Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista Subjetividades
versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.16 no.3 Fortaleza dez. 2016
https://doi.org/10.5020/23590777.16.3.97-108
RELATOS DE PESQUISA
Características do ambiente sociofamiliar e desenvolvimento neuropsicomotor de crianças: associações e implicações
Characteristics of the socio-familiar environment and neuro-psychomotor development of children: associations and implications
Características del ambiente socio-familiar y desarrollo neuropsicomotor de niños: asociaciones e implicaciones
Caractéristiques de l'environnement socio-familier et du développement neuro-psychomoteur de l'enfant: associations et implications
Larissa Araújo Matos (Lattes)I; Lília Iêda Chaves Cavalcante (Lattes)II; Elson Ferreira Costa (Lattes)III
IMestre e doutoranda em Teoria e Pesquisa do Comportamento pela Universidade Federal do Pará. Professora na Universidade Paulista, pólo Belém
IIProfessora da Universidade Federal do Pará. Mestre em Serviço Social e Doutora pela Universidade Federal do Pará. Pós-Doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
IIIMestre e doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Pará
RESUMO
O desenvolvimento neuropsicomotor de crianças está relacionado a um conjunto de mudanças encadeadas que envolvem sistemas biológicos em interação com contextos ambientais capazes de exercer significativa influência nesse processo. Este estudo objetivou analisar associações entre os fatores do ambiente familiar e o desenvolvimento neuropsicomotor de crianças das Unidades de Educação Infantil do município de Belém. Foram triadas 319 crianças, de ambos os sexos, de 36 a 48 meses de idade. Os instrumentos utilizados foram o Questionário de características biopsicossociais da criança (QCBC), aplicado aos responsáveis das crianças, e o Teste de triagem do desenvolvimento Denver II (TTDDII), que avaliou o desenvolvimento neuropsicomotor das crianças. Para a análise estatística utilizou-se o teste do qui-quadrado, considerados significantes os valores em que p< 0,05. Os resultados identificaram associações significativas entre o escore de suspeita de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor e três variáveis: escolaridade paterna (p<0,001), ocupação paterna (p=0,008), e gravidez não planejada (p=0,007). Conclui-se que, de modo geral, os resultados corroboram a literatura sobre essa relação, características socioeconômicas e o desenvolvimento neuropsicomotor. Este é o caminho para pensar em políticas públicas mais sensíveis às demandas da população infantil, considerando as especificidades de cada região do país.
Palavras-chave: desenvolvimento neuropsicomotor; família; educação infantil; pobreza; infância.
ABSTRACT
The neuro-psychomotor development of children is related to a set of linked changes that involve biological systems in interaction with environmental contexts capable of exerting a significant influence in this process. This study aimed to analyze associations between the factors of the family environment and the neuro-psychomotor development of children of the Units of Early Childhood Education in the city of Belém. A total of 319 children of both sexes, from 36 to 48 months of age were studied. The instruments used were the Childhood Biopsychosocial Characteristics Questionnaire (QCBC) applied to the children responsible and the Denver II Development Screening Test (TTDDII), which evaluated children's neuro-psychomotor development. For the statistical analysis, the chi-square test was used, values considered significant when p <0.05. The results identified significant associations between the suspected delayed neuro-psychomotor development score and three variables: paternal schooling (p <0.001), paternal occupation (p = 0.008), and unplanned pregnancy (p = 0.007). It is concluded that, in general, the results corroborate the literature on this relationship, socioeconomic characteristics, and neuro-psychomotor development. This is the way to think of public policies more sensitive to the demands of the child population, considering the specificities of each region of the country.
Keywords: neuro-psychomotor development; family; early childhood education; poverty; childhood.
RESUMEN
El desarrollo neuropsicomotor de niños está relacionado a un conjunto de cambios encadenados que envuelven sistemas biológicos en interacción con contextos ambientales capaces de ejercer significativa influencia en este proceso. Este trabajo evaluó asociaciones entre los factores del ambiente familiar y el desarrollo neuropsicomotor de niños de las Unidades de Educación Infantil de Belém- Brasil. Fueron escogidos 319 niños, de ambos sexos, de 36 a 48 meses de edad. Los instrumentos utilizados fueron el Cuestionario de Características Biopsicosociales del Niño (Questionário de Características Biopsicossociais da Criança - QCBC) aplicado a los responsables por los niños y el Test de Selección del Desarrollo Denver II (Teste de Triagem do Desenvolvimento Denver II - TTDDII), que evaluó el desarrollo neuropsicomotor de los niños. Para el análisis estadístico fue utilizado el test del qui-quadrado, considerados significantes los valores en que p < 0,05. Los resultados identificaron asociaciones significativas entre el escore de sospecha de retraso en el desarrollo neuropsicomotor y tres variables: escolaridad paterna (p<0,001), ocupación paterna (p=0,008), y embarazo no deseado (p=0,007). Se concluyó que, de modo general, los resultados confirman la literatura sobre esa relación, características socio-económicas y el desarrollo neuropsicomotor. Este es el camino para pensar en políticas públicas más sensibles a la demanda de la populación infantil, considerando las especificidades de cada región del país.
Palabras clave: desarrollo neuropsicomotor; familia; educación infantil; pobreza; niñez.
RÉSUMÉ
Le développement neuro-psychomoteur de l'enfant est lié à un ensemble de modifications enchaînées qui impliquent des systèmes biologiques en interaction avec des contextes environnementaux capables d'exercer une influence significative sur ce processus. Cette étude a eu l'objectif d'analyser les liens entre les facteurs de l'environnement familial et le développement neuro-psychomoteur des enfants des unités d'éducation de l'enfance dans la municipalité de Belém. 319 enfants ont été triés, des deux sexes, âgés de 36 à 48 mois. Les instruments utilisés ont été le questionnaire de caractéristiques biopsychosociales de l'enfant (QCBE), qui ont été appliqué aux parents ou tuteurs des enfants et le test de dépistage du développement de Denver II (TDDDII), qui a évalué le développement neuro-psychomoteur des enfants. Pour l'analyse statistique, nous avons utilisé le test de khi-deux, considéré comme importants les valeurs de p < 0,05. Les résultats ont identifié des associations significatives entre le score de soupçon de retard dans le développement neuro-psychomoteur et trois variables: le niveau d'éducation paternel (p < 0,001), la profession paternelle (p = 0,008) et les grossesses involontaires (p = 0,007). On conclut, de façon générale, que les résultats corroborent la littérature à propos ce relations des caractéristiques socio-économiques et le développement neuro-psychomoteur. Ceci est la façon de penser sur les politiques publiques plus sensible aux demandes de la population infantile, en tenant en compte des spécificités de chaque région du pays.
Mots-clés: Développement neuro-psychomoteur; éducation des enfants; pauvreté; enfance.
O desenvolvimento humano é um processo dinâmico de interação entre a pessoa e o ambiente do qual faz parte. A partir dessa relação é possível conhecer aspectos decisivos na trajetória de mudanças vividas por uma pessoa durante seu processo desenvolvimental (Luz, 2008). Nessa perspectiva, o desenvolvimento na infância se inicia na fase intrauterina e envolve crescimento físico, maturação neurológica, motora, cognitiva e comportamental da criança (Nascimento & Piassão, 2010). Já o desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM) também é um processo sequencial e contínuo, mas está relacionado à idade cronológica pela qual o ser humano adquire habilidades nas áreas de motricidade fina-adaptativa e ampla, pessoal-social e linguagem. Tais mudanças são particularmente percebidas na infância, sendo o DNPM nos anos iniciais a base das aquisições futuras.
Uma vez que esse neurodesenvolvimento depende sobremaneira da interação entre condições biológicas e ambientais presentes na infância, crianças que vivem em contextos com a presença de fatores de risco têm maior probabilidade de apresentar comprometimento no desenvolvimento. Poletto e Koller (2008) definem fatores de risco como características pessoais ou ambientais que, quando presentes, aumentam a probabilidade da pessoa apresentar problemas desenvolvimentais. Dentre os fatores de risco individuais, destacam-se características como: sexo, fatores genéticos e as habilidades da criança. Já os fatores ambientais podem ser baixo nível socioeconômico, características familiares, ausência de apoio social, entre outros.
Diversos estudos têm se dedicado a investigar a interferência de múltiplos fatores de risco ao desenvolvimento infantil, estando as características familiares entre os mais discutidos e investigados. Dentre essas, destacam-se: ambiente pouco seguro e estimulante (Andrade, 1997); baixo nível socioeconômico (Biscegli, Polis, Santos, & Vicentin, 2007; Dubow, Boxer, & Huesmann, 2009; Veleda, Soares, & Cézar-Vaz, 2011); nutrição inadequada (Biscegli et al., 2007); e a baixa escolaridade dos pais (Escarce et al., 2012; Halpern & Cachapuz, 2006; Maria-Mengel & Linhares, 2007). Essa cadeia de eventos negativos faz com que os indivíduos, em particular as crianças, tenham maior chance de apresentar suspeitas de atraso em seu potencial de crescimento e neurodesenvolvimento (Noble et al., 2015; Ozkan, Senel, Arslan, & Karacan, 2012; Pilz & Schermann, 2007).
Nessa perspectiva, Sigolo e Aiello (2011) ressaltam a importância de utilizar instrumentos que possam triar e avaliar DNPM e assim identificar suspeitas de atrasos em populações afetadas por fatores de risco. Tal necessidade é ainda mais premente quando se considera o contingente expressivo de crianças na primeira infância expostas a esses fatores nocivos ao desenvolvimento, os quais estão associados à escassez de recursos e oportunidades. Um instrumento que tem se destacado, tanto na clínica quanto nos estudos, é o Teste de triagem do desenvolvimento Denver II - TTDD-II (Frankenburg et al., 1992).
O TTDD-II foi desenvolvido para avaliar o desenvolvimento a partir de uma vasta extensão de habilidades heterogêneas. A sua aplicação permite identificar a partir do desempenho da criança em um conjunto de tarefas, se ela alcançou ou não determinados marcos de desenvolvimento esperados à sua faixa etária. Nesse sentido, percebe-se a necessidade de se estudar os efeitos das características sociofamiliares sobre o neurodesenvolvimento sob uma dimensão ecológica, principalmente estudos de caráter epidemiológico, ou com grandes amostras, e utilizando métodos de avaliação por meio de testes, ou escalas, como o Teste de triagem do desenvolvimento Denver II. Dessa maneira, o presente estudo objetivou analisar associações entre os fatores do ambiente familiar e o desenvolvimento neuropsicomotor de crianças das Unidades de Educação Infantil do município de Belém, PA.
Método
Amostra
Participaram deste estudo 319 crianças, de ambos os sexos, com idade de 36 a 48 meses, e seus respectivos pais e/ou responsáveis na família por conduzir as crianças de casa até a escola e vice-versa, no período compreendido de agosto a dezembro de 2012. Foram excluídas da pesquisa crianças que apresentavam más-formações que afetassem a expressão da fala, alterações sensoriais, auditivas e/ou visuais e sequelas de comprometimento do sistema nervoso central (paralisia cerebral ou síndromes genéticas), além de seus pais e/ou cuidadores, que responderam ao instrumento que objetivava caracterizar as crianças pesquisadas.
Para o cálculo da amostra, foi utilizado o processo de amostragem por conglomerado. A margem de erro do cálculo amostral ficou em 5% e o nível de confiança representa 95%. Nesse sentido, como a população do estudo era composta por 1.201 sujeitos, o tamanho de amostra ideal foi estabelecida em 300 sujeitos. Todavia adicionou-se um percentual de 7% de sujeitos prevendo possíveis perdas, o que totalizou 320 sujeitos. A amostra final após a coleta de dados foi de 319 crianças.
As Unidades de Educação Infantil (UEI) envolvidas na pesquisa foram distribuídas proporcionalmente pelos oito distritos administrativos de Belém, conforme o número de estabelecimentos de ensino existentes em cada um deles e a quantidade de crianças que se encontravam dentro da faixa etária considerada pelo estudo. Quanto ao número de crianças avaliadas em cada distrito, também foi realizada uma divisão proporcional, de acordo com o número de matrículas nos respectivos distritos, visando compor uma amostra representativa das crianças que estão nas UEI em Belém. O sorteio das UEI foi realizado com o auxílio de um software desenvolvido para apoiar a montagem de amostra randomizada (http://www.random.org/).
Instrumentos
Questionário de características biopsicossociais da criança (QCBC) (Anexo 1): trata-se de um instrumento elaborado pelas pesquisadoras especialmente para este estudo. O questionário é composto de 48 perguntas, sendo 19 abertas e 29 fechadas, além de um quadro especial para facilitar a computação do desempenho das crianças no TTDD II. O instrumento está estruturado em torno das seguintes categorias: a) Identificação das crianças e pais (19 perguntas); b) História pré, peri e pós-natal (6 perguntas); c) Condições socioeconômicas e ambientais (20 perguntas); e d) Ambiente de brincadeiras (3 perguntas).
Teste de triagem do desenvolvimento de Denver II (Frankenburg et al., 1992): utilizou-se a versão traduzida e adaptada por Pedromônico, Bragatto e Strobilius (1999). É aplicado em crianças de zero até seis anos de idade. O protocolo do teste é composto de 125 tarefas, subdivididas em quatro áreas: pessoal-social, linguagem, motricidade fina e motricidade ampla. A administração do teste foi realizada a partir da observação do avaliador sobre a criança, embora alguns itens possam ser pontuados a partir do relato dos pais, cuidadores ou professores.
Quanto à interpretação do teste, inicialmente foram analisados os itens individuais e posteriormente o escore geral. Os itens individuais são interpretados como "passou", "falhou", "não houve oportunidade" e "recusa". Já a interpretação final do teste apresenta os indicadores: a) Normal: quando não houver nenhum "atraso" ou, no máximo, um "cuidado/cautela" em pelo menos uma área; b) Risco: quando houver dois ou mais "cuidados" e/ou um "atraso" em pelo menos uma área, o que indica que a criança apresenta suspeita de alteração de desenvolvimento; c) Atraso: quando a criança avaliada apresenta dois ou mais "atrasos", o que representa dizer que a criança apresenta grande suspeita de alteração do desenvolvimento; d) Não testável: se houver marcações de "recusa" em um ou mais itens que já deveriam fazer parte do repertório da criança. O participante cuja triagem for interpretada como risco, atraso ou intestável no primeiro teste deve ser reavaliada antes de recorrer a outras avaliações ou impressões diagnósticas.
A validade do TTDD-II é estabelecida pela precisão com a qual as tarefas propostas às crianças correspondem aos percentis 25%, 50%, 75% e 90%, que se relacionam à idade com a qual esta realiza ou não determinada ação. Assim, cada item foi considerado normal quando a criança passa ou falha dentro da variação de 25 a 75% de acerto para a população de referência; precaução quando a criança falha na realização adequada do item dentro da variação de 75 a 90% da população de referência; e atraso quando a criança falha na realização adequada do item em que a linha toca ou ultrapassa a margem em que há 90% de acerto na população de referência. Pelo teste, os desfechos seriam três: atraso, risco ou normal. Porém, neste estudo, foi considerado o grupo com suspeita de atraso no desenvolvimento (incluem as crianças com risco e atraso) para facilitar a realização de análise estatística inferencial e comparação com estudos presentes na literatura nacional e internacional.
Procedimento de Coleta de Dados
Inicialmente, foi solicitada a autorização para a realização da pesquisa à Secretaria Municipal de Educação, mediante ofício. Após a liberação do documento, a pesquisa foi encaminhada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Núcleo de Medicina Tropical (NMT/UFPA), pelo Protocolo nº 167.271/2012. Os procedimentos utilizados obedeceram aos Critérios da Ética na Pesquisa com Seres Humanos, conforme a Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, vigente na época, mas em consonância com a Resolução nº 466/2012, o que implicou a assinatura pelos responsáveis do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Em seguida, foi realizado o projeto piloto com cinco aplicações de cada instrumento, o que permitiu reproduzir as condições do estudo e o treinamento da equipe de pesquisa, a qual era composta por três mestrandos do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento (PPGTPC) e mais sete acadêmicos de graduação. Concluída essa etapa, teve início o período da coleta de dados propriamente dito.
Procedimentos de Análise dos Dados
Os dados obtidos provenientes da aplicação dos instrumentos foram tabulados em banco de dados elaborado por meio do SPSS 20.0. A partir da natureza das variáveis foram realizadas análises estatísticas descritivas e inferenciais. A variável dependente do estudo foi o escore de desenvolvimento obtido pelo TTDD-II, aqui considerada como variável de desfecho dicotômica (normal ou suspeita de atraso). As variáveis independentes foram oriundas dos outros instrumentos. Para verificar a associação entres as variáveis foi utilizado o teste qui-quadrado, considerando-se nível de significância de 5% (p-valor <0,05).
Resultados
Características Sociodemográficas e Condições Socioeconômicas das Crianças e suas Famílias
Em relação ao perfil dos pais e/ou responsáveis das crianças avaliadas, notou-se que a maioria das mães tinha idade entre 20 a 29 anos (62,69%) e os pais geralmente mais de 30 anos (47,64%). A variável escolaridade dos pais mostra que 129 (40,43%) das mães estudaram 12 anos ou mais, enquanto 95 (29,78%) dos pais estudaram mais de 9 anos. A maioria (n = 119; 37,30%) das mães está inserida no mercado formal, enquanto que mais de 51,41% (n = 164) dos pais trabalhavam de maneira informal.
A maioria das famílias (n = 208; 65,20%) recebia de 1 a 3 salários mínimos, sendo os pais (mãe e pai) os principais responsáveis pela renda familiar. Verificou-se ainda que a maior parte das famílias (n = 183; 57,36%) recebia o auxílio do Programa Bolsa Família e 49% (n = 158) delas viviam em domicílios próprios. Quanto à composição familiar, observou-se, neste estudo, que 57,05% (n = 182) dos responsáveis referiram viver com companheiro (casados) e 21% (n = 68) não apresentavam essa condição civil, eram solteiros ou viúvos, tendo sido inclusive encontrado quatro entrevistados do sexo masculino que se denominaram "pais solteiros". Em sua maioria, os principais cuidadores das crianças eram os próprios pais, 78,68%, (n = 251), e a maior parte delas, 61,44%, (n = 196), possuía de um a dois irmãos. A tabela 1 mostra os resultados referentes à condição de moradia das famílias das crianças e a sua exposição a determinados fatores ambientais.
Na amostra estudada, observou-se que 65,83%, (n = 210) das famílias residiam em casas com três ou mais cômodos, habitada por dois a cinco moradores 74,92% (n = 239), o que vem ao encontro dos dados divulgados pelo IBGE no Censo demográfico 2010. Também chama a atenção o fato de que pouco mais da metade das famílias habitava casas de alvenaria 59,56%, (n = 190), ou seja, parece haver ainda um percentual expressivo de pessoas que residem em domicílios de madeira ou mistos, 32,60 % (n = 104). Os dados diferem dos apresentados pelo IBGE (2011) a respeito das características dos domicílios, segundo o último levantamento censitário, que mostrou como resultado que 81,54% domicílios existentes em Belém, à época da pesquisa, foram construídos em alvenaria, 18,16% de madeira e 0,30% de outros materiais. Portanto, os dados da presente pesquisa ainda apontam um percentual significativo de pessoas vivendo em casas de madeira dado este divergente do apontado pelo instituto.
Os dados relacionados à história gestacional e características do parto das crianças mostraram que grande parte da população estudada nasceu de uma gravidez não planejada, representando essa característica 70,53% (n = 225) do total. Todavia, em relação à realização do pré-natal, foi realizado por 96,23%, (n = 307) das mulheres. Já no aspecto de idade gestacional, houve um predomínio de crianças nascidas a termo 87,47%, (n = 279), com 12,53%, (n = 40) de crianças pré-termo. No que se refere ao tipo de parto, a maioria das crianças nasceu por parto cesárea (n = 172; 53,92%).
Resultados do Escore Geral do TTDDII
Na população estudada, 37,30% das crianças que participaram da triagem realizada em UEI do município de Belém foram incluídas na categoria que indica a existência de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. Neste sentido, verificou-se que 40,44% das crianças se encaixavam na categoria de risco e 22,26% delas apresentaram escore compatível com o status de normalidade. Contudo, neste estudo, para efeito de análise, consideraram-se somente duas amplas categorias de resultados: desenvolvimento normal (DN) e desenvolvimento suspeito (DS). O estudo revelou que, das 319 crianças triadas a partir do procedimento proposto, 77,74% (n = 248) apresentaram desenvolvimento suspeito. Portanto, a análise dos resultados globais obtidos pela aplicação do Teste de triagem do desenvolvimento Denver II mostrou que parte significativa da população de três anos das UEI pesquisadas apresentou resultado suspeito.
Perfil do Desenvolvimento Neuropsicomotor Versus Características Sociodemográficas Familiares
Neste item se buscou apontar as associações existentes entre as variáveis socioeconômicas e demográficas presentes no perfil da família das crianças que participaram do estudo e que tiveram o desfecho de desenvolvimento suspeito. Como se pode observar na tabela 2, as variáveis referentes à escolaridade do pai (p<0,001), à ocupação paterna (p=0,008) e à gravidez planejada (p=0,007) apresentaram associação estatisticamente significante com o resultado obtido após a realização da triagem do desenvolvimento das crianças, ou seja, a probabilidade desdas variáveis não terem influenciado o desfecho obtido é mínima.
Discussão
Nesta seção serão apresentados os resultados do TTDD-II e as associações entre as variáveis socioeconômicas e os resultados do teste.
O resultado obtido neste estudo, em relação ao TTDD-II, aponta que 77,74% (n= 248) das crianças pesquisadas apresentarem desenvolvimento considerado suspeito. Nesse sentido, o resultado obtido neste estudo difere de alguns estudos brasileiros de triagem do desenvolvimento de crianças que utilizaram o TTDD II. Em pesquisas realizadas por Biscegli et al. (2007) em uma creche no município de Catanduva, interior de São Paulo, por Piltz e Schermann (2007), que avaliaram o desenvolvimento de crianças até 6 anos residentes na cidade Canoas/RS, e na pesquisa de Halpern et al. (2000), em hospitais de Pelotas, RS, as crianças apresentaram desenvolvimento suspeito ou atraso dentro da faixa de 20%. Entre os estudos brasileiros levantados, o estudo que apresentou um resultado relativamente próximo dos aqui relatados foi o realizado por Caon e Ries, (2003), que apontou a existência de 86,2% das crianças com desempenho suspeito.
Nota-se, assim, que o percentual de crianças com o escore suspeito de atraso foi elevado se comparado com os resultados obtidos por três estudos semelhantes realizados no Brasil. As possíveis explicações para esse dado remetem às próprias características sociodemográficas da população de Belém e, consequentemente, da população infantil envolvida na pesquisa. É importante destacar que a amostra avaliada apresentou maior comprometimento na área da linguagem (n = 188; 59,24%), sendo o domínio do desenvolvimento neuropsicomotor mais comprometido.
Esses resultados são compatíveis com outros estudos que também envolveram populações infantis com características socioeconômicas semelhantes (Andrade, 1997; Biscegli et al., 2007, Ozkan et al., 2012; Paiva, Lima, Lima, & Eickmann, 2010), o que permite supor que crianças advindas de famílias socioeconomicamente desfavorecidas tendem a receber menos estimulação do desenvolvimento no ambiente familiar do que as que convivem com pais que apresentam melhor nível socioeconômico, principalmente no que diz respeito à escolaridade e renda. Logo, comparativamente, tais crianças podem estar sendo menos estimuladas em relação à prática da leitura e às interações positivas entre pais e filhos quando comparadas àquelas que vivem em condições socioeconômicas melhores.
Foram encontradas neste estudo associações significativas entre as variáveis escolaridade, ocupação do pai e gravidez não planejada com o escore de neurodesenvolvimento avaliado pelo TTDD-II. Esses achados reforçam a importância de se estudar o desenvolvimento neuropsicomotor na infância levando em consideração os fatores biológicos, mas também os familiares.
Quanto à escolaridade parental, estudos sugerem que a escolaridade materna pode funcionar como fator de proteção para o desenvolvimento infantil (Cachapuz & Halpern, 2006; Escarce et al., 2012; Halpern et al., 2000). Neste estudo, verificou-se que não houve significância estatística na associação entre a escolaridade materna e o escore do TTDD-II. Uma possível explicação para esse resultado pode ser devido à distribuição homogênea da amostra quanto às condições socioeconômicas.
No entanto, a escolaridade paterna igual ou inferior a oito anos de estudos mostrou associação estatisticamente significativa com o desempenho das crianças no TTDD-II. De fato, o nível de escolaridade paterna é um importante preditor de resultados educacionais e desenvolvimentais das crianças. Quanto maior o nível de escolaridade paterna, melhores podem ser a situação de renda, tipo de emprego, prestígio social e melhor a qualidade e quantidade das habilidades parentais utilizadas para estimular o neurodesenvolvimento (Maria-Mengel & Linhares, 2007; Ozkan et al., 2012). Portanto, variáveis estruturais da família, como escolaridade dos pais, tipo de emprego e renda familiar, podem afetar o nível de interações reais no seio da família e, nesses termos, o desenvolvimento neuropsicomotor da criança.
A variável tipo de ocupação do pai também mostrou associação significativa em relação ao resultado suspeito de atraso no TTDD-II. Esse resultado pode estar consoante com outros estudos (Dubow et al., 2009; Maria-Mengel & Linhares, 2007) e com a hipótese de que quanto maior o nível de escolaridade melhor poderá ser o emprego do pai, promovendo maiores oportunidades e melhores estímulos desenvolvimentais. Na população estudada, caracterizada em sua maioria como de baixa escolaridade e baixa renda familiar, é factível pensar que os pais têm baixa qualificação e ocupam funções no mercado de trabalho de baixas remunerações. Tal situação leva as famílias a se preocuparem com a sobrevivência dos seus membros, tendo pouca oportunidade de obter objetos que supram as necessidades do desenvolvimento das crianças, assim como pode comprometer a qualidade da interação com a criança nos momentos de convivência em casa.
O resultado apresentado é semelhante ao que foi encontrado no estudo realizado por Halpern et al. (2000), que teve como objetivo verificar a prevalência de suspeita de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor de uma coorte de crianças aos 12 meses (n= 363) que nasceram em hospitais de Pelotas, RS, durante o ano de 1993. Foram avaliadas através da aplicação do teste de Denver II e algumas variáveis socioeconômicas apresentaram significância para o desenvolvimento suspeito ou em atraso, dentre elas, a escolaridade dos pais. Os dados desse estudo apontam que existe uma chance 2,2 vezes maior de pais analfabetos terem filhos com suspeita ou atraso no desenvolvimento quando comparadas com as de maior escolaridade, ou seja, o risco da criança apresentar desenvolvimento suspeito/atraso é tanto maior quanto menor for a escolaridade dos pais.
Em relação às características da gestação e do parto da criança, apenas a variável planejamento da gravidez apresentou significância estatística (p=0,007) ao ser relacionado com o DNPM. Neste estudo, observou-se que mais de 70,53% (n = 225) das crianças pesquisadas nasceram de gravidez não planejada. Silva, Souza e Scorsolini-Comin (2013) investigaram os efeitos de uma gestação não planejada no desenvolvimento infantil destacando de forma semelhante que apresentavam um padrão de desvantagem desenvolvimental. Para os autores, o planejamento de uma gravidez pode proporcionar uma maior interação familiar, principalmente com relação ao vínculo mãe-bebê. Nos casos da presença do pai, ele pode participar ativamente, formando verdadeiramente uma tríade., Dessa maneira, torna-se um fator de proteção ao desenvolvimento infantil (Silva et al., 2013).
De modo geral, os achados corroboram a literatura sobre a relação entre características socioeconômicas e o desenvolvimento neuropsicomotor. Este é o caminho para se pensar em políticas públicas mais sensíveis às demandas da população infantil e seus respectivos responsáveis. Além disso, a presença de contornos específicos dessa relação na população estudada, também reforça a necessidade de ajustar o discurso e as práticas para a realidade de cada região do país, cada município, cada distrito onde vivem as crianças e suas famílias.
Considerações Finais
Buscou-se demonstrar, no percurso deste artigo, a importância que as características socioeconômicas e familiares de crianças em idade de 36 a 45 meses exercem sobre o seu desenvolvimento neuropsicomotor. O resultado demonstrou que a relação existente entre a escolaridade dos pais, a ocupação do pai e a gravidez não planejada exerce no desenvolvimento suspeito das crianças. Sendo assim, o estudo está de acordo com outras literaturas acerca do tema. Apesar da semelhança dos resultados deste estudo com outros sobre o mesmo tema, contudo, deve-se considerar que cada região tem a sua especificidade e, portanto, os estudos, políticas públicas e ações voltadas para a avaliação e atendimento do desenvolvimento infantil deve levar em consideração as especificidades de cada região do país.
Estes resultados obtidos a respeito do contexto familiar em que essas crianças estão inseridas apontam para condições desfavoráveis ao desenvolvimento, pois revelam uma condição de pobreza distribuída por todo o município de Belém, seja nos distritos com maiores índices de pobreza, seja os que apresentam menores índices. Tal realidade, portanto, leva à reflexão acerca da importância de se pensar no re-planejamento de estratégias e políticas públicas voltadas para a primeira infância, ou ainda planejar novos programas no que se refere ao acompanhamento e vigilância do desenvolvimento infantil.
Algumas limitações foram encontradas nesta pesquisa, especialmente no que diz respeito à coleta de dados, que levou em torno de 6 meses para ser concluída por conta da quantidade de participantes ser muito maior em relação à quantidade de pesquisadores, mas, ainda assim, o estudo contribuiu de maneira significativa para o debate teórico e social acerca do tema, além de apresentar um panorama relevante sobre a situação da primeira infância no município. Entretanto vale ressaltar a necessidade do desenvolvimento de novos estudos nessa linha de investigação para melhor compreender a criança e o seu contexto, principalmente em nível local. Sugerem-se estudos que estudem a região metropolitana em sua totalidade, ou comparando contextos diferentes dos já pesquisados.
Por fim, o estudo ressalta a necessidade de que as ações voltadas para o acompanhamento do desenvolvimento devem ir além da medida de altura e peso das crianças, mas deve-se ter sim um monitoramento sistemático do desenvolvimento infantil. Esse acompanhamento pode ser realizado por meio de uma metodologia facilmente aplicada por profissionais da rede pública, como a utilizada neste estudo, que abrange informações diversas sobre a criança e o seu contexto sociofamiliar. Deste modo, pode-se constituir um meio importante de detecção precoce de comprometimento do desenvolvimento. Portanto, é viável se pensar na implementação dessa metodologia em redes municipais de ensino como forma de alertar para uma vigilância do desenvolvimento na primeira infância. Além disso, não se pode esquecer a necessidade de participação da família e comunidade para a compreensão e acompanhamento mais amplo acerca do desenvolvimento infantil.
Referências
Andrade, C. R. F. (1997). Prevalência das desordens idiopáticas da fala e da linguagem em crianças de um a onze anos de idade. Revista Saúde Pública, 31(5), 495-501. (Link) [ Links ]
Biscegli, T. S., Polis, L. B, Santos, L. M., & Vicentin, M. (2007). Avaliação do estado nutricional e do desenvolvimento neuropsicomotor em crianças frequentadoras de creche. Revista Paulista de Pediatria, 25(4), 337-342. (Link) [ Links ]
Cachapuz, R. F., & Halpern, R. (2006). A influência das variáveis ambientais no desenvolvimento da linguagem em uma amostra de crianças. Revista da AMRIGS, 50(4), 292-301. [ Links ]
Caon, G., & Ries, L. G. K. (2003). Triagem do desenvolvimento motor nos dois primeiros anos de vida. Pediatria Moderna, 39 (7), p. 11-17. [ Links ]
Dubow, E. F., Boxer, P., & Huesmann, L. R. (2009). Long-term Effects of Parents' Education on Children's Educational and Occupational Success: Mediation by Family Interactions, Child Aggression, and Teenage Aspirations. Merrill-Palmer Quarterly (Wayne State University. Press), 55(3), 224-249. (Link) [ Links ]
Escarce, A. G., Camargos, T. V., Souza, V. C., Mourão, M. P., & Lemos, S. M. A. (2012). Escolaridade materna e desenvolvimento da linguagem em crianças de 2 meses à 2 anos. Revista CEFAC,14(6), 1139-1145. (Link) [ Links ]
Frankenburg, W. K., Dodds, J., Archer, P., Shapiro, H., & Bresnick, B. (1992). The Denver II: A major revision and restandardization of the Denver Developmental Screening Test. Pediatrics, 89, 91-97. [ Links ]
Halpern, R., & Cachapuz, R. F. (2006). A influência das variáveis ambientais no desenvolvimento da linguagem em uma amostra de crianças. Revista da AMRIGS, 50(4), 292-301. [ Links ]
Halpern, R., Giugliani, E. R. J., Victora, C. G., Barros, F. C., & Horta, B. L. (2000). Fatores de risco para suspeita de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor aos 12 meses de vida. Jornal de pediatria, 76(6), 421-428. (Link) [ Links ]
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. (2011). Censo demográfico 2010, Rio de Janeiro: IBGE. [ Links ]
Luz, I. R. (2008). Agressividade na primeira infância: Um estudo a partir das relações estabelecidas pelas crianças no ambiente familiar e na creche. São Paulo: Cortez. [ Links ]
Maria-Mengel, M. R. S., & Linhares, M. B. M. (2007). Risk factors for infant developmental problems. Revista Latino-americana de Enfermagem, 15(n. spe.), 837-842. (Link) [ Links ]
Nascimento, R., & Piassão, C. (2010). Avaliação e estimulação do desenvolvimento neuropsicomotor em lactentes institucionalizados. Revista Neurociências, 18(4), 469-478. [ Links ]
Noble, K. G., Houston, S. M., Brito, N. H., Hauke, B., Kan, E., & Kuperman, J. M., (2015). Family income, parental education and brain structure in children and adolescents. Nature Neuroscience, 18, 773-778. (Link) [ Links ]
Ozkan, M., Senel, S., Arslan, E. A., & Karacan, C. D. (2012). The socioeconomic and biological risk factors for developmental delay in early childhood. European Journal of Pediatrics, 171(12), 1815-1821. (Link) [ Links ]
Paiva, G. S., Lima, A. C. V. M. S., Lima, M. C., & Eickmann, S. H. (2010) The effect of poverty on developmental screening scores among infants. São Paulo Medical Journal, 128(5), 276-283. [ Links ]
Pedromônico, M. R. M., Bragatto, E. L., & Strobilius, R. (1999). Tradução e formatação do Teste de triagem de desenvolvimento de Denver II. São Paulo: UNIFESP. [ Links ]
Pilz, E. M. L., & Schermann, L. B. (2007). Determinantes biológicos e ambientais no desenvolvimento neuropsicomotor em uma amostra de crianças de Canoas/RS. Ciência e Saúde Coletiva, 12(1), 181-190. (Link) [ Links ]
Poletto, M., & Koller, S. H. (2008). Contextos ecológicos: promotores de resiliência, fatores de risco e de proteção. Estudos de Psicologia, 25(3), 405-416. (Link) [ Links ]
Sigolo, A. R. L., & Aiello, A. L. R. (2011). Análise de instrumentos para triagem do desenvolvimento infantil. Paidéia (Ribeirão Preto), 21(48), 51-60. (Link) [ Links ]
Silva, F. B., Souza, L., & Scorsolini-Comin, F. (2013). Significados da gravidez e da maternidade: Discursos de primíparas e multíparas. Psicologia: Teoria e Prática, 15(1),19-34. [ Links ]
Veleda, A. A., Soares, M. C. F., & Cézar-Vaz, M. R. (2011) Fatores associados ao atraso no desenvolvimento em crianças. Revista Gaúcha de Enfermagem, 32(1), 79-85. (Link) [ Links ]
Endereço para correspondência
Larissa Araújo Matos
Email: larissa-mattos@hotmail.com
Lília Iêda Chaves Cavalcante Elson Ferreira Costa
Email: liliaccavalcante@gmail.com
Elson Ferreira Costa
Email: elsonfcosta@gmail.com
Recebido em: 15/09/2015
Revisado em: 03/09/2016
Aceito em: 10/10/2016
ANEXO 1