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Revista Subjetividades
versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.21 no.1 Fortaleza jan./abr. 2021
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i1.e10887
ESTUDOS TEÓRICOS
Freud, a alteridade e as massas: da metapsicologia à ética
Freud, Alterity and the Masses: From Metapsychology to Ethics
Freud, el Alteridad y las Masas: De la Metapsicología a la Ética
Freud, Altérité et les Foules : De la Métapsychologie à l'Éthique
Mauricio Rodrigues de SouzaI; Raphael Santos das MercêsII
IDoutor em Psicologia. Exerce atualmente o cargo de Professor Associado III junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará (Faculdade de Psicologia e Programa de Pós-Gradução em Psicologia)
IIMestrando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal do Pará (UFPA)
RESUMO
O presente trabalho objetiva debater a noção de alteridade em Freud e suas implicações. Para tanto, partiu de uma pesquisa de cunho teórico que privilegiou um texto em particular. Trata-se de Psicologia das Massas e Análise do Eu, o qual, pela via de conceitos metapsicológicos, como os de libido e identificação, traça uma linha de raciocínio sobre a diferença que transita de maneira fluida entre terrenos aparentemente tão díspares quanto aqueles do individual e do coletivo. Em termos de resultados, destaca o quanto a perspectiva freudiana aponta para um eu que se constitui não pela via de algum solipsismo ingênuo e potencialmente deletério, mas a partir das interações que ele inevitavelmente estabelece com outro que se apresenta em uma míriade de imagos bastante variadas. À guisa de conclusão, reafirma tanto a abrangência quanto a importância do deslocamento promovido por Freud em seu trato com a questão da alteridade na medida em que este fornece uma perspectiva suplementar em relação aos discursos correntes, desvelando, assim, níveis mais complexos de sensibilidade acerca da diferença para além da mera referencialidade no interior de teias de sentido predeterminadas.
Palavras-chave: alteridade; pensamento freudiano; psicologia das massas.
ABSTRACT
This paper aims to discuss the notion of alterity in Freud and its implications. For that, it started from theoretical research that privileged a particular text. It is about the Psychology of the Masses and Analysis of the Self, which, by means of meta-psychological concepts, such as those of libido and identification, traces a line of reasoning about the difference that flows fluidly between terrains apparently as disparate as those of the individual and the collective. In terms of results, it highlights how much the Freudian perspective points to a self that is constituted not by means of some naive and potentially harmful solipsism but from the interactions that it inevitably establishes with another that presents itself in a myriad of quite varied images. In conclusion, it reaffirms both the scope and the importance of the displacement promoted by Freud in his deal with the question of alterity as it provides a supplementary perspective concerning current discourses, thus revealing more complex levels of sensitivity about difference beyond mere referentiality within predetermined webs of meaning.
Keywords: alterity; freudian thinking; mass psychology .
RESUMEN
El presente trabajo objetiva debatir la noción de alteridad en Freud y sus implicaciones. Para eso, se inició de una investigación de tipo teórica que privilegió un texto en especial. Se trata de Psicología de las Masas y Análisis del Yo, lo cual, por la vía de conceptos metapsicológicos, como los de libido e identificación, traza una línea de raciocinio sobre la diferencia que transita de manera fluida entre terreno apartadamente tan distintos cuanto aquellos del individuo y del colectivo. En términos de resultados, se enfoca lo cuanto la perspectiva freudiana apunta para un yo que se constituye no por la vía de algún solipsismo ingenuo y potencialmente perjudicial, pero a partir de las interacciones que él inevitablemente establece con otro que se presenta en una miríada de imagos bastante variadas. En conclusión, reafirma tanto el alcance cuanto la importancia del desplazamiento promovido por Freud en su tracto con la cuestión de la alteridad en la medida en que este ofrece una perspectiva suplementar en relación a los discursos corrientes, desvelando, así, niveles más complejos de sensibilidad acerca de la diferencia para allá de simple referencialidad en el interior de telas de sentido predeterminadas.
Palabras clave: alteridad; pensamiento freudiano; psicología de las masas.
RÉSUMÉ
Cette étude vise à débattre de la notion de Altérité chez Freud, bien comme ses implications. Pour cela, nous avons mené une recherche théorique qui favorisait un texte en particulier. Il s'agit de 'Psychologie des Foules et Analyse de Moi', qui, à travers des concepts métapsychologiques, tels que la libido et l'identification, trace une ligne de raisonnement sur la différence qui transite de façon fluide entre des champs apparemment aussi disparates que celles de l'individu et du collectif. En termes de résultats, il met en évidence la mesure dans laquelle la perspective freudienne promeut un "moi" qui n'est pas constitué par le chemin d'un solipsisme naïf et potentiellement délétère. Au contraire, il est construit à partir des interactions, lesquelles sont établies inévitablement avec l'autre, qui se présente dans une myriade d'images très variées. En conclusion, il ne réaffirme pas seulement la couverture et l'importance du déplacement promu par Freud dans ses rapports avec la question de l'altérité. Cela se fait dans la mesure où il offre une perspective supplémentaire par rapport aux discours actuels, en montrant, donc, des niveaux plus complexes de sensibilité à la différence au-delà de la simple référentialité dans les toiles de sens prédéterminées.
Mots-clés: altérité; Pensée freudienne; psychologie des foules.
Conforme o dicionário Houaiss (2001, p. 2093), o termo "outro" significa: "...algo ou alguém, cuja referência indefinida encontra-se fora do âmbito do falante e do ouvinte, e que se contrapõe, implícita ou explicitamente, a algo ou alguém conhecido (...) distinto, diferente". Podemos subentender daí também a palavra "alteridade" que, de acordo com o mesmo dicionário, refere-se à: "...natureza ou condição do que é outro, do que é distinto" (2001, p. 169). A ideia praticamente não se modifica se consultarmos, por exemplo, o Dicionário Aurélio (Ferreira, 2009), no qual alteridade significa a "qualidade do que é outro" (p. 105) e o substantivo "outro" aparece em síntese como: "...diferente de pessoa ou coisa especificada" (p. 1458).
Nessas definições, que definitivamente não esgotam a imprevisível diversidade com que utilizamos os artifícios da linguagem no dia a dia, identificamos a formalização de um aspecto muito importante à constituição da nossa realidade simbólica: trata-se da relação que estabelecemos com outros sujeitos. Podemos supor que essas definições reportem ao domínio daquele registro do saber que usualmente denominamos "senso comum"1. Portanto, a um sistema cultural oriundo de certa deliberação acerca do mundo. No caso aqui avaliado, como aprofundaremos mais adiante, entendemos que tais formalizações de fato sugerem certo perspectivismo na delimitação da noção imediata de alteridade. No entanto não apontam para a íntima relação que esta mantém com o seu oposto.
Uma abordagem alternativa a esse tratamento, que enfatiza nos componentes da referida relação os seus atributos estanques, aparece ao considerarmos a possibilidade de que, uma vez discriminada uma estrutura psíquica tal como a que proporciona a sensação imediata do nosso eu, fôssemos compelidos a direcionar nossa atenção aos contornos que a delimitam em relação a tudo o que seja percebido como diferença. Ou o contrário: a delimitação do "diferente" desvelando, ao mesmo tempo, o estatuto do "mesmo". Nesse sentido, a experiência com a alteridade nos remeteria, ao menos potencialmente, a uma simultânea tomada de consciência sobre nós mesmos e vice-versa, resultando daí que as noções de eu e outro passam a se articular muito menos por exclusão do que por complementaridade, o que não significa a abolição de eventuais conflitos.
Para uma exploração mais aprofundada dessa alternativa, a psicanálise se nos apresenta como um privilegiado instrumento de análise. Primeiramente, por sua tendência a valorizar pensamentos não exclusivistas, abalando as espessas muralhas construídas pelo hábito e pela tradição, cuja tendência é a compartimentalização e o pensamento binário2. Elia (2010) situa essa abordagem - que não se limita nem ao senso comum, nem ao saber da erudição - no campo de um "senso incomum" que, sem desqualificar de todo as concepções correntes, procura, em alguma medida, superá-las ao apontar os seus fundos falsos, trazendo à tona a possibilidade da produção de novos sentidos sobre os temas discutidos. Ademais, essa perspectiva contribui para o estabelecimento de uma noção de sujeito que se estrutura por meio das suas experiências com os outros que o cercam - e que, com efeito, também o habitam -, conforme o modelo clínico da transferência (Souza, 2015).
Apesar de não haver sido abordada de maneira direta e sistematizada por Freud, a questão da alteridade acompanhou desde o início a elaboração de sua psicanálise. Com o propósito de expressar alguns aspectos dessa trajetória, Scharinger e Chatelard (2010) sobrevoam as categorias e conceitos freudianos, apontando em cada caso a insistente presença dessa problemática para concluírem que o sujeito: "(...) depende de outrem quando nasce, se vincula as pessoas e a cultura, se apaixona, se identifica" e, nesse espírito, "(...) está a todo tempo lidando com um dentro e um fora, com aquilo que é eu e aquilo que é outro" (p. 401).
É com base em uma proposta semelhante que o presente trabalho, de cunho eminentemente teórico e pautado em uma revisão bibliográfica e comparativa, procura sua direção, qual seja, a de retomar alguns dos pontos em que a alteridade se apresenta como figura constituinte da psicanálise, em particular no pensamento de Freud, para daí estabelecer comparações entre si e a lógica aqui representada pelo que dizem os dicionários, pautada por um viés excludente. Apostamos que, para além de sua contribuição ao campo de estudos sobre a teoria psicanalítica, espaço marcado por uma concepção de sujeito dividido, que não faz unidade consigo mesmo, nossos esforços adquirem ainda mais valor diante do cenário sociopolítico do Brasil atual, onde se intensificam polarizações e antagonismos aparentemente irreconciliáveis, dos quais certas agendas políticas - sobretudo a de uma extrema-direita autoritária, associada a elementos de um ultraliberalismo voraz - vêm se aproveitando sobremaneira.
Desse modo, ao propormos, no tocante ao problema do outro, a avaliação do contraste entre o senso comum, o senso das concepções e usos normalizados e o saber psicanalítico, tencionamos derivar eventuais alternativas éticas e compreensivas que possam tomar o conflito não em sua mais popular conotação de elemento indesejável a ser rechaçado, mas em sua positividade enquanto potencial articulador de diferentes formas de se estabelecer o diálogo e a convivência. Trata-se, a bem da verdade, de uma enorme tarefa, ainda mais se considerarmos: 1) a magnitude do tema; 2) o fato do problema das diferenças se apresentar não de maneira condensada, mas direta ou indiretamente espalhado em variados textos da obra freudiana; e 3) finalmente, o limitado espaço do qual dispomos em um único artigo. De qualquer forma, mesmo que as páginas seguintes fatalmente escancarem a sua inevitável incompletude, acreditamos que vale a pena o desafio, um desafio marcado não por qualquer tipo de pretensão em termos de respostas ortopédicas ou do tipo prêt-à-porter, mas pelas cores da provocação e da crítica.
Ao estabelecermos as ponderações acima, é bem certo que também adotamos aqui alguns necessários recortes metodológicos, de maneira que nosso enfoque incidirá sobre um texto de Freud (1921/2011) em específico. Trata-se de Psicologia das massas e análise do eu, dada a sua inequívoca articulação com a temática da alteridade e da condição ético-política do humano. A análise desse escrito será complementada por referências a trabalhos outros, tanto do próprio Freud quanto de estudiosos e comentadores de sua obra, tais como Adorno (2015), Horkheimer e Adorno (1956/1973), Enriquez (1999), Lothane (2006) e Jonsson (2013).
Assim, uma vez apresentados o nosso objetivo, o objeto de estudo e a perspectiva teórica e metodológica, situaremos agora o referido texto freudiano, de 1921, no contexto do debate que se desenrolava nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, em um campo controverso em que disciplinas, àquela época ainda incipientes - dentre elas, a própria psicanálise -, se agitavam em torno do fenômeno que, em um primeiro momento, foi referido como "multidões" e, posteriormente, passou a ser aludido como "massas". Como bem nos adverte Penna (2014), tratamos de um contexto e de uma problemática que remetem diretamente a quanto o advento da modernidade trouxe consigo uma série de eventos cujas consequências políticas e econômicas reverberaram profundamente no curso dos últimos séculos, destacando-se aí a Revolução Americana, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial na Grã-Bretanha.
A Psicologia das Multidões do Fim do Século XIX e Início do Século XX
Antes mesmo de serem formalizadas como objeto de estudo acadêmico, as multidões tiveram seus primeiros registros consagrados por artistas em geral, sobretudo pelos escritores. Estes foram os casos de Charles Baudelaire e Edgar Allan Poe, em cujas obras as multidões foram direta ou indiretamente retratadas em meio a amplas referências às transformações proporcionadas pelo processo de modernização, que então caminhava a passos compridos (Kuster, 2007). Mais especificamente, tal abordagem se associava às novas representações que emergiam sobre a fisiologia e a anatomia das cidades, ao movimento dos campos para o espaço urbano e, nesses termos, aos grandes aglomerados de pessoas que então passavam a vagar solitárias por ruas de exuberância cada vez mais comparável àquela em outros tempos somente atribuída aos elementos paisagísticos da natureza.
É nesse contexto do deslocamento de uma ordem pautada nas noções de coletividade e tradição rumo a outra, secularizada e estabelecida sob as bases de uma grande valorização de princípios como autonomia e liberdade que, como bem lembra Penna (2014), floresce o individualismo moderno. Como resultado de tal processo, adveio uma profunda reestruturação social nos domínios do público e do privado e, com ela, das relações dos sujeitos com as cidades, com a economia, com a saúde, com os outros e, não menos importante, com os seus próprios corpos (Sennet, 2006; 2014).
No entanto não tardaria a que os mesmos mecanismos que alavancaram, de um lado, o solipsismo, a racionalidade e os demais componentes do ideário burguês da época, no seio do qual destacamos acima a sacralidade da figura do indivíduo, fizessem irromper nas ruas os fundamentos de sua própria superação. A propósito, o escrito de Benjamin (1955/1987) sobre a obra de arte no período pós-aurático reflete alguns aspectos essenciais dessa precipitação de figuras de contradição que, a seu modo, opuseram-se ao paradigma individualista que havia pouco se assentara no contexto das sociedades ocidentais. O que se deteriora com a profanação do culto da obra de arte é precisamente o caráter investido daquilo que é único e insubstituível. Ora, é justamente essa heresia que uma ciência das multidões virá denunciar.
Segundo Laclau (2005), os fundamentos dessa ciência - e de toda a carga de preconceito a ela associada - remontam à historiografia de Hyppolite Taine, cujas descrições acerca das turbas que animavam os motins durante a Revolução Francesa marcaram época. O seu surgimento, contudo, já revelaria um avanço com relação às demais concepções correntes no século XIX, as quais, como sustentado por Moscovici (1986), podem ser circunscritas em três tendências principais: 1) as multidões vistas como eventos a-sociais: falha ou ausência de sistema; 2) as multidões vistas como insanas, manifestações patológicas; e 3) as multidões vistas como criminosas.
De qualquer maneira, como desvio, loucura ou criminalidade, o fenômeno acabava circunscrito a segmentos populacionais específicos ou, como se diria em ciências políticas, a bases sociais determinadas - isto é, os marginalizados, os desviantes, os loucos e os criminosos. Nesse sentido, aquilo que se devia, na verdade, às péssimas condições de vida e de trabalho nas cidades era convenientemente essencializado e isolado como um problema pontual, não vinculado ao domínio do social como um todo. Os psicólogos das multidões, entretanto, promoveram um corte fundamental nessas velhas tendências: a partir de suas proposições, todos estariam sujeitos a ceder ao encantamento das multidões.
Dentre os autores mais proeminentes que se debruçaram sobre o referido tema, cabe mencionarmos aqui alguns dos quais aparecem, inclusive, como interlocutores para o debate posteriormente proposto por Freud (1921/2011): como representantes da tradição francesa de pensamento, Le Bon (1995) e Tarde (1888/1993), e, de outro lado, alguns pensadores britânicos altamente influenciados pelas ideias evolucionistas, como são os casos de McDougall (1973) e Trotter (1953). Não obstante as particularidades de cada um, os fundamentos de suas impressões convergiram em aspectos de grande importância na mesma medida em que confluíam com a mentalidade impressionada de seus contemporâneos de classe. Para esses autores, as multidões representavam, primordialmente, um sintoma de involução do espírito e subversão da ordem, da racionalidade e do caráter do indivíduo, o qual, uma vez inserido no coletivo, perderia toda a sua singularidade, tornando-se doravante homogêneo em relação aos demais membros do coletivo, algo manifesto por meio de condutas irracionais, irresponsáveis e impulsivas.
Além disso, cabe destacar a ênfase de Le Bon (1995) e de alguns dos seus contemporâneos em noções como as de sugestão e sugestionabilidade - que em Tarde (1992), mais especificamente, receberiam um tratamento minucioso sob a alcunha de "imitação" -, ambas supostamente bem mais intensificadas nas multidões do que no indivíduo singular. Mesmo quando eram abertas concessões no sentido de reconhecer diferentes graus de organização das multidões, isto não seria possível senão mediante a mimetização, por parte delas, das qualidades e do modo de funcionamento próprio do indivíduo.
Embora conscientes de que muito ainda poderia ser dito acerca dessas obras, faz-se necessário que avancemos rumo à próxima etapa do presente trabalho. Assim, em termos gerais e sintéticos, encerremos este tópico com a perspectiva de que, não obstante o fato de autores como Le Bon (1995) e Tarde (1992) haverem aventado, por exemplo, a possibilidade de as multidões ficarem muito atrás do indivíduo nos assuntos do intelecto, mas à frente deste em matéria de moralidade, a abordagem geral dos psicólogos das multidões do final do século XIX aparece quase que exclusivamente marcada por uma ênfase valorativa de cunho negativo e aristocrático. Diante disso, passemos agora a Freud (1921/2011) e ao seu movimento pendular de, ao mesmo tempo, deferência e crítica contumaz a seus interlocutores sobre o tema.
Aspectos Gerais da Psicologia das Massas de Sigmund Freud
O texto de Freud (1921/2011) procura, em princípio, estabelecer um diálogo com alguns dos trabalhos mais relevantes que o precederam acerca do tema das multidões. Nesse sentido, articula de forma peculiar as ideias contidas nas obras de seus interlocutores, para só então oferecer a sua própria contribuição, operando a partir de conceitos oriundos da teoria psicanalítica que, desde a virada do século, aos poucos vinha se desenvolvendo. No curso desse empreendimento, certas teses foram convalidadas, mesmo que não sem significativas ressalvas e modulações. Por exemplo, tomemos a princípio o pressuposto básico de que existiriam circunstâncias especiais mediante as quais o indivíduo sofreria alterações em seu modo de pensar, sentir e agir, sendo uma dessas circunstâncias especiais a inserção no que, a partir de então, passa a ser referido como uma "massa psicológica":
Se a psicologia que procura as disposições, os impulsos instintuais, os motivos, as intenções do indivíduo nas suas ações e nas relações com os mais próximos tivesse cumprido cabalmente a sua tarefa e tornado transparentes todos esses nexos, depararia subitamente com um problema novo, não resolvido. Teria de explicar o fato de que esse indivíduo, que se tornara compreensível para ela, em determinada condição pensa, sente e age de modo completamente distinto do esperado, e esta condição é seu alinhamento numa multidão que adquiriu a característica de uma "massa psicológica". (Freud, 1921/2011, p. 17)
Segundo Horkheimer e Adorno (1956/1973), a retomada freudiana da temática das massas não somente a emancipou de sua ambiguidade política e, com ela, do desprezo ideológico com que vinha sendo trabalhada até então, como possibilitou uma importante problematização da própria ideia de indivíduo enquanto entidade psicológica individual supostamente autônoma. E o fez ao chamar a atenção para o mau uso da noção de sugestão por parte dos autores da época, conceito que, além de funcionar como panaceia explicativa, demandaria para si mesmo uma explicação mais convincente. É assim que, no caso do pensamento freudiano, sua ocorrência se condiciona a uma série de processos anteriores e referentes, por exemplo, às ideias de libido e de identificação, sendo reconhecida em tal movimento, ao mesmo tempo, a existência de diferentes tipos de massa e de mecanismos similares e elementares que subjazeriam cada uma delas.
Tais mecanismos dizem respeito às relações de amor que são construídas por e entre os membros do grupo e seus líderes ou ideais. Conforme sugerido acima, para entendermos melhor o significado desse "amor" será preciso recorrer ao conceito de libido tal como apresentado em Psicologia das massas e análise do eu:
Assim denominamos a energia, tomada como grandeza quantitativa (...) desses instintos relacionados com tudo aquilo que pode ser abrangido pela palavra 'amor'. O que constitui o âmago do que chamamos amor é, naturalmente, o que em geral se designa como amor e é cantado pelos poetas, o amor entre os sexos para fins de união sexual. Mas não separamos disso o que partilha igualmente o nome de amor, de um lado o amor a si mesmo, do outro o amor aos pais e aos filhos, a amizade e o amor aos seres humanos em geral, e também a dedicação a objetos concretos e a ideias abstratas. (...) todas essas tendências seriam expressão dos mesmos impulsos instintuais que nas relações entre os sexos impelem à união sexual, e que em outras circunstâncias são afastados dessa meta sexual ou impedidos de alcançá-la, mas sempre conservam bastante da sua natureza original. (Freud, 1921/2011, p. 43)
Além das ressalvas ao abuso do conceito de sugestão e seus correlatos, Freud (1921/2011) problematiza a pouca precisão com que seus interlocutores haviam avaliado a importância do líder para a coesão da massa. Para ele, não obstante as comparações que tanto Le Bon (1995) quanto Tarde (1888/1993) haviam feito entre as multidões e o fenômeno da hipnose, nenhum dos dois tivera a perspicácia de derivar daí o elemento analógico ao hipnotizador no processo de formação de grupos, o qual equivaleria à figura do líder3. Ainda de acordo com Freud (1921/2011), uma vez na massa o sujeito estaria exposto a uma série de: "...condições que lhe permitem se livrar das repressões dos seus impulsos instintivos inconscientes" (p. 21), com o inconsciente se organizando de uma maneira consideravelmente diferente daquela proposta por Le Bon (1995), uma vez que o autor francês havia levado em conta apenas - e, ainda, de maneira distorcida e racista - a sua dimensão filogenética, negligenciando a função estruturante do princípio do recalque.
Freud (1921/2011) utiliza, então, duas massas artificiais e organizadas como exemplos privilegiados para sua análise: a igreja e o exército. Sua coesão se daria na medida em que: "(...) cada indivíduo se acha ligado libidinalmente ao líder (...), por um lado, e aos outros indivíduos da massa, por outro" (p. 49). No escrutínio dessas formações de grupo, fica evidente que, no caso do exército, a identificação com o líder é motivo de coação e constrangimento, enquanto na massa dos religiosos a identificação com a figura de Cristo é tanto impossível quanto incentivada. No que diz respeito a essa diferença, pode-se facilmente conjeturar o papel do fator "possibilidade" no tocante à sua determinação.
Em todo caso, o que observamos nesse esforço descritivo é que, apesar de existirem diferentes maneiras de a massa se configurar, o tipo de nexo entre os indivíduos que, em última instância, a compõem se torna possível por causa de uma identificação mútua intermediada pelo amor a um terceiro objeto, um objeto em comum. No caso, um líder ou ideal, com a submissão a ele se devendo à substituição de parte do Ideal do Eu por tal figura. Com efeito: "Uma massa primária desse tipo é uma quantidade de indivíduos que puseram um único objeto no lugar de seu ideal do Eu e, em consequência, identificaram-se uns com os outros em seu Eu" (p. 76).
Concluímos daí que, na perspectiva de Freud (1921/2011), a manutenção da massa se deve à ação de mecanismos psíquicos, tais como a identificação, a capacidade de realizar investimentos objetais e, portanto, ligações libidinais, à diferenciação da instância aqui chamada de Ideal do Eu e, por fim, à ação das pulsões inibidas em sua meta, aquelas que foram desviadas de suas finalidades diretamente sexuais. Quanto a estas últimas, elas aparecem situadas como responsáveis pela consolidação de laços mais duradouros, porquanto o amor sensual, por si só, estivesse destinado a se extinguir após satisfeito. Como é possível notar, toda essa série de conceitos impõe uma travessia pelos campos da alteridade na medida em que remete a relações diretas do sujeito com os outros que o cercam e que, doravante, passam a lhe constituir. É o que veremos a seguir.
A Psicologia das Massas Freudiana e a Questão da Alteridade
O parágrafo com que Freud (1921/2011) introduz sua discussão acerca das massas estabelece uma via particular que não se limita à oposição reducionismo versus antirreducionismo, minimizando, assim, a importância de toda e qualquer oposição que pretenda traçar uma linha definitiva entre psicologia individual e social. Relembrá-lo nos seus próprios termos se torna, portanto, imperativo frente aos nossos objetivos aqui:
É certo que a psicologia individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos pelos quais ele busca obter a satisfação de seus impulsos instintuais, mas ela raramente, apenas em condições excepcionais, pode abstrair das relações deste ser particular com os outros indivíduos. (Freud, 1921/2011, p. 14)
Essa proposição, que instaura uma relação de continuidade entre domínios que, até então, eram costumeiramente pensados em separado, desencadeou uma série de consequências importantíssimas no tocante ao estudo da temática das massas, com o psiquismo passando a se situar e a se constituir em contextos sociais nos quais se desenvolvem relações as mais diversas possíveis. E isto sob um paradigma profundamente marcado pela presença do outro enquanto diferença. Mas, podemos nos perguntar, qual a natureza dessas relações que o indivíduo estabelece com os outros que o cercam e de que maneira essas relações são desdobradas no pensamento freudiano? E ainda: que "condições excepcionais" são essas cuja peculiaridade anula ou ignora completamente a presença do outro para o sujeito, se é que, nesse caso, podemos falar de um sujeito? Essas questões são mais bem trabalhadas no decorrer do texto, em que fica estabelecido um contraponto não necessariamente excludente entre dois tipos de fenômenos: os sociais e os narcísicos.
A fim de responder à primeira pergunta acima, o foco da argumentação de Freud (1921/2011) recai sobre quatro modalidades de relação por meio das quais a alteridade interagiria com a psique: o outro como modelo - pressupondo-se aqui que o sujeito está inserido em uma lógica normativa, sendo capaz de se identificar; o outro como objeto, mediante a mobilização de investimentos libidinais; o outro como auxiliador; e, finalmente, o outro como adversário. Já no que se refere aos processos de ordem narcísica excepcionalmente capazes de minimizar o aparecimento da alteridade no registro psíquico, vale a pena acompanharmos de perto a seguinte reflexão de Enriquez (1999, p. 54):
(...) podemos formular a seguinte hipótese: existe algo irredutível à presença do 'outro', quaisquer que sejam a influência e a importância dos 'outros' específicos: a sexualização do ego, acarretando a possibilidade de seu investimento megalomaníaco, seu funcionamento tanto como agente da loucura como da razão que se inclina a alianças com a pulsão de morte (que visa o desejo do não-desejo).
De todo modo, uma relação alteritária é colocada já de início por Freud (1921/2011) como fator determinante para o desenvolvimento do sujeito, ainda que possam haver outras coisas em jogo. E isto não apenas no contato desse mesmo sujeito com o que usualmente chamamos de "realidade externa", mas também pela via de uma experienciação da diferença no nível "interno". Psicologia das massas e análise do eu nos traz diversas passagens que podem ser aplicadas nesse sentido. No que se refere à dimensão "interna", destacam-se como exemplos privilegiados as alterações positivas e negativas propostas pelo texto para o sujeito no interior da massa. Nelas fica evidente como, por mais "cultivada" ou "prudente" que seja uma pessoa, existirão sempre certas circunstâncias capazes de trazer à tona aspectos seus que normalmente estiveram ocultos e que podem ou não ser socialmente valorizados. O que se verifica aqui é a intrusão de um aspecto irracional - isto é, não reconhecido pelos esforços de fazer unidade do eu consciente - que se apresenta não como expressão de um vínculo patológico ou desviante, e sim como desdobramento das potencialidades contidas na amarração do próprio laço social, tomado em sua inerente ambiguidade.
Como é possível notar, o debate se desloca aqui para o conflituoso campo de interseção entre sujeito e cultura. Seguindo essa perspectiva, o indivíduo moderno, que pertence a diferentes massas ao mesmo tempo sem que qualquer reunião ou aproximação física seja de todo necessária, acabaria se deparando com sua própria condição de alienação. Esta última, referimo-la nos termos em que Estevão (2016) a discute: como impossibilidade de a linguagem representar a totalidade, o que se reflete sobre a condição sob a qual o eu se estrutura feito "miragem estabelecida a partir do outro" (p. 131).
Já quanto à dimensão externa do diálogo entre eu e outro, podemos evocar, de um lado, a ligação libidinal na qual se enreda a figura do líder ou o ideal, estrutura que faz a mediação do processo de identificação com os demais membros da massa. E, de outro, os afetos de ódio e aversão dirigidos em maior ou menor grau aos membros de outros grupos, considerados elementos exteriores, que mantêm a coesão da massa a partir de uma referencialidade negativa. Essa circunstância libidinal se sucede a fim de que, a partir da suspensão do narcisismo das pequenas diferenças - do qual falaremos melhor mais adiante -, o sujeito atualize a sua fantasia de unidade, de plenitude, estabelecendo a devida proteção contra a multiplicidade de referenciais com que se inaugura a modernidade. Segundo argumenta Adorno (2015), esse processo nos constrange no ato da eleição de narrativas que promovam o fechamento de certa mítica individual, cuja estrutura é a mesma que se atualiza na fantasia de unidade do grupo. A agressividade dirigida para fora impede que a ilusão seja quebrada e que a diferença eleita ao papel de marcadora do limite transpareça em seu aspecto fundamentalmente inquietante.
Não obstante essa separação entre interno e externo - em termos freudianos, como já dissemos, algo mais didático que factual -, a tônica que subjaz nas páginas de Psicologia das massas e análise do eu reivindica justamente a condição de contínua permeabilidade entre a fronteira que separa o "indivíduo" e a sociedade, o interno e o externo. Por derivação, como sabiamente aponta Lothane (2006), o alcance das palavras de Freud (1921/2011) redefine a psicanálise e a psicologia social no campo da conduta, e não da condição, ou seja, circunscreve-as no quadro das interações sociais.
Diante disso, cabe ressaltarmos mais uma vez o quanto, no âmbito da obra aqui escrutinada, o esforço de Freud (1921/2011) objetiva a compreensão do desenvolvimento do sujeito e da formação da sociedade a uma só vez, amparando-se no postulado de uma equivalência fundamental entre os processos de constituição de ambos, em um tipo de pensamento que nos obriga a ir sempre de um a outro (Jonsson, 2013). Incide aqui o papel fundamental conferido por Freud (1921/2011) à noção de identificação, a mais antiga ligação afetiva com outra pessoa, uma ligação permeada por um processo que: "(...) empenha-se em tornar o próprio Eu à semelhança daquele tomado por modelo" (Freud, 1921/2011, p. 62).
Na verdade, em cada uma das construções conceituais operadas por Freud (1921/2011) a fim de lançar luz sobre a questão da psicologia das massas e, na mesma medida, sobre uma análise da constituição do eu: 1) está pressuposto um tipo de experiência ambígua com a alteridade; 2) nela, o interpersonalismo intrínseco ao método psicanalítico corresponde ao modo de funcionamento da vida psíquica dos sujeito, quer seja visto de maneira isolada, quer seja visto em comunidade, como argumenta Lothane (2006). Tal ambiguidade pode ser melhor compreendida ao reconhecermos o valor para toda essa discussão do conceito de narcisismo das pequenas diferenças, o qual, em um primeiro momento, remeteu a certo tabu de isolamento pessoal (Freud, 1918/2013) para, em seguida, reaparecer na compreensão freudiana das massas como operador de uma questão fundamental. A saber, aquela do manejo da intolerância à diferença.
Como bem destacam autores como Fuks (2007) e Reino e Endo (2012), deriva-se dessa mesma desconfiança frente ao outro uma série de negações que podem ser atribuídas à recusa pelo sujeito da sua própria castração. Nesse sentido, podemos interpretar o julgamento da diferença como ameaça ao eu conforme o expediente de uma incessante procura por plenitude, por fechamento ou, conforme Castoriadis (2004), por um sentido que de preferência não se defronte com o inacessível, com o absurdo, com essas áreas opacas representadas, por exemplo, pelo desejo do outro. Por outro lado, interessa aos nossos propósitos aqui destacar o quanto essa mesma intolerância desaparece temporariamente no interior de uma massa, com o amor de si encontrando seus limites no amor aos demais participantes. Nos termos de Freud (1921/2011):
Nas relações sexuais entre os homens ocorre o mesmo que a investigação psicanalítica descobriu sobre o desenvolvimento da libido individual. A libido se apoia na satisfação das grandes necessidades vitais e escolhe como seus primeiros objetos as pessoas que nela participam. Tal como no indivíduo, também no desenvolvimento da humanidade inteira é o amor que atua como fator cultural, no sentido de uma mudança do egoísmo em altruísmo. (Freud, 1921/2011, p. 59)
Assim, seguindo o mesmo Freud (1921/2011), ainda que certas vias interpretativas possam nos conduzir a uma concepção tal que sugira haver uma espécie de prontidão para o ódio entre os seres humanos, é preciso estar ciente de que a suspensão ou a supressão dos impulsos relativos a essa prontidão também são uma realidade, seja no caso do sujeito isolado, seja inserido em uma multidão. Nesse sentido, por mais tentador que possa ser naturalizar a crueldade humana como uma característica primitiva à qual todos estaríamos estruturalmente subordinados, não devemos fazê-lo sem levar em conta os mecanismos psíquicos que podem ser mobilizados no sentido de refreá-la, interrompendo assim, ao menos momentaneamente, o ciclo de barbárie ao qual insistimos em retornar de tempos em tempos.
Resulta, portanto, da escolha de Freud (1921/2011) por abordar a temática das massas, articulando-a ao arcabouço conceitual da psicanálise, a possibilidade de integração das suas ideias a uma evidente problemática de ordem política4. Por esse ângulo, acrescenta Penna (1994), a preocupação freudiana estaria direcionada a como o sujeito suporta a sociedade e, em contrapartida, como a sociedade o suporta. Ou, dito de forma distinta, de que maneira se estabelece esse jogo de forças cujo começo e o fim parecem encobertos pela bruma de velhas mitologias e de fantásticas superstições. Não sem razão, figura em destaque em Psicologia das massas e análise do eu a alegoria dos porcos-espinhos, outrora utilizada por Schopenhauer, a qual caracteriza a sociedade como uma associação compulsória marcada pela ambiguidade constituinte das relações humanas, sobretudo as mais íntimas, em cujos fundamentos residiria um insolúvel conflito.
Durante sua argumentação, Freud (1921/2011) chega a afirmar que a psicologia das massas é mais antiga que a psicologia individual, mas imediatamente se retrata, considerando que ambas estiveram sempre em situação de coexistência. Quanto a isto, remete-se a Totem e Tabu para caracterizar a primeira (ou seja, a psicologia das massas) como sendo a condição em que se encontrariam os irmãos da horda primeva, ao passo que a psicologia individual representaria o Urvater, o chefe ou líder do grupo, que gozaria da plena liberdade, física e moral. Não faltariam ocasiões, porém, em que as atribuições feitas à psicologia individual poderiam ser, de alguma maneira, aplicadas à psicologia das massas ou social.
De volta a um argumento central para o presente artigo, o que mais uma vez ressaltamos é como os conceitos operados por Freud (1921/2011) a fim de elucidar o fenômeno das massas e a constituição do eu - a saber, aqueles de identificação, libido, ideal do eu, etc. -, bem como a maneira como estes se articulam, destacam a alteridade como motivo recorrente e estruturante de seu pensamento. Nesses termos, como modelo, objeto, auxiliador ou adversário, o outro, real ou introjetado, aparece constantemente presente no registro psíquico de cada um - cada um que, sendo-o sob tais circunstâncias, é vários outros mesmo sem sabê-lo. Temos, portanto, que os mesmos mecanismos atribuídos à conformação do eu podem ser, com poucas ressalvas, extrapolados à especificidade da conformação da massa, com um trânsito constante entre o eu e as figuras representativas da alteridade.
Dessa forma, conforme outrora assinalado por Kristeva (1994), Birman (2000), Koltai (2000) e, mais recentemente, Souza (2015), além de valorizarmos a psicanálise como uma ética pautada no reconhecimento do estranho de nós mesmos, cabe enfatizarmos o alinhamento do saber inaugurado por Freud em relação a uma crítica à própria condição moderna, o que de pronto evidencia a importância e a atualidade de sua proposta. Isto por propositalmente passar ao largo do binarismo de supostas relações de mera oposição entre eu e outro, indivíduo e massa, aproximando essas noções para desvelar não uma diferença essencial e radical que as delimitasse rigorosamente, mas a sua inequívoca imbricação.
Considerações Finais
Nas seções anteriores construímos uma trilha argumentativa que teve início com a exposição e análise dos termos "outro" e "alteridade", tal como aparecem em dois dos mais respeitados dicionários contemporâneos de língua portuguesa. Tomamos tais elucidações metalinguísticas por seu valor heurístico na medida em que expressam formalizações de uma rede de significados que remete a uma concepção particular de senso comum. Em seguida, ainda no tocante à problemática da diferença, exploramos certa variação sobre o tema, cujos fundamentos remontam à teoria psicanalítica, circunscrevendo nossa atenção particularmente a algumas das principais ideias apresentadas por Freud (1921/2011) em Psicologia das massas e análise do eu.
Grosso modo, nosso objetivo aqui foi o de desdobrar de que maneiras a psicanálise pode contribuir com deslocamentos mais criativos em relação ao entendimento que normalmente fazemos da alteridade. Nesses termos, destacamos o quanto o postulado freudiano acerca de certa linha de continuidade entre a psicologia individual e a social, assim como os conceitos e temáticas implicados na compreensão de ambos os terrenos - tais como identificação, pulsão, sexualidade, libido etc. -, apontam para um eu que se constitui não pela via de algum solipsismo ao mesmo tempo ingênuo e potencialmente deletério, já que excludente ou exclusivista, mas a partir das interações que inevitavelmente estabelece com um outro que se apresenta em imagos tão variadas quanto as de modelo, objeto, auxiliar, adversário etc.
Então, como espécie de corolário de um círculo argumentativo, encerramos agora com uma reafirmação tanto da abrangência quanto da importância do deslocamento promovido pelo pensamento freudiano no seu trato com o outro. Em que direção? Bem, naquela de fornecer uma perspectiva suplementar em relação aos discursos correntes, desvelando assim níveis mais complexos de sensibilidade acerca da diferença, para além da mera referencialidade no interior de teias de sentido predeterminadas. Isto ocorre na medida em que mistura propositalmente categorias costumeiramente pensadas como irremediavelmente antagônicas, como as de eu e outro, familiar e estranho, favorecendo com tal movimento que transpareçam com maior dose de nitidez os nexos interrelacionais que as constituem mutuamente. Leia-se também: que nos constituem mutuamente.
Conforme sugerimos desde o título do presente trabalho, as implicações dessa reconfiguração não são nada desprezíveis, tanto em termos metapsicológicos quanto éticos, especialmente se considerarmos os desafios representados pelas variadas emergências e demandas de cunho humanitário que a atualidade nos tem imposto com tanta frequência. Particularmente, em países como o Brasil, atravessado por discursos de supremacia identitária que, associados ao ódio, ao preconceito e a uma severa polarização política e religiosa que separa a população em categorias estanques, como "cidadãos de bem" e "bandidos", "patriotas" e "comunistas", "pessoas de Deus" e "do mundo", contribuem, de maneira mais ou menos direta, para a naturalização de perniciosas ações efetivas de exclusão e/ou extermínio.
Diante desse quadro, cabe apostarmos no valor da ética da alteridade proposta pela psicanálise, a qual, ao incluir em suas fileiras o estranho que nos habita e, no mesmo movimento, redimensionar a nossa compreensão da subjetividade como intersubjetividade, convida-nos a relações menos arbitrárias e mais tolerantes com as diferenças. Em assim procedendo, convoca-nos ainda a, deixando de lado zonas de conforto por vezes há muito estabelecidas, implicarmo-nos, tanto como profissionais do universo psi quanto na qualidade de brasileiros, na construção de barreiras simbólicas mais sólidas frente as sempre renovadas ameaças impostas pela barbárie.
Referências
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Endereço para correspondência:
Mauricio Rodrigues de Souza
E-mail: mrsouza@ufpa.br
Raphael Santos das Mercês
E-mail: raphaelmerces@gmail.com
Recebido em: 03/05/2020
Revisado em: 09/11/2020
Aceito em: 29/12/2020
Publicado online: 29/04/2021
1 Para maiores aprofundamentos acerca dos usos dessa expressão e da sua relação com a filosofia e áreas afins, sugerimos consultar Cassin, (2014).
2 Reconhecemos a ocorrência de uma imbricação entre certas ideias psicanalíticas e a cultura ocidental, sobretudo a partir das décadas de 1940 e 1950 do século passado, questão esta que pode ser aprofundada com a leitura de Parker (1997). No entanto, para os fins aqui estabelecidos, será suficiente delimitarmos os marcos diferenciais entre uma apreciação propriamente psicanalítica e a que pudemos depreender das definições oficiais presentes nos dicionários populares.
3 Sobre essa questão, é válido ressaltar que, para Freud, os fenômenos da hipnose e da formação de massa são equivalentes. A hipnose inclusive chega a ser referida como uma formação de massa a dois, o que indica a peculiaridade do pensamento freudiano, que considera o que quer que aconteça na situação de massa como algo que acontece a cada um dos indivíduos que a compõem.
4 É o que sugerem Guimarães e Celes (2007), para quem as considerações freudianas acerca da inserção em uma massa remetem, de um lado, aos móveis inconscientes que influenciam na ocorrência de certas operações psíquicas - por exemplo, processos identificatórios - e, de outro, às vicissitudes (políticas, por exemplo) que têm lugar no meio social.