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Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.21 no.3 Fortaleza sept./Dec. 2021
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i3.e9191
DOSSIÊ: RESILIÊNCIA E DEFICIÊNCIA
Processos de resiliência familiar vivenciados por famílias com uma pessoa com deficiência
Family Resilience Processes Experienced by Families with a Disabled Person
Procesos de Resiliencia Familiar Experimentados por Familias con una Persona con Discapacidad
Processus de Résilience Familiale Vécus par les Familles avec une Personne Handicapée
Mariana Pinheiro Pessoa de Andrade AguiarI; Normanda Araujo de MoraisII
IDoutora em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Assistente Social do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)
IIDocente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Coordenadora do Laboratório de Estudos dos Sistemas Complexos: casais, famílias e comunidades (Lesplexos). Bolsista de Produtividade 1D do CNPq
RESUMO
Este artigo teve como objetivo compreender processos de resiliência vivenciados por famílias que possuem uma pessoa com deficiência. Para tanto, foi realizada uma pesquisa transversal, qualitativa, descritiva e exploratória, cujos participantes foram cinco pessoas com deficiência e seis familiares. Dois deles apresentavam uma deficiência física e os demais apresentavam deficiência intelectual, auditiva e visual. Quanto aos familiares, participaram três mães, uma esposa e dois pais. Ambos foram recrutados por conveniência e responderam a uma entrevista semiestruturada, que foi analisada a partir da análise de conteúdo. Duas categorias de análise emergiram: as adversidades vivenciadas pelas pessoas com deficiência e por seus familiares e os processos de resiliência familiar. Dentre as principais adversidades mencionadas pelos participantes, citam-se o impacto trazido pelo diagnóstico, a mudança de papeis na família e a necessidade de ajustes para garantir o cuidado da pessoa com deficiência, somados às barreiras físicas e atitudinais que vivenciam no seu cotidiano, além da necessidade de fugir da negação da deficiência, bem como da superproteção. Apesar das adversidades citadas, entendeu-se que as famílias entrevistadas utilizaram estratégias particulares e, muitas vezes, bem-sucedidas no enfrentamento das adversidades. Foi possível verificar que a aceitação da deficiência e o convívio com os pares contribuíram para o desenvolvimento de processos de resiliência. Finalmente, constatou-se que a resiliência familiar constitui uma abordagem promissora à pesquisa e intervenção direcionada às pessoas com deficiência e suas famílias, pois rompe com a visão de deficiência enquanto limitação, bem como lança luz sobre as potencialidades de ambas.
Palavras-chave: resiliência familiar; pessoa com deficiência; família; adversidades.
ABSTRACT
This article aims to comprehend resilience processes experienced by families with a disabled person. A transversal, qualitative, descriptive and explanatory research was made with five disabled people, and six of their relatives. Two of them presented a physical deficiency and the others presented intellectual, hearing and vision deficiencies. Regarding the relatives, there were three mothers participating, a wife and two fathers. Both were recruited by convenience and answered a semi-structured interview analyzed through content analysis. Two analysis categories emerged: the adversities experienced by people with deficiency and their relatives and the family resilience processes. Among the adversities mentioned by the participants are the impact due to the diagnosis, the change of roles in the family, and the need for adjustment to guarantee the well-being of the disabled person, added to the physical and attitudinal barriers experienced daily, aside from the need to escape the denial of the deficiency, besides the over protection. Despite the mentioned adversities, it was understood that the interviewed families used specific strategies and many times well succeeded in confronting adversities. It was possible to verify that the acceptance of the deficiency, as well as the interaction with peers contributed to the development of resilience processes. Finally, it was determined that family resilience constitutes a promising approach to research and intervention directed to people with deficiency and their families for it breaks the view of deficiency as a limitation and also projects light into its potentialities.
Keywords: family resilience; people with deficiencies; family; adversities.
RESUMEN
Este trabajo tuvo el objetivo de comprender procesos de resiliencia experimentados por familias que poseen una persona con discapacidad. Para tanto, se realizó una investigación transversal, cualitativa, descriptiva y exploratoria, cuyos participantes fueron cinco personas con discapacidad y seis familiares. Dos de ellos presentaban una discapacidad física y los demás presentaban discapacidad intelectual, auditiva y visual. Cuanto a los familiares, participaron tres madres, una esposa y dos padres. Ambos fueron reclutados por conveniencia y contestaron a una entrevista semiestructurada, que fue analizada a partir del análisis de contenido. Dos categorías de análisis surgieron: las adversidades vividas por las personas con discapacidad y por sus familiares y los procesos de resiliencia familiar. Entre las principales adversidades mencionadas por los participantes, se puede citar el impacto debido al diagnóstico, el cambio de papeles en la familia y la necesidad de ajustes para garantizar el cuidado de la persona con discapacidad, sumados a las barreras físicas y de actitudes que experimentan en su cotidiano, además de la necesidad de huir de la negación de la discapacidad, como también de la excesiva protección. Pese a las adversidades citadas, se entendió que las familias entrevistadas utilizaron estrategias particulares y, muchas veces, bien sucedidas al hacer frente a las adversidades. Fue posible verificar que la aceptación de la discapacidad y la convivencia con los pares contribuyeron para el desarrollo de procesos de resiliencia. Finalmente, se constató que la resiliencia familiar constituye un enfoque promisor a la investigación e intervención dirigidas a las personas con discapacidad y sus familias, pues rompe con la idea de minusvalía como limitación, y lanza luz sobre las potencialidades de ambas.
Palabras clave: resiliencia familiar; persona con discapacidad; familia; adversidades.
RÉSUMÉ
Cet article visait à comprendre les processus de résilience vécus par les familles qui ont une personne en situation de handicap. Par conséquent, une recherche transversale, qualitative, descriptive et exploratoire a été réalisée, dont les participants étaient cinq personnes handicapées et six membres de la famille. Deux d'entre eux avaient un handicap physique et les autres avaient des handicaps intellectuels, auditifs et visuels. Quant aux membres de la famille, trois mères, une épouse et deux pères ont participé. Tous deux ont été recrutés par convenance et ont répondu à un entretien semi-directif, qui a été analysé par analyse de contenu. Deux catégories d'analyses ont émergé : les adversités vécues par les personnes handicapées et leurs familles et les processus de résilience familiale. Parmi les principales adversités mentionnées par les participants, on mentionne l'impact apporté par le diagnostic, le changement des rôles dans la famille et la nécessité d'ajustements pour garantir la prise en charge de la personne en situation de handicap, en plus des barrières physiques et comportementales qu'elles expérience dans leur vie quotidienne, en plus de la nécessité d'échapper au déni du handicap, ainsi qu'à la surprotection. Malgré les adversités susmentionnées, il a été entendu que les familles interrogées utilisaient des stratégies particulières et souvent efficaces pour faire face à l'adversité. Il a été possible de vérifier que l'acceptation du handicap et le fait de vivre avec des pairs contribuaient au développement de processus de résilience. Enfin, il a été constaté que la résilience familiale est une approche prometteuse de recherche et d'intervention auprès des personnes handicapées et de leurs familles, car elle rompt avec la vision du handicap comme une limitation, tout en mettant en lumière le potentiel des deux.
Mots-clés: résilience familiale; handicapé; famille; adversités.
Famílias de variadas configurações podem ter um desenvolvimento saudável, tendo em vista que não é a forma como a família está configurada, mas sim os processos familiares que mais importam para o funcionamento saudável e para a emergência dos processos de resiliência (Walsh, 2005).
Na psicologia, a resiliência foi investigada inicialmente, a nível individual, na tentativa de entender como crianças conseguiam se desenvolver, de forma saudável, apesar da exposição a situações adversas graves, tais como pobreza e transtorno mental dos pais. Tal conceito foi considerado como um atributo inato ou adquirido e as crianças que apresentavam essa característica eram vistas como invulneráveis, capazes de suportar adversidades, sem sofrer qualquer impacto (Rutter, 1993).
A resiliência não significa não sofrer ou ser inatingível ao passar por uma adversidade, mas apesar de sentir a dificuldade, estar apto, mesmo assim, para lançar mão de respostas positivas. Trata-se de uma habilidade de superar adversidades, o que não significa sair da crise ileso (Zimmerman & Arunkumar, 1994). Seguindo pista semelhante Cyrulnik (2002) afirma que a resiliência deve ser entendida como uma capacidade do ser humano em responder a um trauma e de ser feliz, apesar deste ter marcado a sua vida.
Outra característica fundamental da resiliência refere-se ao fato de ela não ser um atributo fixo, mas sim um processo, tendo em vista que há momentos em que uma pessoa pode demonstrar processos de resiliência e em outros não, dependendo das características individuais da própria pessoa, do apoio recebido pela família, dos amigos, assim como da assistência fornecida pelo governo, por meio de políticas públicas (Rutter, 1987). Assim, a abordagem da resiliência familiar visa identificar e fortalecer processos interacionais fundamentais que permitem às famílias resistirem aos desafios desorganizadores da vida, renascendo a partir deles.
No campo das famílias com pessoas com deficiência é escasso o número de pesquisas que investigam os processos de resiliência familiar (e.g. Jorge, Eusebio, & Lopes, 2014; Rooke, 2014; Vasconcellos & Ribeiro, 2010). Os estudos sobre deficiência tendem a enfocar o processo de inclusão na educação (Miranda, 2004) e no trabalho (Neri, Carvalho, & Costilla, 2002), bem como na prática de atividade física (Lehnhard, Manta, & Palma, 2012) e na vivência da sexualidade (Maia, 2011) nesse grupo.
A abordagem da resiliência familiar proporciona estrutura positiva e pragmática que orienta as intervenções para fortalecer a família à medida que os problemas que se apresentam são resolvidos. De acordo com Walsh:
A maneira como uma família enfrenta e lida com uma experiência difícil, resiste ao estresse, se organiza de modo eficiente e segue a vida influenciará a adaptação imediata e a longo prazo de todos os membros da família e a própria sobrevivência e o bem-estar da unidade familiar. (Walsh, 2005, p.14)
A situação da deficiência tende a provocar no sistema familiar diferentes respostas, tal como descreve Garcia (2008, p. 26) que "a resposta frente a uma situação inesperada difere muito entre as pessoas. Alguns se sentem desolados e desesperam-se, outros encontram forças para superar". A convivência do grupo familiar com um membro com deficiência pode ser percebida, inclusive, como resultando em aspectos positivos, pelo fato de que as pessoas se tornam mais tolerantes às diferenças e terminam multiplicando tais concepções de tolerância, igualdade e atitudes positivas com os demais.
Alguns fatores irão influenciar o significado da experiência de adversidade (como a deficiência, por exemplo) em cada família. São eles: a história de cada membro; as situações de conflito atravessadas anteriormente e como foram solucionadas; o sistema de crenças sobre a deficiência; a capacidade de enfrentar situações de mudanças; a existência ou não de um lugar para a pessoa com deficiência dentro do sistema familiar; o nível de expectativas; a capacidade de comunicação do grupo familiar; o nível cultural e socioeconômico da família; a existência ou não de rede de apoio; a capacidade da família de se relacionar com os outros e de buscar ajuda; e a possibilidade de que a família esteja enfrentando uma crise simultânea, seja ao nascimento da criança com deficiência, ou ao acontecimento que gerou a deficiência adquirida - acidente, por exemplo (Messa & Fiamenghi, 2010; Núñez, 2003). Todos esses aspectos, em conjunto, influenciam os processos de superação das adversidades (potencialmente) trazidas pela deficiência e podem favorecer ou dificultar processos de resiliência vividos pelas famílias de pessoas com deficiência.
Para compreender o processo de resiliência familiar, é preciso ter uma visão da família como sistema aberto, em constante interação com instituições outras ao seu redor (escola, trabalho, serviços de saúde, equipamentos da assistência social, lazer etc.). Inclusive, a literatura sobre resiliência familiar tem enfatizado que o enfrentamento das situações de adversidade - e consequentemente a vivência dos processos de resiliência - dependem não apenas da capacidade dos próprios membros da família, mas também dos recursos da comunidade, assim como dos recursos governamentais. Ou seja, dependem também dos amigos, dos parentes, bem como das políticas públicas do governo (Masten & Monn, 2015).
Segundo Walsh (2005), os elementos fundamentais para o desenvolvimento da resiliência familiar estão relacionados a três processos-chave que são: os sistemas de crença familiar, os padrões organizacionais e os processos de comunicação.
O sistema de crenças na resiliência familiar pode ser organizado em três dimensões: a capacidade de extrair sentido na adversidade (torná-la mais fácil de ser suportada, além de poder trazer um novo propósito para a vida da pessoa); o desenvolvimento de uma perspectiva positiva (manter esperança diante da crise permite que os indivíduos usem todos os recursos para superar as adversidades); e a transcendência e a espiritualidade (a espiritualidade compreende um investimento em valores internos que promovem inteireza interior, conexão com os outros, bem como oferecem conforto).
Os padrões organizacionais podem funcionar como amortecedores de choques familiares. Eles têm como fatores constitutivos a flexibilidade (a família deve se adaptar às exigências desenvolvimentais e ambientais em frequente mutação, conexão (apoio mútuo e colaboração); além dos recursos sociais e econômicos (proporcionam informações, serviços concretos, apoio e companhia). É necessário existir uma parceria colaborativa entre os familiares e os profissionais, sendo que para atingi-la é necessário realizar o empoderamento dos familiares, que é obtido através do apoio disponibilizado a eles, tanto o emocional, como também ajudando a adquirir habilidades para participar plenamente na tomada de decisões (Silva & Mendes, 2008).
Por fim, o terceiro processo-chave da resiliência familiar descrito por Walsh (2005) refere-se ao papel dos processos de comunicação. A autora elege alguns elementos que são fundamentais para a concretização de uma boa comunicação entre os membros de uma família. São eles: a clareza (comunicação objetiva e honesta); expressão emocional aberta (empatia mútua, tolerância às diferenças, humor); e a resolução colaborativa dos problemas (conseguem resolver, com eficiência, a maior parte dos problemas; a comunicação, a tomada de decisão e a ação fluem com certa facilidade).
Desse modo, o presente artigo buscou compreender os processos de resiliência familiar vivenciados por famílias que possuem uma pessoa com deficiência. Para atingi-lo, analisaram-se os desafios que a deficiência pode trazer para o sistema familiar e para a própria pessoa, bem como foram explicitadas as estratégias de superação utilizadas pela família, no que se refere ao sistema de crenças, processos organizacionais e comunicacionais (pilares-chave da resiliência familiar). Espera-se que a realização dessa pesquisa possa lançar uma luz importante sobre o tema e motivar o desenvolvimento de pesquisas, bem como de programas e projetos posteriores que considerem as adversidades e processos de resiliência familiar, em famílias com um integrante com deficiência.
Método
Participantes
Foram entrevistadas cinco famílias, sendo cinco pessoas com deficiência e seis familiares dessas pessoas com deficiência. Para cada participante com deficiência, um integrante da família foi entrevistado, com exceção de uma família na qual a mãe e o pai foram entrevistados, pois ambos demonstraram interesse e disponibilidade para participar da pesquisa. Entre as pessoas com deficiência entrevistadas, quatro eram do sexo masculino e uma do sexo feminino. Duas delas tinham deficiência física e as demais tinham deficiência intelectual, auditiva e visual. Entre os familiares, quatro eram do sexo feminino (três mães e uma esposa) e duas do sexo masculino (pais). A idade das pessoas com deficiência variou de 21 a 65 anos; e dos familiares variou de 51 a 69 anos.
Instrumentos
Foram elaborados pelas autoras, especialmente para esse estudo, dois roteiros de entrevistas, sendo um para a pessoa com deficiência e outro para os diferentes integrantes da família que se dispuseram a participar. A intenção foi descrever a trajetória de vida da pessoa com deficiência e da família, além dos desafios trazidos pela deficiência para a família e as estratégias utilizadas pela família para a superação das adversidades.
Procedimentos de Coleta de Dados
As pessoas com deficiência e as famílias participantes desta pesquisa foram recrutadas por conveniência, a partir de convites realizados em algumas instituições (instituição de saúde, universidades, etc.). As cinco primeiras famílias a responderem ao convite foram contactadas e convidadas a participar da pesquisa. As entrevistas ocorreram de dezembro de 2017 a fevereiro de 2018, com gravação de áudio com duração de 40 minutos cada.
Procedimentos de Análise de Dados
Para análise das entrevistas foi utilizada a Análise de Conteúdo de Bardin (1995), cujo processo se organiza em três momentos, a saber: pré-análise, que consiste na leitura minuciosa do material a ser analisado; codificação ou análise temática, que é caracterizada pelo agrupamento das unidades de registro; e, por fim, a categorização ou tratamento dos dados, que visa organizar, classificar e interpretar as unidades de registro significativas. As categorias temáticas foram geradas de forma mista, tanto a priori (considerando os pilares-chave da resiliência familiar descritos por Walsh) quanto a posteriori, com base nas respostas dos participantes.
As entrevistas foram analisadas verticalmente (uma a uma), tendo em vista conhecer a perspectiva de cada participante. Em um segundo momento, após a devida compreensão de cada caso, as entrevistas foram realizadas e analisadas horizontalmente, a fim de identificar semelhanças e diferenças nos relatos (Meletti & Scorsolini-Comin, 2015).
Procedimentos Éticos
O estudo segue as diretrizes na Resolução 466/2012 e a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e, como tal, foi aprovado pelo comitê de ética da instituição de origem das autoras (Parecer 1.994.360). Todos os participantes (pessoas com deficiência e familiares) assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), consentindo sua participação.
Resultados e Discussão
Para maior compreensão deste artigo, organizaram-se os resultados em duas etapas. Na primeira delas, foi feita uma breve caracterização sociodemográfica dos participantes, a fim de facilitar a compreensão dos resultados, conforme a Tabela 1. Posteriormente, foram apresentadas categorias temáticas (adversidades vivenciadas pelas pessoas com deficiência e por seus familiares e processos de resiliência familiar e a deficiência) e as suas subcategorias, que emergiram a partir dos relatos das famílias e que ampliaram a compreensão dos casos, além de iluminar os processos de resiliência familiar presentes nas suas histórias de vida. Ressalta-se que, ao longo da apresentação dos resultados, serão descritas algumas falas de entrevistados, os quais foram identificados com nomes fictícios, a fim de garantir o sigilo da sua identidade.
Adversidades Vivenciadas pelas Pessoas com Deficiência e por seus Familiares
Diferentes desafios vivenciados foram identificados pelas pessoas com deficiência e seus familiares, tais como: a descoberta da deficiência (momento do diagnóstico e estigmatização); os impactos trazidos pela mudança de papeis na família e necessidade de cuidados; as barreiras relacionadas à acessibilidade, às questões atitudinais e à inclusão social da pessoa com deficiência; e, por fim, o desafio quanto às expectativas construídas em relação às pessoas com deficiência, que consiste em escapar dos extremos entre a negação e a superproteção.
A Descoberta da Deficiência
O momento do diagnóstico.
O momento do diagnóstico da deficiência, certamente, não é um momento fácil. Os familiares entrevistados e a literatura mencionam a existência dessa dificuldade, seja porque existiam muitas expectativas com relação à pessoa (filho) que nasce ou adquire a deficiência, seja pela própria falta de conhecimento do que representa a deficiência.
Nesse sentido, Muñoz (2007) destaca que existe, no momento do diagnóstico, uma confusão de sentimentos, às vezes contraditórios. Tal fato pode ocorrer porque a deficiência confronta as expectativas dos familiares que projetam subjetivamente muitos planos para o integrante da família, postergando e abdicando de suas próprias vontades e desejos após a descoberta da deficiência, além da necessidade de uma ressignificação da relação familiar (Fiamenghi & Messa, 2007).
Após o diagnóstico, a família passa por diferentes fases de enfrentamento: (1) fase de choque; (2) fase de negação - em que muitas famílias, após passado um tempo do recebimento da notícia, ignoram o problema ou questionam a veracidade do diagnóstico; (3) fase de reação - em que a família vive uma série de sentimentos (como irritação, culpa e depressão), os quais deve expressar, pois esta fase faz parte dos primeiros passos de uma adaptação; e (4) fase de adaptação - em que se sentem mais calmos, têm uma visão mais prática e realista da situação e procuram se organizar e se orientar na ajuda ao familiar com deficiência (Goitein & Cia, 2011).
A passagem da fase do choque, para a fase da adaptação, entretanto, pode ser dificultada por alguns fatores, tais como pela falta de sensibilidade dos profissionais, bem como pela precariedade das informações fornecidas por estes aos familiares. De fato, a falta de compreensão do diagnóstico e dos cuidados necessários com a pessoa com deficiência pode aumentar as dificuldades no enfrentamento da nova situação, bem como o processo de ajustamento da família (Barbosa, Balieiro, & Pettengill, 2012; Barbosa, Chaud, & Gomes, 2008).
A literatura destaca que a descoberta da deficiência em um ou mais membros da família, que não necessariamente coincide com o nascimento, leva a diferentes aspectos familiares e alterações na dinâmica familiar (Omote, 2003), tendo em vista que a família real ocupa o lugar até então ocupado psiquicamente pela família idealizada. Para que a família elabore bem a nova situação, bem como para que desenvolva suas potencialidades, a fim de conseguir apoiar as pessoas com deficiência, elas precisam também de cuidados, que perpassam o recebimento do diagnóstico de forma clara e humanizada, como também, em alguns casos, o fornecimento de um acompanhamento psicológico.
A estigmatização por conta da deficiência.
O estigma é um termo criado pelos gregos para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava (Goffman, 2008, p. 11). Atualmente, segundo o autor, tal vocábulo é geralmente usado de uma maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal. De acordo com Goffman, logo que conhecemos alguém tratamos de analisá-lo, a sua categoria e os seus atributos, a fim de traçarmos sua identidade pessoal, sempre partindo de uma perspectiva daquilo que é considerado por nós e pela sociedade, de uma forma geral, como normal. Para este autor, normais, nesse sentido, seriam aqueles que não se afastam negativamente das expectativas particulares em questão.
O estigma representa uma marca social que os indivíduos carregam por apresentarem características diversas daquelas padronizadas por uma sociedade. Nesse sentido, o corpo com impedimentos seria estigmatizado e discriminado pelas normas hegemônicas que privilegiam a experiência da não deficiência (Guimarães, 2010).
Conforme Goffman (2008), a estigmatização é quando se faz uma análise depreciativa de alguém que apresente um atributo diferente das expectativas normativas, levando em consideração pré-concepções. A fala abaixo elucida tal situação:
A sociedade que nos vê como pessoa com deficiência, como pessoa que tem defeito, como se tivesse uma falha, algo que tivesse faltando, seria o ouvir né? E diz que a gente era imperfeito. [...] Então esse olhar meio tradicional, né, que a sociedade tem em relação ao surdo com deficiência, em termos gerais, é muito forte né, e, as pessoas pensam que é uma hegemonia né, que todos precisam estar iguais né, mas não sabem que esse período já passou. (Paulo)
Percebe-se, a partir das falas do entrevistado Paulo, toda uma depreciação sentida por ele, na forma como a sociedade vê as pessoas com deficiência. Verifica-se, ainda, a questão da normalização, na medida em que este segmento é sempre comparado ao grupo de pessoas dita como normais e muitas vezes inferiorizado apenas por ser diferente.
Por seu turno, para Diniz e Santos (2010, p. 10), não há corpos naturalmente em desvantagem, mas simplesmente uma ideologia da normalidade que classifica determinados corpos como inferiores a um ideal de produtividade, independência e de vida boa. Inclusive, muitas vezes, é pela anomalia que o ser humano se destaca dos demais. É ela que revela o sentido de uma maneira de ser inteiramente singular. Além disso, a anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicas, mas exprimem outras formas de vida possíveis, já que certas mutações - que podem parecer desvantajosas no meio que habitualmente é próprio a uma espécie - podem se tornar vantajosas, a partir de possíveis variações de condições de vida (Canguilhem, 2015).
Impactos da Deficiência para a Família e para a Pessoa com Deficiência
Tudo o que acontece com alguém da família tende a repercutir, de alguma forma, na própria pessoa, bem como nos demais membros familiares. Além disso, como a família é um sistema aberto, o que acontece no ambiente externo também traz consequência para ela (Minuchin, 1988). Dito isso, é possível compreender que, quando há uma pessoa com deficiência na família, há um impacto para os pais, irmãos, e demais familiares, conforme as características da própria deficiência e das relações estabelecidas na família (Messa & Fiamenghi, 2010; Nunes & Aiello, 2008).
A deficiência pode trazer impactos diferentes para a vida das pessoas com essa característica, bem como para de suas famílias, tendo em vista que suas experiências não são as mesmas, variando de acordo com o tipo de deficiência, e segundo as vivências da própria família. Nesse sentido, destacam-se a fala dos entrevistados Pablo e Renata sobre os impactos trazidos: "O impacto é que eu não posso mais fazer esporte, e não fico mais com ninguém. Foi isso" (Pablo). "A minha deficiência gerou impacto pra todo mundo sim. E foi como eu falei, ninguém sabia que eu ia ser assim. Toda a família, ninguém sabia, foi o meu médico que falou com a minha mãe e com o meu pai que eu nasci síndrome de Down" (Renata).
Os Desafios decorrentes das Mudanças de Papéis na Família
Em uma família, cada membro desempenha algum papel, o qual diz respeito à forma como cada familiar desempenhará a função que lhe compete naquele momento (Wagner, Tronco, & Armani, 2011). Mesmo havendo papeis que são estabelecidos pelos próprios membros das famílias, esses, às vezes, sofrem mudanças devido a possíveis fenômenos na estrutura familiar ou fora dela, como é o caso da questão da deficiência de um de seus integrantes, por exemplo. Nesta pesquisa, tanto as pessoas com deficiência, como os seus familiares relataram a vivência de modificações de papeis, após a constatação de alguma deficiência em um membro da família. A mãe de Renata, por exemplo, referiu ter se ausentado das atividades profissionais por um tempo, a fim de cuidar exclusivamente da filha:
Assim, logo que ela nasceu, foram cinco anos de dedicação exclusiva. É, ficava, era fisioterapia, terapeuta ocupacional, fonoaudióloga. Quinze dias de nascida, a Renata já estava com terapeuta ocupacional. Então, realmente, a gente muda um pouco o ritmo e você vai tentando, né, adequar e ver o que pode ser feito. (Patrícia)
A deficiência pode ter trazido determinadas situações, inclusive de estresse para seus membros, contudo puderam ser percebidas também características de flexibilidade, para mudanças de papéis, a fim de atender às necessidades das pessoas com deficiência.
A necessidade de cuidados.
Tradicionalmente, os cuidados com os filhos recaem mais sobre as mães. No entanto, cada vez mais, os pais estão se envolvendo nos cuidados com os filhos. As mudanças sociais, como a incorporação da mulher ao mercado de trabalho e sua participação maior nas distintas esferas da sociedade, possibilitam relações de gênero mais igualitárias (Muñoz, 2007). Desse modo, o pai encontra-se em um momento de transição, exercendo antigos e novos papeis, e desejam cada vez mais construir uma relação baseada em trocas afetivas com seus filhos, em função de novas demandas e expectativas sociais. Inclusive, nessa pesquisa, há uma grande presença de pais atuantes na vida dos filhos, transbordando a atuação das mães em algumas situações.
Jablonski (1998) afirma que há uma nova cultura da paternidade, a qual é caracterizada por um pai mais presente em termos de envolvimento direto, acessibilidade e responsabilidade. Nesse sentido, o pai de Pablo, Manoel, comentou sobre a participação dele na vida do filho: "Eu tenho que dar atenção a ele toda hora. Tem horas que ele sai do controle né, eu acho que devido ao problema né, e a recuperação é lenta. Aí, tem que tá todo tempo ali, atento". Esta fala representa todo o cuidado que esse pai tem com o filho, procurando estar presente e atento às necessidades que ele possa vir a apresentar.
Para prestar cuidados básicos à pessoa com deficiência e facilitar sua adaptação à limitação que apresenta, o familiar precisa ser auxiliado pelos profissionais da saúde e da educação, de forma a poder desempenhar seu papel de forma instrumentalizada (Matsukura & Yamashiro, 2012; Pintanel, Gomes, & Xavier, 2013). Nem sempre, entretanto, esse apoio é recebido e muitas vezes acontece sem orientação especializada, mas ainda assim se exerce através da boa vontade e afeto do familiar.
A família de uma pessoa com deficiência tende a vivenciar uma sobrecarga adicional em todos os níveis: social, psicológico, financeiro e com relação à demanda de cuidados e reabilitação da pessoa com deficiência (Barbosa et al., 2012; Dessen, 2010). Muitas vezes, o familiar tende a fazer mais pelos familiares com deficiência, do que por si próprios. Desse modo, Muñoz (2007) destaca que, em caso de dependência muito grande entre cuidador e pessoa com deficiência, pode acontecer do cuidador relegar a segundo plano demais aspectos de sua vida, como abandono do trabalho, descuido com os demais membros da família, falta de cuidados consigo. Nesse sentido, estudiosos da área têm apontado para a importância de direcionar atenção não apenas para a pessoa com deficiência, mas também para os diferentes membros da família, bem como para consigo mesmo (Matsukura & Yamashiro, 2012).
As Barreiras Vivenciadas pelas Pessoas com Deficiência e os Desafios para a Inclusão Social
São inúmeras as barreiras que podem ser vivenciadas pelas pessoas com deficiência, variando segundo diversos aspectos, tais como a própria deficiência, o apoio recebido pela família, pela comunidade e pelo poder público, como a questão da acessibilidade. De acordo com Lei Brasileira de Inclusão (Lei n. 13.146, 2015), as barreiras são classificadas em: a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e privados, abertos ao público ou de uso coletivo; b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados; c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios de transportes; d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação; e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas; e f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso da pessoa com deficiência às tecnologias. Nesse estudo os participantes tenderam a relatar a existência de barreiras relacionadas à acessibilidade, às barreiras atitudinais e ao difícil processo de inclusão social das pessoas com deficiência.
A questão da acessibilidade.
Conforme a Lei Brasileira de Inclusão (Lei n. 13.146, 2015), a acessibilidade refere-se à possibilidade e condição de alcance para utilização - com segurança e autonomia - de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, coletivo tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida.
A acessibilidade representa um recurso de grande importância para auxiliar pessoas com deficiência no exercício de sua cidadania (Ponte & Silva, 2015). Ela contribui para possibilitar a inclusão social dessa minoria social, contudo é, muitas vezes, dificultada devido às barreiras existentes.
Barreiras são qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros (Lei n. 13.146, 2015).
Duas pessoas com deficiência abordaram não ter acessibilidade em suas casas. Por sua vez, os familiares não destacaram, em suas falas, esse aspecto diretamente. Nesse sentido, Antônio mencionou que não há acessibilidade em sua residência e destacou que o banheiro dele e da esposa fica em outro andar: "Nosso banheiro... lá em casa é duplex, nosso banheiro é em cima". Assim pode ser que, no futuro, como já é idoso, tenha dificuldade para utilizar o próprio banheiro, já que no imóvel não tem acessibilidade.
As barreiras atitudinais.
As barreiras atitudinais ainda estão muito presentes na sociedade. A maioria das pessoas com deficiência, presente nesse estudo, relatou ter vivenciado tais barreiras. Quanto aos familiares, poucos trataram deste assunto. Ou seja, as barreiras atitudinais representam atitudes ou comportamentos que impedem ou prejudicam a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas (Lei n. 13.146, 2015).
A sociedade pode prejudicar as pessoas com deficiência, quando é preconceituosa, bem como quando as discriminam. Desse modo, o preconceito pode ser definido como uma atitude hostil contra um indivíduo, simplesmente porque ele pertence a um grupo "desvalorizado" socialmente (Allport, 1979). Ainda pode ser classificado como uma atitude negativa dirigida a uma pessoa ou a um grupo, sendo o resultado de comparações sociais. A manifestação comportamental do preconceito é a discriminação, representada por ações para preservar ou criar vantagens de um grupo em detrimento dos membros de outro grupo em comparação (Lima, 2013).
Leonardo destaca que, apesar dos avanços nas questões relacionadas às pessoas com deficiência, o preconceito continua existindo na sociedade através de barreiras atitudinais, ou seja, atitudes preconceituosas, bem como comportamentos discriminatórios.
A questão de deficiência, a questão do preconceito vem diminuindo muito, mas as pessoas ainda não tiveram o convívio com alguém que tem deficiência de forma mais profunda. Então, eu acho que isso atrapalha algum envolvimento amoroso, a pessoa deve achar que isso atrapalha... Será que ele vai dar conta? [...] Eu acho que tem que melhorar a informação para melhorar essas coisas. (Leonardo)
Segundo a fala do Leonardo, depreendem-se duas situações importantes. A primeira refere-se ao fato de ele afirmar que o preconceito contribui para um afastamento das pessoas sem deficiência das pessoas com deficiência, inclusive no sentido de desenvolverem uma relação amorosa. Uma segunda situação que ele aponta é que quanto mais informação as pessoas possuírem, menos barreiras atitudinais existirão. Nesse sentido, é preciso conviver para entender as particularidades de cada ser humano, e tomar a diversidade como parte integrante da vida humana (Bartalotti, 2010). Além disso, é importante que se respeite a diferença, respeitando a verdade e evitando estereótipos. Assim, o conhecimento acerca das deficiências tem sido uma ferramenta importante para a desmistificação dessa condição.
O difícil processo de inclusão social das pessoas com deficiência.
Inclusão social representa o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com deficiência (além de outras) e, simultaneamente, prepará-las para assumir seus próprios papéis na sociedade (Sassaki, 1997). Entende-se que falar em inclusão social implica falar em democracia nos espaços sociais, em crença na diversidade como valor e em uma sociedade para todos. Significa, também, falar em participação e não em isolamento (Aguiar, 2012).
A sociedade, muitas vezes, não está preparada para garantir a inclusão social das pessoas com deficiência, ou seja, não faz as adaptações necessárias para recebê-las. Desse modo, o que termina acontecendo, de fato, é a integração social, processo em que apenas as pessoas com deficiência se adaptam para participar dos espaços. No entanto, deveria acontecer um processo de mão dupla, em que ambos se empenham para que ocorra a inclusão plena desse segmento social e conforme suas necessidades especiais.
Desafios quanto às Expectativas Construídas em Relação às Pessoas com Deficiência: Entre a Negação e a Superproteção
Um desafio recorrente é a construção de expectativas adequadas com relação às pessoas com deficiência, tendo em vista que as famílias tendem ora a proteger demais as pessoas com deficiência, ora a negligenciar a deficiência e as limitações trazidas por ela. Se os familiares não aceitarem a deficiência ou a negligenciarem, podem desenvolver expectativas muito altas com relação às pessoas com deficiência, que terão dificuldades para atingi-las. Por outro lado, ações superprotetoras podem diminuir as possibilidades de independência das pessoas com deficiência. Inclusive, a presença de alguns receios acaba por desenvolver um instinto superprotetor nos familiares de pessoas com deficiência, mantendo-as dentro de casa, guiando e conduzindo cada passo destas (Pintanel et al., 2013).
A mãe de Paulo, que teve quatro filhos com deficiência (surdez), incluindo ele, fornece pistas às famílias de como devem proceder:
Para as pessoas que têm filho com deficiência, que procurem conhecer ao invés de se lamentar, para buscar aulas para esses meninos. Vá lutar por eles, porque se você ajudar ele voa mesmo. E vá fazer com que ele tenha identidade dele, no mundo dele, porque ele não vai ter o pai e a mãe pra sempre, ele vai ter que andar só e se ele se achar sozinho sem tá preparado para enfrentar o mundo ele vai sofrer demais. Deixem ele crescer, deixem ele andar só, deixem criar asa, deixem ser independente porque ele não vai ter pai e mãe pra sempre. E o amor que a gente tem para um filho não é amor de proteger, esse é um amor doente, quando você superprotege você acha que tá fazendo um bem, mas na verdade tá fazendo muito mal. (Judite)
Processos de Resiliência Familiar e a Deficiência
Essa categoria apresenta as estratégias de superação utilizadas pelas famílias das pessoas com deficiência, para lidar com os desafios que atravessaram a sua história familiar. Ao realizar a pesquisa empírica, verificou-se que muitas estratégias utilizadas pelas famílias estavam contidas nos processos-chave de resiliência familiar trabalhados por Walsh (2005). São eles: os sistemas de crenças, os padrões organizacionais e os processos de comunicação/resolução de problemas. Desse modo, optou-se por fazer articulações principalmente entre o referencial teórico desta autora em pauta e os achados da pesquisa.
Sistemas de crenças.
São constituídos por valores, convicções, atitudes, tendências e suposições, que juntos formam um conjunto de premissas básicas que desencadeiam reações emocionais e guiam ações. Embora uma mesma família apresente crenças congruentes, os membros de uma família com um bom funcionamento mantêm uma abertura para muitos pontos de vista e percepções diferentes (Walsh, 2005).
Atribuir sentido à adversidade.
A capacidade para esclarecer e dar significado a uma situação precária torna-a mais fácil de suportar. Ela também pode ser transformadora, trazendo uma nova visão e um novo propósito para a vida da pessoa (Walsh, 2005). É disso que trata o pai da Renata, ao afirmar que percebe o nascimento da filha com deficiência como algo que tem um sentido/propósito maior: "Tem uma semente, não é? Que a gente acha que tem coisas programadas que não adianta tentar construir de outra forma. A gente tem uma visão que ela veio por alguma questão maior" (Haroldo).
Perspectiva positiva frente à deficiência.
Conforme Walsh (2005), uma perspectiva otimista contribui para o enfrentamento do estresse, bem como das crises. Neste contexto, apresentou-se a fala da mãe de Paulo, relatando que sempre valorizou os filhos e mostrou que eles eram capazes. Além de Paulo, entrevistado na pesquisa, Dona Judite teve outros três filhos surdos.
Sempre acreditei que eles fossem capazes e nunca botei na cabeça deles que eles não podiam algo só por ser surdos. Sempre disse que podiam sim, era só tentar que dava certo. Sempre pensar positivo, passar essas energias positivas e sempre valorizando eles, sempre mostrando que eles são capazes. (Judite)
Verifica-se que a autonomia e a independência são aspectos abordados pela literatura e almejados tanto pelas pessoas com deficiência, como pelos familiares. O futuro da pessoa com deficiência depende em grande medida da forma como a família enfrenta a deficiência. Atitudes positivas ajudam, por outro lado, o desenvolvimento pode ser prejudicado, caso existam atitudes (super) protetoras por parte das famílias e das próprias instituições (Muñoz, 2007; Pintanel et al., 2013).
Assim, os familiares e as instituições precisam se empenhar para que o desenvolvimento ocorra e, para isso, foi apontada a necessidade de atribuir algumas atividades às pessoas com deficiências, como, por exemplo, realizar a higiene pessoal, decidir o que comer, decidir o que fazer com os amigos ou com a família, escolher lugares para aonde ir e como fazê-lo e etc. (Muñoz, 2007; Silva & Mendes, 2008). Tais atividades permitem não só o desenvolvimento da autonomia (pessoal, social, sexual e econômica), mas também implicam o aumento da independência (faculdade de decidir sem depender de outras pessoas) das pessoas com deficiência.
A importância da espiritualidade.
A espiritualidade promove um senso de significado, inteireza interior, conexão com os outros. Ela também oferece conforto e compreensão da adversidade (Walsh, 2005). Para as pessoas com deficiência e principalmente para os familiares entrevistados, a espiritualidade foi destacada como um aspecto central, que contribuiu, inclusive, para a superação de dificuldades vivenciadas, decorrentes da deficiência.
Percebe-se que a mãe de Leonardo tem muita confiança na espiritualidade, na medida em que afirma entregar a Deus a vida dos filhos: "Sempre peço a Deus, como eu peço pra minha outra filha também, que Deus abençoe, né, os caminhos, os estudos. Toda a vida, né, tudo o que diz respeito à vida em geral, seja relacionamentos, trabalho, sempre assim, né?" (Olga).
A esposa de Antônio também demonstra agradecimento à religião e à espiritualidade, pela família que tem:
Sempre foi bom esposo, nós temos 36 anos de casados, quer dizer que graças a Deus até hoje estamos muito unidos, até hoje a gente nunca andou com briga. Temos dois filhos... um casal, graças a Deus assim, até hoje nunca deram trabalho pra gente. Nós somos uma família, Graças a Deus, assim muito unida. (Vanda)
Padrões organizacionais.
As famílias, em suas formas diversas, devem se organizar, de modo que consigam possibilitar o crescimento de seus membros, assim como o bem-estar deles. Assim, para lidar de forma eficiente com as situações de crise e difíceis de serem atravessadas, elas precisam mobilizar recursos, resistir ao estresse, bem como se reorganizar (Walsh, 2005). Muitas vezes, as famílias de pessoas com deficiência precisam se modificar e se reorganizar, para conseguir atender às necessidades de seus membros.
Flexibilidade.
Apesar de as famílias terem padrões organizacionais, também devem ser capazes de se adaptar às exigências de desenvolvimento e ambientais, fatores em frequente mutação (Walsh, 2005).
É importante mencionar que o fato de uma família atender às novas circunstâncias, ocasionadas por mudanças internas e externas, sendo flexível, indica bons níveis de saúde (Wagner et al., 2011).
Na fala dos familiares, especialmente, foi possível verificar diversas situações em que vivenciaram situações de flexibilidade comportamental. O pai do Pablo, por exemplo, retornou a morar na casa da ex-mulher, para ajudar no cuidado com o filho, após a deficiência que este adquiriu, resultante da violência urbana. Os pais da Renata decidiram ter mais um filho, para que este tivesse mais apoio no futuro, após o falecimento deles. Além disso, o pai de Renata estendeu o tempo de trabalho, para tentar garantir um maior suporte financeiro para ela, através de uma aposentadoria.
Assim, é possível perceber algumas situações, a partir das falas dos familiares em pauta. Uma questão diz respeito ao fato de os pais serem conectados aos filhos e os colocarem no centro de suas vidas; e outra se refere ao fato de eles adiarem seus projetos de vida, pensando no melhor para o futuro dos filhos.
Conexão.
As famílias tendem a funcionar melhor quando conseguem equilibrar proximidade e compromisso com tolerância em relação às diferenças (Walsh, 2005). Os membros da família se sentem mais fortes para a superação de suas adversidades e na confiança uns com os outros. Inclusive, nas famílias com bom funcionamento, os membros se reúnem em torno de interesses e preocupações compartilhadas. Ou seja, em torno de pontos em comuns, que dizem respeito a todos os membros. Por conseguinte, para o desenvolvimento de processos de resiliência são necessárias tanto alianças flexíveis, em que um pode substituir o papel do outro, quando necessário, bem como trabalhos em equipe, levando-se em conta a importância da não sobrecarga de um, em detrimento de outro.
Recursos sociais e econômicos.
É comum as famílias recorrerem à família ampliada - vizinhos, amigos, serviços comunitários, terapia -, para resolverem situações adversas (Walsh, 2005). Dessa forma, percebe-se que tanto as pessoas com deficiência como as famílias mencionaram a importância do suporte, através das instituições, bem como do convívio com os pares.
O pai da Renata falou sobre o papel significativo das instituições. No caso, citou a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), o Laboratório de Inclusão da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) e um centro de estudos, pesquisas e desenvolvimento de projetos de inclusão social para pessoas com deficiência e vulnerabilidade social, vinculado ao Governo do Estado do Ceará.
A Renata ficou até uma certa fase na escola regular. Aí depois, por insistência de uma amiga da avó dela que trabalhava na APAE, a Renata foi para a APAE e teve um apoio institucional muito grande da APAE. Muito bom, muito bom. Foi quem trouxe a Renata para o Laboratório. Foi através da APAE que a Renata chegou ao Laboratório. A empregabilidade dela. Não que a APAE tenha trazido as ferramentas de empregabilidade. Ela buscou. Ela chegou aqui como estagiária ou como "Primeiro Passo". Primeiro Passo, estagiária, depois foi contratada. (Haroldo)
A subcategoria dos recursos sociais e econômicos também foi ilustrada na pesquisa por meio da menção dos participantes ao apoio que recebiam dos pares, o que tende a configurar uma importante rede de apoio para as pessoas com deficiência, assim como para os familiares, potencializando inclusive o desenvolvimento de processos de resiliência familiar.
A troca de conhecimentos e de vivências faz com que as dificuldades e limitações sejam discutidas e compartilhadas entre os grupos, surgindo ideias e opiniões que favorecem a superação da situação vivida (Pintanel et al., 2013). Paulo relata a importância de se conviver com os pares:
Dentro da comunidade surda a gente tem uma comunicação boa, a gente também sempre tá envolvido com esporte, associação desportiva de surdos. [...] O surdo geralmente dá preferência de estar com seus pares por conta da fluência da língua. É mais fácil se comunicar com os pares. Então, a maioria dos surdos deixam... Embora tenham respeito pela família, acabam que deixando de lado e indo mais em direção à comunidade surda. [...] Antigamente, era mais fácil você ir pra associação dos surdos. A gente tem a APADA (Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos) também que é dos familiares, e aí você vai ter contato com outros surdos, conhecer a língua de sinais. Antigamente, as pessoas não tinham tanto acesso. Embora existam essas barreiras, existem essas instituições que ajudam, de certa forma, dando orientação. (Paulo)
De fato, o suporte de interpares fornece um senso de conexão, pertença e comunidade, além de ser uma prática que não enfatiza os sintomas de pessoas e problemas, mas sim aspectos positivos das pessoas e habilidade delas de funcionar de forma eficiente em diferentes contextos (Campos et al., 2014).
Foi interessante observar que Renata e Paulo, que tiveram um bom acesso a recursos sociais e econômicos, apresentam deficiência congênita. Ou seja, o fato de lidarem com a situação, desde cedo, pode ter contribuído para isso.
Processos de comunicação.
Segundo Walsh (2005, p. 104), "a comunicação facilita todo o funcionamento familiar". Nesse sentido, ela destaca que há três aspectos importantes da comunicação para a resiliência familiar, que são a clareza, a expressão emocional aberta e a resolução colaborativa dos problemas.
Clareza.
Verificou-se, na fala dos entrevistados, especialmente dos familiares, a percepção sobre como ocorre a comunicação entre os membros da família. A necessidade da clareza, seja na fala, seja nas ações, também foi mencionada como um aspecto central à comunicação. Conforme Satir (1988), em famílias com um funcionamento mais saudável, a comunicação tende a ser direta, clara, específica e honesta. Dessa forma é crucial ser claro quanto ao que cada membro pensa e espera do outro e o que suas transações significam, pois quando a comunicação é vaga, distorcida ou permanece não resolvida, ela gera confusão e mal-entendidos (Walsh, 2005). O pai de Pablo mencionou algo nesse sentido: "Não tem condição de ficar escondendo, ou tendo mágoa. É normal. Bem simples, bem claro. Quem quiser dizer as coisas diz... tem que falar correto pra pessoa saber né?" (Manoel).
Expressão emocional aberta.
A expressão emocional aberta também foi destacada como sendo um aspecto importante na comunicação e fundamental para a sua capacidade de enfrentamento e adaptação bem-sucedida, diante dos desafios familiares. Tanto as pessoas com deficiência como os familiares demonstraram a importância dela, como se percebe pela fala do pai de Pablo: "Ter respeito um ao outro, e ter também sensibilidade com as coisas. Agora faço que nem o outro, não é a família perfeita, mas é quase. Em relação ao que a gente vê por aí" (Manoel).
A sensibilidade para com os sentimentos do outro e suas necessidades é fundamental para as famílias. Para Walsh (2005), essa expressão emocional aberta representa um interesse empático, demonstrado com palavras e ações, diante da angústia do outro ou da sua expressão diante das necessidades não satisfeitas.
Nas famílias com um funcionamento saudável, por conseguinte, há uma tendência para a união que é percebida pelo comportamento, pelo tom de voz, pelo conteúdo verbal, assim como pelos padrões de comunicação, que são marcados por relações amistosas e que trazem conforto (Walsh, 2005).
Resolução colaborativa dos problemas.
Especialmente quando se lida com crises repentinas, ou desafios persistentes, processos eficazes para a resolução de problemas são fundamentais. Para resolvê-los, os membros da família devem inicialmente reconhecer o problema, comunicar-se sobre ele com os envolvidos e pensar nas possíveis ferramentas que podem ser utilizadas para dirimi-los. Por fim, traçar um plano a seguir (Walsh, 2005). De uma forma singela, Antônio relata como faz para resolver os problemas em família: "A gente se organiza, se assenta e vai ver para tratar da solução. Depende do problema, mas é geralmente a família, eu, a esposa e os filhos".
Considerações Finais
O artigo teve o objetivo de compreender processos de resiliência vivenciados por famílias com uma pessoa com deficiência. Considerando a forma estigmatizada como as pessoas com deficiência são, muitas vezes, vistas e tratadas pela sociedade, bem como a luta deste segmento pela inclusão social, entende-se a relevância de uma pesquisa qualitativa, que dá voz às pessoas com deficiência e às suas famílias. Nesse sentido, destaca-se que este trabalho enfocou as estratégias de superação, partindo de uma visão potencializadora das pessoas com deficiência e de suas famílias. E, dessa forma, possibilitou que se conhecessem mais de perto as adversidades, bem como os processos de superação vivenciados por ambas.
Considera-se como um ponto forte da pesquisa a inclusão da perspectiva das pessoas com deficiência e de algum integrante da sua família, assim como o fato da pesquisa não ter focado apenas em um tipo de deficiência - congênita ou adquirida -, mas em ambas. Tal escolha metodológica permitiu uma visão mais ampla do fenômeno estudado, seja porque mostra a realidade a partir de diferentes atores/olhares, seja porque trata a deficiência não como algo único/homogêneo, mas a partir de outros recortes, como o tipo, por exemplo.
Este estudo é relevante, também, porque pode ser considerado como um ponto de partida para futuras investigações sobre resiliência familiar e pessoas com deficiência, tendo em vista que foram realizadas poucas pesquisas sobre essas duas temáticas.
Dentre as principais adversidades mencionadas pelos participantes, citam-se o impacto trazido pelo diagnóstico, a mudança de papeis na família e a necessidade de ajustes para garantir o cuidado da pessoa com deficiência, somados às barreiras físicas e atitudinais que vivenciam no seu cotidiano, além da necessidade de fugir da negação da deficiência e, por outro lado, da superproteção. O discurso das pessoas com deficiência sublinhou com mais acento a vivência do preconceito e dos estigmas, quando comparado ao dos familiares. No entanto, apesar das adversidades citadas, entendeu-se que as famílias com algum integrante com deficiência utilizaram estratégias particulares e, muitas vezes, bem-sucedidas no enfrentamento das adversidades ou eventos estressores que atravessavam as suas histórias familiares.
No processo de superação das adversidades algumas características comuns emergiram dos relatos, a saber: o importante papel das figuras paternas (mães e pais) na vida dos filhos com deficiência; a aceitação da deficiência pelos pais que contribuiu para aceitação dos demais familiares, principalmente da própria pessoa com deficiência; as pessoas que tinham um maior convívio com os pares eram as que mais se sentiam incluídas socialmente e que mais participavam de atividades sociais; todas as famílias do estudo mostraram-se bastante coesas e espiritualizadas; e, finalmente, a existência de mais fatores de proteção agindo nas famílias de pessoas com deficiência congênita se comparado às famílias de pessoas com deficiência adquirida. Uma hipótese para este último resultado é o de que a deficiência adquirida teria ocorrido mais recentemente e que, por isso, as pessoas possivelmente ainda estavam em processo de adaptação à nova condição de vida.
Uma limitação dessa pesquisa refere-se ao fato de ter sido entrevistado apenas um familiar, na maioria dos casos, o que dificultou a compreensão da dinâmica dos demais subsistemas. Dessa forma, estudos futuros poderiam incluir outros participantes (pessoas-chave) das famílias das pessoas com deficiência (e.g. cônjuge, irmãos, etc.).
Por fim, considera-se a riqueza dos relatos e histórias de superação aqui retratadas, as quais são úteis para mostrar que, diante das situações de adversidades enfrentadas em suas vidas, os seres humanos negociam cotidianamente formas de superação e enfrentamento das mesmas. Tal constatação certamente é útil para romper com uma visão ainda muito vigente da deficiência como limitação, bem como para sublinhar a importância de fortalecer as pessoas com deficiência e suas famílias. Espera-se que profissionais que exercem atividades junto às pessoas com deficiência possam desenvolver trabalhos com este segmento e com suas famílias, no sentido de estimular o desenvolvimento de processos de resiliência familiar, considerando os processos-chave (sistema de crenças, padrões organizacionais e processos de comunicação), tendo em vista que tais processos acontecem com pessoas comuns e dependem, fundamentalmente, das relações, bem como do suporte social recebido.
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Endereço para correspondência:
Mariana Pinheiro Pessoa de Andrade Aguiar
E-mail: marianappas@gmail.com
Normanda Araujo de Morais
E-mail: normandaaraujo@gmail.com
Recebido em: 14/04/2019
Revisado em: 15/05/2021
Aceito em: 24/05/2021
Publicado online: 02/02/2022