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Revista Subjetividades
versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.20 no.2 Fortaleza maio/ago. 2020
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i2.e8823
ESTUDOS TEÓRICOS
O Ressentimento No Contexto Do Trabalho Imaterial Afetivo
Resentment in the Context of Affective Immaterial Work
El Resentimiento en el Contexto del Trabajo Inmaterial Afectivo
Ressentiment dans le Contexte d'un Travail Affectif Immatériel
Sonia Regina Vargas Mansano
Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia, do Programa de Pós-graduação em Administração e do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina. Bolsista Produtividade CNPq - 2
RESUMO
O presente artigo busca analisar como o trabalho imaterial pode abrir espaço para expressão do ressentimento, trazendo consequências afetivas para trabalhadores, usuários e organizações. Notadamente, o trabalho imaterial ganhou relevância tanto nas organizações quanto entre os profissionais liberais, sendo que dimensões afetivas, como a cordialidade, a atenção e a confiança, passaram a fazer parte das relações de trabalho contemporâneas, sendo apresentadas pelo mercado como um diferencial. Ocorre que o campo afetivo, tal qual será argumentado neste artigo teórico, configura-se por meio de variações subjetivas imprevisíveis, que produzem efeitos os mais diversos nas relações sociais cotidianas. Desconsiderando essa dimensão variável, emerge uma tentativa de prescrever, treinar e controlar os afetos com vistas a produzir mais capital. O estudo mostra, por meio da psicologia social, da filosofia e da sociologia, como tal situação é propícia para instalação e disseminação do ressentimento no contexto do trabalho imaterial afetivo.
Palavras-chave: trabalho imaterial; ressentimento; afeto; psicologia social.
ABSTRACT
This article seeks to analyze how immaterial work can open space for the expression of resentment, bringing affective consequences for workers, users, and organizations. Notably, immaterial work has gained relevance both in organizations and among professionals, and affective dimensions, such as cordiality, attention, and trust, have become part of contemporary work relationships, being presented by the market as a differential. It turns out that the affective field, as will be argued in this theoretical article, is configured through unpredictable subjective variations, which produce the most diverse effects in everyday social relations. Disregarding this variable dimension, an attempt emerges to prescribe, train, and control affections to produce more capital. The study shows, through social psychology, philosophy, and sociology, how such a situation is conducive to the installation and dissemination of resentment in the context of affective immaterial work.
Keywords: immaterial work; resentment; affection; social psychology.
RESUMEN
El presente artículo busca analizar como el trabajo inmaterial puede abrir espacio para expresión de resentimiento, trayendo consecuencias afectivas para trabajadores, usuarios y organizaciones. Notablemente, el trabajo inmaterial ganó importancia tanto en las organizaciones cuanto entre los profesionales independientes, donde dimensiones afectivas, como la cordialidad, la atención y la confianza, pasaron a integrar las relaciones de trabajo contemporáneas, siendo presentadas por el mercado como un diferencial. Ocurre que el campo afectivo, tal como será argumentado en este artículo teórico, se configura por medio de variaciones subjetivas imprevisibles, que producen los más diversos efectos en las relaciones sociales cotidianas. Desconsiderando esta dimensión variable, emerge un intento de prescribir, entrenar y controlar los afectos con objetivo de producir más capital. El estudio demuestra, por medio de la psicología social, de la filosofía y de la sociología, como tal situación es propicia para la instalación y diseminación del resentimiento en el contexto del trabajo inmaterial afectivo.
Palabras clave: trabajo inmaterial; resentimiento; afecto; psicología social.
RÉSUMÉ
Cet article cherche à analyser comment le travail immatériel peut ouvrir un espace pour l'expression du ressentiment, entraînant des conséquences affectives pour des travailleurs, des utilisateurs et des organisations. Notamment, le travail immatériel a gagné en pertinence dans les organisations et aussi parmi les professions libérales, tandis que les dimensions affectives, telles que la cordialité, l'attention et la confiance, font désormais partie des relations de travail contemporaines, présentées par le marché comme un différentiel. Il s'avère que le champ affectif, comme nous le verrons dans cet article théorique, est configuré à travers des variations subjectives imprévisibles, qui produisent les effets les plus divers dans les relations sociales quotidiennes. Sans tenir compte de cette dimension variable, une tentative émerge de prescrire, former et contrôler les affections afin de produire plus de capital. L'étude montre, à travers la psychologie sociale, la philosophie et la sociologie, comment une telle situation est propice à l'installation et à la diffusion du ressentiment dans le contexte du travail affectif immatériel.
Mots-clés: travail immatériel ; ressentiment ; affection ; psychologie sociale.
A habilidade para estabelecer contatos sociais e afetivos no cotidiano do trabalho tem se configurado um pré-requisito para o exercício de diferentes atividades profissionais. Isso ocorre porque os clientes e os usuários, bem como as equipes de trabalho, participam da relação laboral expressando opiniões, queixas, necessidades e desejos que evidenciam dimensões subjetivas complexas e variadas, por meio das quais negociações financeiras e prestações de serviços são efetivadas. Acolher e se deixar afetar pela presença do outro se tornaram práticas imprescindíveis para a concretização do que Hardt e Negri (2001) denominam como trabalho imaterial. Para exemplificá-lo, os autores elencam um conjunto diversificado de atividades que englobam:
assistência médica, educação e finanças a transporte, diversão e publicidade. Os empregos são em sua maioria altamente movediços, e envolvem flexibilidade de aptidões. Mais importante, são caracterizados em geral pelo papel central desempenhado por conhecimento, informação, afeto e comunicação. Nesse sentido, muitos consideram a economia pós-moderna uma economia de informação. (Hardt & Negri, 2001, p. 306)
Como o trabalhador se posiciona diante desse cenário laboral que se tornou majoritariamente relacional e informacional? De acordo com Gorz (2005), para acolher essa nova demanda, já não basta possuir uma formação técnica obtida por meio de cursos universitários, profissionalizantes ou em treinamentos. No contexto do chamado trabalho imaterial, grande parte das atividades realizadas pelo profissional acontece à medida que ele atualiza sua história afetiva de encontros sociais, que foi sendo construída no decorrer da trajetória de sua vida, a qual ganha importância e passa a ser operacionalizada. Trata-se, portanto, de uma dimensão afetiva gerada no cotidiano das relações sociais e que é ativada a cada vez que uma nova situação de trabalho se configura. Desse modo, para Gorz (2005): "os saberes comuns ativados pelo trabalho imaterial não existem senão em sua prática viva" (p. 33). Pode-se compreender essa "prática viva" como um saber situado e carregado de sentidos únicos que ganham um contorno utilitário, sendo operacionalizado com os clientes e demais trabalhadores.
Diante dessa caracterização preliminar do trabalho imaterial, o presente artigo teórico aborda as configurações subjetivas mais recentemente desenhadas no contexto laboral (Lazzarato, 2014; Sassen, 2016), resultando no que será aqui argumentado por meio da noção de ressentimento. Assim, seu objetivo consiste em analisar como o trabalho imaterial abre espaço para a emergência e expressão do ressentimento, trazendo consequências efetivas para trabalhadores e organizações. Para isso, o artigo foi dividido em três momentos. Primeiramente, é realizada uma análise sobre as implicações subjetivas do trabalho imaterial afetivo, bem como sua expansão nas últimas décadas. Em seguida, faz-se um mapeamento dos efeitos que esse tipo de atividade gera no cotidiano dos trabalhadores, focalizando os novos riscos corporais e subjetivos colocados em curso. Na sequência, aproxima-se a noção de trabalho imaterial afetivo do conceito de ressentimento, analisando como a exploração econômica capitalista abriu espaço para um tipo de relação prescrita e pouco disposta a acolher a subjetividade e suas variações afetivas. Por fim, já nas considerações finais, constata-se o quanto o trabalhador transita entre as novas exigências laborais sociocognitivas, que ora evocam o ressentimento, ora estão abertas para o exercício de um trabalho vivo e potente.
A justificativa de empreender um estudo no campo afetivo do trabalho é sustentada pelo crescimento que essa atividade teve em nosso país nos últimos anos (Lazzarato, 2014, 2017; Pelbart, 2017) e pela relevância que o tema possui para a psicologia social, implicada com o diagnóstico contextualizado de seu tempo, bem como com as possibilidades de transformação social rumo a uma existência mais potente.
Antes de avançar, entretanto, cabe esclarecer que a presente pesquisa, de tipo teórico, conferiu consistência à teorização recorrendo as seguintes áreas de conhecimento: psicologia, sociologia e filosofia. Com isso, buscou-se resguardar a multiplicidade de aspectos conceituais que se cruzam no campo problemático aqui delimitado: o ressentimento (psicologia e filosofia) emergente no contexto do trabalho imaterial afetivo (sociologia) contemporâneo. Para Demo (2000), a pesquisa teórica dedica-se a "reconstruir teoria, conceitos, ideias, ideologias, polêmicas, tendo em vista, em termos imediatos, aprimorar fundamentos teóricos" (p. 20). Assim, o ressentimento foi abordado especificamente no campo laboral. Entretanto ressalta-se que a questão do ressentimento repercute para além das relações de trabalho, produzindo efeitos na vida privada dos trabalhadores, bem como nas esferas política e afetiva das relações sociais. Precisamente por isso, a busca por estabelecer diálogos com áreas de conhecimento distintas favorece uma apreciação multifacetada do tema e permite analisá-lo por meio de perspectivas conceituais diferentes.
Caracterizando o Trabalho Imaterial
A maneira como a sociedade encontra-se organizada faz com que o humano permaneça boa parte dos dias conectados ao mundo do trabalho, seja na condição de trabalhadores, seja na de clientes consumidores ou usuários de serviços. O valor atualmente atribuído às dimensões subjetivas, referente tanto à desenvoltura para os encontros sociais quanto à construção de vínculos de confiança com os clientes, ganhou relevância nas organizações e entre os profissionais autônomos, conquistando uma posição comparável àquela que é recorrentemente atribuída às habilidades técnicas. Hardt e Negri (2005) comentam: "uma indicação da importância crescente do trabalho afetivo, pelo menos nos países dominantes, é a tendência dos empregadores para enfatizar a educação, a atitude, a personalidade e o comportamento 'pró-social' como capacitações primordiais necessárias aos empregados" (p. 149).
Entretanto esse diferencial subjetivo, tão requerido pelas empresas e profissionais liberais, não é passível de mensuração ou treinamento técnico tal como as avaliações de desempenho estão habituadas a proceder. Isso ocorre porque, como é possível constatar no estudo de Gorz (2005), atualmente, a história relacional do sujeito passou a ser amplamente solicitada no cotidiano laboral. Essa força relacional, acolhida em alguma medida pelas organizações que lhe atribuem valor, tende, por outro lado, a ser sufocada ou condenada, uma vez que, sob o ponto de vista do empregador, o trabalhador deve manter-se sempre disposto a acolher e bem atender o cliente que chega, independentemente das variações afetivas que esse encontro pode vir a produzir sobre o seu corpo.
Se o afeto entra em cena no trabalho contemporâneo como um diferencial, sendo amplamente explorado para uma gama extensa de atividades (como construir e consolidar equipes, avaliar produtos e serviços oferecidos, atingir metas de produção e fidelizar clientes), como compreender os desdobramentos subjetivos colocados em curso pelo trabalho afetivo? Hardt e Negri (2005) esclarecem:
Ao contrário das emoções, que são fenômenos mentais, os afetos referem-se igualmente ao corpo e à mente. Na realidade, os afetos, como alegria e tristeza, revelam o atual estado da vida em todo o organismo, expressando um certo estado do corpo paralelamente a uma certa forma de pensamento. O trabalho afetivo, assim, é o trabalho que produz ou manipula afetos como a sensação de bem-estar, tranquilidade, satisfação, excitação ou paixão. (p. 149)
Nota-se, desse modo, que a dimensão afetiva acionada no trabalho imaterial vai além da racionalidade e envolve também a sensibilidade, a confiança e o vínculo. Assim, aquela máxima bastante propagada no interior de algumas empresas de que a vida pessoal deve ficar "para fora de seus muros" tornou-se, no mínimo, obsoleta. É por meio das experiências afetivas e carregadas de sentido que a abertura e disponibilidade para acolher o outro acontecem. No contexto do trabalho imaterial afetivo, é o corpo sensível do trabalhador que comparece como um diferencial. Como já dito, tal corpo foi construído a partir de uma história de encontros experimentados desde o nascimento, estando acionado bem antes da sua entrada nas organizações.
Diante dessas considerações, como compreender a noção de afeto? Parte-se, aqui, dos estudos de Gilles Deleuze (1997, 2009) e Benedictus de Spinoza (1677/2017), para os quais a experiência dos afetos acontece por ocasião dos diferentes encontros que experimentamos no dia a dia, produzindo efeitos que repercutem de modos distintos no cotidiano das relações sociais. Os encontros colocam seus participantes em contato com as diferenças inerentes à vida em sociedade, fato que produz variações em suas maneiras de sentir e existir. Com isso, é possível delinear uma das principais características dos afetos: à medida que são experimentados, eles podem precipitar transformações, desde que os encontros sejam suficientemente intensos e significativos.
Para Deleuze (1997, 2009) e Spinoza (1677/2017), essas transformações afetivas percorrem diferentes nuances que vão desde a alegria (que produz um aumento na potência de existir e de viver), podendo ser percebidas em seus desdobramentos de prazer, satisfação, contentamento e ânimo, até contornos de tristeza, pelos quais se experimenta uma diminuição na potência do corpo, sendo caracterizada pelo desânimo, fechamento para o contato social e desprazer. A experimentação de alegrias e tristezas é contínua e indissociável, sendo impossível manter-se em apenas uma delas. Nessa perspectiva conceitual, portanto, o corpo é compreendido como uma superfície sensível por meio da qual estabelecemos contatos com o mundo que nos cerca e, desses contatos, advêm efeitos que são diversos e incontroláveis, como veremos posteriormente. Em estudo recente sobre o tema, Yonezawa (2014) assinala:
A vida pode ser tomada por duas naturezas de força completamente diferentes: forças ativas, que dominam, se afirmam, se exercem, se exercitam e, mais ainda, criam; e forças reativas, minguantes, que obedecem, que mantém, asseguram, lembram. De um lado, forças vigorosas, primaveris, germinais; de outro, forças do cansaço, outonais. As primeiras são criativas, agem, fluem. As segundas conformam-se, garantem um nível de vida orgânico, seguro, apenas o mínimo para uma sobrevida: são forças de permanência e conservação. (p. 3)
Quando se estende a análise dessas duas forças (ativas e reativas) para o campo laboral, é notável que o tempo e a força física do trabalhador, amplamente explorados pelo paradigma do trabalho material e repetitivo, dividem espaço, hoje, com as dimensões de ordem mais subjetiva e afetiva: exige-se do trabalhador sua sensibilidade, cuidado, confiança, bem como seu tempo livre, que também é colocado a serviço da produção imaterial (Lazzarato, 2014). Nesse contexto, as tarefas a serem realizadas demandam um aprimoramento não apenas técnico (que, é preciso lembrar, geralmente acontece fora do horário de trabalho, ou seja, no tempo livre), mas também a habilidade para solucionar cada novo problema (técnico ou relacional) que lhe é apresentado. Sobre isso, Hardt e Negri (2005) afirmam:
Mas a hegemonia do trabalho imaterial efetivamente tende a mudar as condições de trabalho. Veja-se, por exemplo, a transformação da jornada de trabalho no paradigma imaterial, ou seja, a divisão cada vez mais indefinida entre horário de trabalho e tempo de lazer. No paradigma industrial, os operários produziam quase exclusivamente durante as horas passadas na fábrica. Quando a produção tem por objetivo resolver um problema ou criar uma relação, no entanto, o tempo de trabalho tende a se expandir para todo o tempo de vida. Uma ideia ou uma imagem vem a nós não somente no escritório, mas também no chuveiro ou nos sonhos. (p. 153)
Ganham contornos, assim, os novos dilemas no contexto do trabalho imaterial afetivo: o limite e a impossibilidade de acolher, elaborar e controlar os afetos (tristes e alegres) que são experimentados no dia a dia, os quais englobam as frustrações, a impotência, as queixas, os conflitos, bem como seus desdobramentos em competitividade, tão presente nas organizações. Por meio dessa caracterização, é possível constatar o estado subjetivo sufocante que o trabalho imaterial engendra e que demanda uma análise sobre seus dilemas.
O Trabalho Imaterial e a Disseminação dos Afetos Tristes
Nas últimas décadas, é notável a emergência de uma série de mudanças na organização do trabalho que ocasionaram efeitos diversos na vida do trabalhador. Muitas vezes tomadas como "naturais" e, portanto, inquestionáveis, tais mudanças acabaram sendo absorvidas e legitimadas sem que ocorresse uma análise crítica sobre seus procedimentos e desdobramentos. Serão percorridas, aqui, algumas dessas mudanças, de modo a compreender os efeitos políticos e afetivos que elas provocam na vida do trabalhador.
Primeiramente, cabe abordar a disseminação da ideia de qualidade total. A busca mundial pela qualidade intensificou-se a partir da década de 1980 e trouxe para o interior das empresas novos procedimentos para aferição dos resultados do trabalho individual e coletivo. A disciplina, presente no contexto do trabalho material, que era infligida por meio da divisão rígida das tarefas e pela vigilância direta do trabalhador, aos poucos vem sendo substituída, ou dividindo espaço, com dispositivos de controle mais sutis e disseminados, como a definição de metas (Hardt & Negri, 2016). Assim, a busca pela qualidade deixa entrever algumas questões que, muitas vezes, passam despercebidas pelo trabalhador: primeiramente, a junção entre as palavras "qualidade" e "total". Tal ligação exige do trabalhador uma eficiência crescente, de modo que este experimenta, continuamente, a sensação de que a atividade realizada é insuficiente e aquém do padrão esperado. Além disso, a ideia de qualidade total comporta alguns enganos: Como falar de qualidade total em relação a um tempo histórico que estimula a produção de mercadorias (e mesmo de serviços) que têm sua obsolescência devidamente programada? Promete-se qualidade total para uma mercadoria que deverá estar obsoleta no ano seguinte, fomentando, assim, as práticas sistemáticas do consumo e do descarte desnecessários (Deus, Battistelle, & Silva, 2015).
Há que se analisar, ainda, a maneira como os valores disseminados pelos programas de qualidade total são inseridos nas organizações. De uma hora para outra, é como se "tudo mudasse" ou, ao menos, a organização cotidiana do trabalho recebesse uma "maquiagem" que simula essa mudança: o espaço físico é "revitalizado" com a pretensão de que, por extensão, os valores ali presentes também o sejam. Descontextualizados e desprovidos de qualquer sentido para o trabalhador, o que se encontra em boa parte dos programas de qualidade total e das certificações é mais uma variante da ilusão de que é possível promover mudanças organizacionais rápidas na direção da eficiência, uniformização e lucratividade crescentes. Enriquez (2000) chama a atenção para a produção de normas, de todas as espécies, que assola a existência humana na atualidade e, em larga medida, glamouriza as ações e avaliações de empresas que possuem a certificação da Organização Internacional de Normatização (ISO) em todo o planeta e em diferentes domínios. Tal normatização é dirigida tanto à produção de mercadorias quanto às ações humanas ligadas à prestação de serviços (como é o caso da "ISO 9001", cujo foco é a satisfação do cliente). Nota-se que a disseminação desse tipo de procedimento novamente atesta a prescrição de afetos na esfera do trabalho imaterial.
Juntamente com a ideia de qualidade total, consolida-se a necessidade, também naturalizada, de qualificação permanente do trabalhador, a fim de que ele se mantenha empregável, competitivo e mais informado sobre as últimas tendências em sua área de atuação. Os trabalhadores que, porventura, ainda não tenham sido demitidos com a justificativa de enxugamento do quadro funcional são convocados a aderir a uma "formação permanente" (Deleuze, 1992, p. 221), sob a ameaça de perderem seus empregos. O discurso que anuncia a necessidade de qualificação segue um formato muito próximo daquele adotado pela qualidade total, ou seja, persegue um patamar de performance e de resultados sempre superiores aos já conquistados. Esse processo dá respaldo ao enxugamento crescente de trabalhadores e de postos de trabalho, visto não haver lugar para todos, apenas para os que são considerados mais qualificados, situação que gera medo e insegurança (Scheinvar, 2014). A noção de empregabilidade é, nesse sentido, uma grande aliada dessa captura, ou sequestro, se retomamos Foucault (1998). Ameaçados pelo desemprego, todo dispêndio de energia e tempo, dentro e fora da jornada de trabalho, é justificado para que o sujeito se mantenha empregado. No Brasil, tramitava desde o ano de 2004 o Projeto de Lei n.º 4330 (Brasil, 2015), também conhecido como "PL da Terceirização", o qual, entre os diversos pontos de precarização dos contratos de trabalho, incluía a possibilidade de terceirizar as atividades-fins nas empresas. A referida lei foi sancionada no ano de 2017, sob o número 13.429/2017 (Presidência da República, 2017), com o argumento de que essa seria a única forma de manter os postos de trabalho.
Paralelamente, outra questão que se destaca nas preocupações das organizações que atuam no campo imaterial refere-se ao "perfil" desejado para recrutar, selecionar e contratar o que é hoje considerado um bom trabalhador. Este deve agregar características subjetivas de criatividade, inovação, flexibilidade, competitividade e, em especial, abertura ao risco (Enriquez, 2000). Ao mesmo tempo, deve apresentar habilidades para estabelecer vínculos de companheirismo, cooperação e trabalho em equipe. Ora, aí também temos algumas questões a serem analisadas. À medida que a competitividade é estimulada entre os trabalhadores, ela torna-se incompatível com o trabalho em equipe (dualidade entre o competir e o cooperar). Para Enriquez (2000), esse tipo de solicitação coloca em evidência alguns objetivos contraditórios que são, em larga medida, inconciliáveis, visto que, na perspectiva do mercado, todos precisam ser vencedores e, se não o forem, uma sobrecarga de culpa, responsabilização individual e ameaças recai sobre o trabalhador. Assim, a competitividade também ganha contornos de naturalização e passa a ser compartilhada como um diferencial estratégico nas organizações. Sobre essa tendência, Enriquez (2000) assinala a emergência de uma "identidade compacta" e servil que:
ganha tanto mais confiança dos outros quanto mais ela não se pretende ser a única a poder cumprir aquilo que faz. Todo indivíduo pode fazer tão bem quanto ela desde que queira, ele também, se superar e se aprofundar. "Se eu sou formidável, você também pode ser formidável" (...). "Eu não era ninguém, eu me fiz a mim mesmo e você também pode se transformar". Assim, a megalomania torna-se uma coisa mais bem partilhada! Como não se fascinar por um ídolo que lhe diz democraticamente que basta querer para poder? (p. 32)
Uma vez identificado com "ídolo" que tudo pode, qualquer estratégia competitiva passa a ser por ele utilizada e se torna socialmente justificada nos momentos em que é preciso desconsiderar os outros trabalhadores - que são, agora, avaliados como adversários ou concorrentes em potencial. Com o crescente individualismo competitivo, são poucas as mobilizações coletivas por reivindicações de melhorias nas condições de trabalho que encontramos na contemporaneidade. Por vezes, o apoio e a adesão a tais valores são realizados de maneira sistemática e impensada. Afinal, aqueles que se encontram empregados estão bastante ocupados com a própria sobrevivência e permanência no mercado, dedicando-se cegamente à busca da qualidade total, aos programas de qualificação e ao alcance competitivo de metas (Forrester, 1997).
A pressão sobre o trabalhador e, mais do que isso, essa espécie de chantagem que sobre ele recai, busca garantir sua adesão aos baixos salários, aos programas de qualificação e às condições precárias de contrato laboral, capciosamente denominado como flexível (Sennett, 2000). Em larga medida, o trabalhador acaba por se submeter a essas condições para não ficar sem emprego, sendo que esse dado é propositalmente desconsiderado nas análises econômicas e políticas, em especial naquelas que são divulgadas pela mídia. Assim, observa-se diariamente o crescimento de um contingente populacional de desempregados que simplesmente não encontra colocação no mercado de trabalho, seja pelo baixo nível de qualificação, seja pela tendência à diminuição da oferta de vagas em função do enxugamento do quadro de trabalhadores, seja ainda por terem dificuldade de se inscrever na dinâmica de flexibilização dos contratos de trabalho. Sobre essa situação, Forrester (1997) assinala:
É difícil admitir, impensável declarar que a presença de uma multidão de humanos se torna precária, não pelo fato inelutável da morte, mas pelo fato de que, enquanto vivos, sua presença não corresponde mais à lógica dominante, uma vez que já não dá lucro, mas, ao contrário, revela-se dispendiosa, demasiado dispendiosa. (p. 28)
Uma vez que essa massa de trabalhadores dispendiosa já não é mais "utilizável" sob o ponto de vista do capital, ficariam evidentes os limites da idealização presente na noção de qualificação permanente, visto que, na organização socioeconômica vigente, não há lugar para todos. Entretanto não é bem isso que se efetua: uma série de programas de requalificação é ofertada exclusivamente para os desempregados, como se o problema tivesse como substrato a falta de preparação para o trabalho, e não sua escassez. Os efeitos dessa situação são diversos. Um deles é que o trabalhador desempregado gasta um montante de tempo e dinheiro, que não possui, uma vez que não tem renda e está endividado (Lazzarato, 2017), para qualificar-se; ou, uma vez empregado, assume passivamente a atividade de outros trabalhadores que foram demitidos, preservando, assim, sua colocação profissional (Enriquez, 2000). Sem aumento da remuneração, o trabalhador tem sua cota de atividades dilatada (Sennett, 2000).
Tal situação atinge, também, os trabalhadores do serviço público que, além de enfrentarem no dia a dia a forte representação social desfavorável que os localiza em características como falta de vontade, morosidade e inércia, também são alvo de programas de competitividade que se fazem cada vez mais presentes na esfera estatal. Além disso, tais servidores enfrentam a periódica troca de chefias, o descumprimento sistemático das leis trabalhistas de reposição salarial e a truculência de alguns governadores que, apoiados pelo aparato policial e jurídico, adotam os valores capitalistas que prezam pela suspensão dos direitos historicamente conquistados (Schlindwein, 2013). Exemplo disso pode ser identificado no enfrentamento ocorrido no dia 29 de abril de 2015, na cidade de Curitiba, Paraná, que ficou mundialmente conhecido como "massacre contra os professores" (Gazeta do Povo, 2015). Naquela ocasião, a Câmara de Deputados, por ordem direta do governador, aprovou uma reforma referente à previdência do funcionalismo público. Enquanto ocorria tal aprovação, cinco mil professores eram violentamente reprimidos e combatidos pela força policial do estado, que tentava impedir seu direito constitucional de protestar e reivindicar democraticamente. Os resultados dessa batalha foram a aprovação da lei e o montante de 213 professores feridos.
Esse tipo de violência empreendido pelo empregador, nesse último exemplo respaldado pelo poder público da polícia armada, gera marcas nos corpos e lança os trabalhadores na esfera dos afetos tristes. Esses afetos, além da tristeza presente na experiência propriamente dita, "fixa" o trabalhador na situação traumática e, com isso, uma parte de sua potência acaba sendo dirigida e investida naquilo que o destrói. Diz Deleuze (2009): "eu consagro uma parte da minha potência a investir o traço da coisa. Por quê? Evidentemente para subtraí-la, para conjurá-la, para mantê-la a distância" (p. 162-163). Desse modo, a potência que poderia estar sendo dirigida para encontros alegres, incluindo os profissionais, acaba sendo inutilizada: "sou subtraído de uma parte de minha potência, ela não está mais em minha posse" (Deleuze, 2009, p. 163). Pode-se dizer que ela foi investida em atitudes que enfraquecem tanto o sujeito como quem está perto dele, uma vez que se desdobra em outras paixões tristes: pequenas vinganças, competições desleais, boicotes, mágoas e insultos que recaem sobre si e sobre os outros.
Ainda que esse cenário de violência contra o trabalhador, desdobrado em exclusão e miséria, tal qual exposto por Forrester (1997), seja cada vez mais frequente na contemporaneidade, constata-se que a organização do trabalho imaterial adota como valores privilegiados as dimensões afetivas, dando margem para emergência de novos riscos e dilemas. Estudos clássicos que delinearam uma psicopatologia do trabalho, empreendidos por Dejours (1992), Le Guillant (2006) e Clot (1996), cooperaram para delinear os efeitos do sofrimento psíquico gerados por uma organização do trabalho adoecida. Já no contexto deste estudo, cabe mostrar como a problemática dos afetos ganha relevância e indica que as relações de trabalho estão configurando uma realidade perigosa e desafiadora.
A Disseminação do Ressentimento no Contexto Laboral
É difícil encontrar alguém que não teve acesso a um relato sobre desentendimentos vividos no contexto laboral, seja em relação a outro trabalhador, seja com a chefia/ subordinado, seja, ainda, estando na situação de cliente/usuário. Isso ocorre porque, como já afirmado, a dimensão afetiva está cada vez mais valorizada no contexto do trabalho imaterial. Tais desentendimentos podem se desdobrar no que caracterizaremos aqui como ressentimento.
Nota-se que, na referência teórica anteriormente apresentada (Deleuze, 1997, 2009; Spinoza, 1677/2017), os afetos são experimentados de maneira imediata pelo trabalhador e seus interlocutores, sendo que, a partir dos encontros, é possível ocorrer variações afetivas que vão da alegria à tristeza, perpassando pelos mais diversos matizes. Sob o ponto de vista do que se convencionou chamar de um "bom atendimento" a ser ofertado ao cliente, entretanto, os afetos de tristeza simplesmente não podem ser vividos ou expressos, sob o risco de a empresa perder a oportunidade de fechamento de uma negociação em curso. Com a máxima "o cliente tem sempre razão", os afetos, com as variações que lhe são imanentes, tornam-se alvo de monitoramento, prescrição e controle. Quando essa situação se torna corriqueira e naturalizada no cotidiano do trabalho, pode-se dizer que se configura uma docilização do trabalhador, tal como identificado por Foucault (1998) no contexto das fábricas dos séculos XIX e XX. Ao invés de docilizar pela via da disciplina, contudo, tal procedimento, atualmente, ganha outros contornos e ocorre pela coerção do corpo na direção da receptividade incondicional do cliente e da contenção dos afetos tristes. Assim, o trabalhador encontra-se impossibilitado de expressar aquilo que sente e pensa em função da exigência de fidelização do cliente, da meta a ser alcançada, mas também da precarização e da miséria afetivas a que está exposto.
É precisamente essa dificuldade presente na experimentação e expressão de afetos no cotidiano laboral que abre espaço para a emergência do chamado ressentimento. Como compreender tal experiência? A palavra ressentimento é definida na língua portuguesa como "ato ou efeito de ressentir(-se); mágoa que se guarda de uma ofensa ou de um mal que se recebeu; rancor" (Houaiss, Villar, & Franco, 2009, p. 1654). Os linguistas ainda definem o verbo ressentir como "tornar a sentir; sentir muito; ofender(-se), magoar(-se), melindrar(-se)". Em sua definição, a palavra ressentimento enfatiza os desdobramentos que levam o corpo a ficar conectado à experiência triste que foi vivida (tornar a sentir), uma vez que foi impedido de agir, separando-se de sua potência. Adotando uma perspectiva que aproxima a filosofia e a psicologia, Naffah (1991) afirma:
Quando alguém - qualquer que seja a potência de sua força - é separado daquilo que pode, não lhe resta outra alternativa senão transformar-se num poço de recriminação e de ressentimento, num desejo impotente de vingança, num veneno amargo que corrompe a si próprio e ao mundo que o cerca. (p. 61)
O corpo separado daquilo que pode é o que caracteriza a experiência do ressentimento. Esta, por sua vez, se desdobra em uma série de afetos que dificulta, e até inviabiliza, as possibilidades de novos encontros com o outro, incluindo aí os encontros profissionais. As tarefas e prescrições elencadas em um contrato laboral, que enfatiza a esfera relacional, até podem pretender evitar que o trabalhador expresse tais afetos, porém não está sob o domínio do empregador a possibilidade de impedir a variação afetiva. O que ocorre nesse caso? Solicitado a não agir imediatamente diante do vivido, o sujeito é convocado a separar-se da sua potência, docilizando seu corpo em prol das exigências relacionais do bom atendimento. Quais efeitos essa docilização pode trazer? Deleuze (1988) assinala: "A doença, por exemplo, separa-me do que posso; força reativa, torna-me reativo, reduz minhas possibilidades e condena-me a um meio diminuído ao qual desejo apenas adaptar-me" (p. 54). Ao aproximar o ressentimento da ideia de doença, Deleuze abre a possibilidade de uma análise bastante atual do cenário subjetivo constituído pelo trabalho imaterial. Até que ponto as exigências profissionais tornam-nos seres voltados meramente à adaptação e à resiliência, portanto, separados de nossas potências e adoecidos? Quais os efeitos desse tipo de ressentimento no cotidiano laboral?
O trabalho afetivo, tal como visto no início, está imerso nas relações sociais e delas depende para garantir a produção na contemporaneidade. Assim, o trabalho afetivo tem no corpo e na potência de afetação do trabalhador seu maior diferencial. Entretanto, quando essa potência não pode ser exercida, os efeitos tendem a ser desastrosos. Sobre isso, continuamos com Naffah (1991, p. 61) quando ele assinala: "privado de si", o sujeito "só pode tomar o outro como fonte de referência; castrado, só pode invejar e culpabilizar a potência do outro; impossibilitado de ação presente, só pode re-sentir o passado, eternizando o que era contingente e fortuito". É assim que o re-sentir, como experiência triste, se repete infinitamente e coloca em andamento um circuito difícil de ser rompido.
Machado (1985) colabora com esse debate quando assinala: "O ressentido é alguém que sofre e porque sofre procura espontaneamente uma causa - um culpado - de seu sofrimento para sobre ele carregar seu ódio." (p. 75). Em certo sentido, essa nova configuração da docilização do corpo, promovida pela prescrição e controle de afetos, tem por resultado uma distribuição de pequenos ódios e vinganças que são espalhados pelo contexto do trabalho afetivo. Adaptação, equilíbrio, resiliência e controle são palavras que podem, em um primeiro momento, parecer bem-vindas no contexto do trabalho. Mas elas vão, aos poucos, sufocando o corpo do trabalhador, distanciando-o de suas potências e o fazendo adoecer.
Isso, em parte, acontece à medida que o sujeito se encontra fixado no conjunto dos afetos tristes que o prende à repetição escrava do re-sentir. Nessa fixação, uma parte da potência é dirigida para investir na situação de ressentimento, fato que não apenas o decompõe como também o entristece e diminui a abertura para novos encontros. Abordando o ressentimento como uma decorrência do assédio moral, Schlindwein (2013) salienta a tensão contínua, sendo que essa situação pode vir a ser "interpretada pelas chefias e colegas como desinteresse, falta de responsabilidade ou, até, preguiça. As reações das trabalhadoras diante de representações negativas como essas se revelam de várias formas: raiva, revolta, decepção, tristeza e humilhação." (p. 431).
As atitudes de cordialidade, confiança e receptividade, que foram incorporadas pelo capitalismo como diferencial de mercado a ser amplamente explorado na contemporaneidade, desdobram-se, então, em ressentimento, doença, raiva e sofrimento à medida que o corpo fica sujeitado às prescrições e à docilização. Constata-se, dessa maneira, que a estratégia produtivista dirigida às relações sociais se torna simplesmente insustentável. Isso ocorre porque estamos diante de uma partilha moral, hoje adotada e legitimada pelas organizações, que busca dividir aquilo que é considerado afeto "adequado" e afeto "inadequado" na esfera laboral. Ora, acompanhando as ideias de Deleuze (2009) e Spinoza (1677/2017), facilmente nota-se que o campo dos afetos não se coaduna com avaliações do tipo moral, uma vez que tal campo se caracteriza pela variação suscitada pelo acaso dos encontros e pela força vital que os atravessa. Submeter os afetos a um regime de adequação moral, além de ser um empreendimento violento, desconsidera o quanto a variação afetiva testemunha as potências vivas do corpo, fato que, certamente, separa o trabalhador daquilo que ele pode, gerando ressentimento, culpabilização e esgotamento (Pelbart, 2017). Nota-se, assim, que o projeto de docilização do corpo e dos afetos, devidamente reformulados na contemporaneidade, ratifica seus limites e impossibilidades.
Valendo-se das mais diferentes estratégias, no entanto, os trabalhadores ensaiam saídas para resistir a essa prescrição forçada, criando variações afetivas potencializadoras nas relações. Como dito por Deleuze (1992) em uma entrevista concedida a Negri, cabe falar em processos de subjetivação complexos que não se reduzem a uma grade de prescrições. Tais processos envolvem:
as diversas maneiras pelas quais os indivíduos ou as coletividades se constituem como sujeitos: tais processos só valem na medida em que, quando acontecem, escapam tanto dos saberes constituídos como aos poderes dominantes. Mesmo que na sequência eles engendram novos poderes ou tornam a integrar novos saberes. Mas naquele precioso momento eles têm efetivamente uma espontaneidade rebelde. (p. 218)
Apesar dessa cartografia, que desenha um panorama laboral nefasto, o presente estudo cairia em uma armadilha ingênua se considerasse que o humano está totalmente sujeitado às exigências do trabalho imaterial, tal como difundido de maneira ameaçadora pelo mercado de trabalho contemporâneo. O risco, nesse caso, seria o de desconsiderar a potência do trabalhador e sair ingenuamente advogando em sua defesa, colocando-o no lugar de vítima. Vale considerar que a potência de afetar e ser afetado, como já dito, não se dobra a uma prescrição, treinamento ou controle. Assim, a "espontaneidade rebelde", mencionada por Deleuze (1992, p. 218), atualiza-se das mais variadas maneiras, colocando em movimento as múltiplas faces das relações de poder, móveis e transitórias, como diria Foucault (1998), que são atualizadas no contexto do trabalho imaterial afetivo.
Se, conforme argumentado até aqui, o ressentimento consolida-se pela restrição da potência para agir diante das experiências cotidianas dos encontros profissionais, cabe identificar quais as saídas micropoliticamente inventadas pelo trabalhador para superação desse tipo de ocorrência e como essa invenção é insistentemente praticada. Existências mínimas, de acordo com Lapoujade (2017), se afirmam e povoam o mundo, ampliando e multifacetando as possibilidades de conjugar os verbos existir e trabalhar. Isso demanda, todavia, uma análise crítica e situada, que desnaturalize as exigências afetivas prescritas que recaem sobre os trabalhadores. Tal análise torna-se árdua quando se busca compreender um tempo histórico que preza pela memória ressentida, com seus desdobramentos em vingança, mágoa e rancor (Pelbart, 2018). Daí a incidência das experiências desgastantes de trabalho, bem como o aumento do índice de afastamento de profissionais por problemas de ordem emocional que assola as organizações. Aquilo que, em um dado momento, foi comemorado como diferencial de mercado (a prescrição de afetos), torna-se, agora, um adversário da produtividade, abrindo espaços para desdobramentos do ressentimento em experiências patogênicas de humilhação, conflitos desnecessários, frustrações e assédio de diferentes tipos.
Considerações Finais
Chegando ao final deste estudo, é notável que algumas demandas feitas para o trabalhador que atua no contexto imaterial, marcadas por valores ligados à competitividade, à qualificação permanente e à adaptação, em certa medida, são alimentadas por forças reativas e ressentidas, como descritas nos estudos de Naffah (1991), Deleuze (2009), Pelbart (2018) e Machado (1985). Cabe, então, questionar como, no cotidiano laboral, engendram-se micropossibilidades de experimentação da variação afetiva e de suas intensificações.
É nesse sentido que o presente trabalho acentua o quanto é precioso reconhecer as práticas de resistências, no plural, que são ensaiadas diante de um cenário capitalista e mercadológico que está cada vez mais insustentável. A resistência é aqui compreendida no sentido de criação, apoio, sustentação e favorecimento daquilo que, por vezes, é evitado e até demonizado pelas relações de trabalho: os afetos em sua dimensão viva, diversa e mutante. Consideram-se os trabalhadores que, longe da mera docilidade, acolhem e exercitam sua potência de afetar e de serem afetados nos encontros profissionais, fazendo fluir os encontros em sua dimensão imprevisível e imponderável.
Retomando os autores por meio dos quais o trabalho imaterial afetivo foi caracterizado, fica evidente que, para eles, ao explorar a força inventiva e relacional do trabalhador, o capitalismo criou um excedente de criação que é incontrolável: o sujeito não apenas coloca sua força vital, relacional e criadora à disposição do mercado como também se apodera dela para estendê-la a campos que estão fora da lógica capitalista do acúmulo, o que, por vezes, gera impasses, resistências e enfrentamentos, os quais dão testemunho da força de vida presente no contexto laboral. A vida insiste, ainda que em um contexto sufocante.
Se, como sustentado no decorrer deste estudo, o ressentimento é um dos grandes riscos colocado em evidência pelo trabalho afetivo (com seus desdobramentos em ódio, sofrimento, adaptacionismo e empobrecimento vital), constata-se que a potência do corpo acionada para os encontros também é investida de poder, e não apenas pelo poder. Trata-se, nesse caso, de um poder da vida, que é inalienável e que está nas mãos do trabalhador, o qual tem condições de fazer das relações laborais um campo vivo de batalha, resistência e tensão. Transitando entre uma existência mais escrava (ressentida e triste) e uma vida mais nobre (potente e alegre), um matiz multifacetado de afetos é experimentado e, sobre essa diversidade, não existe qualquer possibilidade de controle e prescrição.
Este estudo permitiu constatar que o vencedor dessa guerra não está (nem estará) determinado de maneira definitiva. É nesse sentido que a análise empreendida por Deleuze (1992) continua atual: "É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, de submissão a um controle." (p. 218). Entre o ressentimento e a potência dos afetos, abre-se uma lacuna que demanda novos estudos e experimentações micropolíticas sobre o tema das relações com o trabalho. Tais estudos poderiam abordar aspectos sobre como o trabalhador potente emerge a cada situação em que as relações afetivas (e, portanto, variáveis) são apoiadas e experimentadas na diversidade de seus efeitos, redesenhando, de maneira micropolítica, os contornos do trabalho. Surge daí a constatação de que o trabalho imaterial não foi completamente colonizado pelo capitalismo tardio. Ele está imerso em um campo de batalha que é vivo, imprevisível e multifacetado.
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Endereço para correspondência:
Sonia Regina Vargas Mansano
E-mail: mansano@uel.br
Recebido em: 29/12/2018
Revisado em: 04/06/2020
Aceito em: 10/06/2020
Publicado online: 15/10/2020