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versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.18 no.3 Fortaleza sept./dic. 2018

https://doi.org/10.5020/23590777.RS.V18I3.6362 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Psicologia e direitos das crianças e dos adolescentes na assistência social

 

Psychology and the rights of children and adolescents in social assistance

 

Psicología y derechos de los niños y de los adolescentes en la atención social

 

Psychologie et droits des enfants et des adolescents en matière d'assistance sociale

 

 

Orlando Júnior Viana Macêdo (Lattes) (OrcID)I; Maria de Fátima Pereira Alberto (Lattes) (OrcID)II

IDoutor em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor da Faculdade Santa Maria - FSM
IIDoutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo objetiva analisar a atuação dos psicólogos na Política Nacional de Assistência Social (PNAS) para garantir os direitos de crianças e dos adolescentes. Participaram deste estudo seis gestores da Política Nacional de Assistência Social e onze profissionais de Psicologia. Para analisar as entrevistas dos gestores, recorreu-se à análise de conteúdo e para analisar os dados oriundos das entrevistas com os profissionais de Psicologia, ao software Alceste. Dados empíricos revelaram, por parte dos gestores, uma concepção de que é papel da Psicologia uma atuação na Proteção Social Básica fundamentada em tecnologias oriundas de um modelo clínico individualizante; enquanto que, na Proteção Social Especial, é seu papel uma atuação pautada numa perspectiva psicossocial. A partir das falas dos profissionais de Psicologia, percebeu-se que, em sua atuação, eles se deparam com vários aspectos da Política Nacional de Assistência Social que limitam sua atuação profissional, a saber: despreparo dos gestores e dos outros técnicos; pouco envolvimento de alguns profissionais; e desarticulação da rede de assistência social. Os participantes do estudo destacam questões técnicas da atuação, ocultando a dimensão política, o que pode comprometer a contribuição da Psicologia na efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Palavras-chave: política pública; atuação do psicólogo; direitos da criança; assistência social.


ABSTRACT

This article aims to analyze the performance of psychologists in the National Social Assistance Policy (PNAS) to guarantee the rights of children and adolescents. Six managers of the National Social Assistance Policy and eleven professionals of Psychology participated in this study. In order to analyze the managers' interviews, we used content analysis and to analyze data from the interviews with psychology professionals, the Alceste software. Empirical data revealed, on the managers' part, a conception that the role of Psychology is an action in the Basic Social Protection based on technologies derived from an individualistic clinical model; while in the Special Social Protection, its role is a performance based on a psychosocial perspective. From the speeches of the professionals of Psychology, it was noticed that, in their performance, they are faced with several aspects of the National Social Assistance Policy that limit their professional performance, namely: unpreparedness of managers and other technicians; little involvement of some professionals; and disarticulation of the social assistance network. The study participants highlight technical aspects of the work, hiding the political dimension, which may compromise the contribution of Psychology to the realization of the rights of children and adolescents.

Keywords: public policy; performance of the psychologist; rights of the child; social assistance.


RESUMEN

Este trabajo tiene el objetivo de analizar la situación de los psicólogos en la Política Nacional de Atención Social (PNAS) para garantizar los derechos de niños y adolescentes. Participaron de este estudio seis gestores de la Política Nacional de Atención Social y once profesionales de psicología. Para analizar las entrevistas con los gestores, utilizamos el análisis de contenido y para analizar los datos obtenidos en las entrevistas con los profesionales de Psicología, el software Alceste. Datos empíricos revelaron, de parte de los gestores, una concepción de que es función de la Psicología una actuación en la Protección Social Básica basada en tecnologías originarias de un modelo clínico individualizante; mientras que, en la Protección Social Espacial, es su trabajo una actuación orientada por una perspectiva psicosocial. Por el habla de los profesionales de Psicología, fue percibido que, en su actuación, ellos se encuentran con varios aspectos de la Política Nacional de Atención Social que limitan su actuación profesional: inexperiencia de los gestores y de otros técnicos; poca participación de algunos profesionales; y desarticulación de la red de atención social. Los participantes del estudio enfocan cuestiones técnicas de la actuación, ocultando la dimensión política, lo que puede comprometer el aporte de la Psicología en el cumplimiento de los derechos de los niños y de los adolescentes.

Palabras clave: política pública; actuación del psicólogo; derechos del niño; atención social.


RÉSUMÉ

Cet article vise à analyser les performances des psychologues dans le cadre de la Politique Nationale d'Assistance Sociale (PNAS) avec l'objectif de garantir les droits des enfants et des adolescents. Six directeurs de la Politique Nationale d'Assistance Sociale et onze professionnels de la Psychologie ont participé à cette étude. Pour analyser les entretiens avec les directeurs, on a utilisé l'analyse de contenu et pour analyser les données produits par les entretiens avec des professionnels de la psychologie, on a utilisé le logiciel Alceste. Les données empiriques ont révélé, de la part des directeurs, une conception selon laquelle le rôle de la Psychologie est une action en faveur de la Protection Sociale de Base. Cela est fondée sur des technologies dérivées d'un modèle clinique individualiste; alors que dans la Protection Sociale Ppéciale, son rôle est une performance axée sur une perspective psychosociale. D'après les discours des professionnels de la Psychologie, on a pu noter que, dans leur performance, ils sont confrontés à plusieurs aspects de la Politique Nationale d'Assistance Sociale lesquels limitent leurs performances professionnelles. Tel que: le manque de préparation des directeurs et d'autres techniciens; peu d'implication de certains professionnels; et désarticulation du réseau d'assistance sociale. Les participants à l'étude mettent en relief des aspects techniques de l'action en masquant la dimension politique, ce qui peut compromettre la contribution de la Psychologie à l'efficace des droits des enfants et des adolescents

Mots-clés: politiques publiques; action du psychologue; droits des enfants; assistance sociale.


 

 

Objetivou-se, no presente estudo, analisar a atuação das(os) profissionais de Psicologia na Política Nacional de Assistência Social (PNAS) para garantir os direitos de crianças e adolescentes. A assistência social, como campo de atuação da Psicologia, é decorrente de um processo de reconhecimento legal da proteção social como direito social e dever do Estado, que vem se configurando desde a Constituição de 1988. Direito que foi regulamentado por meio da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), de 1993, da PNAS de 2004, e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), de 2005.

A LOAS caracteriza a assistência social como um direito do cidadão e dever do Estado. Tal marco legal atribuiu à Política Nacional de Assistência Social o papel de desenvolver mecanismos contra diversas formas de exclusão social e de promover uma melhor qualidade de vida para os seus usuários. A PNAS deve ser norteada pela vigilância social, a defesa social e institucional, e a proteção social. Objetiva prover serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica e/ou especial para famílias, indivíduos e grupos que dela necessitem; contribuir com a inclusão e equidade dos usuários e grupos específicos, ampliando o acesso aos bens e serviços socioassistenciais básicos e especiais, em área urbana e rural; e assegurar que, no âmbito da assistência social, tenham centralidade na família e que garantam a convivência familiar e comunitária (Brasil/MDS, 2005).

Dessa forma, deve nortear os serviços, programas e projetos que compõem a PNAS o fortalecimento das capacidades dos sujeitos e das famílias para o enfrentamento da vulnerabilidade, com vistas a protegê-los de situações de vulnerabilidade social, riscos ou violações de direitos (Brasil/MDS, 2004). Diante do exposto, os profissionais que trabalham na PNAS, dentre eles os profissionais de Psicologia, defrontam-se com fenômenos complexos e multifacetados, abarcando aspectos sociais, políticos, culturais, psicológicos, de gênero e econômicos (Romagnoli, 2015).

Tal realidade demanda um leque variado de intervenções e ações contextualizadas e construídas coletivamente por meio da integralidade, da intersetorialidade e da interdisciplinaridade, sobretudo quando se leva em consideração a realidade das crianças e adolescentes usuários do SUAS. Marcada, muitas vezes, por acesso limitado às políticas públicas de saúde, cultura e educação, "passando pela exploração do trabalho infantil e outras formas de violência como a exploração sexual e violência física vivenciadas no âmbito familiar e comunitário" (Macêdo, Alberto & Pessoa, 2015, p. 924).

Dessa forma a atuação do psicólogo nas políticas públicas de proteção social, no âmbito da assistência social, com as crianças e os adolescentes, precisa estar pautada na tentativa de compreender o sujeito e sua subjetividade, inseparáveis do seu mundo social. Ações norteadas por uma preocupação com a efetivação dos direitos, da cidadania, da autonomia dos usuários do SUAS, atenta às necessidades das crianças e dos adolescentes, assim como da família, por meio de uma análise contextualizada no território.

É preciso, portanto, estar atento para que o fazer dos profissionais de Psicologia não recaia em uma intervenção investigatória ou normalizadora, que reprime, julga e/ou condena indivíduos e famílias (CFP, 2016). As intervenções devem se pautar em estratégias que possibilitem às crianças e aos adolescentes pensarem de forma crítica e como protagonistas de suas próprias histórias.

Percebe-se, por meio de análise dos marcos legais e referências técnicas do CFP (2016) para atuação dos profissionais de Psicologia, distanciamento da PNAS de seu histórico caráter caritativo, sob a lógica da tutela, do favor e do clientelismo (Yamamoto & Oliveira, 2010). Tais avanços, como destacam Alberto, Freire, Leite e Gouveia, (2014), foram conquistas da classe trabalhadora e consequência de um amplo movimento de redemocratização do Brasil no final dos anos 1980, que possibilitou inscrever um projeto de proteção social na Constituição de 1988.

No entanto, como ressaltam Ribeiro, Paiva, Seixas e Oliveira (2014), apesar das orientações sociais mudarem com a Carta Magna de 1988, a operacionalização das conquistas sociais estabelecidas tem ocorrido de maneira lenta, gradual e dissonante de sua proposta política original. Merece destaque o fato de, à medida que se ampliou a proteção social, garantida como direito social, paradoxalmente, o Brasil começou a sofrer as influências do neoliberalismo, o que está sendo entendido, no presente estudo, como um conjunto de proposições políticas com formulações conservadoras e oriundas do darwinismo social (Driabe, 1993), cuja agenda prescreve desmonte dos serviços públicos. Isto vem refletindo diretamente na reestruturação da PNAS.

De acordo com Comparato (2013), devido à hegemonia da política neoliberal, criou-se, no Brasil, uma situação de exclusão social de populações inteiras, colocando em risco o padrão mínimo de proteção e as garantias de direitos sociais, principalmente de camadas mais populares e de setores mais específicos. Dessa forma, percebe-se que as ações postas em prática por meio das políticas públicas de proteção social, no âmbito da assistência social, mesmo com todo esse sistema articulado nacionalmente, estruturam-se a partir de mecanismos seletivos de acesso aos equipamentos sociais.

O Estado prioriza programas de cunho assistencialista e compensatório, voltados para os grupos mais pobres e vulneráveis (Behring & Boschetti, 2011; Macêdo et al., 2018; Oliveira, 2012). Diante dessa conjuntura, como destacam Rizzini e Pilotti (2011), configura-se uma sociedade dual no Brasil, em que a presença da miséria, da barbárie, do trabalho precoce e da repetência convive com um esforço de parte da sociedade e de parte do Estado para reverter essa situação, configurando um país onde se conflitam estratégias de clientelismo com as de cidadania, de encaminhamento ao trabalho precoce com as de proteção ao trabalho da criança, de violência e de defesa dos direitos (Rizzini & Pilotti, 2011).

É nesse cenário - no qual as políticas públicas de proteção social, no âmbito da assistência social, ora tomam a forma de combate à pobreza, e não da seguridade, ora de ações punitivas em detrimento de estratégias protetivas - que a Psicologia tem se inserido. Atualmente, a Psicologia é a segunda categoria profissional mais presente no SUAS (Ribeiro & Guzzo, 2014), o que nos leva a questionar: a Psicologia tem, de fato, conseguido contribuir para efetivar os direitos das crianças e dos adolescentes usuários dessas políticas públicas, sobretudo quando se leva em consideração as relações de poder e interesses antagônicos que estão em jogo?

Estudos que versam sobre esse tema têm analisado a atuação da Psicologia nas políticas públicas de assistência social sob diferentes perspectivas, a saber, Macedo et al. (2011), por meio de uma análise do Cadastro Nacional do SUAS (CadSUAS), mapearam a presença dos profissionais de Psicologia no SUAS, identificando quantos são e onde estão trabalhando. Ribeiro e Guzzo (2014), por meio de análise documental, identificaram contradições entre o que é proposto na legislação e nas referências técnicas com o que é vivenciado pelos profissionais. Destacam a formação em Psicologia e reprodução de práticas hegemônicas, falta de espaços para reflexão da prática e condições e vínculos de trabalho precarizados. Essa precarização do trabalho no SUAS e os padrões clássicos de atuação, apolítica e acrítica, também foram identificados por Seixas e Yamamoto (2012).

Outros estudos também versaram sobre a forma como a formação acadêmica em Psicologia dista do que demanda a prática profissional na Política Nacional de Assistência Social: a ênfase no modelo clínico tradicional e limitada fundamentação teórica e metodológica para atuar nas políticas públicas (Freire & Alberto, 2013); o direcionamento dos cursos para a área clínica, numa perspectiva individualizante, e o predomínio de teorias focadas nos indivíduos, por meio de análises descontextualizadas (Macêdo, Alberto & Pessoa, 2015); o caráter tecnicista e fragmentado da formação, mais voltada para o domínio de técnicas de medida e avaliação (Motta & Scarparo, 2013); a pouca ênfase na dimensão política da atuação e o não acompanhamento das mudanças ocorridas na demanda do trabalho do profissional de Psicologia (Silva, Silva, Brustolin & Pessini, 2011); e o não preparo para trabalhar interdisciplinarmente e o predomínio de leituras a-históricas, acríticas e descontextualizadas (Vieira, 2012).

No entanto, como chamam atenção Macêdo et al. (2018) e Seixas, Coelho-Lima, Fernandes, Andrade e Yamamoto (2016), mudanças nos projetos pedagógicos dos cursos (PPC) de Psicologia vêm sendo implementadas, o que tem assegurado, nos PPCs de Psicologia, mais espaço para se discutir políticas sociais e temáticas como direitos humanos, políticas públicas, vulnerabilidade social e exclusão.

Diferentes estudos (Alberto et al., 2014; Macêdo, 2014; Macêdo et al., 2018; Oliveira et al., 2014; Raichelis, 2010; Ribeiro et al., 2014; Yamamoto & Oliveira, 2010; entre outros) identificaram limites das Políticas Públicas de Assistência Social brasileira, como consequências de contenção dos gastos, precárias condições de trabalho, falta de equipe consolidada e capacitada, conhecimento reduzido dos usuários e funcionários, e desarticulação da rede socioassistencial. Afonso, Hennon, Carico e Peterson (2013) problematizam os princípios da metodologia de trabalho com famílias vulneráveis do SUAS, chamando atenção para importância de se desenvolver umm trabalho com as famílias baseado em abordagens participativas e dialógicas, incluindo os métodos de acompanhamento, dinâmicas de grupo, pesquisa-ação e outras intervenções.

Freire e Alberto (2013) analisaram o suporte organizacional disponibilizado pelos CREAS regionais do estado da Paraíba e constataram que o suporte não existe ou é insuficiente, assim como é insuficiente a capacitação ofertada pelo Estado. Silva et al. (2011) chamam atenção para a implicação nas práticas psicológicas exercidas nos CRAS, que quando pautadas em práticas assistencialistas, levam à não consciência dos usuários de que são cidadãos possuidores de direitos, bem como comprometem a compreensão acerca da vulnerabilidade social. Florentino (2014), analisando a atuação dos profissionais de Psicologia no CREAS, por meio de pesquisa bibliográfica, chamou atenção para a importância de uma atuação interdisciplinar, intersetorial, centrada na família, livre de tabus, preconceitos e estereótipos, haja vista a complexidade das demandas.

Como destacam Macêdo et al. (2018), nos últimos anos, tem se percebido desenvolvimento de um amplo processo de pesquisas, produção científica e debates acerca da atuação da Psicologia no contexto das políticas públicas de assistência social, o que tem possibilitado uma significativa alteração no entendimento das responsabilidades e atribuições dos profissionais de Psicologia (Alberto et al., 2014; Macêdo, Alberto & Amorim, 2016; Miron & Guareschi, 2017; Romagnoli, 2015; Santos, 2016; Seixas et al., 2016; Souza & Gonçalves, 2017; entre outros). No entanto, ainda há lacunas no conhecimento quando se leva em consideração, especificamente, a atuação voltada para as crianças e adolescentes, conforme apresentam os estudos de Alberto et al. (2008), Faraj, Siqueira e Arpini (2016), Florentino (2014), Macêdo, Alberto e Pessoa (2015) e Macêdo, Alberto e Amorim (2016).

Discutir políticas públicas de assistência social nos marcos de produção capitalista e diante da atual conjuntura brasileira, de recrudescimento do neoliberalismo, requer referência à questão social, entendido por Yamamoto e Oliveira (2010) como o conjunto dos problemas políticos, sociais e econômicos postos pela emergência da classe operária no processo de constituição da sociedade capitalista. Esses problemas se manifestam no cotidiano da vida social em função da contradição capital-trabalho (Netto, 2011).

Netto (2011) considera que o Estado procura administrar as expressões da "questão social" de forma a atender às demandas da ordem monopólica. No entanto, para exercer tal papel, procura legitimar-se politicamente incorporando outros protagonistas sociopolíticos, mediante generalização e institucionalização de direitos e garantias cívicas e sociais, por meio das políticas públicas.

Dessa forma, entende-se, no presente artigo, que as políticas públicas de assistência social tanto estão voltadas para o controle ou dominação quanto para o atendimento de determinadas demandas dos setores subalternos da sociedade, fato que expressa o traço contraditório dessas políticas. Dessa forma, como chama atenção Gonçalves (2010), os profissionais de Psicologia que atuam em tal contexto precisam reconhecer e respeitar as demandas dos usuários como direitos e defender políticas que os atendam de fato. Acrescenta que, por meio dessa atuação pautada pela garantia do direito, torna-se possível, muito mais do que garantir sobrevivência, a reprodução da força de trabalho ou assistência aos menos favorecidos, criando espaço social necessário ao desenvolvimento de todos e todas que têm direito.

Como destaca Bobbio (1999), hoje, não basta apenas elencar e fundamentar direitos, é preciso efetivá-los. Garantir direitos dentro da Política Nacional de Assistência Social e interlocução dos atores envolvidos para a sua efetivação implica a participação ativa e política da sociedade, dos profissionais envolvidos na proteção social e também do Estado na viabilização dessa política. Faz-se necessário, portanto, uma atuação que conjugue um posicionamento político crítico por parte dos psicólogos e psicólogas, com referenciais teóricos e técnicos que permitam uma atuação crítica, reflexiva e investigativa, que atribua relevo às dimensões cultural, social, econômica e política que repercutem na realidade concreta das crianças e dos adolescentes, aproximando-se das reais necessidades desses sujeitos.

 

Método

Foram realizados dois estudos, ambos no Cariri cearense, que envolve onze municípios, a saber: Abaiara, Barbalha, Brejo Santo, Crato, Jardim, Juazeiro do Norte, Mauriti, Milagres, Missão Velha, Porteiras e Santana do Cariri. Os participantes do estudo foram selecionados a partir do critério de conveniência. Buscou-se contemplar um representante de cada um dos onze municípios que fazem parte do Cariri. O projeto que norteou a realização desses estudos contou com aprovação Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade Santa Maria, sob o Parecer n.1.085.249.

No primeiro estudo, participaram seis secretários(as) de alguns dos municípios do interior do Ceará, já que cinco gestores se negaram a participar, os quais foram entrevistados individualmente, no próprio ambiente de trabalho, após consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, seguido de assinatura do documento de autorização, conforme preconizado na Resolução n. 510/16, do Conselho Nacional de Saúde. Optou-se por não revelar os municípios que os gestores representavam como forma de garantir anonimato dos participantes. Utilizou-se como técnica de coleta de dados a entrevista semiestruturada, que contemplou dados sociodemográficos e questionamentos acerca do que eles consideram ser papel dos profissionais de Psicologia nos serviços e programas da Proteção Social Básica (PSB) e na Proteção Social Especial (PSE).

Recorreu-se à análise de conteúdo para analisar os dados oriundos das entrevistas com os gestores. Dessa forma, após as entrevistas serem gravadas, as falas dos entrevistados foram transcritas fielmente e analisadas de acordo com a análise de conteúdo, mais especificamente por meio da técnica de análise temática (Bardin, 2010). Optou-se pela técnica de validação por dois juízes, ambos previamente treinados para tal. Dessa forma, foi realizada uma leitura flutuante de todo o material transcrito e impresso, para se ter uma ideia do conteúdo como um todo das falas dos sujeitos. Posteriormente, foi realizada a tabulação, que consistiu numa agregação das temáticas semelhantes.

A partir das temáticas "Papel dos profissionais de Psicologia na Proteção Social Básica" e "Papel dos profissionais de Psicologia na Proteção Social Especial" foi realizada uma codificação, isto é, uma transformação dos dados brutos do texto, de forma a possibilitar atingir uma representação do conteúdo, esclarecendo-se ao analista acerca das características do texto. Da codificação, emergiram as categorias representativas dos núcleos de sentido.

O segundo estudo contou com a participação de onze profissionais de Psicologia. Um de cada um dos onze municípios do Cariri cearense, também escolhido por meio do critério de conveniência. O agendamento do horário e local das entrevistas deu-se por telefone e em função da disponibilidade dos profissionais, os quais foram entrevistados individualmente, no próprio ambiente de trabalho, após consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, seguido de assinatura do documento de autorização.

As entrevistas foram conduzidas a partir de roteiro temático composto por quatro questões norteadoras, que contemplavam os seguintes aspectos relacionados à atuação junto às crianças e aos adolescentes: o que fazem numa semana típica de trabalho, referencial teórico-metodológico utilizado, dificuldades enfrentadas na atuação profissional e atuação em rede. Foi elaborado, também, um questionário para coleta de dados de identificação e dados sociodemográficos. Portanto, todas as recomendações preconizadas na Resolução n. 510/16 foram seguidas.

Os dados empíricos oriundos das entrevistas com os profissionais de Psicologia, por se tratar de um conteúdo mais extenso e envolvendo diferentes temáticas, foram analisados por meio do software Alceste, recorrendo-se à análise clássica, por meio da análise hierárquica descendente. O Alceste possibilita analisar tanto quantitativamente quanto qualitativamente os dados textuais, tendo por base as leis de distribuição do vocabulário nos textos transcritos ou escritos.

O Alceste dividiu o material em unidades de contexto elementar (UCE), que são pequenos segmentos de entrevista. O conjunto de UCE forma classes de radicais ou palavras, sendo selecionadas pelo próprio programa as mais características de cada classe segundo a distribuição do vocabulário dessas UCE. A significância estatística dentro das classes é medida pelo qui-quadrado (x2) ao nível de 5%. A partir desse material, os pesquisadores fizeram uma análise, tanto no sentido de nomear as classes quanto de interpretar o conteúdo que tais classes revelavam.

 

Resultados e Discussão

Estudo com os Gestores - Perfil dos Participantes

Dos seis gestores municipais da Política Nacional de Assistência Social que participaram do estudo, dois eram secretários(as) adjuntos(as), enquanto quatro eram secretários(as) da política em questão. O tempo em que estavam atuando nesse cargo variou de 1 a 4 anos, predominando o intervalo de 1 a 2 anos. Quanto ao nível de escolaridade, um não tinha curso superior completo, dois tinham formação em Serviço Social, e os outros três possuíam formação em Pedagogia, Geografia e Economia.

Percebe-se que a gestão das políticas públicas da assistência é um campo ainda pouco ocupado por profissionais de Psicologia. Os dados empíricos evidenciam, também, uma rotatividade no cargo de gestor em função da transição de partido à frente dos municípios, que é decorrente de processo eleitoral, o que corrobora a constatação de Yamamoto e Oliveira (2010) e Seixas & Yamamoto (2012), referente às condições de trabalho nas políticas públicas de assistência social, marcadas por alta rotatividade e baseadas em vínculos de "confiança" ao invés de competência, o que pode implicar perda de pessoas estratégicas e prejudicar a eficiência organizacional.

Concepção dos Gestores acerca da Atuação do Profissional de Psicologia

A partir dos depoimentos dos gestores da Política Nacional de Assistência Social percebeu-se expectativa diferenciada acerca da atuação de profissionais de Psicologia na garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes quando essa atuação se referia à Proteção Social Básica ou à Proteção Social Especial. No que se refere à concepção acerca do papel do profissional de Psicologia na PSB junto às crianças e aos adolescentes, a partir dos dados empíricos emergiu a categoria Atuação fundamentada em tecnologias oriundas de um modelo clínico individualizante, composta pelas subcategorias "Acompanhamento", "Atendimento psicológico" e "Escuta/acolhida". Já no que se refere à concepção acerca do papel do profissional de Psicologia na PSE junto às crianças e aos adolescentes, emergiu a categoria Atuação psicossocial, composta pelas subcategorias: "Encaminhar", "Atividades socioeducativas" e "Conscientizar".

A categoria Atuação fundamentada em tecnologias oriundas de um modelo clínico individualizante compõe-se de subcategorias que emergiram a partir das falas dos gestores, como dito anteriormente. A subcategoria "Acompanhamento" denota que alguns gestores consideram ser papel do profissional de Psicologia uma conversa parecida com uma consulta, a qual se dá com certa periodicidade e frente a um determinado problema ou deficiência apresentada pelos sujeitos. Isto ocorre em relação às crianças, mas também em relação aos pais e, principalmente, às mães, conforme pode ser identificado no depoimento a seguir: Então (o psicólogo) está presente tanto com as mães e, especialmente, com alguma criança que apresentar alguma deficiência, algo que possa parecer que ele necessite de um acompanhamento psicológico (Gestor 4).

A subcategoria "Atendimento psicológico" denota que alguns gestores consideraram que cabe ao profissional de Psicologia do CRAS fazer tal atendimento, tanto pelo fato de haver uma busca por parte dos usuários quanto pelo fato de o município não possuir outros equipamentos que deem conta da demanda existente. O relato apresentado a seguir é revelador acerca de como a questão é percebida pelos gestores: "Não pode atender clinicamente, mas eu tenho uma demanda reprimida (...) A gente realiza o trabalho individual, porque a busca espontânea é grande" (Gestor 5).

A subcategoria "Escuta/acolhida" denota que há uma expectativa de que o profissional de Psicologia alivie o sofrimento psíquico dos usuários. O que, segundo os gestores, geralmente ocorre nas primeiras visitas que os usuários fazem aos CRAS, cabendo, então, aos profissionais de Psicologia acolhê-los frente ao sofrimento que estão vivenciando por meio dessa "escuta psicológica". Conforme pode ser observado no depoimento abaixo:(...) muitas vezes a pessoa não encontra um local certo, a pessoa certa pra jogar pra fora tudo aquilo que lhe aflige, que precisa contar pra alguém, que, assim, é difícil, complicado na família, não é?! E tem a capacidade realmente de entender (referindo-se ao profissional de Psicologia) (Gestor 3).

Tais dados empíricos corroboram o estudo de Alberto et al. (2008), visto que tais autoras identificaram a concepção de que o papel do psicólogo, na perspectiva dos responsáveis pelas entidades que atuam junto às crianças e aos adolescentes, ainda é o de técnico que só atua do ponto de vista do conhecimento específico, sem considerar a criança e o adolescente como sujeitos de sua história, como sujeitos de direitos, protagonistas.

O fato de sobressaírem expectativas de uma atuação dos profissionais de Psicologia, junto às crianças e aos adolescentes, pautadas em tecnologias da clínica, demonstra uma perspectiva "centrada no plano individual, onde o individuo é visto como um sujeito a-histórico" (Santos, 2016, p. 155), em detrimento da concepção de uma atuação da Psicologia pautada na promoção e garantia dos direitos sociais das crianças e dos adolescentes. Evidencia que, diante das dificuldades econômicas e políticas presentes, decorrentes de um projeto neoliberal que vem sendo implementado desde o início da década de 1990, as políticas de proteção social, no âmbito da assistência social, são focalizadas, descontínuas (Behring & Boschetti, 2011; Comparato, 2013; Cruz & Guareschi, 2012).

Há expectativa, por parte dos gestores, de uma atuação da Psicologia que reproduza o modelo de política focado na necessidade, aliviando o urgente - o sofrimento psíquico -, desconsiderando as dimensões subjetivas, as condições históricas e sociais das relações vivenciadas pelas crianças e adolescentes usuários das políticas de assistência social. Isto corrobora estudo de Souza e Gonçalves (2017), uma vez que consideram que o reconhecimento profissional distorcido, por parte dos gestores públicos, como um dos aspectos que podem entravar práticas emancipatórias de profissionais de Psicologia junto aos usuários da assistência social.

No que se refere à atuação dos profissionais de Psicologia na Proteção Social Especial, que contempla, direta ou indiretamente, crianças e adolescentes, nas falas dos gestores da Política Nacional de Assistência Social, sobressai uma perspectiva de uma Atuação psicossocial, por meio das subcategorias: "Encaminhar", "Atividades socioeducativas" e "Conscientizar".

A subcategoria "Encaminhar" denota que os gestores consideram que os profissionais de Psicologia têm como papel encaminhar as crianças e os adolescentes usuários das políticas de assistência social para os demais serviços da rede socioassistencial. Considera-se que garantir às crianças e aos adolescentes a condição de sujeitos de direito passa por esses encaminhamentos, como pode ser visualizado no relato a seguir: (...) se a violação for com a criança, aí ele (profissional de Psicologia) encaminha para o Poder Judiciário, junto ao Conselho Tutelar; o CREAS já faz o encaminhamento para os Conselhos, para o Poder Judiciário (Gestor 1).

No entanto, destaca-se que é necessário pensar uma atuação que vá além de um simples encaminhamento, mas por meio de ações conjuntas, que envolvam os diversos atores sociais que fazem parte da rede socioassistencial, de acordo com o artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, que propõe a articulação dos atores sociais e instituições de atendimento à criança e ao adolescente com o propósito de gerar condições para enfrentar a vulnerabilidade e proteger os direitos das crianças e dos adolescentes.

Por meio dessa Atuação psicossocial os gestores também sinalizam para uma atuação, por parte dos profissionais de Psicologia, numa perspectiva multidisciplinar, por meio de uma intervenção junto aos riscos pessoais e sociais aos quais estes sujeitos estão submetidos, o que foi representado pela categoria "Atividades socioeducativas". A sentença apresentada a seguir representa bem como esse papel do profissional de Psicologia frente às crianças e aos adolescentes é representado pelos gestores da Política Nacional de Assistência Social: ela vem para a sala com palestra, com dinâmica, com vídeos (Gestor 5).

Os dados empíricos revelaram que essas atividades são operacionalizadas por meio de palestras, dinâmicas e rodas de conversa. Macêdo, Alberto e Amorim (2016) chamam atenção para a potencialidade dessas ações com caráter socioeducativo, desde que implementadas por profissionais de Psicologia com as crianças, os adolescentes e aos paisde forma contínua. Faz-se necessário, portanto, clareza acerca do projeto educativo adotado e de onde se pretende chegar com tais intervenções.

"Conscientizar" foi outra subcategoria que emergiu nas falas dos gestores. Essa subcategoria denota que os gestores consideram que é papel do profissional de Psicologia criar condições para que a família, incluindo as crianças e os adolescentes, tenha conhecimento dos direitos que possuem, de forma a possibilitar que as famílias encontrem meios de evitar a reincidência de violações desses direitos.

Os dados empíricos revelaram que uma perspectiva promotora de protagonismo social e autonomia por parte das crianças e dos adolescentes, que esteja baseada em ações de cidadania, participação política e denuncias de opressão, não tem destaque nessa concepção dos gestores acerca da atuação da Psicologia, na Proteção Social Especial, ficando a categoria "Conscientizar" em terceiro plano.

Essas concepções dos gestores acerca da atuação da Psicologia são reveladoras da condição histórica e social que constituíram tais sujeitos. Dessa forma, merece destaque a hegemonia da política neoliberal, com primazia de programas de cunho assistencialista e compensatórios voltados para os grupos mais pobres e vulneráveis (Behring & Boschetti, 2011; Cruz & Guareschi, 2012), que refletem diretamente nas relações no âmbito do trabalho desses gestores. Bem como merecem destaque as determinações históricas e as relações de poder que se fazem presentes nas políticas públicas de assistência social, decorrentes das disputas ideológicas e políticas que sinalizam formas de atuação profissional pautada num ajustamento social, por meio de ações paliativas focadas nos indivíduos.

Assim sendo, as expectativas dos gestores em relação à atuação dos profissionais de Psicologia, especificamente com as crianças e os adolescentes, parecem não estar pautadas no combate às diversas formas de exclusão social, conforme estabelece a LOAS. Considera-se que tal atuação deveria estar voltada para os grupos que dela necessite, centrada na família (Brasil/MDS, 2005), possibilitando às crianças e aos adolescentes pensarem de forma crítica e como protagonistas de suas próprias vidas, por meio de uma atuação da Psicologia fundamentada em uma proposta éticopolítica de compromisso democrático, de cidadania, de participação política e de crítica ao capitalismo e ao neoliberalismo.

Estudo com os Profissionais de Psicologia - Perfil dos Participantes

Dos onze profissionais de Psicologia que participaram deste estudo, dez eram do sexo feminino e um do sexo masculino. Em relação ao tempo de formação, variou de três a trinta e dois anos, predominando formação acadêmica em universidades privadas. No tocante ao direcionamento da formação acadêmica, dez tiveram curso voltado para área clínica e um, para organizacional e do trabalho. Do total dos participantes, oito estavam atuando no CRAS, dois atuavam no CREAS e uma atuava na Casa de Acolhimento. Dos onze participantes, nove tinham mais de um vínculo empregatício.

Percebe-se que continua havendo predomínio de mulheres que atuam na assistência social, o que também foi identificado por Bastos, Gondim e Rodrigues (2010) e Macedo et al. (2011). Apesar da diferença no tempo de formação dos profissionais de Psicologia, os relatos revelaram consonância em relação às dificuldades que eles enfrentam no cotidiano de atuação como psicólogos(as) da Política Nacional de Assistência Social, a saber, sentimento de despreparo decorrente de formação distante das demandas que se depararam e pouco ou ausente contato com a política em questão ao longo da formação acadêmica, o que também foi identificado por Motta e Scarparo (2013).

Essas dificuldades enfrentadas pelos profissionais podem estar relacionadas ao fato de continuar havendo um direcionamento da formação acadêmica para a área clínica, que reflete numa atuação ainda marcada pelo paradigma biomédico, com práticas ainda arraigadas no modelo tradicional e patologizante dos sujeitos (Macêdo, Alberto, Santos, Souza & Oliveira, 2015). Esse predomínio de formação acadêmica em Psicologia numa perspectiva clínica individualizante também foi identificado em outros estudos (Paiva & Yamamoto, 2010; Silva et al., 2011; Vieira, 2012).

Apesar de avanços na formação acadêmica em Psicologia terem sido destacados em estudos recentes (Macêdo et al., 2018; Seixas et al., 2016), percebe-se que a formação a que os participantes do estudo tiveram acesso parece não ter acompanhado as mudanças que vêm acontecendo em nossa sociedade, sobretudo quando se leva em consideração a realidade brasileira e a repercussão dela na vida das crianças e dos adolescentes. Tal realidade demanda referenciais teóricos e técnicos que permitam uma atuação crítica, reflexiva e investigativa, superando análises pautadas em perspectivas individualizantes e descontextualizadas, pois conhecer arealidade concreta das crianças e dos adolescentes pode aproximar a Psicologia das reais necessidades desses sujeitos.

Atuação dos Profissionais de Psicologia

Na análise dos dados empíricos oriundos das entrevistas semiestruturadas dos onze profissionais de Psicologia, realizada por meio do software Alceste, foram encontradas 40.499 ocorrências de palavras, sendo que, dessas, 3.823 consistem em formas distintas, com uma divisão do corpus em 955 UCE. O corpus foi definido a partir de uma média (X = 11). Após a redução das palavras em suas raízes lexicais, das 3.823 palavras, 712 eram analisáveis e 228 eram palavras instrumentos. As 712 palavras analisáveis ocorreram 28 vezes para definir a UCE. As 955 UCE do corpus foram divididas em três classes principais, o que corresponde a 98,77% do aproveitamento total.

A Figura 1 refere-se à distribuição das três classes relativas à Atuação dos profissionais de Psicologia nos equipamentos da Política Nacional de Assistência Social para garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes. Pode-se observar que o software dividiu o material em dois subcorpus, ocorrendo, a partir daí, outra divisão. Cada classe foi submetida a uma análise qualitativa, a partir da qual foram nomeadas segundo o conteúdo que revelam.

As classes dois e três possuem significados comuns, uma vez que versam sobre a prática dos profissionais de Psicologia e aspectos que são contemplados nesse fazer profissional, o que as diferenciam da classe um, haja vista o fato desta contemplar os aspectos que dificultam essa prática. Portanto, a classe um possui uma ligação de oposição às outras classes. Desse modo, a Figura 1 apresenta as classes em dois campos representacionais.

A classe 1, Limitadores da atuação do profissional de Psicologia, foi composta por 652 UCE (77%). Em relação ao significado emergido nesta classe pelas UCE e o Dendograma, observa-se que os radicais "entend", "sab", "sei", "cre" estão associados e remetem ao conhecimento que se tem acerca do profissional de Psicologia. Conhecimento que, pelas falas dos profissionais de Psicologia, parte dos integrantes da sociedade, conforme pode ser identificado a partir dos radicais "pessoas", "munici" e "usua". Há, também, uma associação entre os radicais "psicolog", "clinic", "pratica" e "serviço", uma vez que remetem ao fazer do profissional em questão.

A partir dos radicais palavras e UCE, que compõem esta classe, percebe-se que os profissionais de Psicologia se deparam com alguns aspectos que limitam sua atuação na Política Nacional de Proteção Social, no âmbito da assistência social, na garantia dos direitos de crianças e dos adolescentes, a saber: despreparo dos gestores e dos técnicos, que não conhecem o papel do profissional de Psicologia; falta de envolvimento de alguns profissionais com a política em questão; uma formação acadêmica inadequada, que não possibilita um norte teórico claro para atuação; ausência de formação política e comprometimento social por parte dos profissionais de Psicologia; e desarticulação da rede de atendimento, que inviabiliza encaminhamentos e alimenta demanda por um atendimento clínico individualizado, uma vez que os usuários, pessoas que atuam na política e os próprios gestores esperam uma atuação no molde clínico individualizante. Isto pode ser visualizado a partir da UCE a seguir:

Então assim, são visões até mesmo da própria categoria profissional que já está há mais tempo. Às vezes, até mesmo os gestores, eles não lêem, eles não lêem, porque vem um pessoal muito despreparado, vem um pessoal que chega para trabalhar, mas não conhece a política, porque eles só são colocados (Psicólogo 1: 32 anos, que atua no CRAS há menos de dois anos, formado há quatro anos em instituição pública).

Vale salientar que a classe 1, Limitadores da atuação do profissional de Psicologia, representou 77% de todas as 955 UCE aproveitadas pelo software Alceste, o que denota que esses aspectos se sobressaíram nas falas dos entrevistados. Percebe-se, portanto, a necessidade, por parte dos(as) psicólogos(as), de destacar que, em sua atuação na política da assistência social, deparam-se com uma série de fatores que limitam sua atuação profissional na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes.

A classe 2, Como se dá atuação dos profissionais de Psicologia, foi estruturada com o número mínimo de UCE igual a 88 (10%). Em relação ao significado emergido nesta classe pelas UCE e o Dendograma, observa-se que as palavras "trabalhos" e "atividade" e o radical "desenvolv" estão associados, uma vez que semanticamente remetem à atuação da Psicologia na Política Nacional de Assistência Social, na garantia dos direitos de crianças e dos adolescentes. Há também uma associação entre o radical "grup" e as palavras "grupos", "oficina" e "suporte", que remetem a como se dá esse fazer dos profissionais de Psicologia; assim como há entre as palavras "monitor", "projovem", "peti" e o radical "convid", que apresentam outros personagens envolvidos nessa atuação dos profissionais de Psicologia em uma semana típica de trabalho com as crianças e os adolescentes usuários da Política Nacional de Assistência Social.

Os dados empíricos revelam que os profissionais de Psicologia, nas atividades voltadas para as crianças e os adolescentes, desenvolvem ações que giram em torno de intervenções nos grupos operativos de crianças e adolescentes que funcionam nos CRAS e CREAS, seja o profissional de Psicologia atuando diretamente, seja por meio de cooperação com outros técnicos convidados, monitores dos programas Projovem e outros profissionais dos serviços de convivência e fortalecimento dos vínculos familiares dando um suporte aos mesmos. Representativo dessa questão é a UCE a seguir: E também eu tenho a obrigação de dar suporte em outros grupos, como o grupo de idosos, o grupo de mães que precisa falar do comportamento dos filhos, não é? (Psicólogo 11: 32 anos, que atua no CRAS há quatro anos, formado há oito anos em instituição privada).

Percebe-se que os profissionais de Psicologia reforçam uma concepção de política focada na necessidade, uma vez que as falas se limitam a questões técnicas dessa atuação. Os profissionais de Psicologia descrevem o que é feito, como é feito e para quem, ocultando-se o para quê, a dimensão política. Os dados empíricos não evidenciam uma análise contextualizada, que busque compreender os sujeitos a partir da realidade concreta na qual estão inseridos, ou seja, entendendo-os, de fato, como sujeitos de direito. Reproduzem, assim, um fazer técnico, pondo em prática ações sem refletir acerca do propósito e alcance, pouco valorizando a dimensão política dessa atuação.

A Classe 3, Para quem se dá atuação, foi estruturada com o número mínimo de UCE, isto é, 115 (13%). Em relação ao significado emergido nessa classe pela UCE e o Dendograma, observam-se que as palavras "mulher", "pai", "infância", "criança" e "idoso" e o radical "adolescen" estão associados, uma vez que se referem aos usuários da Política Nacional de Assistência Social. O mesmo vale para as palavras "deficiência", "renda", "sexualidade", "vínculo" e "alcool" e os radicais "escol" e "viol", que remetem ao foco das intervenções dos profissionais de Psicologia, uma vez que estão relacionados à condição de vulnerabilidade social decorrente da condição de vida dos usuários.

Há algumas conexões importantes entre as referidas palavras e radicais que se referem ao foco das intervenções dos profissionais de Psicologia nas Políticas Públicas de Proteção Social no âmbito da assistência social, o que pode ser visualizado a partir das UCE a seguir: "Na verdade, a gente trabalha a questão da autoestima, a questão da violência doméstica, os maus-tratos infantis" (Psicólogo 4: 28 anos, que atua no CRAS há oito meses, formado há cinco anos em instituição privada).

Percebe-se, dessa forma, que há uma atuação dos profissionais de Psicologia que contempla os temas deficiência, renda, sexualidade, vínculo familiar, escola, consumo de álcool e violência, questões diretamente relacionadas à situação de vulnerabilidade social. Logo, configura-se, nas falas dos profissionais de Psicologia, como se dá essa atuação, conforme apresentado na classe dois, e para quem, conforme apresentado acima. As falas dos profissionais de Psicologia se limitam a questões técnicas da atuação, o que evidencia uma atuação pouco investigativa, dando-se, basicamente, por meio de reprodução de práticas tradicionais, sendo pouco manifestada, por parte dos profissionais que participaram do presente estudo, a importância da questão política dessa atuação com as crianças e aos adolescentes.

Dessa forma, evidenciou-se uma formação acadêmica em Psicologia inadequada para atuar na Política Nacional de Proteção Social, com limitada formação política e desarticulação da rede de atendimento socioassistencial, o que também foi identificado por outros estudos (Alberto et al., 2014; Freire & Alberto, 2013; Macêdo, 2014; Motta & Scarparo, 2013; Oliveira et al., 2014; Raichelis, 2010; Ribeiro & Guzzo, 2014; Ribeiro et al., 2014; Vieira, 2012; Yamamoto & Oliveira, 2010; entre outros), o que dificulta a atuação da Psicologia na garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes usuários do SUAS.

Como destacaram Seixas e Yamamoto (2012), a Psicologia parece caminhar mais para consolidar práticas conservadoras do que apresentar inovações efetivas, o que não está desvinculado de macroquestões, incluindo as condições materiais de produção material. "Certas condições de trabalho não só influenciam, mas em muitos casos determinam aspectos ligados às intervenções desses profissionais" (Seixas & Yamamoto, 2012, p. 487).

Considera-se que a atuação da Psicologia na Política Nacional de Assistência Social, na garantia dos direitos de crianças e adolescentes, apesar das adversidades inerentes à própria política, por lidarem diretamente com as expressões das questões sociais e relações de poder, precisa estar pautada na concepção de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, norteada por uma preocupação em disponibilizar uma cidadania plena para tais sujeitos. Isto demanda, por parte da categoria, avanços na consolidação de um projeto ético-político.

Portanto, não se trata de alinhar as práticas profissionais a determinadas abordagens teórico-metodológicas, mas sim de chamar atenção para a necessidade de uma atuação profissional da Psicologia, com as crianças e os adolescentes, construída como resposta às reais demandas dessa população, alinhando propostas coletivas que vão além de uma atuação qualificada tecnicamente por meio de execução acrítica da política. Faz-se necessário reconhecer as demandas das crianças e dos adolescentes como direito e favorecer ações inovadoras que promovam sua autonomia, como por meio de criação de espaços de expressão desses sujeitos, buscando-se superar condições que impedem ou dificultam o desenvolvimento pleno das crianças e dos adolescentes, assim como denunciar opressão e desigualdade, lutando para transformar situações que acarretam violação dos direitos das crianças e dos adolescentes. Enfim, superando atuações meramente reprodutoras das relações sociais capitalistas, intervenções pontuais e fragmentadas.

 

Considerações Finais

Por meio das análises, podem-se destacar alguns elementos necessários à reflexão do objeto de estudo proposto neste artigo. Observa-se, de modo geral, que os profissionais de Psicologia consideram que há uma falta de clareza acerca do seu papel profissional no âmbito dessa política pública. Essa questão, na perspectiva dos(as) psicólogos(as), soma-se tanto a uma falha na articulação com outras políticas quanto a uma formação acadêmica limitada politicamente e que não dá suporte para a atuação profissional na assistência social.

As expectativas dos gestores em relação à atuação do profissional de Psicologia e as falas desses profissionais revelaram que as ações da Psicologia soam mais como estratégias de combate das expressões da pobreza por meio de um alívio do sofrimento psíquico. O próprio rumo que as políticas públicas vêm tomando, em função do desmonte decorrente do projeto neoliberal, tem colocado em risco o padrão mínimo de proteção e garantias de direitos sociais.

Tais aspectos limitam a atuação do profissional de Psicologia na Política Nacional de Assistência Social, e somam-se a um pobre repertório de ferramentas e técnicas de intervenção oriundas de um modelo de intervenção clínico individualizante. Somam-se e acabam por comprometer a contribuição dos profissionais para efetivar a assistência social como um direito dos usuários, sobretudo quando se pensa a realidade das crianças e dos adolescentes brasileiros.

Diante do exposto, frente ao contexto de profunda desigualdade social que marca a sociedade brasileira e das contradições e dificuldades inerentes às políticas Públicas de assistência social, espera-se que o(a) psicólogo(a) construa práticas inovadoras e transformadoras, que atue baseado na leitura e inserção no tecido comunitário, para melhor compreendê-lo e intervir identificando e potencializando os recursos psicossociais, tanto individuais como coletivos. Espera-se que atue superando perspectivas individualizantes e adotando uma atuação comprometida com a efetivação da cidadania das crianças e dos adolescentes, desenvolvendo o protagonismo e a autonomia destes por meio de uma perspectiva de transformação social, o que demanda uma qualificação teórica e ações pautadas por preceitos éticos e políticos, bem como uma atuação crítica, reflexiva e investigativa.

Destaca-se a importância de se pensar numa atuação da Psicologia na Política Nacional de Assistência Social que conjugue um posicionamento político mais crítico por parte dos profissionais, de forma a deixar claro para a sociedade como um todo que há versões de Psicologia capazes de atender, de fato, aos anseios de parcelas mais amplas da população brasileira. Há uma pluralidade de abordagens teóricas em Psicologia que podem dar essa contribuição. Dentre várias possibilidades existentes, destacamos a Psicologia Comunitária, pelo fato de tal versão de Psicologia Social ter como norte de suas análises e intervenções o protagonismo e a autonomia, na garantia dos direitos, buscando-se superar as condições de vulnerabilidade social.

Observações realizadas in loco poderiam fornecer dados mais precisos acerca das ações dos profissionais de Psicologia com as crianças e os adolescentes usuários das políticas públicas de assistência social. Tal limitação do estudo soma-se ao fato de se debruçar sobre uma realidade específica e de não ter levado em consideração a perspectiva das próprias crianças, dos adolescentes e dos familiares usuários do SUAS. Assim, sugere-se que estudos futuros contemplem esses aspectos e adotem outras metodologias, de forma a verificar o poder de generalização das constatações.

 

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Endereço para correspondência:
Orlando Júnior Viana Macêdo
Email: orlandojrvm@yahoo.com.br

Maria de Fátima Pereira Alberto
Email: jfalberto@uol.com.br

Recebido em: 06/04/2017
Revisado em: 11/10/2018
Aceito em: 10/12/2018

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