brincar com a linguagem. Frost gosta de pescar palavras do dia a dia e fazer novo uso delas; operando transformações em tempo e espaço, as reposiciona de modo a multiplicar seus sentidos. Desta maneira, as palavras soam simultaneamente frescas e familiares - "lá [no discurso coloquial] é onde minha diversão com a palavra começa. Eu não ligo para a palavra já feita figurativa. Eu não fiz nada por ela" (Frost, 1918/1995b, p. 696). Frost diz que se preparou para 'fazer música' a partir do som do sentido:
Hoje é possível se fazer sentido sem o 'som do sentido' (como em muita prosa que se supõe aceitável, mas de leitura muito enfadonha) e [produzir] o 'som do sentido' sem sentido (como em Alice no país das maravilhas, que é qualquer coisa menos uma leitura monótona). O melhor lugar para se captar o som abstrato dos sentidos é de vozes atrás de uma porta que picota as palavras. (Frost, 1918/1995b, p. 664)
Frost utiliza as palavras como instrumentos para provocar transformações na experiência de leitura. Sua intimidade com o trabalho manual (foi operário, agricultor, professor) permite a ele fazer de palavras, ações - feitos de associação, metáforas. Podemos dizer, com base nas ideias de Winnicott (1967/1975 p.135), que um poema, assim como toda experiência criativa e transformadora, começa com uma ruptura na continuidade do ser e fecha seu círculo se completando no reencontro com a continuidade. Para Frost (1923/1995c, p.701), "um poema começa com um nó na garganta, uma saudade de casa ou um mal amoroso. É uma saída em direção à expressão, um esforço para encontrar preenchimento"; em um poema completo "uma emoção encontrou seu pensamento e o pensamento encontrou palavras".
O poema não comunica fatos, não traz "a verdade", mas opera um processo. As palavras, Frost não as vê como mágica, mas agentes de transformação da experiência metafórica de devaneio que, para ele, é maior que a verdade - o universo do devaneio contém a verdade e vai além. O poeta é um artesão que deixa os sentidos do poema abertos para serem construídos na experiência do leitor. Nessa rede de sentidos, experimentamos o amor de fazer e escutar poesia e também a luta, por vezes angustiada, com as palavras para testemunhar o impronunciável. O elemento vital da escrita são os sons vivos do discurso. A cada leitura, o leitor experiencia um evento vivo. Poderoso instrumento para o crescimento emocional, a poesia traz à vida sentimentos e ideias em forma de palavras. Os sons vivos parecem constituir uma via fundamental para a experiência de aliveness.
Os Sons Vivos Do Discurso
Aprender a falar com a própria voz e com as próprias palavras requer que se aprenda a escutar e usar os sons vivos do discurso (Frost, 1915/1995a, p.687).
De Frost, Ogden incorpora noções inerentes à poesia, como voz, sobressom, ouvido da imaginação, treinamento do ouvido, discurso vivo, feitos de associação e algumas ideias como "palavras arrancadas de seu lugar", "falar como sonhar". Poemas sugerem fórmulas que não irão formular (Frost, 1918/1995b). A leitura de Frost também contribui para a elaboração de Ogden dos conceitos de metáfora e devaneio.
Para Ogden, "contar é construir uma nova experiência verbalmente simbolizada". Por outro lado, ele afirma que as experiências não podem ser contadas ou escritas, pois "as experiências não vêm a nós em palavras (...) uma experiência é o que é" (Ogden, 2005, p.110). Ele está se referindo à percepção sensorial dos acontecimentos. Claro, não podemos reproduzir uma experiência em palavras, o que se pode é provocar uma experiência no leitor, ou no ouvinte, daí a ideia de guiar o leitor a sentir. Traduzidas em símbolos, as sensações incorporam status psíquico e adquirem sentido. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que o autor afirma que não se pode "falar ou escrever o aroma de café ou o gosto de chocolate" (p.1), ele sublinha a importância de criar para o leitor a música do que acontece. Ao incorporarem uma narrativa, processos físicos podem ser recodificados pelo leitor em sensações. As palavras não são simplesmente o suporte de símbolos, mas entidades concretas passíveis de serem experienciadas pelos sentidos. Não se conta uma experiência como foi, mas como pareceu ser, com metáforas.
Ao propiciar ao leitor, na experiência de ler, a vivência de algo que se assemelha à experiência que ele mesmo teve, o escritor está criando com palavras uma imaginação - um processamento imaginativo sobre uma experiência, uma ficção. Este senso de realidade da ficção e a possibilidade que ela apresenta de trabalhar concretamente com o material imaginativo é de interesse central na obra de Ogden. A associação entre metáfora, voz e poesia nas experiências de ler e escrever parece ser um ponto nodal em seu trabalho recente.
Há uma angústia intrínseca ao processo de transformação do devaneio em palavras - algo que se pode observar concretamente refletido no papel ou no brilho da tela. A sensação de deadness está ligada à interrupção na continuidade do senso de self. "A noite escura da alma do escritor" é uma expressão utilizada por Ogden que nos remete ao conceito de devaneio descrito, em uma perspectiva fenomenológica, nos ensaios noturnos de Bachelard (1960/2006) - a noite escura de contemplação e inquietude traduz o estado paradoxal de acolhimento dos próprios sonhos elaborados no árduo trabalho de reflexão da alma em produção literária. Retomando os termos de Ogden, este estado de sonho que possibilita a criação se situa no limiar entre aliveness e deadness.
"A coisa vital a se considerar em todas as composições, em prosa ou verso, é a ação da voz, postura do som, gestos. Traga a coisa da vida para a técnica de sua escrita. Esta é a única escapatória da retórica estéril" (Frost, 1929/1995d, p. 688). Voz é criação a cada instante; a ação da voz é elemento vital em toda experiência com a palavra, sentido de aliveness na poesia e em todo discurso. Colocar a coisa da vida na produção literária de qualquer espécie é a única forma de não se produzir um texto em linguagem morta. Os sons vivos do discurso estão presentes na melodia, nos gestos subentendidos no texto, na respiração que modula o ritmo da leitura. Estes elementos não são determinados pelo texto ou pelo leitor, ganham vida nesta interação. Frost (1929/1995d) fala de uma "necessidade dramática" intrínseca à "natureza da sentença": "sentenças não são suficientemente diferentes para sustentar a atenção a menos que sejam dramáticas". Seria uma ingenuidade pensar que uma simples variação na estrutura da sentença teria o poder de cativar a atenção. As sentenças têm, em sua natureza, a "necessidade dramática" de demandar sentido ao ouvido da imaginação; a força que sustenta o sentido da experiência são os sons vivos. Se uma sentença se apresenta como um simples jogo de palavras esvaziadas de dramaticidade, ela é um discurso morto que não demanda a ação da voz, a participação do leitor. Para Frost, o que dá vida e força dramática ao discurso é o tom de voz falada, os sons vivos que envolvem as palavras transportando-as do papel ao ouvido da imaginação.
Ogden faz distinção entre um "sentido dramático do discurso", que poderíamos associar ao falso self de Winnicott (histriônico, teatral), e um sentido "dramático criativo" e único. Tracemos um paralelo entre este uso revelador e íntimo da linguagem e a experiência de devaneio: constituído por fragmentos de sensações e percepções superpostas, o devaneio é uma experiência quase sem mediação, a profundidade do mergulho na experiência dificulta sua observação - ela é "presente demais para se imaginar" (Frost, 1942/1995e, p.305). Por outro lado, podemos dizer que o devaneio, assim como o verdadeiro self, funciona como régua, compasso e bússola da leitura emocional da experiência de aliveness.
Localizado e circunscrito à relação entre falante e ouvinte, o discurso dramático é sempre uma experiência de aliveness particular e irrepetível. Ogden (1997, p.13) sublinha o uso de palavras comuns transformadas em novas palavras que, deslocadas de seu lugar costumeiro, adquirem um senso inesperadamente "dramático". A dramaticidade do discurso escrito se relaciona diretamente com o tom de voz que, reverberando sobressons, sustenta sentidos. Ogden aponta o risco que se corre ao envolver as palavras com um tom de voz próprio, um pedido de reconhecimento endereçado ao ouvinte/leitor para que seu ouvido da imaginação acolha uma parte do narrador e dela faça uso como bem lhe aprouver. Poderíamos acrescentar que, em toda experiência de aliveness, corre-se um risco. A rede de sentidos que nos faz humanos é constituída por séries de polaridades em movimento dinâmico. O oposto desta experiência de risco seria um recolhimento do verdadeiro self provocando um sentido de deadness. Esta fuga da autenticidade para um local 'seguro' é uma busca por certezas ilusórias. O jogo entre liberdade de experimentar e enraizamento em padrões já conhecidos integra a dinâmica entre privacidade e comunicação. A troca entre oferecer e demandar participação ativa do ouvinte implica um ato de confiança.
O amor à arte do discurso abre caminho para a criação de sentimentos através de metáforas que desdobram sons e sentidos em pensares, sentimentos e na própria experiência física. Agindo sobre o corpo e sua expressão, a comunicação incorpora-se ao tom de voz, à dicção, ao ritmo da fala, aos gestos e movimentos musculares, ao funcionamento dos órgãos e a toda manifestação corporal. Sentimos fisicamente um poema ao partilhar com o autor a experiência de aliveness. O vínculo com a alteridade possibilita o desdobrar do pensar e a transformação de potência em ação.
O desdobrar simbólico da metáfora abre portais para devaneios poéticos que percorrem caminhos de integração; o pensar navega, então, por vários lócus internos e externos, entre camadas sobrepostas de sentidos históricos e geográficos. A antecipação da ação, que é própria da imaginação, está referida a um fator temporal que, unido ao desejo de realização, abre caminho para planejamento e ação. A apropriação do próprio Eu, que se desenrola na relação com a alteridade, possibilita a estruturação de sonhos que abrem portais para o devaneio, o pensar transformacional.
Portal do devaneio, a leitura é potência de vida. Ogden (1997, p.209) diz que "estar vivo como ser humano, na extensão que se é capaz em um determinado momento, requer treinamento de ouvido". A melhor parte de uma experiência, literária ou não, não é percebida com os olhos, mas com os ouvidos; esta ideia é bastante explorada pelo autor que continua sua argumentação frisando que "o ouvido é o único escritor e leitor verdadeiro (...) leitores visuais perdem a melhor parte do que um bom escritor coloca em suas palavras".
Da percepção do som à dimensão de devaneio, a voz diz respeito à introdução no mundo da realidade compartilhada; iniciando no corpo como sensação, a voz conduz o ouvinte à simbolização, e a metáfora ganha corpo na sonoridade que faz vibrar as entranhas da alma. Frost (1942/1995e, pp.702-703) descreve humor e ironia como formas de defesa contra críticos e inimigos: "Ironia é simplesmente um tipo de reserva (...). Humor é a mais engajada covardice" (fazendo uso destas figuras de linguagem, complementa que, com este jogo, tem sido capaz de se defender até de possíveis tiros de inimigos). Paradoxalmente, o brincar metafórico é prazer e humor, mas também abrigo contra as intempéries provocadas pelo encontro com alteridade.
Apresentamos a seguir uma elaboração realizada a partir da leitura de Ogden sobre um poema de Frost que destaca a importância da voz do outro na constituição subjetiva.
Nunca mais o canto dos pássaros seria o mesmo (tradução nossa) Never again would bird's song be the same (Frost, 1942/1995e)
Ele declararia e poderia acreditar: He would declare and could himself believe
Os pássaros que à volta do jardim voavam That the birds there in all the garden round
De o dia inteiro a voz de Eva escutar From having heard the daylong voice of Eve
A seu próprio som um sobressom somavam, Had added to their own an oversound,
Não a palavra dela, mas o tom de sentido. Her tone of meaning but without the words.
Tão suave e assumida eloquência Admittedly an eloquence so soft
A elevar sorriso e gemido Could only have had an influence on birds
Sobre os pássaros só teria influência. When call or laughter carried it aloft.
Seja lá como for, ela estava em sua canção. Be that as may be, she was in their song.
Tanto mais sua voz sobre a voz deles cruzaria Moreover her voice upon their voices crossed
E persistia na floresta tanto tempo então Had now persisted in the woods so long
Que provavelmente nunca mais se perderia. That probably it never would be lost.
Jamais os pássaros entoariam a mesma canção. Never again would birds' song be the same.
E fazer isto com eles, dela ter vindo foi a razão. And to do that to birds was why she came.
Ao analisar o poema acima, Ogden (2001) enfatizou a experiência da voz do outro que nos constitui. Inicialmente, o narrador apresenta um personagem de estranhas crenças que, de tão intensas, transformam-se em realidade - os pássaros voavam naquele idílico jardim ao som da voz de Eva; o tom de sentido original de sua voz suave, eloquente sorriso e gemido, soma-se em sobressom ao canto dos pássaros para sempre. De tão real, a cena passa a ser narrada em primeira pessoa, então o narrador se transforma no próprio homem que crê. "Ele declararia e poderia acreditar que a voz na 'canção dos pássaros' é bem sucedida em fazer do próprio poema uma experiência" (Ogden, 2001, p.60). O argumento passa a ser endereçado diretamente ao leitor, que recebe o gentil convite para "assumir seu próprio lugar na metáfora" (Ogden, 2001, p.55). Da escuta de um relato, somos transportados para o ambiente sonoro das vozes dos pássaros e de Eva, e mergulhamos na experiência de aliveness que abre portais para a transformação da voz que nos é própria. É dessa potência de transformação provocada pela interação do leitor com as vozes do discurso que trata o poema.
A noção de jardim mítico atemporal não condiz com a compreensão cronológica descrita pelo narrador quando este diz que "de o dia inteiro a voz de Eva escutar", os pássaros incorporaram seu som ao próprio canto. Frost brinca com este paradoxo e com as falhas na lógica "causa e efeito" sobre a metáfora dos sobressons da voz de Eva. "A estranha 'crença' na criação de um sobressom torna-se uma experiência que ocorre no próprio poema: ou seja, nas mudanças no som da voz do poema" (Ogden, 2001, p.55).
A voz espirituosa e irônica que comenta a crença do narrador neste idílico jardim onde ecoa a voz de Eva é atravessada nas primeiras cinco linhas por um suave sobressom, o tom de sentido. Experimentamos esse contraste também entre os sons das palavras, alguns macios voam somando sentido a outros mais duros. Os pássaros somam a seu som o tom de sentido da voz de Eva. Sua suave e assumida eloquência eleva sorriso e gemido. Ogden sublinha a sonoridade delicada dos sons de 'S' que parecem flutuar com 'ternura, respeito e graça'.
Interessante a analogia traçada por Ogden (2001, p.56) entre birds (pássaros) e bards (bardos) na língua original do poema; assim como os pássaros, que incorporam sobressons da voz de Eva a seu próprio canto, os bardos, menestréis de heranças e expectativas, fazem um movimento de incorporação semelhante, "incorporam a suas próprias canções/poemas os sons que escutam com seu 'ouvido profundo' como sobressons - mais em seu tom de sentido do que nas palavras/mensagens". Reverberar bardos sobre birds é um exemplo de sobressom na escuta do poema. O som das palavras pode ser tão eloquente a ponto de atingir sentimento e experiência em profundidade tal que altera a própria linguagem. "A 'eloquência', habilidade de transformar o som da linguagem que a poesia tem, é somente tão potente quanto a habilidade deste poema em criar os sons de uma voz única que nunca vai se perder para o leitor" (Ogden, 2001, p.57).
A demanda por permanência da voz de Eva carrega, desde o início, um tom de dúvida melancólica sobre a imutabilidade dos sobressons. "Jamais os pássaros entoariam a mesma canção". Ogden (2001, pp.58-60) sublinha a força emocional contida na voz simultaneamente irônica, nostálgica e compassiva do final do poema e diz que "fazer isto com eles, dela ter vindo foi a razão" invoca a cômica ideia de que Eva veio à cena para realizar uma tarefa "como um bombeiro poderia chegar numa casa para desentupir um ralo". Tristeza e prazer brincam lado a lado com sons e sentidos das palavras. O risco que Ogden corre ao expor o irreverente feito de associação que lhe ocorre abre para o leitor possibilidades próprias de leitura.
Triste também é o reconhecimento de que as vozes das pessoas que importaram mais, assim como as próprias vozes anteriores e esta que agora se escuta, vão persistir somente como sobressons. Ao final da leitura, uma pergunta abre portais de esperança: "Mas isto não é o bastante?" O poema insiste em estar sempre em movimento e se encerra costurando uma rede paradoxal de sentidos.
Na leitura desta obra poética, podemos partilhar com Frost e Ogden o prazer de brincar criativamente com a linguagem, a alegria de escutar e fazer sobressons, e interpenetrar pensamentos e comunicações. Para brincar com a linguagem, precisamos permitir sua entrada no próprio self. Uma metáfora guarda camadas de vozes e sobressons que podem reverberar todo e qualquer sentido. Há de se ter cuidado, pois há um risco em deixar as portas abertas ao além, nunca se sabe a que devaneios as metáforas podem nos levar, que vozes podem ecoar, que sobressons podem nelas reverberar provocando sabe-se lá que pensamentos e experiências. Ao atravessar os portais de um poema ou de uma comunicação, abre-se espaço para qualquer qualidade de experiência, tanto de aliveness quanto de deadness. "Um poema não seria bom se não tivesse portas. Porém, eu não as deixaria abertas" (Frost, citado por Ogden, 2001, p.53).
Para ser perfeitamente franco com você, eu sou um dos mais notáveis artesãos de meu tempo (...) Os grandes sucessos na poesia recente têm sido alcançados na assunção de que a música de palavras era uma questão de vogais e consoantes harmonizadas (...) Eu sozinho entre os escritores de língua inglesa tenho conscientemente me dedicado a fazer música a partir do que eu posso chamar o som do sentido. (Frost, 1913/1964, p.664)
Frost acreditava que a vitalidade do discurso está em seu som, o som do sentido; para ele, as sentenças "falam entre si" como pessoas. A ação da linguagem captura a experiência do discurso nos sons e movimentos das palavras. "Tempo profundamente pessoal (...) é o tempo com o qual lutamos em nossos esforços para permanecer genuinamente vivos e não simplesmente vivendo (...) um poema, um poeta, um leitor de poesia poderia 'fazer algo com o tempo' ao usá-lo para criar tempos de música ou poesia ou discurso ou o tempo da forma de uma vida" (Ogden, 1997, p.263).
Considerações Finais
"Os melhores poemas de Frost", diz Ogden (2001 p.81), "vêm à vida através do jogo dos sons e sentidos das palavras, e a sensação das palavras em nossas bocas enquanto dizemos as linhas". Frost (1915/1995a, p.687) frisa a ideia de que, ao se escutar palavras, também se ouvem tons, e complementa: "o problema é notá-los, imaginá-los novamente e traze-los à escrita". O trabalho do ouvido imaginário é central em sua compreensão do ambiente e em sua produção literária. Ogden (1989) comenta sobre a diferença entre a voz e o tom - enquanto o tom reflete o que o falante está sentindo, a voz está ligada à personalidade de quem fala, seu modo de pensar, de organizar sua experiência emocional - o tom estaria mais ligado ao aqui e agora, e a voz, ao ser.
Frost (1915/1995a, p. 687) pergunta ainda: "Como se informa um tom? Pelo contexto, pelo espírito animado da voz viva. E quantos tons vocês acham que existem voando por aí? Centenas deles - centenas nunca trazidos para um livro". O não dito provoca sentimentos e sensações corporais que acompanham o que é falado. O impronunciável tem seu lugar na voz e nos sons das palavras. O inconsciente não se situa no fim do túnel, atrás do pano ou nas profundezas do ser, não está lá parado aguardando ser descoberto em uma escavação arqueológica, mas "vem à vida no movimento de sentimento, pensamento, imaginação e na própria linguagem da experiência de rêverie", no uso da voz e nos sobressons que reverberam no ouvido imaginário (Ogden, 2001, p.107).
Ogden (2001, p.107) aponta duas maneiras de se relacionar com um poema: pensar sobre o que acontece no uso poético da linguagem (que é a leitura à qual ele se propõe) ou deixar que o poema permaneça como uma experiência predominantemente sensória, sem transformá-la em símbolos verbais. Seja qual for a relação com o poema, surgirão novas maneiras de refletir e experienciar a si mesmo. Poemas não versam sobre experiências, a vida do poema é a própria experiência.
Em confronto com um bom texto, o leitor tem espaço para criar sua própria verdade, pois a verdade particular do autor medeia a leitura com tênues manchas que não ofuscam o encontro com a obra. Questões narcísicas à parte, o que importa é que verdades encontrem pensadores que as tornem disponíveis como ferramentas do pensar (Ogden, 2005 p.66). Ao ser descoberta uma verdade, a coisa em si é alterada, e, neste sentido, podemos dizer que algo novo foi criado, a potência para novas experiências do que é verdade. O texto corporifica-se no encontro entre autor e leitor. O inconsciente de ambos é coautor silencioso dessa experiência com palavras - escritas, lidas, faladas, escutadas, reverberadas. Este encontro é virtualmente o instrumento que possibilita às palavras adquirirem o estatuto de verdade. O autor precisa incorporar a escrita como parte de si e, ao mesmo tempo, apagar sua presença deixando traços - referências para identificações que abrem espaço para o leitor ocupar o texto e sentir o mesmo como seu. Dessa forma, são abertos os portais do devaneio.
É necessário atravessar um portal tanto para mergulhar numa dimensão de devaneio como para sair dela. Nesta travessia, encontramos a nós mesmos. Esta passagem - que pode ser partilhada com o artista, o amor, o amigo, o terapeuta, alguém com quem nos encontramos e que mostra a face e os sonhos - carrega simultaneamente algo de solidário e solitário. No fim do túnel, ao atravessar o portal, meu Eu, que é só meu, está à minha espera. Um Eu acordado e que, incapaz de ignorá-la, deve acordar com a dimensão onírica, necessariamente traçar com ela uma solução de compromisso. Não mais o mesmo Eu de antes da jornada partilhada, nunca mais o mesmo.
Passagem para o viver estético, o devaneio se revela através do belo. Não seria este clarão que, provocado pela imagem poética, ilumina a consciência, o que chamamos de insight (novas cadeias e redes de associações, novas formas de pensar, novos mundos a desbravar, novas dimensões do velho Eu)? Ao atravessar o portal do devaneio, partilham-se impressões e criações conjuntas que marcam para sempre a maneira como circulamos no sonhar e no acordar; e quando, mais uma vez, descortinarem-se os portais da imaginação e da memória na criação conjunta do novo devaneio, estarão presentes as marcas dos sonhos que ora são partilhados. Com um pensar voltado para a abertura desses portais que validam transformações criativas, a palavra não somente expressa ideias ou sensações, mas carrega em si a novidade do porvir. Ditando o tempo, a poesia - melodia, harmonia, intensidade, ritmo - envolve e seduz, impondo-se a cada instante. Via régia para o ingresso no mundo do devaneio, a imaginação procura, ensaia, seduz um futuro. Tocados pela imagem, seguimos o caminho da alma.
Referências
Bachelard, G. (2006). A poética do devaneio. Rio de Janeiro: Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1960). [ Links ]
Bion, W. (1963). Elements of Psycho-Analysis. London: William Heinemann. [ Links ]
Bion, W. (1997). Aprendendo com a experiência. In O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1962). [ Links ]
Frost, R. (1964). Letter to Louis Untermeyer. In Selected Letters of Robert Frost, In L. Thompson (ed.). New York: Holt, Rinehart and Winston. (Originalmente publicado em 1913). [ Links ]
Frost, R. (1995a). The imagining ear. In Collected poems, prose and plays (pp. 687-689). New York: Library of America, 1995. (Originalmente publicado em 1915). [ Links ]
Frost, R. (1995b). The unmade word. In Robert Frost: Collected poems, prose and plays (pp. 694-697). New York: Library of America. (Originalmente publicado em 1918). [ Links ]
Frost, R. (1995c). Some definitions. In Collected poems, prose and plays. New York: Library of America, 1995. (Originalmente publicado em 1923). [ Links ]
Frost, R. (1995d). Preface A way out. In Collected poems, prose and plays. New York: Library of America. (Originalmente publicado em 1929). [ Links ]
Frost, R. (1995e). Never again would birds' song be the same. In Collected poems, prose and plays. New York: Library of America. (Originalmente publicado em 1942). [ Links ]
Klein, M. (1996) Amor, culpa e reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1946). [ Links ]
Ogden, T. (1986) The Matrix of the Mind: Object Relations and the Psychoanalytic Dialogue Northwale. New Jersey: Jason Aronson. [ Links ]
Ogden, T. (1989). The primitive Edge of Experience. New Jersey: Jason Aronson. [ Links ]
Ogden, T. (1995). Analysing forms of aliveness and deadness of the transference-countertransference. International Journal of Psychoanalysis, 76(4), pp.695-709. [ Links ]
Ogden, T. (1997). Reverie and interpretation: Sensing something human. New York: Jason Aronson. [ Links ]
Ogden, T. (2001). Conversations at the frontier of dreaming. New Jersey: Book-Mart Press. [ Links ]
Ogden, T. (2005). This Art of Psychoanalysis: Dreaming Undreamt Dreams and Interrupted Cries. New York: Routledge. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1974). Fear of breakdown. International Review of Psychoanalysis, 1, 103-107. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1975). A localização da experiência cultural. In O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1967). [ Links ]
Endereço para correspondência:
Lucia Beatriz Pitanguy Sampaio
End.: Bart Verhallenplein 154, Schiedam, 3122TH
Holanda.
Email: luciapitanguy@gmail.com
Maria Inês Garcia de Freitas Bittencourt
End.: Rua Desembargador Burle 99 / 302. CEP 22 271-060
Humaitá, Rio de Janeiro, RJ
Email: mines@puc-rio.br
Recebido em: 22/12/2015
Revisado em: 26/04/2016
Aceito em: 30/08/2016