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Revista Subjetividades
versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.19 no.1 Fortaleza enero/abr. 2019
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v19i1.e6781
ESTUDOS TEÓRICOS
As dimensões do corpo na perversão comum: objeto, imagem e borda
The body dimensions in common perversion: object, image and edge
Las dimensiones del cuerpo en la perversión común: objeto, imagen y borde
Les dimensions du corps chez la perversion: objet, image et bord
Andressa Marques Ferreira (Lattes) (OrcID)I; João Luiz Leitão Paravidini (Lattes)II
IPsicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia
IIProfessor Associado da Universidade Federal de Uberlândia e da Prefeitura Municipal de Uberlândia
RESUMO
O presente trabalho busca abordar os diferentes lugares que o corpo ocupa nas relações contemporâneas. Para isso, foi realizado um levantamento bibliográfico dos principais autores que tratam da temática, utilizando-se do método e da teoria psicanalítica como recurso para a produção fundante de uma análise interpretativa. Após a apresentação e introdução dos caminhos que conduziram a produção deste estudo, o corpo é situado na conjuntura da teoria psicanalítica e perpassa diferentes tópicos de discussão. Neste sentido, é abarcado como objeto na medida em que representa os investimentos da exploração industrial promotora da liberação e bombeamento das pulsões e situado como imagem através do imperativo de gozo. Nestes enfoques o corpo se faz ser representado por uma perversão comum nas tentativas de dar conta de aspectos singulares do mundo contemporâneo. O corpo também é concebido como borda quando resta como consistência na inscrição entre o sujeito e o outro, legitimando a constituição de relações. Reconhecer estas peculiaridades do contemporâneo nos coloca na posição de assumir que, para além das investigações psíquicas, os corpos precisam ser indagados e cuidados.
Palavras-chave: corpo; contemporaneidade; psicanálise; perversão.
ABSTRACT
The present work seeks to address the different places that the body occupies in contemporary relations. For this, a bibliographical survey of the main authors dealing with the thematic was carried out, using the method and psychoanalytic theory as a resource for the founding production of an interpretative analysis. After the presentation and introduction of the paths that led to the production of this study, the body is situated in the conjuncture of psychoanalytic theory and permeates different topics of discussion. In this sense, it is embraced as an object insofar as it represents the investments of the industrial exploitation that promotes the liberation and pumping of the drives and situates at an image through the imperative of joy. In these approaches, the body is made to be represented by a common perversion in the attempts to manage singular aspects of the contemporary world. The body is also conceived as the border when it remains as consistency in the inscription between the subject and the other, legitimating the establishment of relations. Recognizing these peculiarities of the contemporary world places us in the position of assuming, beyond psychic investigations, that bodies need to be investigated and cared.
Keywords: body; contemporaneity; psychoanalysis; perversion.
RESUMEN
Este trabajo busca tratar sobre los diferentes lugares que el cuerpo ocupa en las relaciones contemporáneas. Para eso, se realizó una búsqueda bibliográfica de los principales autores que hablan de este tema, utilizando el método y la teoría psicoanalítica como recurso para la producción generadora de un análisis interpretativo. Después la presentación e introducción de los caminos que condujeron a la producción de este trabajo, el cuerpo es ubicado en la coyuntura de la teoría psicoanalítica y atraviesa distintos tópicos de discusión. En este sentido, es envuelto como objetivo a la medida en que representa las inversiones de la exploración industrial promotora de la liberación y bombeo de las pulsiones y situado como imagen por medio del imperativo de gozo. En este enfoque el cuerpo se hace representado por una perversión común en los intentos de dar cuenta de aspectos singulares del mundo contemporáneo. El cuerpo también es concebido como borde cuando resta como consistencia en la inscripción entre el sujeto y el otro, legitimando la constitución de relaciones. Reconocer estas particularidades del contemporáneo nos pone en la posición de asumir que, para allá de las investigaciones psíquicas, los cuerpos necesitan ser indagados y cuidados.
Palabras clave: cuerpo; contemporaneidad; psicoanálisis; perversión.
RÉSUMÉ
Le présent travail aborde les différentes places que le corps occupe dans les relations contemporaines. Pour le faire, une étude bibliographique des principaux auteurs qui traitent de la thématique a été réalisée. La méthode et la théorie psychanalytique ont été utilisées comme ressource pour la production fondatrice d'une analyse interprétative. Après la présentation et l'introduction des chemins qui ont conduit cette étude, on situe le corps dans la conjoncture de la théorie psychanalytique et on l´emploi dans différents sujets de discussion. En ce sens, le corps est considéré comme un objet dans la mesure où il représente les investissements de l'exploitation industrielle qui favorise la libération et le pompage des pulsions et se présente comme une image à travers l'impératif de la joie. Dans ces approches, le corps est représenté par une perversion commune dans les tentatives d´englober aspects singuliers du monde contemporain. Le corps est également conçu comme un bord quand il reste comme une consistance dans l'inscription entre le sujet et l'autre, ce qui légitime la constitution de relations. Reconnaître ces particularités du contemporain nous amène à penser que, au-delà des investigations psychiques, il faut interroger et soigner les corps.
Mots-clés: corps; psychanalyse; contemporanéité; perversion.
"A Igreja diz:
O corpo é uma culpa.A ciência diz:
O corpo é uma máquina.A publicidade diz:
O corpo é um negócio.O corpo diz:
Eu sou uma festa."Eduardo Galeano
O corpo sempre foi alvo privilegiado de análise, seja como sintoma, seja como mistério e abismo em relação ao que sentimos. Quando a medicina não basta para explicar o que se passa nesse corpo com sua análise anatômico-funcional, a psicanálise o situa entre o psíquico e o somático, concebendo-o como corpo simbólico.
As transformações ocorridas no final do século XIX movimentaram de forma significativa as concepções e manifestações dos sujeitos em relação aos seus corpos e afetos. Com a queda de alguns sistemas fundamentais para a constituição do sujeito como a família patriarcal e a religião, a moralização cedeu seu espaço a um universo de possibilidades do desejo. Assim é que a estrutura familiar se abre para a pluralidade, num misto de papéis e funções, e a religião perde seu espaço de domínio e culpabilização. Em ambos, o que é temido perde cada vez mais entonação, seja o pai dominador da família patriarcal, seja o Deus punitivo (Dufour, 2013). Passamos de um governo dos indivíduos baseado no poder (paterno, artificial, de convenção e proibidor) a uma reorganização baseada no prover (materno, natural, incitador e baseado na physys), o que, em longo prazo, só pode gerar transformações consideráveis no ser-si-mesmo e no ser-junto: transitamos de um poder gerador de posturas neuróticas a um prover que favorece a perversão polimorfa (Dufour, 2013).
Concomitante a estes processos, o advento da revolução industrial e a ascensão do capitalismo promovem o liberalismo das paixões e pulsões. Desta forma, a exploração industrial com a promessa de que podemos ser o que queremos e ter o que queremos, elege o corpo como alvo de potência para a promoção do lucro. Todos esses processos fizeram com que o sujeito neuroticamente normal do tempo de Freud cedesse cada vez mais espaço a uma perversão comum, liberta de uma condenação social e legal, enraizada em comportamentos que buscam o gozo de modo contínuo.
Mas apesar disso, porque não nos tornamos mais livres? Porque parecemos carregar ainda mais o medo do fracasso, o cansaço e a tristeza?
Sabe-se que a formação do supereu é marcada por uma dupla posição. Em "O Ego e o Id" (1923/1990) Freud explicita que o ego é formado por restos de identificação do id, sendo que a primeira destas identificações (o ideal do ego) se comporta como uma instância especial, mantida a parte do ego, sob a forma de supereu. Assim, o supereu tem sua posição especial no ego: por um lado foi a primeira identificação e por outro ele é herdeiro do complexo de Édipo, onde há a internalização da lei paterna e o aparecimento do sentimento inconsciente de culpa.
Lacan aborda o supereu através de uma lógica que abarca um imperativo de gozo, como uma força que impulsiona a satisfação pulsional. Nesse trajeto o supereu pouco a pouco perde seu campo como uma instância que ordena renúncia pulsional e ganha corpo como imperativo do gozo. Como uma tentativa de desconhecer o impossível, dispensando o limite da lei, o supereu faz esta exigência maciça de gozar diante do impossível, aumentando desta forma a culpabilidade, não em função da interdição da lei, mas pela exigência do ideal. O gozo, desta forma, representa uma dupla vinculação com a lei: por um lado é a lei que veicula a transgressão e, por outro, é a lei que nutre a culpabilidade que o incita. Esta concepção de supereu vai ao encontro da discussão contemporânea da falência dos ideais e do pai. Acredita-se que o supereu não está mais ausente ou mais enfraquecido a partir do suposto esvaziamento dos ideais, pelo contrário, sua força e sua exigência de gozo encontram-se extremamente ativas. Supõe-se que os sujeitos sofram os efeitos dessa exigência maciça, que tem reverberações, como em alguns casos, a angústia e em outros o mais-gozar como tentativa e repetição de recuperação do gozo (Cordeiro & Bastos, 2011).
Neste sentido, apenas alternamos as formas de alienação. Tornamo-nos reféns dos nossos desejos a custo da afirmação do ideal de liberdade. O sistema capitalista, ao agenciar a incitação de nossas pulsões, apenas promove algo que internamente já é nosso, sob o efeito de um supereu que busca reassegurar constantemente o imperativo do gozo.
Não é o outro que nos impede de gozar, esse impedimento é fruto de nossa própria constituição como seres falantes na linguagem. É esse furo que marca a humanização e envolve a perda de gozo da qual Freud tentou abarcar através do complexo de Édipo. Desta forma, a lei pode ser compreendida como uma coerção interna ao gozo, e não externa. Quando o sujeito acredita ter acessado alguns ideais da sociedade e da cultura, que supostamente o impediam de gozar, ele se vê compelido por um forte supereu. (Cordeiro & Bastos, 2011).
Nas palavras de Lacan:
A interiorização da Lei, não cessamos de dizê-lo, nada tem a ver com a Lei. Ainda que fosse preciso saber por quê. É possível que o supereu sirva de apoio à nossa consciência moral, mas todos sabem muito bem que ele nada tem a ver com ela no que se refere às suas exigências mais obrigatórias. O que ele exige nada tem a ver com o que teríamos o direito de constituir como a regra universal de nossa ação, é o bê-á-bá da verdade analítica (Lacan, 1959-1960/1988, pp. 371-372).
Assim, nossa relação com a lei é marcada pela ambivalência de ela nos parecer ser imposta, legitimada pelos poderes do estado e pelos ideais da cultura e ao mesmo tempo pertencer a nós mesmos, internamente.
Neste sentido, a permissividade pós-moderna é regulada por uma nova ética, na qual a perversão torna-se liberta de uma condenação social e legal. Nesse sentido, a atuação do desejo, através de um conjunto de comportamentos que buscam o gozo de modo continuado, instaura uma nova percepção dos corpos, cada vez mais dissociados de representações psíquicas e simbolizações. Compreendendo que as configurações relacionais contemporâneas têm sido delineadas de maneira perversa - considerando aqui uma perversão comum, liberta da condição patológica - este estudo visa compreender o lugar do corpo nestas configurações, abarcando-o como superfície de enraizamento, simbolização e expressão do psiquismo.
Metodologia
O método psicanalítico - recurso metodológico que embasou a construção desse projeto - é o mecanismo de produção fundante de uma análise interpretativa. Muito distante de sentenças reveladoras declaradas pelo psicanalista, estas interpretações devem ser ressaltadas como um acúmulo, uma construção. São pequenos insights que induzem a um processo de ruptura de campo, permitindo a rescisão de estruturas paralisantes e a emergência de novos possíveis, por meio da instalação de novos campos que garantam a transformação psíquica (Tralli, 2012).
Observa-se na sociedade contemporânea um processo excêntrico e fragmentador onde o sistema de aceleração cultural afasta o homem de seu centro, decapitando-o em pedaços, adiados constantemente da condição de repouso que parecem estar procurando construir. A Psicanálise, ao revelar a insaciabilidade do desejo e o descentramento fragmentário do homem, pretende amenizar este excesso de fragmentação. É neste sentido que Herrmann (1991) define o pesquisador psicanalítico como alguém que não vai descobrir, mas vai permitir que se descubra, permitir que algo arranque a coberta de si próprio, possibilitando um lugar de reconstituição através de um desesquecimento.
Para esse estudo, foi realizado um levantamento bibliográfico de autores que tratam da temática de corpo e perversão em psicanálise. Através da leitura de diferentes concepções e abordagens de tal temática, foram identificados pontos teóricos coincidentes. Por meio destes, foram levantados quatro tópicos para discussão dos resultados do trabalho. São eles: "O corpo em Psicanálise", "Quem sabe o que se passa no seu corpo?", "Perversão comum: produção de uma subjetividade aniquilada" e "O corpo como palco".
O Corpo na Psicanálise
"Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser Esquecer."
Carlos Drummond de Andrade
Apesar da compreensão da importância do corpo no desenvolvimento da teoria psicanalítica, estamos em consonância com Lazzarini & Viana (2006) quando traçam um amplo panorama de seu lugar, dizendo que durante um longo período os seguidores de Freud, e nesse caso podemos colocar um certo acento no período de predominância do Simbólico em Lacan, no qual a linguagem operou como sendo o material de maior relevância dentro do trabalho analítico, o que, por sua vez, favoreceu a colocação de lado da problemática do corpo em seus diferentes estatutos.
De acordo com Fernandes (2006), quando esta teoria se vê enredada com o adoecer do corpo, a tendência é realizar uma ampliação de seu campo clínico e consequentemente de seu campo teórico. Desta forma, esse corpo de que trata a psicanálise num momento inicial é, prioritariamente, o corpo doente. Posteriormente, o corpo passa a ser estudado como um todo coerente com a história do sujeito.
Para Ferreira (2008) é o corpo que exerce a mediação entre o eu e suas interações com o outro, sendo estruturante para a formação psíquica do sujeito. Esse corpo, que é ao mesmo tempo próprio e alheio, reconhecido e desconhecido, engendra-se por limites e significações representáveis e não representáveis. Suscetível às mais diversas influências interiores, exteriores, emocionais e ambientais, ele dispõe sua superfície para a expressão e manifestação dos mais distintos fenômenos. Morici e Wasserman (2001) ressaltam que o corpo carrega em si marcas que se impõem na constituição subjetiva, marcas que às vezes não podem ser simbolizadas, mas que possuem um caráter tão real que criam uma fissura. Vão irrompendo com o dramatismo do evidente e vão tomando conta lentamente dos diferentes estádios da estruturação psíquica.
No processo da construção da identidade há a própria dualidade de saber e sentir, de figura e fundo, de idêntico e diferente, bem como de mente e corpo. Essa dualidade vasta e radical entre ser corpo e ser mente se constitui aparentemente ontogenética, cuja autogestão é determinante do destino da pessoa, dela proliferam-se dualidades posteriores relacionadas aos outros, a sociedade, a lei, ao ideal. Sua percepção e articulação envolvem a obscuridade de não podermos determiná-la ulteriormente. Há uma relação intrínseca entre essas instâncias, onde o corpo é o objeto da mente e constitui sua realidade primeira e dele nascem todas as representações e formas de simbolização. Este conceito vai ao encontro da teoria Freudiana no abarcamento de um corpo como lugar de inscrição do psíquico e do somático (Ferrari, 1995).
Freud, em 1923 postula a ideia de um ego corporal, enquanto não só uma entidade de superfície, mas também uma projeção da mesma. O corpo e o eu são assim, inseparáveis, desenvolvem-se juntos. Um "nasce" apoiado ao outro, assim como a pulsão apoia-se no instinto e as funções psíquicas nas biológicas ou somáticas. De acordo com Mandet (1993), o corpo na psicanálise é um corpo enquanto objeto para o psiquismo, o corpo da representação inconsciente, investido numa relação de significação e construído nos seus fantasmas e em sua história.
Dolto (1992) e Birman (2003) traçam uma diferenciação do corpo, que para Dolto se caracteriza entre os conceitos de esquema corporal/imagem corporal, e para Birman, organismo/corpo. Tanto o esquema corporal quanto o organismo dizem respeito a um corpo físico, orgânico. Já a imagem corporal e o corpo se referem a um corpo simbólico. Este corpo simbólico apoia-se no orgânico, e nele fluem as pulsões e as erotizações.
Neste sentido, no discurso que anima o sujeito há uma diferença entre o corpo físico e o corpo erógeno que sofre e goza. A anatomia passa a ser entendida como uma anatomia construída a partir dos investimentos libidinais, mediatizada pelos fantasmas. O Eu é formado a partir dos outros "Eus" que foram significativos na história dos movimentos identificatórios do sujeito. Desta forma, a imagem que construímos do nosso corpo, aspecto fundamental da construção identitária, é tributária do olhar de quem nos deu a vida psíquica e marcada pelo olhar do Outro (Ceccarelli, 2001).
Ferreira (2008), em seu artigo que explora as inúmeras produções de sentido sobre a temática do corpo, traz Winnicott enquanto contribuição para a discussão postulando que mesmo antes do nascimento já é instaurado no bebê memórias corporais, que seriam marcas deixadas nesse campo sensitivo das experiências intrauterinas, tanto físicas (pressão, temperatura, sons) quanto psíquicas (sentimentos vivenciados pela mãe durante a gestação).
Segundo Lacan (1949/1998), a constituição de si e do outro é intrinsecamente ligada ao processo que nomeia como "estádio de espelho". Como o bebê nos primeiros anos de vida não está provido de algo que garanta o domínio das grandes quantidades de excitação que lhe cheguem interna e externamente, sendo marcado por uma insuficiência para antecipação, é necessário que o sujeito venha a se articular a partir do que Lacan formula com sendo próprio à logica da alienação ao desejo do Outro. Em 1949, este autor descreve sobre o estádio do espelho como o primeiro tempo de emergência do sujeito, onde o bebê passa de um estado de ser para o estado de subjetividade em que pode recolher uma imagem psíquica de si mesmo a partir da imagem que o Outro primordial lhe oferece. Esse outro oferece marcas ao bebê a partir dos contatos corporais primordiais como a amamentação, o toque, o olhar, transmitindo-lhe um código discursivo do qual poderá valer-se, num momento posterior. De acordo com Sternick (2010), num primeiro tempo a criança apenas vê o outro no espelho, num segundo tempo ela entende que não se trata do outro, mas de uma imagem que cria do outro e num terceiro tempo ela finda que aquela é a imagem de si mesma. A partir do terceiro tempo é que a criança revela o que ficou capturado nesta imagem, após assumir a imagem do seu corpo como sendo sua, ela pode identificar-se com ela.
Essa fase é essencial, pois é através dela que o sujeito cria apetência simbólica. É assim que a criança assume por identificação a unidade de seu corpo, que até então era indiferenciado do corpo da mãe e do mundo externo. O estádio do espelho constrói para o sujeito uma identidade alienante que marcará todo o desenvolvimento psíquico.
Lacan em (1974/2002), no texto "A terceira", ressalta ainda que a angústia se enraíza no corpo, emergindo da suspeita que nós temos de reduzirmo-nos ao nosso corpo. Neste sentido, a verdadeira angústia do sujeito é reduzir-se tão somente ao corpo, diante da perspectiva de uma vida desprovida de significação. Assim, como ressalta Sternick (2010) cada sujeito tem sua forma particular de manobrar essa angústia, de forma que o corpo a sustente, e para isso pode valer-se dos suportes do imaginário e do simbólico.
Como corpo atravessado pela linguagem, o corpo da psicanálise se configura enquanto representacional. Desta forma, o sujeito só tem acesso a seu corpo através de uma série de ações que são efetivadas pelo simbólico. E é assim que o corpo simbólico faz com que o corpo real nele se incorpore.
Birman (2003) se atenta ao fato de que uma parcela significativa da comunidade analítica tem esquecido de que a subjetividade sofrente tem um corpo e que é exatamente neste corpo que a dor se enraíza e, nesse sentido, se constitui um corpo sujeito propriamente dito. Sendo a intensidade e o excesso pulsional características acentuadas dos sofrimentos atuais, a dimensão do afeto deve ser ressaltada como uma forma de situar o sujeito nas curvas reais do seu sofrimento. Desta forma, atribuir ao corpo e ao afeto um espaço crucial na leitura da subjetividade é também ponderar que a prática psicanalítica não é tão-somente uma escuta do psiquismo, mas uma modalidade de ação.
Quem Sabe o que se Passa no seu Corpo?
"Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta."
Carlos Drummond de Andrade
Através do método cartesiano, Descartes já promovia o que se tornaria o exílio do corpo. Ao duvidar das coisas sensíveis, uma vez que os sentidos podem errar, as manifestações do corpo são deixadas de lado em função do racionalismo metodológico.
Descartes não eliminou a dimensão imaginária do corpo, mas negou "o corpo verdadeiro em sua natureza". Esse corpo retornou na teoria Freudiana, em toda sua vasta obra sob as mais diversas designações: como ser de linguagem ou como objeto de gozo, na concepção da criança perverso-polimorfa, na complacência somática, como o transporte do psíquico ao somático, no narcisismo do eu e satisfação auto-erótica, pelo fator constitucional na etiologia da neurose, através do delineamento das zonas erógenas, na pulsão e sua fonte somática, na língua do órgão na esquizofrenia, no eu corporal e no masoquismo primordial (Alberti & Ribeiro, 2004).
Já em Freud, o enigma do corpo atravessa o delineamento da histeria, representando a exigência de trabalho que o corpo faz ao psiquismo. Tal corpo viria a ser elucidado por Lacan pela via do simbólico, através do qual o sintoma seria o responsável por dar corpo ao ser falante, na perspectiva de que o corpo enquanto organismo é estranho ao sujeito e só pode ser vivificado por meio da língua materna. O corpo narcísico, nomeado e unificado através do outro, é destacado por Lacan em torno do registro imaginário, no atravessamento do fascínio de imagem que organiza o eu e do contorno de significantes advindos do campo do outro. O corpo real, em consonância com o corpo pulsional, traz à tona o corpo da substância gozante, que conjuga a carne e a língua pela insistência de uma letra de gozo. Neste sentido, a experiência do corpo abarca a composição de imagem, de significante e de substância gozante, dito de outra forma, da condição imaginária, simbólica e real do corpo, fazendo com que não seja possível abordá-lo de forma unívoca, mas apenas pela via do sintoma. (Zucchi, 2014).
Em "Três ensaios" (1905/1980), Freud define a pulsão como o representante psíquico de uma fonte endossomática e contínua de excitação em contraste com o estímulo que vem de excitações externas. Assim é que a pulsão se situa entre o somático e o psíquico. Podem ser descritas quatro características da pulsão: ela possui uma fonte somática, sendo um processo de excitação que ocorre num órgão; exerce uma pressão no interior do organismo em função do acúmulo da excitação; possui a finalidade de descarga da tensão; seu objeto é contingente, ou seja, pode ser qualquer objeto que ofereça condição de promover a diminuição de tensão no interior do organismo.
No texto "Sobre o narcisismo: Uma introdução" (1914/1996), Freud explicita a função do ego a partir da teoria da libido. No autoerotismo as pulsões parciais são assim chamadas por se satisfazerem no próprio corpo da criança e, dessa forma, o prazer localiza-se nas zonas erógenas como bordas e orifícios corporais, sendo as fontes das pulsões. Neste momento há a vivência de um corpo fragmentado em que não há diferenciação entre o eu e o outro, sendo necessário que uma nova ação psíquica seja adicionada ao autoerotismo com a finalidade de provocar o narcisismo. Para isso, é preciso que o outro nomeie e articule as necessidades da criança, unificando a imagem do corpo ao narcisismo.
O desenvolvimento do ego se dará pelo afastamento do narcisismo primário (ego ideal) para o desenvolvimento do ideal do ego, onde é possível a entrada na alteridade e numa corporeidade regulada pelo princípio da realidade. Desta forma, é como corpo pulsional que o corpo pode ser auto-erótico e narcísico. É através da pulsão que ocorre um encontro entre o corpo e as ações psíquicas.
Como nascemos prematuros por natureza, donde vem o desamparo originário do homem, a única solução para sobrevivência é que haja o suprimento dessa falta da primeira natureza com uma segunda, a cultura. Mal acabado no tempo e no espaço, nada impede o sujeito de inventar o que não existe, mas de que carece para viver. Para isso precisamos vislumbrar um grande sujeito que supostamente tudo sabe, tudo pode e tudo vê para que finalmente encontremos nosso lugar, como sujeito desse ser. É nesse sentido que a sobrevivência do homem perpassa pela invenção de seres atribuídos de poderosa eficácia simbólica. "O Outro, esse grande sujeito que não existe, é de grande auxílio, até que se torne extremamente embaraçoso" (Dufour, 2013, p. 286).
Para apropriar-se de seu próprio desejo, é necessário que a criança rompa com a linguagem que lhe é fundamental do Outro, ainda que este processo seja realizado durante toda a vida, pois as palavras do Outro se tornarão inconscientes e o ser humano se tornará um ser dividido. Esse foi intitulado por Lacan como sendo o segundo tempo da constituição do sujeito, o tempo da separação. A partir da separação é que há o deslocamento das marcas maternas e a possibilidade da impressão de outras marcas como, por exemplo, a paterna. Aqui se torna evidente que há falta no nível da relação mãe-criança. Há a passagem do autoerotismo, em que as pulsões atuam de forma dispersa, ao narcisismo. A partir disso cabe ao sujeito se alojar em uma cadeia significante, ou seja, ele próprio poderá ocupar um lugar discursivo.
A partir do momento em que a pulsão retorna ao corpo do sujeito, através da separação do Outro, a borda corporal assume o caráter de algo que é dotado de um furo e ao qual existe sob a forma de objeto perdido. Inscreve-se, portanto, como imaginária, simbólica e real. Em termos Freudianos, a passagem do segundo ao terceiro tempo é a passagem da atividade do desejo de observação (voyeur) a passividade, desejo (exibicionista) de ser visto (Alberti & Ribeiro, 2004).
Quando Lacan se refere à incorporação do significante ao gozo, mostra que a linguagem subtrai algo do gozo. Este gozo é fixado aos furos do corpo, ou seja, nas zonas erógenas definidas por Freud como pulsões parciais. Assim é que há o efeito do significante sobre o organismo a partir do momento em que ele recebe as insígnias da pulsão. Nesse sentido, só quem tem um corpo pode gozar dele, mas para isso é preciso apropriar-se do mesmo através da linguagem. (Sternick, 2010). Mota e Leal (2007) complementam ao afirmar que a operação pulsional faz marcas no corpo, revelando a anatomia e a função de cada orifício, e é a linguagem que possibilita ao sujeito abstrair sobre o que se passa no seu corpo através da junção imagem, organismo, olhar do outro e diferentes formas de gozo.
A alienação é um destino ligado à fala, mas a separação não, ela pode ou não estar presente porque requer que o sujeito "queira" separar-se da cadeia significante na ascensão do seu desejo (Faria, 2014). Ao ascender ao próprio desejo, o sujeito se vê livre, em certa medida, das armadilhas que a exigência fálica impõe para encobrir a castração. Isso significa deixar para trás a prevalência de um imaginário mortificante e relações repetitivas especulares que alienam narcisicamente o sujeito ao olhar do outro, o que produz agressividade, ameaças, competições (Mota & Leal, 2007).
Perversão Comum: Produção de uma Subjetividade Aniquilada
"Arranca metade do meu corpo, do meu coração, dos meus sonhos. Tira um pedaço de mim, qualquer coisa que me desfaça. Me recria, porque eu não suporto mais pertencer a tudo, mas não caber em lugar algum".
José Saramago.
O corpo, assumindo um lugar central na constituição da identidade na sociedade contemporânea, ocupa uma posição privilegiada como destino das pulsões. Uma liberalização relativa às formas de encarar esse corpo é acompanhada de uma fetichização do mesmo enquanto mercadoria. Como consequência, são cada vez mais frequentes os casos de patologias ligadas ao corpo, especificamente à sua representação. Desta forma, o corpo é emaranhado em uma dinâmica perversa na qual a liberação em torno dos discursos que o cercam sustenta uma rígida regulação deste corpo. Afinal, o corpo é auge na mídia, é alvo de atenção e cuidado cada vez maiores, é foco em pesquisas acadêmicas, é objeto de arte cada vez mais privilegiado. Daí parece emergir a fórmula perversa: quanto mais falado, mais regulado (Moreira, 2013).
O liberalismo foi primordialmente o sistema que promoveu uma liberação das paixões e pulsões e esse processo foi possível através das condições materiais identificadas por Marx como a acumulação primitiva, uma mão de obra desenraizada e fluxos de dinheiro. Esta possibilidade de que as paixões contidas em sistemas simbólicos poderosos viessem a ser liberadas é que permitiu ao longo dos séculos XVII e XVIII a entrada no capitalismo. É neste sentido que o capitalismo, na falsa oferta de parecer libertador à medida que oferece o gozo de modo continuado, trouxe consigo formas inéditas de alienação (Dufour, 2013).
Nesse sentido, vivenciamos o dramatismo da imagem do corpo pelas exigências da exploração industrial. O sujeito se agride pelas exigências narcísicas, movido por uma crença na possibilidade de completude e se sacrifica em suas interrogações sobre o que ele é. "Ao procurar a boa forma gestáltica, o sujeito se perde em sua verdade" (Mota & Leal, 2007, p. 157).
O individualismo metodológico a serviço das lições de perversão propaga a dissolução do contexto simbólico, político, jurídico ou moral que produz os atos. Para que possamos encarar estas lições devemos sempre estar afirmando os próprios direitos contra o outro, buscando um enraizamento identitário inabalável, onde possa haver uma diferenciação essencial do outro e assim, nos defendemos constantemente da ascendência real ou suposta deste outro (Dufour, 2013). Nesse contexto, nos deparamos com identidades cada vez mais fragmentadas, marcadas por uma afirmação narcísica como tentativa do eu de identificar-se na massa.
Para que o outro possa ser usado enquanto objeto nessa ordem econômica política liberal, deve ser transformado em um autômato e para isso é preciso desfazê-lo em sua subjetividade, arranjando-se um lugar possível de um gozo. Esse processo impede o sujeito de se elevar a uma corporeidade específica e a desorganização do corpo permite que ele se torne assujeitado e renuncie ao próprio gozo. E a melhor maneira de desorganizá-lo é desmembrando-o, em tantos órgãos que podem ser úteis ao gozo. Nesse sentido, não se trata de um corpo sem órgãos, mas de órgãos sem corpo, sem subjetividade. É desta forma que como efeito da exploração industrial há um bombeamento direto da pulsão, fazendo com que o sujeito perceba seu corpo de maneira apática, assinalado pela dissociação da pulsão. Dito de outra forma, uma quantidade de energia libidinal é extraída sem produzir inscrição psíquica, emergindo um sofrimento psíquico inédito que coloca em jogo intensos mecanismos de des-subjetivação e des-simbolização (Dufour, 2013).
Desta forma, o desejo é esmagado pela produção e pela finalidade da mesma. Aprisionado, o corpo faz sintoma, produz fenômenos, adoece, é assaltado pela angústia. Desfazer-se desta organização produtiva em que estamos inseridos é acordar o corpo, numa condição em que possa ser afetado, abarcando-o não como um instrumento, mas como um conjunto de sensações que compõem a unidade do ser.
Para Lacan é preciso ter um corpo para gozar, mas o corpo também é deserto do gozo. Refletindo sobre esses fundamentos na contemporaneidade podemos pensar que o corpo cada vez mais tem sido utilizado como deserto do gozo à medida que funciona como máquina. Desvitalizado e dessubjetivado, este corpo é comandado de maneira mecânica a partir dos ditames sociais. É neste sentido que o sintoma leva gozo ao corpo, e as enfermidades surgem para demostrar isso. Podemos verificar que aquilo que escapa à língua é transferido ao corpo (Sternick, 2010).
A carência de representações psíquicas e a dificuldade de simbolização dos conflitos marcam o sujeito contemporâneo em sua fragilidade, na confusão de não saber como se situar no campo do desejo. Esses processos enfraquecem os vínculos e criam cada vez mais vazio e abismo na relação do sujeito com seu corpo.
Costa (2001), ao retomar Lacan, ressalta que toda tentativa de escrever limites no corpo pode ser denominada de borda. As bordas que permitem a constituição de relações, como condição para a inscrição sujeito/outro. Essas produções de bordas estão relacionadas tanto à erotização, e sua necessidade de suporte no Outro, como a algo que poderia ser representado como um resto corporal. Em diferentes momentos da vida estas bordas precisam ser reconstituídas e essa necessidade responde a uma desnaturação da linguagem, o que implica em diferentes determinações nos suportes sociais do corpo, obedecendo aos diferentes registros real, imaginário e simbólico.
Quando nos questionamos sobre o que está escrito no corpo, na superação do gozo repetitivo e mortificante pode ser emersa a entrada em causa do amor. É pelo amor que entra em causa um sujeito suposto do saber, donde pode ser demanda do abrigo e significação. Nesse sentido, a palavra pode tomar o corpo e estabelecer identificações; e é nessas condições que constituem os circuitos de palavras, onde o amor constituindo um sujeito e um saber tem um lugar para recorte, endereçamento e arranjo do corpo/código, corpo/outro. Assim, nos deparamos com a especificidade das relações corpo/escrita através do que assistimos clinicamente como uma procura do sujeito pela escrita de um ponto inapreensível, que pudesse legitimar uma perda do gozo, enquanto elemento reparador corpo/Outro, resultante dessa perda (Costa, 2001).
Essas reflexões fazem-se importantes quando pensamos na constituição das relações transferenciais nas quais adquire relevância a relação entre saber e imagem do corpo. As manifestações do contemporâneo 'dispensam' o simbólico e engendram arranjos circulares onde o especular parece cada vez mais ganhar primazia sobre a alteridade. Em consequência destes processos a palavra é esvaziada de significação e a imagem é fixada como foco sem lhe ser conferido sentido. Desta forma, cabe ao analista resgatar o corpo relacional e a palavra como significação dos sintomas patentes nos corpos.
O Corpo como Palco
"O regime os exibe. Olhem como gozam".
Jacques-Marie Émile Lacan
Na ordem de nossos tempos o corpo assume relevância nos mais diversos aspectos: como uma imagem a ser continuamente aperfeiçoada, como máquina da qual se espera elevado rendimento, como objeto de gozo da pornografia universalizada, na procura retroativa de um suposto estado de comunhão com a natureza, no descarte de vidas em atentados, na compulsão de seu movimento diante das guerras, em transformações que jamais seriam imaginadas anteriormente (Machado & Cunha, 2016).
As lições de perversão visam criar um repertório de gestos sexuais supostamente comuns a todos os seres "normais". É desse modo que é construída uma nova normatividade, pois a partir do momento em que a pornografia se torna pública e coletiva, todos são convidados a praticá-la, como se toda sexualidade pressupusesse um orgasmo, todo prazer uma ejaculação, de preferência facial. Nota-se que o desejo da incitação pornográfica em massa é formatar a pulsão de forma que possa ser explorada em grande escala (Dufour, 2013).
É assim que a indústria captura o sujeito do imaginário, embora seja o desejo inesgotável, não havendo objeto que possa satisfazê-lo, há uma forma de alienação que faz com que o sujeito insista imaginariamente em achar que se satisfará com o consumo dos objetos oferecidos.
Desta forma, uma perversão descondensada das definições patológicas nos pertence cada dia mais e o corpo é seu instrumento de funcionamento. Podemos perceber isso no poliamor aflorado, contrariando os modelos da família tradicional. Na mídia: incluindo a TV, os aplicativos como o Tinder - com seu cardápio humano expansivo - nos segundos contados em que "nudes" podem ser expostos no Snapchat. Nas práticas pornográficas cada vez mais banais. Na sutileza das provocações, apetites e nas mais variadas fantasias sexuais.
Neste sentido, o pensamento ocidental é atravessado por um universo no qual os indivíduos obedecem antes de qualquer coisa ao mandamento soberano: goze. As práticas contemporâneas tem legitimado com afinco esse mandamento e não é por acaso que a pornografia, tornou-se uma das maiores indústrias, gerando negócios de mais de um trilhão de dólares por ano em todo o mundo, superando as indústrias de ponta das armas e dos produtos farmacêuticos. Basta pensarmos sobre a indústria dos acessórios sexuais, de encontros promissores, do sexo, esses acoplamentos distintos, esses preenchimentos de orifícios diversos, essas orgias pedofílicas e zoofílicas, essas sessões de tortura mais ou menos consentidas, essas práticas exóticas, essas ejaculações infindáveis entre várias outras configurações a serviço do gozo. Assim, passamos de uma geração das sutis buscas eróticas a praticas pornográficas banais. Enquanto que no erotismo há a busca por compensar a falta de visibilidade com um acréscimo de discurso, de onde há toda a especificidade da discursividade poética ou literária, na pornografia simplesmente não há nada a se dizer, pois se vê tudo. Nesse sentido, vamos da representação e significação a ação e apresentação (Dufour, 2013).
A partir do momento em que o corpo sai do espaço privado e assume o cenário coletivo, passa a assumir um lugar fundamental na mídia. Nesse sentido, é palco para o narcisismo, cultuando princípios individualistas, o imediatismo e a ilusão onipotente na tentativa de ser perfeito, delineado pelos progressos tecnológicos da medicina, estética e cirúrgica, configurando uma reformulação da relação entre o sujeito e seu corpo (Santos, 2014).
O homem contemporâneo não possui situação social e cultural estável e o ato de conectar-se e desconectar-se uns aos outros se torna banal. Para isso, ferramentas estão sendo constantemente desenvolvidas com o objetivo de selecionarem perfis de interesses, minimizar as possibilidades de risco em relação a encontros desfavoráveis e direcionar os processos de conquista (Moura & Côrtes, 2015).
O Tinder tem sido um exemplo enfático desse processo. A ferramenta desenvolvida para smartphones realiza um levantamento prévio de gostos em comum, guiando os utentes a possíveis parceiros. Criado em 2012 por Mateen, Sean Rad, Jonathan Badeen e Christopher Gulczynski, alunos da Universidade do Sul da Califórnia (EUA), o Tinder teve sua ascensão no fim de 2013. A partir do momento em que o indivíduo faz o download do aplicativo, há um cruzamento de informações obtidas no momento de realização do login pelo Facebook como localização, amigos e páginas "curtidas" em comum, bem como os interesses pessoais citados anteriormente. Uma plataforma exibe dados como idade, raio geográfico e imagens de perfis que provavelmente agradariam ao visualizador. No momento em que dois usuários indicam a opção "like", para os respectivos perfis, há uma combinação intitulada pela plataforma de "It's a Match" e ambos podem começar uma conversa "on-line". Até Abril de 2014, cerca de 100 milhões de usuários no mundo todo, tinham uma conta no Tinder (Moura & Côrtes, 2015).
Vários outros aplicativos com a mesma finalidade podem ser citados, como: "Hornnet", "How about we", "Adote um cara", "Love Project, "Bumble", "Twoo", "Namoro on", "Pof", "Par perfeito", "We chat", "Badoo" "Good to go", "Happn", "Flert", "Grindr", "Date me", entre outros.
Esses aplicativos, a partir da oferta de um universo de possibilidades relacionais, à custa de conexões supérfluas, são condizentes ao processo de liquefação dos laços sociais e acabam por conduzir a novas fragilidades.
Le Breton (2003), professor de antropologia da Universidade de Estrasburgo, afirma que os corpos, ao estarem conectados no ciberespaço se dissolvem e nesse sentido, a internet se torna a carne e o sistema nervoso dos que não podem mais viver sem ela e que sentem apenas desdém por seu velho corpo. Para ele, pensar o corpo é uma outra forma de pensar o mundo e o vínculo social.
Assim como Foucault pensou o panóptico dos cárceres e a vigilância a serviço do poder em "Vigiar e punir: nascimento da prisão" Foucault (1975/1987) pode-se considerar que as câmeras povoam o mundo dos novos dispositivos de controle. Nesse sentido, a prevalência do império das imagens conduz a instalação e manutenção de um regime de despersonalização, sujeição e apagamento de experiências subjetivas singulares. No entanto, esses dispositivos não poderiam também representar legítimas formas de empoderamento na contraposição a expressões estéticas ideais, representando novas embreagens de conversação, como um instrumento de gestão da individualidade no social?
Para Cunha (2014), a simulação com base no desmentido pode ser uma forma de apropriação do poder. Como em Freud, o desmentido é articulado às formas possíveis de lidar com uma realidade desagradável. Em seu texto para o Livro "A fabricação do humano", o autor ressalta a dupla face do desmentido na atualidade: entre o aniquilamento do outro e a felicidade em simulacro. Mantendo a referência clássica do desmentido, o autor pontua a multiplicação das formas ditas perversas na contemporaneidade, como emergentes da inserção em um contexto cultural de recusa generalizada à lei e à castração. Neste sentido, o desmentido se configura como operador fundamental do funcionamento psíquico dos sujeitos, não como uma classificação diagnóstica, mas como categoria descritiva da forma possível de relação com o outro, representando certas formas de resistência a modos de organização e regulação do laço social. É assim que a simulação pode produzir uma fissura nestes discursos que pretendem instituir uma verdade tão absoluta quanto espetacular. Em torno da produção de um mundo hiper-ideal, o simulacro vincula-se a uma espécie de expropriação do real, a partir do domínio absoluto das imagens, o que nos aproxima de micropolíticas de resistência, fundadas precisamente na apropriação pelos sujeitos da possibilidade de simulação.
Considerações Finais
A partir do momento em que o sistema capitalista tem a sagacidade de promover a liberação de nossas paixões, antes contidas por poderosos sistemas simbólicos como a família e a religião, o corpo assume centralidade como potência de prazer através de formatações pré-impostas do desejo. Apesar disso, não nos tornamos mais livres, levando em conta que o sistema apenas promove o imperativo de gozo que nos é legítimo na lei interna.
Para dar conta de tantos investimentos e transbordamentos ao corpo, entra em causa a vinculação a partir de montagens perversas. Essa perversão comum faz-se ser representada nas diversas formas que encenamos a vida, fazendo com que as imagens tenham primazia sobre as palavras e o especular se sobressaia à alteridade. Essas possibilidades de encontro ao outro acabam por gerar novas angústias no abismo da relação com o próprio corpo.
Neste sentido, o sujeito contemporâneo, ao estar enveredado pela exploração industrial promotora da liberação e bombeamento das pulsões e por um afrouxamento das referências simbólicas, produz um sofrimento psíquico inédito emaranhado num funcionamento perverso que busca o gozo de modo continuado. Assim, esses mecanismos de de-subjetivação e de-simbolização geram uma dissociação entre a inscrição pulsional e a elaboração psíquica, fazendo com que o corpo emerja como borda na medida em que se se situa como superfície representativa da inscrição entre o sujeito e o outro, que legitima a constituição de relações.
Assim, foi se destacando, durante o processo de construção deste artigo, o modo como somos perpassados pelos aspectos peculiares ao contemporâneo, nos colocando na posição de assumir que para além das investigações psíquicas, os corpos precisam ser indagados e cuidados. Nesse sentido, fazer borda ao corpo é dar-lhe suporte, abrindo brechas a novas possibilidades relacionais que representem a ascensão do próprio desejo diante dos ideais. É promover a elevação a uma corporeidade específica, de consistência e legitimidade, fazendo resistência às relações de poder instauradas.
Aos pesquisadores e a comunidade acadêmica de forma geral, se faz importante não só promover estudos mais aprofundados acerca do corpo e dos diferentes lugares que ocupa em relação a nossas angústias e potencialidades, mas também promover práticas que o libertem de amarras e o acordem em sua sensibilidade. Afinal, quem sabe o que pode o corpo?
"[...] o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão."
João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas.
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Endereço para correspondência:
Andressa Marques Ferreira
Email: andressapsi.ufu@gmail.com
João Luiz Leitão Paravidini
Email: jlparavidini@gmail.com
Recebido em: 24/07/2017
Revisado em: 07/12/2018
Aceito em: 28/01/2019
Publicado online: 02/08/2019