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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.18 no.1 Fortaleza jan./abr. 2018

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v18i1.6068 

RELATOS DE PESQUISA

 

Depressão pós-parto para além do diagnóstico: representações sociais e subjetividade

 

Postpartum depression beyond diagnosis: social representations and subjectivity

 

Depresión post-parto para allá del diagnóstico: representaciones sociales y subjetivas

 

Dépression post-partum au-delà du diagnostic: des représentations sociales et de la subjectivité

 

 

Rafaella Pinheiro Cesario (Lattes) (OrcID)I; Daniel Magalhães Goulart (Lattes) (OrcID)II

IGraduanda em psicologia pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Membro do grupo de pesquisa "A subjetividade na saúde e na educação", coordenado pelo Dr. González Rey em 2015. Pesquisadora-bolsista da Iniciação Científica 2015-2016 com foco nos processos subjetivos envolvidos na depressão pós-parto
IIProfessor Adjunto do curso de Psicologia do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Mestre em Educação pela Universidade de Brasília. Membro do grupo de pesquisa "A subjetividade na saúde e na educação", coordenado pelo Dr. González Rey, na Universidade de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar reflexões teóricas acerca dos processos subjetivos de uma mulher diagnosticada com depressão pós-parto. Ele se insere em uma busca por romper com a visão reducionista da depressão pós-parto, calcada no modelo biomédico, que a reduz a seus aspectos biológicos-sintomatológicos, resgatando as dimensões sociais, histórico-políticas e singulares, frequentemente preteridas, presentes em sua construção. Para isto, utilizou-se da teoria da subjetividade de González Rey, em uma perspectiva histórico-cultural, em um diálogo com a teoria das representações sociais e autores críticos ao modelo biomédico, como Foucault e Illich. O controle por normas exercido na biopolítica, assim como o controle pelo diagnóstico resultante da medicalização da vida, configuram-se enquanto elementos importantes para refletir acerca da produção subjetiva da depressão pós-parto. Foi feito um estudo de caso, a partir de uma perspectiva qualitativa de base construtivo-interpretativa. No processo de construção de informação, discutimos que a depressão pós-parto expressa a disparidade entre a maternidade idealizada socialmente e aquela subjetivamente produzida de forma singular. Assim, a depressão pós-parto é uma produção subjetiva complexa que, para além de apenas aspectos biológicos e hormonais, é configurada pela subjetividade individual da puérpera em questão, e pela subjetividade social marcada pelo discurso médico e a medicalização da vida, que padronizam as experiências socialmente aceitáveis de maternidade e patologizam as demais, gerando frequentes quadros de frustração e culpa. Ademais, argumentamos que os modelos de assistência atualmente prestados, que partem de protocolos rígidos e que têm a norma como referência, não oportunizam uma reflexão crítica que viabilize o desenvolvimento de recursos subjetivos frente a essa experiência. Desse modo, defende-se a necessidade de espaços que acolham as experiências das puérperas de maneira a oportunizar a reflexão crítica acerca dos aspectos envolvidos na construção subjetiva singular da depressão pós-parto; viabilizando, assim, o desenvolvimento de recursos subjetivos.

Palavras-chave: depressão pós-parto; maternidade; subjetividade; representações sociais.


ABSTRACT

This article aims to present theoretical reflections about the subjective processes of a woman diagnosed with postpartum depression. It is part of a quest to break with the reductionist vision of postpartum depression, based on the biomedical model, which reduces it to its biological and symptomatological aspects, rescuing the social, historical-political and singular dimensions, often overlooked, present in its construction. For this, González Rey's theory of subjectivity was used in a historical-cultural perspective, in a dialogue with the theory of social representations and authors critical to the biomedical model, such as Foucault and Illich. The control by norms exerted in the biopolitics, as well as the control by the diagnosis resulting from the medicalization of the life, are configured as important elements to reflect about the subjective production of the postpartum depression. A case study was carried out from a qualitative perspective with constructive-interpretative basis. In the process of information construction, we argue that postpartum depression expresses the disparity between socially idealized and subjectively produced motherhood. Thus, postpartum depression is a complex subjective production that, in addition to only biological and hormonal aspects, is shaped by the individual subjectivity of the puerperal woman in question, and by the social subjectivity marked by the medical discourse and the medicalization of life, which standardize the socially acceptable experiences of maternity and pathologize the others, generating frequent frustrations and guilts. In addition, we argue that the assistance models currently provided, which depart from rigid protocols and that have the norm as a reference, do not offer a critical reflection that enables the development of subjective resources in front of this experience. Thus, we defend the need for spaces that welcome the experiences of puerperal women in a way that allows the critical reflection on the aspects involved in the singular subjective construction of postpartum depression; thus enabling the development of subjective resources.

Keywords: postpartum depression; maternity; subjectivity; social representations.


RESUMEN

Este artículo objetiva presentar reflexiones teóricas acerca de los procesos subjetivos de una mujer diagnosticada con depresión post-parto. Está basado en una búsqueda por romper la visión reduccionista de la depresión post-parto, calcada en el modelo biomédico, que la reduce a sus aspectos biológicos-sintomatológicos, rescatando las dimensiones sociales, histórico-políticas y singulares, frecuentemente ignoradas, presente en su construcción. Para eso, fue utilizada la teoría de la subjetividad de González Rey, en una perspectiva histórico-cultural, en un dialogo con la teoría de las representaciones sociales y autores críticos al modelo biomédico, como Foucault e Illich. El control por reglas ejercido en la biopolítica, así como el control por el diagnostico resultante de la medicalización de la vida, se configuran mientras elementos importantes para reflexionar acerca de la producción subjetiva de la depresión post-parto. Fue hecho un estudio de caso, a partir de una perspectiva cualitativa de base constructivo-interpretativo. En el proceso de construcción de información, discutimos que la depresión post-parto expresa la divergencia entre maternidad idealizada socialmente y aquella subjetivamente producida de forma singular. Así, la depresión post-parto es una producción subjetiva compleja que, para allá de solo aspectos biológicos y hormonales, es configurada por la subjetividad individual de la puérpera en cuestión, y por la subjetividad social marcada por el discurso médico y la medicalización de la vida, que estandarizan las experiencias maternales socialmente aceptables y 'patologizan' las demás, generando frecuentes cuadros de frustración y culpa. Además, argumentamos que los modelos de asistencia actualmente presentados, que parten de protocolos rígidos y que tienen la norma como referencia, no dan la oportunidad para una reflexión crítica que viabilice el desarrollo de recursos subjetivos ante esa experiencia. De este modo, se defiende la necesidad de espacios que reciban las experiencias de las puérperas de manera a dar oportunidad a la reflexión crítica acerca de los aspectos envueltos en la construcción subjetiva singular de la depresión post-parto, viabilizando, así, el desarrollo de recursos subjetivos.

Palabras clave: depresión post-parto; maternidad; subjetividad; representaciones sociales.


RÉSUMÉ

Cet article a le but de présenter des réflexions théoriques sur les processus subjectifs d'une femme touchée par la dépression post-partum. Le présent travail cherche rompre avec la vision réductionbiniste de la dépression post-partum, laquelle est basé dans le modèle biomédical, ce qui la réduit aux aspects biologiques et symptomatiques. Donc, on essaye de récupérer les dimensions sociales, historiques, politiques et singuliers, lesquels sont fréquemment négligées. Pour ceci, on a utilisé la théorie de la subjectivité de González Rey, dans une perspective historique-culturel, dans un dialogue avec la théorie des représentations sociales et aussi avec des auteurs critiques au modèle biomédical, comme Foucault et Illich. Le contrôle par normes exercé dans la bio-politique, et le contrôle par le diagnostic qui résulte dans la médicalisation de la vie, constituent des éléments importants à réfléchir sur la production subjective de la dépression post-partum. Une étude de cas a été faite, à partir d'une perspective qualitative de base constructive et interprétative. Dans le processus de construction d'information, on discute que la dépression post-partum expresse la disparité entre la maternité socialement idéalisée et celle qui a été produite subjectivement de façon singulier. Ainsi, la dépression post-partum est production subjective complexe qui, au-delà des aspects biologiques et hormonaux, elle est configurée par la subjectivité individuelle de la femme qui a récemment accouché et par la subjectivité sociale marquée par le discours médical et par la médicalisation de la vie. Ceux-ci normalisent l'expérience socialement acceptable de la maternité et transforme des autres en pathologies, ce qui gèrent des images fréquents de frustration et de culpabilité. En outre, on soutient que les modèles de l'aides actuellement fournies ne donne pas des possibilités de réflexions critiques qui permettent le développement des capacités subjectives face à cette expérience, car ils sont crées par des protocoles rigides qu'ont les normes comme références. Ainsi, on défend le besoin d'espaces qui accueillent les expériences des femmes puerpérales d'une manière qui soit possible faire des réflexions critiques sur les aspects impliqués dans la construction subjective singulière de la dépression post-partum; ce qui permet, donc, le développement de ressources subjectives.

Mots-clés: dépression du post-partum; maternité; subjectivité; représentations sociales.


 

 

A depressão pós-parto é uma categoria médica que delimita e normatiza um fenômeno que atinge cerca de 10 a 15% das puérperas com base em seus sintomas, tais como: estado de morbidez, irritabilidade, choro frequente, baixa energia e motivação, falta de prazer e de interesse sexual, sentimento de desamparo e culpa, perda de concentração, bem como ideias de morte ou suicídio ocorrendo por um período mínimo de duas semanas (Beck, 2002; Chandran, Tharyan, Muliyil & Abraham, 2002; Lobato, Moraes & Rreichenheim, 2011; Rodrigues & Schiavo, 2011; Schardosim & Heldt, 2011). Contudo, a qualidade da experiência desse processo se configura como única; extrapolando, portanto, tal representação social de base sintomatológica, que não dá visibilidade à dimensão emocional, singular e político-social presentes na mesma; ocultando, assim, por detrás do diagnóstico, o sujeito que vivencia o fenômeno.

No intuito de refletir sobre esse tema, foi feito um estudo de caso, a partir do qual foram tecidas reflexões utilizando a teoria da subjetividade em uma perspectiva cultural-histórica, que se orienta à geração de inteligibilidade sobre a complexidade das produções simbólico-emocionais nas condições da cultura (González Rey, 2004, 2005, 2015, 2016). Utilizou-se também contribuições da teoria das representações sociais, que permite enfocar a maneira como o conhecimento e as produções simbólicas acerca de determinados fenômenos são partilhados, constituindo a realidade comum, transformando ideias em práticas, de modo a intervir nos processos de subjetivação (Moscovici, 2003). Ambas as propostas teóricas contribuem para avançar em uma visão complexa acerca da depressão pós-parto, abrindo possibilidades para se refletir sobre suas dimensões singulares e político-sociais, frequentemente ignoradas.

Articulada a essa reflexão teórica, a noção de biopolítica, com seus dispositivos de poder, saber e cuidado de si, teorizados por Foucault, 1980, 2004), é discutida em suas formas de controle e práticas. Além disso, aliado às formas de controle efetivadas pela biopolítica de Foucault, encontra-se o processo de medicalização da vida, e o consequente controle por meio do diagnóstico, dos quais fala Illich (1975), que se fazem presentes nas representações sociais dominantes e na delimitação do que é saudável e do que é patológico. Desse modo, tais contribuições teóricas se fazem importantes, uma vez que desempenham destacado papel nos processos de subjetivação da depressão pós-parto.

Assim, defende-se a hipótese de que a depressão pós-parto é uma produção subjetiva complexa que, para além de apenas aspectos biológicos e hormonais, é configurada pela subjetividade individual da puérpera em questão, e pela subjetividade social marcada pelo discurso médico e a medicalização da vida, que padronizam as experiências socialmente aceitáveis de maternidade e patologizam as demais, oportunizando sentimentos de frustração e culpa que caracterizam a representação social dominante da depressão pós-parto.

O presente trabalho também reflete acerca da importância de uma rede de apoio que viabilize um espaço dialógico de apoio singularizado, tornando viável, por meio deste, uma reflexão crítica - o que implica um resgate dasdimensão simbólico-emocional, do espaço social e das representações e normas implicadas nessa produção, favorecendo o desenvolvimento de um novo modo de vivenciar a maternidade.

 

Teoria da Subjetividade e Representações Sociais: Uma Complexa Aproximação

Moscovici (2003) define as representações sociais enquanto forma característica de conhecimento de nossa época, que corresponde, por um lado, a uma substância simbólica e, por outro, à prática que tal substância produz. Dessa maneira, as representações sociais são "um sistema de valores, ideias e práticas" (Moscovici, 2003, p. 21) que desempenham uma dupla função. Primeiramente, de estabelecer uma ordem, permitindo que as pessoas se orientem a partir delas em seu mundo material e social. Em segundo lugar, elas possibilitam a comunicação entre os membros de uma comunidade ao fornecer-lhes um código que nomeie e classifique os fenômenos de seu mundo (Moscovici, 2003).

Uma aproximação teórico-epistemológica entre teoria da subjetividade e a teoria das representações sociais se faz possível mediante a interpretação desenvolvida por González Rey (2008, 2015) das representações sociais enquanto produções simbólicas produzidas e configuradas socialmente, mas que não prescindem dos processos emocionais que se articulam complexamente no nível do sujeito individual. Vale ressaltar que a teoria da subjetividade avança teoricamente nessa explicação, pois a subjetividade social vai além do conceito de representações sociais, visto que integra o indivíduo como parte indissociável desse processo, dado que considera não somente os processos simbólicos abordados pela teoria das representações sociais (Moscovici, 2003), mas a unidade dos processos simbólicos com os processos emocionais, que se articulam no caráter dinâmico e criador da subjetividade humana. Nesse sentido, para o autor, as representações sociais figuram como uma produção subjetiva social, que, como tal, se organizam simultaneamente nas práticas sociais e individuais (González Rey, 2003), de modo que as representações sociais não são vistas como causas lineares de comportamentos, mas como um sistema complexo que é fonte de sentidos subjetivos para qualquer atividade (González Rey, 2015), caracterizando a relação entre as práticas instituídas e as concepções, saberes e normas que instituem essa prática (Machado, Almeida & Saraiva, 2009).

Nessa ótica, faz-se importante discutir as representações sociais dominantes da maternidade, uma vez que são concebidas como fontes de produções subjetivas associadas a determinado ideal, que termina por ser amplamente influente na experiência da puérpera. Esse processo leva, frequentemente, à normalização que se impõe desde fora, gerando uma dissociação entre a norma e a vivência singular desse processo, prejudicando a criação de parâmetros singulares de acordo com a própria experiência da pessoa.

A representação social da depressão pós-parto é fortemente marcada pelo modelo biomédico, que se baseia em uma rígida dicotomia entre o normal e o patológico. Nesse processo, aquilo que diverge da norma, ou da representação social hegemônica, passa a ser compreendido como inatural a partir do pressuposto de uma única maneira "saudável" de vivenciar a experiência da maternidade (Arrais, 2005). O normal configura-se, por outro lado, a partir de um ponto de vista estatístico quantitativo e também em um protótipo qualitativo ideal a ser atingido (Canguilhem, 2002). Nessa ótica, ignora-se todo o aspecto cultural, social e singular presentes na produção da "doença", como também a capacidade do indivíduo de criar seus próprios parâmetros em consonância com sua própria experiência.

A teoria da subjetividade em uma perspectiva cultural-histórica adquire valor heurístico na discussão desse tema ao enfatizar o resgate do sujeito no cerne desse processo, permitindo teorizar sobre seu papel como constituinte e constituído por essas representações sociais, abrindo novas possibilidades de existência perante as exigências exercidas pela representação idealizada de maternidade.

Inspirado por contribuições teóricas da psicologia soviética, tais como Vygotsky (1987, 2001) e Bozhovich (1968), bem como por diversas inovações conceituais dessa psicologia a partir da década de 1970 (Abuljanova, 1980; Chudnovsky, 1988; Lomov, 1978), González Rey elabora o conceito subjetividade enquanto sistema simbólico-emocional, que expressa a mobilidade e diversidade da experiência dos indivíduos e dos grupos sociais; representando, portanto, uma produção humana ontologicamente diferenciada sobre a experiência vivida (González Rey, 2007, 2015, 2016).

A subjetividade expressa, enquanto "fenômeno complexo produzido de forma simultânea no nível social e individual" (González Rey, 2003, p. 202), por meio dos sentidos subjetivos, os diversos aspectos "objetivos" da vida social imbricados em sua formação (González Rey, 2005). Os sentidos subjetivos representam unidades simbólico-emocionais (González Rey, 2009) produzidas em nossa experiência, em um fluxo inconsciente e dinâmico, expressando a qualidade da relação do sujeito em determinado momento da vida social (González Rey, 2005). Tais unidades se organizam em configurações subjetivasque, por sua vez, expressam formações simbólico-emocionais relativamente estáveis em relação a processos, acontecimentos e figuras significativos para a pessoa, ou grupo social. Tais conceitos se revelam importantes, pois permitem refletir acerca da produção singular da puérpera em permanente tensão com aspectos sociais dessa produção.

A subjetividade é composta por níveis integrantes e inalienáveis expressos pela subjetividade individual e social, uma vez que o caráter relacional e institucional da vida humana resulta na configuração subjetiva dos sujeitos, assim como dos espaços sociais onde essas relações se configuram (González Rey, 2003). A subjetividade social expressa produções simbólico-emocionais configuradas nos diferentes espaços sociais, permitindo que grupos, instituições e culturas se identifiquem pelos seus aspectos subjetivos convergentes. A subjetividade social se apresenta nas representações sociais, nas normas, nas crenças, na moral que caracteriza os mais diversos espaços sociais em que vivemos. Esses são os mesmos elementos presentes na subjetividade individual, com a diferença de que a produção de sentido nesse nível é configurada pelos aspectos singulares de indivíduos concretos (González Rey, 2005). Encontra-se aí o valor heurístico da teoria da subjetividade: ao enfatizar a qualidade recursiva entre o social e individual, bem como o caráter gerador e ativo da subjetividade, inaugura uma nova concepção da categoria sujeito. Rompe-se com uma perspectiva individualizada de sujeito, de modo que ele passa a ser concebido a partir de sua relação com o social. Nesse sentido, o indivíduo é um momento da experiência social, pois os espaços sociais geram formas de subjetivação que se concretizam nos diferentes sujeitos a partir de suas produções, sempre em tensão com suas produções subjetivas individuais.

Desse modo, a relação recursiva entre essas duas faces da subjetividade não se dá de forma linear e causal, pois a subjetividade implica uma produção humana que evidencia uma alternativa às imposições da realidade (González Rey, 2009). A subjetividade individual é sempre atravessada pela subjetividade social, entretanto, os sentidos subjetivos produzidos dependem dos modos que essa relação adquire (González Rey, 2003).

Ser saudável, na ótica biomédica, é visto como não ter sintomas, instaurando a dicotomia saúde/doença e individual/social. Essa definição, contudo, é contestada por González Rey, que define saúde como uma produçãos imbólica, cultural e historicamente organizada, por meio de processos institucionais e de práticas sociais imbricadas nos posicionamentos frente a essa importante dimensão da vida humana, tanto por parte das pessoas, como das sociedades (González Rey, 2004; Costa & Goulart, 2015). Assim, a categoria diagnóstica "depressão pós-parto" não pode ser dissociada da medicalização da vida, do controle exercido pela norma e pelo diagnóstico, assim como os aspectos subjetivos individuais que se fazem presentes na configuração subjetiva dessa experiência (Goulart & González Rey, 2016; Goulart, 2017). A partir de tal perspectiva, a saúde é vista não como produto, mas como processo que não corresponde a um estado de normalidade (González Rey, 2011).

A dicotomia normal-patológico expressa uma concepção de mundo como externo ao sujeito, como se não estivéssemos implicados nele de maneira orgânica por meio do nosso funcionamento (González Rey, 2004). O normal deixa de ser a capacidade do indivíduo de produzir suas próprias normas na sua relação concreta com seu meio de acordo com suas possibilidades e limitações - processo que Canguilhem (2002) denomina normatividade biológica - para ser uma normatividade social, marcadamente externa ao sujeito.

Ao estabelecer a dicotomia saúde/doença e normal/patológico, o sujeito se depara com uma perspectiva rígida e arbitrária de vivenciar suas experiências, em que qualquer maneira que divirja da norma é marginalizada à esfera do patológico, não levando em consideração a implicação do sujeito em seus processos - o que pode levar à mortificação do eu (Goffman, 2001). Ademais, algumas características tidas como sintomas são eleitas e totalizadas, tornando-se definidoras do sujeito que passa a ser considerado doente (Moysés, 2001). Vale ressaltar que o conceito de normalidade é histórico e cultural, somente adquirindo sentido por meio dos discursos e representações ali presentes. Portanto, a condição de doença, do patológico, depende em si de seu contexto - é a partir da cultura que se denomina a norma.

Considerando o explícito acima, a perspectiva aqui adotada permite alternativas teóricas e epistemológicas para compreender de forma complexa a configuração subjetiva da depressão pós-parto, uma vez que, de acordo com Morin (1983, p. 35), "o que me interessa é o fenômeno multidimensional (...) Tudo o que é humano é ao mesmo tempo físico, sociológico, econômico, histórico, demográfico; interessa, pois, que esses aspectos não sejam separados". E conhecer um fenômeno, ou condição social, somente se faz possível por meio do "sistema disperso de suas consequências sobre a constituição subjetiva daqueles que a compartilham" (González Rey, 2005, p.14). Tal compreensão permite avançar em configurações subjetivas singulares do processo da maternidade, para além de suas normatizações sintomáticas e de seu divórcio com as dimensões sociais e culturais que o constituem, viabilizando investigar o tema de forma complexa.

 

A Norma, O Poder e o Diagnóstico: Um Olhar Histórico

A partir da perspectiva adotada, é importante fazer uma incursão histórica de modo a enfatizar a maneira como tal constituição histórica se faz presente nas produções sociais e individuais associadas à produção da depressão pós-parto.

A partir do século XVIII, como desdobramento da Revolução Industrial Inglesa e da nova ordem econômica e política por ela instaurada, o capitalismo, instaurou-se também uma nova forma de normatização, uma vez que a saúde individual e o rendimento passaram a ser considerados indispensáveis ao bom funcionamento da engrenagem social (Foucault, 1980). Assim, institui-se um processo de normalização e controle, por meio de diversos dispositivos, que resultam em um importante elemento na produção de subjetividades, tanto individuais quanto sociais, bem como das representações sociais de maternidade, e, consequentemente, na produção da depressão pós-parto.

Nesse contexto, "a medicina passou a ser uma oficina de reparos e manutenção, destinada a conservar em funcionamento o homem usado como produto não humano" (Illich, 1975). Não só a medicina, mas a psicologia e também a própria família, passam a se encarregar da normalidade, reduzindo a complexidade e amplitude de formas de vivenciar fenômenos sociais à dicotomia normal/patológico. Essa apropriação dos discursos por parte da medicina implica não somente em uma produção de saber, mas em uma produção de poder, que cria espaços sociais de subjetivação engendrados por normas, discursos e práticas (Foucault, 1980, 2004). De acordo com Canguilhem (2002), o doente é doente por aceitar apenas uma norma. A norma em si não é o problema, e sim o fato de que diz respeito a valores morais naturalizados. A normatização da maternidade acarreta no consequente exílio daquilo que difere desse ideal na esfera do patológico, ignorandoa multiplicidade e singularidade dos processos subjetivos.

Assim, a depressão pós-parto é, historicamente, produzida nessa relação de poder que termina por delimitar modos de viver e de existir no mundo (Vasconcelos, Zago, Machado & Ross, 2011). A consequente imposição da representação social hegemônica naturalizada gera processos de normatização que produzem intenso sofrimento àquelas que divergem desse ideal. A medicina e a psicologia passam a ocupar, na nossa sociedade moderna, um lugar social de dispositivos disciplinares que enxergam os fenômenos que divergem da norma através da lente da anormalidade, buscando corrigir tal patologia reintegrando-os à norma por meio de seus cuidados (Foucault, 2004). Desse modo, dificulta-se a possibilidade de gerar sentidos subjetivos relacionados à valorização da realidade existencial de cada uma.

Essa incursão histórica nos auxilia a compreender o processo pelo qual as práticas e representações sociais referentes à maternidade foram construídas, assim como a patologização daquilo que diverge do socialmente almejado, evidenciando a relação indissociável entre as produções singulares com seu contexto histórico, político e cultural.

Ariés (1978), em a História Social da Criança e da Família, destaca que, até o século XVI, não há registros, icônicos nem escritos, que fizessem referência à criança, demonstrando que o conceito de infância e de maternidade, tal qual conhecemos, é uma construção social recente. A noção atual de família, consequentemente de maternidade, foi sendo concebida concomitantemente ao surgimento do conceito de infância, que, por sua vez, acompanhava mudanças sociais e econômicas (Ariés, 1978). A reflexão de Ariés explicita como as mudanças de conceito de família modificaram sua ontologia e práticas sociais. Por exemplo, de acordo com um tenente da polícia parisiense de 1780, das 21 mil crianças que nasceram em Paris, apenas mil foram amamentadas pelas mães, tendo mais de 19 mil delas partido para longe de suas mães para serem amamentadas. Tal atitude atribui-se, com frequência, à alta taxa de mortalidade infantil da época, que contribuía para um distanciamento em relação aos filhos. Essa prática social expressa uma representação social da maternidade, englobando aí suas obrigações, distintas das atuais (Badinter, 1985), evidenciando que mudanças nas tendências sociais que compõe a subjetividade social geram novas representações, que delimitam o que é socialmente aceito enquanto experiência da maternidade.

A crítica de Rousseau (2004) sobre a prática de mandar os filhos para serem amamentados presente em Émile ilustrou o início de uma nova representação social da maternidade ao endossá-la e ao associar uma boa mãe àquela que se sacrifica em nome da maternidade. Foi através dessa mudança na representação de maternidade que se instaurou a "injunção obrigatória do amor materno" (Badinter, 1985), o que teve implicação na maneira como os indivíduos e grupos sociais vivenciam a experiência da maternidade.

Assim, a noção de "instinto materno" pode ser vista como desdobramento de um dispositivo biopolítico que extrapola o âmbito da ciência, tornando-se a representação social dominante e normatizante acerca da maternidade. Isto é expresso na própria definição do dicionário Aurélio em sua edição de 1867, que define a maternidade como: "(...) força biológica que atua, em geral, de modo inconsciente, mas com finalidade precisa, e independentemente de qualquer aprendizado (...) Tendência natural; aptidão inata" (Arrais, 2005, p. 41). Tal definição, ainda que contestada (Badinter, 1985), exemplifica como essa visão foi naturalizada, impregnando o senso comum e resultando na imposição arbitrária de uma experiência determinada, a priori, de uma vivência singular.

Pode-se observar que, ao longo do tempo, expressando fatores sociais, econômicos e políticos, houve diversas mudanças acerca da representação social do ideal de maternidade a ser vivenciado. Tais práticas sociais "tomam corpo e tomam o próprio corpo em esquemas de comportamento, em conjuntos técnicos, em instituições que, atuando de forma articulada, operacionalizam a transmissão e a difusão de modos específicos de subjetivação" (Vasconcelos et al., 2011, p. 10). A representação social da depressão pós-parto refere-se a um conjunto de sintomas que antagonizam a representação social dominante da maternidade, relacionada a um amor instintivo, realização e felicidades plenas, naturalizando a maternidade como instinto materno.

As experiências que se distanciam desse amor instintivo se configuram como forma anormal, adoecida, de vivenciar a maternidade (Arrais, 2005), visando localizar no indivíduo a sede do problema, o desvio do instituído, ignorando toda a dimensão social, cultural e política dessa produção. Desse modo, a concepção de um sujeito individualizado, ponto central da sociedade capitalista (Furtado, 2007), dicotomiza com suas produções singulares da dimensão social inexoravelmente presente em tais produções. Cabe, assim, à psicologia, à medicina, à família, entre outras instituições, o papel de agentes do poder disciplinar, que prezam pelo retorno à "normalidade".

Dessa forma, a dicotomia entre o ideal de maternidade e a experiência adoecida de maternidade, expressa pela depressão pós-parto, sustenta uma representação social dominante e práticas sociais que ignoram as diversas formas possíveis de vivenciar essa experiência, a depender da produção subjetiva de cada puérpera (Arrais, 2005). Nesse contexto, o tratamento e cuidado prestados a puérperas diagnosticadas com depressão pós-parto busca a eliminação dos sintomas e retorno à "normalidade" sem se atentar para as produções subjetivas que a levaram a ser enquadrada em tal diagnóstico. Os protocolos rígidos e inflexíveis tampouco proporcionam um espaço dialógico que oportunize à puérpera refletir sobre os próprios processos e gerar seus próprios caminhos singulares de produção de saúde. Percebe-se, portanto, um duplo processo de normalização, que se configura a partir da norma e da captura dos processos de singularização, consolidando o discurso biomédico como dispositivo disciplinar que desempenha um importante papel nos processos de subjetivação individuais e sociais.

A redução de fenômenos complexos a uma dimensão biológica desdobra-se na medicalização da maternidade, produzindo consequências, tais como o controle social pelo diagnóstico, que leva as puérperas a portarem-se como objeto pelo qual o médico é responsável, e perdendo, assim, sua autonomia e liberdade, o que Illich denomina de iatrogenêse social (Illich, 1975). Ao normatizar e prescrever uma maneira padronizada de vivenciar a maternidade, a experiência vivida que sobrepuja a normatizada é diagnosticada, tornando a puérpera objeto de conhecimento e tratamento médico, que tem sempre como referencial a norma. Retira-se, assim, a puérpera de seu lugar de sujeito de sua experiência - o que, em consonância com o discurso capitalista-individualizante, localiza exclusivamente no indivíduo o problema e alimenta, desse modo, a culpa sentida. Ademais, a posição de paciente, objeto do saber médico, que nada sabe sobre si, minimiza a possibilidade de que desenvolva por si, a partir dos sentidos subjetivos que emergirem, seu próprio modo de vivenciar a maternidade.

Apesar dos saberes e poderes que sustentam essa dicotomia e que pretendem domar a subjetivação, tornando-a homogênea, as experiências singulares lhe extrapolam, perfazendo uma história de resistência (Cardoso, 2005) e demandando novos olhares para contemplar o fenômeno. Exalta-se a necessidade de resgatar a possibilidade de vivenciar a experiência da maternidade de diversas maneiras de acordo com a subjetividade (individual e social), interesses, valores, necessidades e possibilidades de cada mulher.

Fica, assim, expressa a importância de criar novas zonas de sentido, ou seja, formas de inteligibilidade acerca da realidade produzidas na pesquisa e que não esgotam a questão, mas abrem possibilidades de aprofundamento na construção teórica (González Rey, 2007), a partir de uma visão complexa, explorando como os aspectos psicossociais, históricos, políticos, culturais e singulares se articulam na experiência da pessoa. O estudo de caso permite tal imersão profunda e complexa resgatando os sentidos subjetivos emergidos na singularidade dessa experiência. Desse modo, o presente estudo propõe investigar de que modo as representações sociais da maternidade e do próprio diagnóstico de depressão pós-parto, bem como os elementos singulares da história de vida da puérpera, articulam-se na produção subjetiva da depressão pós-parto da participante.

Pretende-se, assim, contribuir para a desmistificação da representação social da depressão pós-parto como modo patológico de vivenciar a maternidade, assim como dar subsídios para uma atenção integral à puérpera, voltando um olhar complexo a esse fenômeno complexo. A partir disso, dar legitimidade à singularidade dessa vivência, resgatando a puérpera como sujeito de sua experiência e devolvendo a ela a possibilidade de desenvolver por si, a partir dos sentidos subjetivos que emergirem de seu próprio modo de vivenciar a maternidade.

 

Método

A presente pesquisa teve como base a epistemologia qualitativa (González Rey, 1997, 2005), que defende o caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, a legitimidade do singular na pesquisa científica e o conhecimento como processo de comunicação. Tal baliza epistemológica propõe a metodologia construtiva-interpretativa como referencial, cujo objetivo é a construção de modelos teóricos compreensivos referentes ao fenômeno pesquisado, e não uma apropriação linear de uma realidade.

Nessa perspectiva, a pesquisa científica visa à abertura de novas zonas de sentido sobre o fenômeno estudado, sem buscar esgotá-lo em todas suas possibilidades (González Rey, 2005). Consequentemente, o singular se torna fonte legítima de informações que contribuem para o modelo teórico resultante da pesquisa. De acordo com esse referencial, a produção subjetiva da participante em relação à depressão pós-parto não se dá de forma direta e explicitamente relacionada a esse fenômeno, mas encontra-se "dispersa na produção total da pessoa" (González Rey, 2005, p. 32), necessitando de interpretações e construções, de forma a articulá-las e produzir construções teóricas acerca do fenômeno.

Este artigo foi aprovado como parte de um projeto de iniciação científica, coordenado pelo professor Fernando González Rey e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa por meio do Parecer nº. 1.372.682.

A pesquisa se desenvolveu com uma participante, com a qual se teve encontros pessoalmente e virtualmente no decorrer de quatro meses. O contato foi feito por meio de indicação de uma pessoa conhecida em comum, de modo que a escolha da participante se deu por ela ter se disponibilizado a participar do estudo.

C. é uma mulher de 42 anos, nascida em uma cidade do interior de Minas Gerais, mas que vive em Brasília desde os seis anos de idade. Vive com o marido, com quem é casada há 11 anos, e sua filha de sete anos. Sua família de origem é composta por um pai, uma mãe e quatro irmãos, com quem ela mantém contato frequente. Ela é formada em Administração de Empresas e atualmente é servidora pública. Cinco anos antes da gravidez, C. havia sido diagnosticada com depressão, bem como com síndrome do pânico. Durante esse período, teve acompanhamento médico e psicológico, apresentando melhora gradual após tais intervenções. Somente a partir da gravidez, mais especificamente após o parto, C. voltou a vivenciar situações de intenso sofrimento psíquico.

Após completar oito anos de matrimônio e ter se estabelecido financeiramente, tendo "viajado o que queria viajar, passeado o que queria passear", C. decidiu ter filhos. Foi uma decisão conjunta com seu parceiro, de modo que, poucos meses depois do planejamento, engravidou. Antes da gravidez, não se encontrava em depressão, tampouco apresentava sintomas da síndrome do pânico, tão frequentes outrora. Estes somente foram deflagrados no sexto mês de gravidez, agravando-se no pós-parto.

A construção do cenário de pesquisa, definido como a "criação de um clima de comunicação e de participação que facilita o envolvimento por parte das pessoas" (González Rey, 2005, p. 84), iniciou-se pelo contato virtual que explicava o tema da pesquisa, o que resultou no interesse de contribuir por parte da participante, que demonstrava desejo de dividir sua experiência. Os encontros presenciais ocorreram na casa da participante, o que proporcionou a ela conforto e liberdade por estar em um ambiente familiar, permitindo paulatinamente o estabelecimento de um vínculo por meio do diálogo.

De acordo com a metodologia construtivo-interpretativa, os instrumentos caracterizam-se pela criação de recursos relacionais por parte do pesquisador, cujo objetivo é provocar a expressão do participante. Conforme expressa González Rey (2005, p. 42), o instrumento expressa uma "via legítima para estimular a reflexão e a construção do sujeito a partir de perspectivas diversas", resultando no tecido de informações a partir do qual o pesquisador constrói novos questionamentos e instrumentos para avançar no modelo teórico em desenvolvimento.

Para tanto, foi utilizado como instrumento a "dinâmica conversacional" (González Rey, 2005), que consiste em instigar o participante, por meio do diálogo, criando assim um "tecido de informação" significativo para a construção dos sentidos subjetivos relacionados ao fenômeno estudado. Ao longo desse processo, tanto os participantes como o pesquisador, integram suas experiências, suas dúvidas, suas tensões, suas emoções no processo, o que facilita a emergência de sentidos subjetivos ao longo das conversações, que vão tomando formas distintas, nas quais a riqueza da informação se expressa numa multiplicidade de formas diferentes que vão se organizando em representações teóricas construídas pelo pesquisador (González Rey, 2005).

Além da dinâmica conversacional, foi utilizado o "complemento de frase", instrumento que apresenta indutores curtos a serem preenchidos pelo sujeito (González Rey, 2005) com o intuito de estabelecer outra via de acesso aos sentidos subjetivos e à experiência singular da participante. Pelo fato de os indutores serem bastante curtos, é possível utilizar uma ampla gama deles, abordando diferentes temáticas, favorecendo expressões sobre diversas esferas da vida do participante.

 

Construção da Informação

No primeiro encontro da participante com a primeira autora deste texto, foi perguntado como, na concepção dela, havia se iniciado seu processo depressivo. Diante de tal questionamento, ela respondeu:

Um dia, meu marido viajou, e aí tive uma crise de referência mesmo (...) Tipo, bom, eu achava isso (seu modo de pensar e agir na vida) correto, aí eu comecei assim: será que isso é correto mesmo? Aí eu passei a questionar tudo que eu acreditava, pra ver se era isso que eu queria pra ela (bebê). E eu comecei a pensar umas coisas muito doidas. Assim, eu ficava em pânico de influenciar a formação do que uma pessoa pensa. Parecia que eu não sentia... É muito poder, sabe? Aquilo me assustou muito. Tem isso, de se cobrar, mas mais que isso, o que ficou pra mim foi: quem eu sou? Quem eu sou para, agora, influenciar uma coisinha que não tem nada escrito? Quem eu sou? O que eu acredito de verdade? Quais são os meus valores? E era tudo... Quais são meus valores? E, quando eu me fiz essa pergunta, eu me desestruturei.

Ela disse ainda: "Eu não sei se esse negócio de ser mãe te muda de posição na vida, que aí de repente você tem que dar conta do outro. Aí você fala, poxa, será que eu dou conta de mim? Aí tive uma crise de referência mesmo". Tais trechos expressam claramente a insegurança de C. em relação a ser mãe. No entanto, as associações feitas entre ser mãe e questões mais gerais de sua pessoa podem ser consideradas como indicador de sentidos subjetivos relacionados à insegurança e baixa autoestima em relação à sua constituição como pessoa. Os trechos acima citados também são entendidos como indicadores de que a representação social dominante, da mãe como a principal figura responsável pelos filhos, se faz presente na produção subjetiva de C. com relação à maternidade, configurando um ideal que ela se cobra atingir. Além disso, em ambas as falas, estão presentes questões de gênero, que delimitam os papéis do que é considerado feminino, incluindo nesse escopo a mulher/mãe como principal figura responsável pelos filhos. Essa concepção tradicional de gênero se desdobra na assunção de que a formação da filha é estritamente sua responsabilidade; desconsiderando, nesse processo, por exemplo, os papéis desempenhados pelo pai da criança - seu marido. Esse aspecto nos leva a questionar a qualidade das relações pessoais que C. estabelece em sua vida, bem como a existência de uma rede social de apoio.

Ao abordar o tema do momento de nascimento da filha C. diz:

Outra coisa, a coisa do amor... Essa questão também, a gravidez e a maternidade é muito romanceada, né? Nossa! A mulher grávida fica numa aura! Não, "e aí, quando você olha a carinha, você se apaixona, não sei o que". Eu olhei a carinha e eu falei uhm... Você tem um instinto de "meu Deus, tá chorando, tenho que dar comida!", um instinto de defesa. Mas eu ficava cobrando, assim, "eu tenho que sentir aquele amor", né, que quando você olha já transforma. Eu não senti aquele amor. Assim, no meu caso, nem sei o que eu tava sentindo. Aí assim, "não tô amando esse bebê. Meu Deus, não tô amando esse bebê, que nem todo mundo ama". Que culpa! Não tô amando, tô cuidando, mas...

A culpa relatada por C. pode ser entendida como indicador da dissociação entre sua produção subjetiva individual e a idealização do que é ser mãe, ambas atravessadas pela representação social hegemônica da maternidade, que ela própria cultiva. É marcante como C. não se posiciona ativamente a partir de sua vivência singular, mas se submete a esse ideal, que passa a cobrar de si mesma.

As representações sociais hegemônicas acerca da maternidade ilustram somente uma de suas inúmeras facetas, reduzindo-a, assim, à maneira romanceada que é retratada e a "injunção obrigatória do amor materno" (Badinter, 1985). Ao se deparar com uma maneira distinta de vivenciar a maternidade, C. se viu fragilizada e sem confiança para assumir a forma singularizada que estava vivenciando a maternidade. A posição de submissão de C. em relação à tal representação social hegemônica é indicador de uma produção de sentidos subjetivos associada à insegurança que sente em si mesma enquanto pessoa, reforçando e naturalizando esse ideal de maternidade socialmente construído. Nesse processo, ela se vê sem condições para emergir enquanto sujeito de sua experiência, não conseguindo abrir um campo de subjetivação alternativo à normatização social, que poderia lhe permitir um caminho de desenvolvimento subjetivo singularizado (González Rey, 2005).

Ao longo dos encontros, C. relatou diversas situações que frustraram suas expectativas, distanciando-a do ideal materno. A primeira experiência na qual se sentiu frustrada foi a gravidez. A gravidez - que, de acordo com o relato da participante, "é muito romanceada. Dizem que a mulher grávida fica numa aura (...) É tudo lindo" - foi uma experiência de bastante desconforto, sendo distinta do que ela imaginava: "engravidei, passei muito mal na gravidez, enjoei muito, não passou, fiquei com várias manchas, me questionando se dava conta... Não tinha nada a ver com aquela aura". É interessante perceber que, apesar de C. por vezes racionalmente criticar essa representação "romanceada" da maternidade, tal crítica é dissonante da sua produção subjetiva de cobrar-se e culpar-se por não se adequar à norma social (Canguilhem, 2002), o que sugere que essa crítica expressa valores carentes de sentido subjetivo, representando apenas uma posição racional despersonalizada assumida perante as representações sociais dominantes presentes na subjetividade social (González Rey, 2005).

A discrepância entre sua vivência e sua expectativa levou C. a se questionar não somente acerca de sua capacidade para ser mãe, mas acerca de si mesma, levando-a a se "desestruturar completamente". C. buscou, então, "um médico para me ajudar". É interessante que a primeira reação de C. ao se sentir desorganizada subjetivamente tenha sido buscar a ajuda especializada de um médico, e não o apoio de pessoas afetivamente próximas a ela. Tal ação pode ser interpretada como uma expressão do monopólio radical da medicina (Illich, 1975), uma vez que, ao vivenciar a maternidade de forma distinta da idealizada, C. a concebe como uma forma doente de experimentá-la, que requer, portanto, tratamento e cura.

É interessante perceber que, mais do que buscar diferentes formas de compreender a sua própria experiência e, a partir de então, fomentar recursos subjetivos que a poderiam ajudar nesse momento, C. parece se submeter à lógica patologizante do modelo biomédico (Arrais, 2005; Illich, 1975), buscando se livrar daquilo que a está distanciando da normalidade. Os diagnósticos dados e relatados à participante, bem como as perguntas feitas, exacerbaram o pânico que já estava sentindo: "Eu fui aos médicos e eles perguntavam se a televisão estava conversando comigo, aí eu ficava com medo de assistir televisão. Eu sabia que isso era coisa de doido, e eu falava: 'vai que a televisão conversa comigo!'".

A fala anterior é mais um indicador da insegurança de C. em si mesma, que, nesse processo, foi se generalizando e tomando corpo em diversas dimensões de sua vida. Esta é uma evidência de como o processo de sofrimento de C. durante a gravidez e o pós-parto não é uma patologia limitada a seu déficit enquanto mãe, ou a esse momento específico, mas uma trajetória subjetiva inserida em um caminho de vida em que ela foi minando suas possibilidades de ação.

É possível identificar, por meio dos relatos de C., que dois processos simultâneos (seu sofrimento por não se adequar ao almejado e o diagnóstico que rotula sua experiência como forma "doente"de vivenciar a maternidade (Arrais, 2005) intensificam seu processo de tornar-se refém do descompasso entre ideal e real, sem condições de se posicionar ativamente a partir da sua própria experiência. Além de aumentar o medo e a impotência que a participante já estava sentindo, exemplificando a iatrogênese social discutida por Illich (1975), os diagnósticos foram vivenciados como processos externos a ela. Isto sinaliza a falta de um espaço dialógico que favorecesse a apropriação de sua condição singular e reflexões conjuntas com implicação emocional sobre seu próprio processo, o que poderia oportunizar a emergência de sentidos subjetivos que a permitissem desenvolver recursos frente aos imprevistos de sua experiência (González Rey, Goulart & Bezerra, 2016).

Outro aspecto interessante e amplamente articulado às construções interpretativas realizadas até aqui, é que, ao falar sobre sua vivência, C. utilizava termos técnicos oriundos do jargão médico: "E aí, não sei se a depressão veio junto da dissociação, despersonalização e fragmentação de personalidade, essas coisas que eu tive". O uso de tais categorias para falar de si mesma pode ser compreendido como indicador da carência de apropriação singularizada desse processo por parte de C., bem como a produção de sentidos subjetivos relacionados à naturalização do discurso biomédico. Mais além, o uso das categorias demonstra a naturalização da ótica médica enquanto única forma legitima de conceber sua vivência.

A segunda experiência que divergiu das expectativas de C., tendo resultado na intensificação do sentimento de culpa, foi resultado de sua expectativa frustrada de ter um parto normal: "tentei normal e não consegui. A bolsa estourou. Eu era toda bicho-grilo, vegetariana... Mas não consegui fazer parto normal. A filmagem do meu parto é eu em pânico, chorando. É um filme de terror". Percebe-se, portanto, que C. vive um intenso conflito entre o que idealizava para esse momento e as condições concretas nas quais ele se deu. Algo a ser destacado é que, para além da frustração e culpa oriundas da impossibilidade de ter um parto normal, não foi proporcionado a C. um espaço dialógico, por parte da equipe profissional que a atendeu, no qual seu sofrimento fosse acolhido e fosse possível construir, mediante a constituição de relações de confiança e vínculo, um espaço para ela se expressar. Tal espaço relacional estaria afinado a um tratamento que parta da experiência concreta da puérpera, e não de um protocolo padronizado definido de forma apriorística - o que não parece ter acontecido com C.

A postura da equipe profissional expressa precisamente a rigidez das intervenções profissionais aprisionadas ao referencial da normalidade (Foucault, 1980). "E as enfermeiras disseram assim: não fica nervosa, senão seu leite vai secar", aumentando ainda mais a pressão já sentida por C. em alcançar certo ideal de mãe. Nesse caso, faz-se necessário questionar a atenção que lhe foi prestada, que operou por meio de uma violência invisível e sutil, legitimada pela subjetividade social da instituição na qual é praticada, agravando seu quadro de sofrimento ao invés de apoiá-la e auxiliá-la a gerar novos recursos subjetivos.

Dito e feito, meu leite secou. Com cinco dias, ela tentava mamar e eu chorava e chorava. Aí, chamei uma dessas enfermeiras que ajudam com o aleitamento e ela disse que eu não tinha leite. E aquilo ali me fez muito mal, assim, porque eu me senti muito mal. Essa coisa do aleitamento e aquela carteirinha do ministério da saúde: "o que fazer para seu filho crescer emocionalmente saudável? Amamente exclusivamente no peito por até seis meses. O que fazer para seu filho ter uma dentição saudável? Amamente"... É tudo muito sofrido, e eu fazia de tudo para ter o leite, e a sensação é essa, de desconexão total com o mundo. Eu tinha a sensação de ficar doida. Acumulava com a falta de sono e a mudança, que é muito brusca.

Essa foi a terceira experiência que culminou no amplo sentimento de fracasso e culpa por parte de C. Sua fala é indicador de que, nesse caso, as práticas sociais hegemônicas relacionadas ao aleitamento, como determinados usos da Cartilha do Ministério da Saúde, podem também intensificar a idealização de ser mãe, conforme viemos discutindo (Cadoná & Strey, 2014). Entretanto, é importante ressaltar que tais práticas somente têm um efeito tão profundo sobre a experiência de C. em função de sua produção subjetiva individual. É precisamente esse o caráter paradoxal da biopolítica que Foucault (2004) discute: a proteção da vida por meio do controle de corpos, como nas campanhas de saúde a nível populacional, pode não somente favorecer a vida, mas limitá-la ao ponto de morte. Assim, aspectos destrutivos e impeditivos relativos à vida continuam sendo parte integral da biopolítica, embora justificado pela perspectiva de sua proteção.

Outro aspecto que parece ter contribuído para a posição submissa de C. está relacionado à sua trajetória de vida familiar. Ao falar sobre sua família, C. relata, "minha família era bem tradicional... A gente ia à igreja todo domingo, e o que a bíblia pregava era o certo e o que era esperado de nós". A pouca flexibilidade e espaço para questionamento perante as normas da igreja repercute, no caso de C., em um posicionamento passivo que, a partir das construções interpretativas anteriores, podemos articular à naturalização e submissão às diversas normas e representações hegemônicas presentes na subjetividade social. Nesse processo, quando C. não corresponde aos ideais cultivados, ela se sente imersa em culpa, como relatado abaixo:

E uma culpa, uma culpa. Porque ela sempre foi miudinha. Ela era pequeninha e magrinha, e aí, meu Deus, era tudo por minha causa, porque ela não tinha mamado no peito e porque eu tinha tomado remédio. Porque ela não crescia. Aí, leite de vaca não deu certo. E ela teve que tomar leite de soja e ficou com o peitinho crescido, por causa do hormônio da soja. E uma culpa, uma culpa...

A culpa que C. refere sentir em sua experiência como mãe passa a representar, a partir de sua produção subjetiva, um fracasso total como pessoa. Nesse processo, ela ocupa cada vez mais o lugar de objeto de saber médico, ao qual ela deve estar submetida via prescrições e proscrições que, teoricamente, irão possibilitar o retorno a um "estado de normalidade" (Illich, 1975). Assim, muito mais do que possibilitar novos caminhos de desenvolvimento para C., as práticas em torno do diagnóstico de depressão pós-parto culminaram na intensificação de seu sofrimento, visto que reforçaram sua condição de passividade, insegurança e medo no processo de sua maternidade.

 

Considerações Finais

Com este artigo buscamos resgatar as dimensões históricas, políticas e sociais imbricados na produção da depressão pós-parto, de modo a romper com a visão reducionista, calcada no modelo biomédico, que se tem acerca do fenômeno. Também refletimos sobre a importância de novas estratégias de assistência por meio da oferta de espaços dialógicos que, não partindo de um ideal biomédico a priori, acolham a experiência vivida pela puérpera, contemplando os aspectos da subjetividade individual e da subjetividade social implicados na vivência de uma maternidade que é reconhecida como depressão pós-parto.

Desse modo, oportuniza-se condições que favoreçam a emergência do sujeito que vivencia tal experiência, supostamente patológica, de forma a criar condições para uma reflexão crítica e viabilizar possibilidades de compreensão mais amplas e complexas. Esse processo pode fomentar o desenvolvimento de recursos subjetivos que favoreçam formas singularizadas de vivenciar a maternidade.

O estudo de caso sugere que o que é denominado amiúde enquanto "depressão pós-parto" é uma produção subjetiva resultante da relação que se estabelece entre a subjetividade social, a partir da qual as representações sociais dominantes sobre maternidade normatizam e favorecem a idealização desse processo, e a subjetividade individual, que muitas vezes se limita a tais modelos normatizados. Assim, observou-se que a depressão pós-parto expressa a dissonância entre o ideal socialmente preconizado e a experiência singularmente vivenciada.

No caso de C., a falta de espaços relacionais dialógicos, que marca tanto o âmbito das relações afetivas privadas como a esfera do apoio profissional, acaba por dificultar a produção de recursos subjetivos para lidar de maneira saudável com essa experiência, culminando na aceitação acrítica dos ideais cultivados socialmente. A medicalização da vida e a dicotomia normal-patológico relegam à esfera do patológico as experiências que extrapolam aquelas preconizadas pelas normas e representações sociais dominantes de maternidade. Partindo do referencial da normalidade, e reduzindo a depressão pós-parto a aspectos biológicos, a assistência prestada tem como objetivo a eliminação de sintomas, sem se preocupar, no entanto, com a trama subjetiva complexa que constitui esse fenômeno.

As construções teóricas produzidas neste artigo não pretendem ser conclusivas no sentido de esgotarem outras possibilidades interpretativas sobre o fenômeno designado como depressão pós-parto. Nesse sentido, ressaltamos a condição irrevogavelmente parcial e provisória do conhecimento científico, sempre limitado às condições contextuais de sua produção, e também permanentemente voltado à sua própria superação e à possibilidade de construção de novas formas de entendimento e ação no mundo.

 

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Endereço para correspondência:
Rafaella Pinheiro Cesario
Email: rafapcesario@gmail.com

Daniel Magalhães Goulart
Email: danielgoulartbr@gmail.com

Recebido em: 22/12/2016
Revisado em: 07/11/2017
Aceito em: 05/12/2017

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