O estabelecimento da noção de complexo de Édipo acompanha Freud ao longo de sua obra, adquirindo nesta e na tradição psicanalítica posterior um lugar de centralidade que se confunde com a história da psicanálise (Laplanche & Pontalis, 1992). Do mesmo modo, é ainda com Freud que verificamos os esforços que procuram inserir a matriz edipiana e seu correlato – a interdição do incesto – em uma posição de universalidade que regula o campo dos interditos e a base etiológica das neuroses (Miguelez, 2020).
Na formulação clássica do complexo de Édipo, Freud (1905/1996a) nomeia a triangulação dos impulsos, amorosos e hostis, que a criança direciona às figuras parentais. Tomado em sua forma mais esquemática, vemos que entre os três e os cincos anos as pulsões sexuais do menino são dirigidas ao “objeto mais próximo que normalmente a presença e o interesse lhe oferecem, a saber, o progenitor do sexo oposto. Essas pulsões fornecem ao complexo sua base; a frustração delas forma seu nó” (Lacan, 1985, p. 42). Baliza da organização subjetiva, o declínio dessa triangulação demarca um período de latência, e sua posterior resolução, após a puberdade, é acompanhada de nova escolha de objeto. Os destinos desse nó são mediados pela presença paterna, de tal maneira que se a figura do sexo oposto é o objeto primeiro desses investimentos, por seu turno, o pai “aparece ao mesmo tempo como o agente da interdição sexual e como o exemplo de sua transgressão” (Lacan, 1985, p. 42).
Como esclarecem Laplanche e Pontalis (1992), o que nomeamos correntemente de complexo de Édipo é a resultante de diferentes direções interpretativas – sobretudo aquela efetuada por Lacan a partir dos anos de 1950, que aproxima o Édipo de uma versão estrutural. Por essa via, assentou-se na tradição psicanalítica a compreensão de que, bem mais até que um envolvimento efetivo em uma trama conjugal, a eficácia constitutiva do complexo advém da presença de uma “instância interditória (proibição do incesto) que barra o acesso à satisfação naturalmente proclamada e que liga inseparavelmente o desejo à lei” (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 80). Isto implica afirmar a relevância não exatamente da mãe ou do pai, geneticamente estabelecido, mas sim das diferentes figuras cuidadoras que desempenham as funções parentais, materna e paterna. A ênfase recai, pois, na função e não tanto no personagem que a encarna.
Não obstante, no contexto histórico dos anos de 1920, Bronisław Malinowski (1973), importante nome na consolidação da antropologia social e da etnografia, colocou em questão a validade universal do Édipo, interrogando sua ocorrência fora dos marcos da tradição ocidental. Ao estudar a sociedade matrilinear dos ilhéus de Trobriand, o antropólogo constata como nessa cabia à figura do tio, e não ao pai, orientar a correspondência com a lei. Do mesmo modo, a interdição do incesto não era dirigida à mãe, mas sim à irmã. Como se nota, o antropólogo não afirma que as identificações não ocorram, mas que, em tal contexto, elas não serão prioritariamente regidas pelo modelo clássico da triangulação parental. Malinowski (1973) assinala a alternância das diferentes figuras parentais segundo formações culturais distintas.
Este artigo não pretende acompanhar este debate em seus pormenores, do mesmo modo, não busca uma argumentação sobre a complexidade que a noção de Édipo adquire no discurso psicanalítico. Situamos, esquematicamente, o complexo e suas críticas para localizar a presença de Franz Fanon (2008). Em Pele negra, máscaras brancas, o autor adentra essa problematização, afirmando a insuficiência do complexo de Édipo para compreendermos a experiência vivida e a subjetividade dos negros submetidos à colonização.
A hipótese que encaminhamos é que por entre as críticas difundias sobre a pregnância do Édipo na constituição subjetiva, Fanon (2008) encontra vias para afirmar a incidência da diferença racial como um fator que necessita ser considerado pela psicanálise na montagem das subjetividades. Em outras palavras, Fanon sinaliza uma desconsideração da psicanálise às relações raciais e às particularidades do sofrimento psíquico que alcança o corpo negro. Adotando uma linha crítica que interliga o complexo à noção lacaniana de estágio do espelho (Lacan, 1998b), mostraremos como a sentença que recusa o modelo edipiano serve a Fanon para circunscrever os limites de um modelo abstrato que, desconsiderando a marcação racial, não atenta à diferencialidade da situação colonial, que fabrica o negro em condição de subalternidade. Nesse percurso, utilizamos a pesquisa bibliográfica como método que nos orienta na aproximação aos trabalhos de Fanon e Lacan. Concentramos, fundamentalmente, em uma articulação dos momentos iniciais da obra de Lacan à Pele negra, máscaras brancas de Fanon (2008). Tal perspectiva nos permitirá colocar em evidência as linhas de força que interligam, em continuidade e descontinuidade, os trabalhos de ambos os autores.
No escopo da produção fanoniana é preciso ressaltar, de saída, que a consideração à diferença racial é realizada em íntima articulação com a questão colonial. Nascido no ano de 1925, em Fort-de-France, na Martinica, o pensamento de Fanon é desenhado no deslocamento geográfico do autor em direção à França e da aproximação com expoentes do Movimento Negritude, como Aimé Césaire, Léopold Senghor e Alione Diop (Faustino, 2015). Esse deslocamento implicará na descoberta da reivindicação política da condição negra e no encontro com funcionamento do poder colonial. Nesse sentido, para o autor, evocar a construção do sujeito racializado implica indicar as estruturas de poder que produzem e oferecem sustentação à prática colonial. Em sua obra, a consideração pretendida ao polo subjetivo é indistinta de uma atenção ao polo social, objetivo. Não por outra razão, o autor localiza na revolução anticolonial e anticapitalista a possibilidade efetiva de superação do racismo e de seus contrapontos subjetivos.
Em direção semelhante é preciso evocar que a relação de Fanon com a psicanálise não se estabelece afastada de um campo de tensão. Ou seja, Fanon nem sempre sustentou de maneira explícita uma referência à psicanálise, bem menos, sequer uma linearidade em suas aproximações. Isso aponta, entre outros caminhos, para a recepção do pensamento fanoniano que, como mostrou Deivison Faustino (2015), frequentemente, opôs, de um lado, a leitura de Fanon pela ênfase político-revolucionária e, de outro, aquela que, atrelada à fenomenologia existencial, se dirigiu à análise das determinações histórico-sociais da subjetividade. Os condenados da terra (Fanon, 1968) e Pele negra, máscaras brancas (Fanon, 2008) seriam polos distintos dessa oposição.
Não obstante, compreendemos, com Stuart Hall (1996), a possibilidade de uma direção interpretativa que, declinando da referida oposição, reconhece no pensamento de Fanon uma interlocução franca, embora inconclusa, com diferentes referenciais teóricos, entre estes, a psicanálise. Assim, não se trata, para Hall (1996), de recusar as tensões críticas, mas de reconhecer as linhas de permanência que abarcam o pensamento de um autor falecido precocemente aos trinta e seis anos de idade. Entendemos, portanto, que as desconfianças expressas de Fanon em relação ao discurso psicanalítico, longe de distanciar, podem vivificar a interlocução entre o pensamento do autor e esse campo discursivo.
Complexo de Édipo e diferença racial
Com as formulações freudianas sobre o Édipo, a família nuclear foi alçada a uma posição privilegiada e decisiva para a montagem do psiquismo. Nessa direção, a lógica e a mecânica construída nas relações familiares foram transformadas em matéria-prima que, a partir de diferentes intercruzamentos de afetos, norteiam a montagem das subjetividades. As identificações psíquicas são resultantes diretas dessa inscrição, que faz do psiquismo um efeito transversal de sua orientação na mecânica familiar. Inserido na interrogação aberta por Malinowski (1973) de uma insuficiência do modelo edípico, derivada do desencontro entre a figura do pai e a autoridade, Fanon (2008) concentra sua leitura em mostrar como, nas cidades colonizadas, essa insuficiência está remetida à existência de uma descontinuidade entre a ordem familiar e a ordem pública.
Na Martinica, submetida ao domínio francês, afirma Fanon, as estruturas das instituições nacionais são francesas, mas, por sua vez, a família na qual se encontra o negro antilhano “praticamente não mantém nenhuma relação com a estrutura nacional” (Fanon, 2008, p. 133). Assim, enquanto no modelo colonizador europeu (e para os brancos na Martinica) o funcionamento familiar está em continuidade com a norma partilhada nas demais instituições, nas terras colonizadas, ao contrário, o funcionamento e a lógica de operação familiar encontram-se em um descompasso com as instituições públicas.
A consequência dessa diferenciação é que ela impõe uma distinção entre as condições de subjetivação e sociabilidade dos colonizadores (brancos) e dos colonizados (negros). Para os primeiros, ocorre uma convergência entre os valores familiares e a convivialidade social, permanecendo interligada à lógica que articula as relações de parentesco às demais instituições da sociedade. Portanto, a subjetividade, idealmente proclamada pelo funcionamento institucional, encontra-se em sintonia com a educação familiar e as demais instituições. Em termos psicanalíticos, ocorre uma continuidade entre a norma socialmente partilhada e aquela presumida na inscrição edipiana. Sabendo que é graças ao intermédio das relações familiares que os sujeitos interiorizam a norma e o registro simbólico da Lei (Birman, 2016), verificamos que os sujeitos inseridos “dentro” do modelo colonizador experimentam uma sequencialidade entre a assimilação da autoridade social e a autoridade paterna.
Para o negro, entretanto, um hiato se impõe no deslocamento do regime familiar para a esfera pública. Entre o colonizado e a vida social partilhada não existe uma linha contínua, mas, sim, “um mito a ser enfrentado” (Fanon, 2008, p. 133), uma vez que a norma imposta pela colonização não se encontra articulada com a ordem familiar. No contexto dessa descontinuidade, o descompasso institucional torna inócuo qualquer tentativa de estabelecer os vínculos sociais e institucionais, enfim, de partilhar o espaço público, tendo por referência a família de origem. Diante dessa dissintonia normativa, o Édipo mostra-se insuficiente como condensador da trama afetiva e identificatória dos colonizados. Ou, como afirma Grada Kilomba (2019), lendo, em direta concordância, o texto de Fanon, “a luta de Édipo não permite que a criança negra ganhe poder em uma sociedade colonial comandada por sujeitos brancos” (Kilomba, 2019, p. 140). Por esse motivo, para o negro, a mobilidade social apenas se estabelece à custa de certa ruptura que é, frequentemente, expressa pela vergonha e pelo rechaço à família africana (Fanon, 2020). Assim, no quadro colonial, se for possível falar em trauma que alcança o negro, ele não é decorrente da triangulação edipiana, ou seja, de uma reedição da mecânica familiar previamente inscrita, mas, sim, efeito do contato do negro com o mundo branco (Fanon, 2020).
Esse hiato em que o negro é lançado faz com que ele seja levado a existir como branco, isto é, a adotar “subjetivamente uma atitude de branco” (Fanon, 2008, p. 132). Dito de forma mais direta, o colonizado é levado a acreditar que é branco. Assim, para Fanon, o que intermedia o acesso do colonizado ao espaço público não é a instituição familiar, mas essa identificação, chamemos de compulsória, que se estabelece entre o negro e “a brancura” (Costa, 1983, p. 4) como ideal. A identificação com o branco torna-se condição para que o negro possa existir socialmente. Em outros termos, o sujeito negro é levado a construir para si um ideal de ego branco.
No Brasil, a psicanalista Neusa Santos Souza (1983) apoia-se na tese fanoniana de uma identificação compulsória à brancura, para desdobrá-la em novas direções, ao centrar-se no sofrimento psíquico que decorre da ascensão social. Em seu trabalho, fruto de sua dissertação de mestrado, a psicanalista seleciona “histórias-de-vidas” (Souza, 1983, p. 70), que, na direção da hipótese de Fanon, traduzem as angústias e o sofrimento que decorrem para o negro da imposição a esse modelo identificatório. Referenciando-se em Laplanche & Pontalis (1992), para quem o ideal de ego é a instância que particulariza a articulação entre a cultura e a introjeção libidinal da norma, Neuza Souza indica como “mesmo o negro e o mulato que não queriam ‘passar por branco’ precisam corresponder aparentemente a esse requisito, onde e quando aspirarem a ser aceitos e a serem tratados de acordo com as prerrogativas de sua posição social” (Souza, 1983, p. 23). Tal como Fanon, a leitura da psicanalista brasileira está ancorada na dimensão inescapável de submissão a um modelo identificatório orientado pela brancura.
É importante frisar que a produção identificatória não acontece de maneira aleatória, desarticulada de produções socioculturais que a estimulam. Recusando uma leitura que compreende o trabalho de Foucault (2006) em estrita oposição à psicanálise (Canavêz & Miranda, 2011), podemos afirmar, com o filósofo, que o estabelecimento do poder disciplinar é correlato ao funcionamento das instituições. Dessa maneira, torna-se possível estabelecer a operação de um conjunto amplo formado pelas diferentes instituições sociais, que atuam para que “pouco a pouco se forme e se cristalize no jovem antilhano uma atitude, um hábito de pensar e de perceber, que são essencialmente brancos” (Fanon, 2008, p. 132). Assim, Fanon (2008, pp. 103-126) ilustra, de forma insistente, diferentes produções literárias, musicais, imagéticas (jornais e revistas) que operam para favorecer que o negro construa a imagem e a representação de si mesmo como sendo branco.
É, contudo, no encontro com o mundo branco que o colonizado percebe a si mesmo submetido a um paradoxo. Ao se deslocar para Europa, o negro – que em sua terra de origem, havia sido instado pelas instituições a se reconhecer como (branco) francês – se depara com o funcionamento da violência colonial. Se, por um lado, enquanto permanecia na colônia, era possível ao negro desconsiderar a sua condição e a sua cor, por outro, ao se deslocar geograficamente para “o seu” país, ele experimenta, diante do olhar branco, “o peso da melanina” (Fanon, 2008, p. 133). Por mais que tenha o domínio da língua, o acesso formal às instituições, o sujeito descobre-se construído como um não-branco, como um não-francês: “olhe, um negro!” (Fanon, 2008, p. 103). A apreensão dessa contradição é importante, posto que nela encontra-se não apenas um motor de sofrimento psíquico, mas também a engrenagem que, no argumento de Fanon, explicita a mecânica posta em curso pela violência colonial. Com efeito, o choque desencadeado pelo olhar do branco possui, para o negro, um efeito disruptivo. Esse choque anuncia, além da falência identificatória à brancura, a exposição à uma condição de abjeto, ao fato que, segundo a matriz civilizatória, o negro foi construído como um não-igual.
Desse modo, Fanon, partindo de um corte crítico que recusa a neurose como efeito de um complexo familiar, descarta a matriz edipiana como vertente explicativa para a situação colonial. Na leitura do autor, pretender a transposição dessa matriz para o contexto colonial seria desconsiderar o hiato normativo que separa negros e brancos. Enquanto para estes últimos existe uma sequência que interliga os ideais constituídos na infância e aqueles partilhados na vida adulta, para os colonizados, ao contrário, ocorre uma ruptura entre o parentesco e as instituições nacionais. Desse modo, o modelo edípico, ao pressupor uma continuidade do poder normativo exercido na família e nas demais instituições, mostra seu limite quando dirigido à situação colonial, uma vez que este, do ponto de vista do negro, não considera o mais fundamental: a identificação à brancura que é imposta ao negro como condição possível para a sociabilidade, para o acesso ao espaço público. Em outros termos, para o negro a ocorrência da ruptura impõe o confronto com um mito, e esse não será o edipiano. Será, antes, o encontro com o hiato que, mediado pelas estruturas de poder, constrói a si mesmo como alienado, como um corpo negro que desconhece a si mesmo como tal.
Assim, para Fanon, qualquer interesse em considerar, de um ponto de vista da psicanálise, “a experiência vivida do negro” (Fanon, 2008, p. 103), as particularidades derivadas da violência colonial, exige que a diferença imposta pela marcação racial seja nomeada, isto é, que sejam afirmadas as estruturas objetivas que produzem o racismo e a violência colonial. Nessa direção, qualquer formalização teórica para a montagem das subjetivações que não considere a diferença imposta pela raça torna-se insuficiente. Com efeito, podemos dizer que, no texto fanoniano, mais que balizador na produção de subjetividades, o Édipo opera como uma alegoria política, que nomeia a batalha pela distribuição do poder no tecido social. Nesse sentido, como indicou Kilomba (2019), para o negro a luta para se desvencilhar da descontinuidade normativa se mostra infrutífera quando resumida a qualquer apreensão da lógica familiarista. Na perspectiva entreaberta por Fanon para o sujeito negro, além de qualquer mecânica interna à lógica fantasmática do parentesco, é necessário acrescer a descontinuidade na operação do poder que engendra esse sujeito como um corpo identificado ao ideal do colonizador.
Espelho sem raça
Em Pele negra Fanon é enfático, sentenciando que “quer queira quer não, o complexo de Édipo longe está de surgir entre os negros” (Fanon, 2008, p. 134). Como localizamos, a afirmação se insere em um contexto em que já se encontra em xeque a pretensa universalização desse constructo. Além disso, indicamos como Fanon anuncia a impossibilidade destacando, precisamente, a dimensão normativa que orienta o complexo. Enquanto no marco ocidental existe uma continuidade que interliga a subjetivação da norma edipiana às demais instituições sociais, os sujeitos colonizados, por sua vez, experimentam um hiato que separa a ordem familiar e o espaço público.
A partir dessa consideração crítica ao Édipo, pretendemos demarcar como Fanon encontra na produção de Lacan uma interlocução para sua aproximação do discurso psicanalítico. Bem entendido, Lacan não é a única referência de Fanon ao trabalho de psicanalistas, aliás, decerto, não é aquele mais citado por Fanon. Não obstante, existem referências que – mesmo realizadas através rápidas passagens, ou, por vezes, por alusões, diretas ou não – apontam para uma articulação que interliga as considerações de Fanon ao trabalho de Lacan. Como veremos, a aproximação se organiza em torno da crítica ao Édipo como elemento organizador da subjetividade e da constituição narcísica especular. Mais especificamente, demarcando o lugar estratégico da família na constituição psíquica, Fanon (2008) estabelece, a seu propósito, uma leitura de textos iniciais do percurso lacaniano, sendo Os complexos familiares na formação do indivíduo: Ensaio de análise de uma função em psicologia (Lacan, 1985), escrito em 1938 para a Encyclopédie Française, um dos vértices dessa aproximação.
Decerto, a dimensão normativa, que interliga o complexo edipiano às relações inaugurais de parentesco, já se encontra presente nas formulações freudianas sobre o Édipo (Miguelez, 2020). Mas, como indicam Moustapha Safouan e Christian Hoffmann (2016), é justamente pela ênfase conferida a essa dimensão que Lacan realiza sua apropriação do constructo freudiano. No momento inicial do seu percurso, o Édipo é retomado por Lacan (1985) a partir da relevância conferida à imago paterna, responsável por favorecer a conhecida triangulação entre as imagos fraterna e materna, isto é, por mediar e inscrever na cena psíquica o encontro dual da figura materna com os filhos, bem como dos irmãos entre si. Essa formulação inicial é revista por Lacan (2017) em várias direções, inclusive aquela que, no Seminário XVII, proclama um além do Édipo. Isso não significa, contudo, que a função normativa atribuída ao complexo de Édipo já não estivesse posta em cena por Lacan. Não obstante, mesmo não compreendendo o Édipo por uma via estrutural, Lacan, já nesse momento inaugural, aponta Safouan e Hoffmann (2016), estabelece a convergência do Édipo com a normatividade. O psicanalista francês começa a esboçar a introjeção normativa regulada pela mediação paterna, isto é, a fazer do pai a figura responsável pela inscrição da norma no psiquismo.
Já por essa consideração é possível depreender que Fanon se aproxima de um momento preciso da obra lacaniana, justo aquele que Jacques-Allain Miller (2005) nomeia como “pré-estruturalista”, anterior, portanto, à formulação do inconsciente estruturado como linguagem. Em outros termos, Fanon está em interlocução com a primeira teoria sobre o imaginário, formulada por Lacan entre os anos de 1936 e 1949. Primeira, pois, como precisam Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1998), o posterior privilégio atribuído ao registro simbólico fará o psicanalista francês rever o lugar conferido ao imaginário1. Assim, pelo viés da descontinuidade normativa, o que está em jogo para Fanon (2008) não é a crítica ao Édipo, compreendido em termos de estrutura, como será posteriormente desenvolvido por Lacan, e sim a esse circunscrito como um complexo.
Diferentemente da noção de estrutura, que aproxima o Édipo de uma universal invariável, regulando a passagem da natureza para a cultura (Birman, 2016), a categoria de complexo, para Lacan, é justo aquela que, reconhecendo a função determinante da cultura, atua como “uma instância intermediária entre as dimensões social e psíquica” (Sales, 2004, p. 4). Constituído a partir das imagos fundamentais, o complexo é o elemento que interliga a subjetivação ao âmbito da cultura e das relações sociais. Em Para-além do princípio de realidade, texto do mesmo período, Lacan (1998c) especifica a relevância desta categoria em seu contrataste com a noção de instinto. É pelas trilhas da noção de complexo, afirma Lacan (1998c, p. 93), “que se instauram no psiquismo as imagens que dão forma às mais vastas unidades do comportamento: imagens com que o sujeito se identifica alternadamente para encenar, como ator único, o drama de seus conflitos”. Por esse caminho o psicanalista encontra condições para estreitar a articulação entre a lógica familiar e a dimensão institucional que informa os laços sociais.
Não obstante, é preciso ter presente que Fanon, assim como Lacan, era psiquiatra, de modo que cada um estava, à sua maneira, às voltas com a problematização da etnopsiquiatria e, principalmente, do biologicismo que caracterizava, então, as direções da psiquiatria francesa (Hall, 1996). No prefácio ao livro Pele negra,Lewis Gordon (2008) destaca, inclusive, como o fato desse livro – a princípio apresentado em forma de tese de doutoramento – não apresentar de modo suficiente “bases físicas para os fenômenos psicológicos” (Gordon, 2008, p. 13) contribui para a recusa da pela banca de examinadores, sendo posteriormente publicado na versão que conhecemos. Aliás, a oposição crítica à psiquiatria tradicional e a insistência para que ela comporte uma problematização não-reducionista da subjetividade abre caminhos para que o posicionamento político e as construções teórico-clínicas de Fanon antecipem a antipsiquiatria (Roudinesco & Plon, 1998) na defesa de uma consideração da alienação mental, articulada à alienação social. Nessa direção, vale destacar a recente publicação de Alienação e liberdade (Fanon, 2020), importante compilado dos escritos psiquiátricos de Fanon, entre 1951 e 1960.
No que se refere a Lacan, essa vertente crítica em relação à psiquiatria biológica favorece um reposicionamento da categoria de sujeito, de uma consideração da subjetividade deslocada do psicologismo. Nesse sentido, como indica Simanke (1997), a mediação da antropologia é um caminho que permite ao psicanalista embasar suas pesquisas sobre a gênese do eu, considerando de maneira simultânea o ponto de vista do sujeito e as determinações sociais que o constitui. Como consequência, Lacan relativiza o fator biológico como elemento organizador da família, estabelecendo seu papel como instituição. Uma organização social, contudo, fundamental para a organização psíquica. Como afirma, é essa instituição que “transmite estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência” (Lacan, 1985, p. 13). É através da família que os condicionantes sociais são mediados como espécie de resposta às normas sociais. Para Lacan, a família é definida por sua centralidade na organização da subjetividade, na função de uma instituição estruturante e mediatriz entre a subjetividade e o espaço social. Enfim, a oposição crítica de Fanon ao Édipo se orienta nessa direção. O autor é descrente quanto à possibilidade de que esse modelo de subjetivação, originado em uma continuidade de poder institucional, contemple devidamente o corpo colonizado.
Em termos de referenciais, podemos afirmar que, na conjunção de seus marcos teóricos, tanto Lacan quanto Fanon, seguindo a influência convergente que recebem da tradição hegeliana, estão às voltas com a categoria de reconhecimento e do que dela é presumida na dialética entre o senhor e o escravo. Essa afirmação se ancora na já estabelecida influência que o filósofo alemão, mediado por Kojève, exerceu sobre o pensamento de Lacan (Lacan, 1998a), e não é menos nítida na atenção que Fanon (2008) confere ao trabalho de Hegel, sobretudo, no capítulo final de Pele negra. Através da conjunção da influência hegeliana, Fanon (2008) e Lacan (1998b) demarcam a imprescindibilidade do outro na fabricação do eu. Ambos compreendem a montagem da subjetividade como um processo dialético em que o outro atua como elemento indispensável para a construção do si mesmo.
Nesse sentido, de uma leitura que privilegia a incidência social atuando decisivamente na constituição da subjetividade, verificamos uma inegável conjunção entre Fanon e Lacan como consequência da importância que ambos conferem à relação dialética entre a subjetividade e as relações sociais. Não obstante, essa convergência em torno de uma gênese social que atua de forma determinante na construção da subjetividade, mostra seus limites diante da marcação racial, da consideração diferencial da violência colonial.
Uma melhor compreensão desses limites fica expressamente anunciado por Fanon (2008) na longa nota que o autor adiciona ao capítulo sexto de Pele negra. Nela, o fio crítico direcionado ao Édipo é – pela mediação da categoria de identificação – estendido à noção lacaniana de estágio do espelho. Segundo Lacan (1998b), em uma comunicação de 1949, a relevância dessa noção pode ser localizada nos “esclarecimentos que ela fornece sobre a função do [eu] na experiência que dele nos dá a psicanálise” (Lacan, 1998b, p. 96). O estágio do espelho nos encaminha, pois, na direção dos processos identificatórios que, acionados na experiência especular, produzem o eu como instância, como uma unidade corporal e psíquica. Nas palavras de Lacan, essa noção condensa o “drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que sucedem desde uma imagem espedaçada do corpo até a forma de sua totalidade” (Lacan, 1998b, p. 100). Tal como esclarece Miriam Chnaiderman (2017, p. 189), nesse processo de fabricação, possível pela incidência do olhar, essa “forma total do corpo é muito mais constituinte do que constituída, sendo dada em uma exterioridade, em uma simetria invertida”. O que está em questão, portanto, é a construção da unidade corporal que se realiza no processo de identificação e que se torna possível pela intermediação dessa exterioridade representada pelo semelhante.
De maneira provocativa, a pergunta que Fanon (2008, p. 141. grifo do autor) direciona à formulação lacaniana do espelho é: “em que medida a imago do semelhante, construída pelo jovem branco (...), não sofre uma agressão imaginária com o aparecimento de negro”?. Ou, de modo afirmativo, se o eu é constituído a partir de imagos que são derivadas do outro, a situação colonial exige a inclusão da categoria racial, na medida em que, para o negro, “a alucinação especular é sempre neutra” (Fanon, 2008, p. 141), isto é, este não reconhece a si mesmo como não sendo um branco.
Considerando que, na leitura de Lacan (1998b), a relação especular é uma operação que, mesmo não exclusiva, é central na montagem do eu, no que concerne ao sujeito negro, esse movimento estruturante não ocorre sem um desvio. Afinal de contas, a condição colonial impõe ao sujeito uma identificação imaginária que não se realiza sem o atravessamento da brancura como ideal. É certo que existe uma alienação inerente a toda construção imaginária, mas, para os colonizados, a percepção visual, que fornece bases a essa construção, é mediada pela brancura. Nessa condição, o reflexo mediado do outro não conduz a “si mesmo”, mas a uma relação aprisionante com esse ideal. Assim, por mais que os autores estejam de acordo com a relevância que a dimensão imaginária – a presença da imagem do semelhante – possui para que o sujeito possa forjar uma unidade, Fanon insiste que a situação colonial não se explica sem as particularidades que informam sujeito negro.
Submetido à violência colonial, o negro representa a si mesmo como “um ser cor” (Fanon, 2008, p. 141). Assim, entre o negro e a operação reflexa constitutiva existe a compulsoriedade da identificação à brancura, já que “é tomando como referência a essência do branco, que o antilhano é percebido pelo seu semelhante” (Fanon, 2008, p. 142). Hall (1996) reconhece, no diálogo inconcluso de Fanon com a psicanálise, mas nem por isso de pouca efetividade, a validade dessa questão. Em seu ensaio, Hall considera digno de nota que, mesmo contando de forma imprescindível, com dimensão intersubjetiva na montagem das subjetividades, a epistemologia formulada por Lacan não se atente à incidência racial. Para Fanon, a marcação racial (importante frisar, não de um modo essencialista)2 precisa ser considerada se quisermos olhar para o sujeito negro por outras lentes que não as de uma consideração abstrata, seja a do Édipo, seja a do estágio do espelho. Para o psiquiatra martinicano, uma torção precisa ser incluída, de maneira a permitir que se considerem as determinações históricas e as estruturas de poder que operam fazendo com que o negro enxergue a si mesmo como sem cor, submetido – alienado – ao colonizador.
Guiados pelas considerações de Fanon, somos conduzidos à constatação, historicamente verificável, de que Lacan, “nem Freud, nem Adler, nem mesmo o cósmico Jung em suas pesquisas pensaram nos negros” (Fanon, 2008, p. 134). Ou seja, os psicanalistas, em suas formulações teórico-conceituais, não depositaram qualquer atenção às particularidades que informam a subjetividade do negro. Por conseguinte, se podemos dizer que Fanon formula um questionamento à psicanálise, este explicita-se na consideração do sofrimento que caracteriza a fabricação do corpo colonizado, e que, igualmente, interroga a branquitude como invariável na produção das subjetividades.
O eu, o negro e o sexual
Um modo possível de nomear o limite atribuído por Fanon à validade do Édipo como balizador das experiências vividas pelos corpos colonizados é demarcando o lugar das estruturas coloniais de poder que incidem para a construção do negro como corpo abjeto. Para Fanon, a recusa expressa ao psicologismo exige que tenhamos sempre presente que o enfoque lançado à subjetividade seja dialeticamente acompanhado de uma consideração às estruturas materiais do poder que as constituem. Como efeito dessa incidência simultânea, a subjetividade, em Fanon, é compreendida como “o aparelho psíquico, modos de pensar, de sentir e de desejar” (Noguera, 2020, p. 11). Assim, Pele negra, máscaras brancas, traduz o esforço de Fanon em sustentar uma linha tênue que busca articular, em mesma medida, a análise da subjetividade e das estruturas de poder.
Retomamos essa consideração para enfatizar que, em Fanon, a análise da produção da subjetividade não se realiza desvinculada das dimensões histórica, política e social que engendram os modos de existência. Na tradição psicanalítica o complexo de Édipo foi concebido como matriz primeira que baliza a produção das formas de subjetivação. Movimento-síntese na constituição identificatória do eu, é também por intermédio dessa matriz que temos acesso às formações sintomáticas, compreendidas como reedições da mecânica edípica. Em Pele negra, Fanon (2008) recusa esse modelo para apreender os corpos em situação colonial, mas, ao mesmo tempo, dedica-se a apresentar seus sofrimentos, os impactos sobre eles da violência colonial, investigando a constituição de sua subjetividade. Ao procurar condições para aproximar o “preto e a psicopatologia”, Fanon espera estabelecer as particularidades que especificam o sofrimento e construção subjetiva do corpo colonizado.
Como afirmamos, não se trata de localizar o negro como elemento interno à triangulação. Para o psiquiatra martinicano, tal empreitada seria infrutífera e, antes, até indesejada. Virtualmente, para o negro submetido à situação colonial, o Édipo não acontece. Contudo, isso não quer dizer que o corpo colonizado não seja posicionado em relação ao complexo. Nesse sentido, é que, em uma aproximação do discurso psicanalítico, é possível reconhecermos em Pele negra a presença de dois elementos centrais pressupostos na triangulação edipiana, que são: (1) a sexualidade (o desejo na sua ambivalência de amor e ódio) e (2) o narcisismo. Como atesta Birman (2016, p. 24), se o complexo de Édipo pode ser, com propriedade, localizado em um terreno teórico de uma problemática, é exatamente pelo fato de o complexo manipular, em sua construção, “uma articulação e uma oposição entre os registros da sexualidade e narcisismo”. É em torno desses dois registros – sexualidade e narcisismo – que Fanon localiza a montagem do negro como corpo subordinado à brancura como ideal.
Por certo, a construção em questão não é aquela que expressa, ou que seja a expressão “do” sujeito negro, mas, sim, aquela que traduz as “fantasias brancas sobre o que a negritude deveria ser” (Kilomba, 2019, p. 38; grifo da autora). Se, por intermédio da sexualidade e do narcisismo, a subjetividade é desenhada no campo do humano, Fanon mostra que o negro, orbitando um lugar de degradação narcísica e coisificado como sexual, descobre a si mesmo como um semi-existente, como um “desvio existencial” (Fanon, 2008, p. 30). Por certo, através da ambivalência do desejo e da sexualidade mobilizados na constituição narcísica de um eu que não pensa a si mesmo como branco, é que Fanon encontra condições materiais para localizar a construção do negro como corpo racializado.
Dito em outras palavras, tradicionalmente, o complexo de Édipo, em psicanálise, mobilizou dois pilares basais da teoria psicanalítica: a categoria de sexualidade e a noção de narcisismo. Embora recuse o Édipo como balizador do corpo submetido ao domínio colonial, os dois pilares comparecem de forma decisiva em Pele negra, permitindo que Fanon explicite a fabricação do negro como mito. Indicaremos que é através da mobilização das dimensões sexual e narcísica que Fanon tece as particularidades que a mecânica de poder impõe ao corpo colonizado.
No que tange à sexualidade, a estrutura colonial circunscreve o negro ao registro biológico. Recusando qualquer voluntarismo nessa operação, diz Fanon que “o branco está convencido de que o negro é um animal, se não for o comprimento do pênis, é a potência sexual que o impressiona” (Fanon, 2008, p. 147). A força performativa da sentença é que ela reúne, na perspectiva do autor, o substrato que, manipulado pela norma colonizadora, engendra o negro como corpo. Sob a ótica colonial, o negro não é mais seu corpo biológico, e é ele quem inaugura, arrisca Fanon, “o ciclo biológico nas fobias do europeu” (Fanon, 2008, p. 141). Se a subjetividade é modulada na fronteira porosa que desloca o instinto para a pulsão (Freud, 1915/1996b), o negro permanece circunscrito à representação do instinto. Como corpo colonizado, “a imagem do preto-biológico-sexual-sensual-e-genital lhe foi imposta” (Fanon, 2008, p. 169). Localizado por referência a essa apreensão biologizante, “para a maioria dos brancos, o negro representa o instituto sexual (não educado)” (Fanon, 2008, p. 152), ou seja, o negro é, para o branco, a contraface do recalcamento. Daí que ele é, permanentemente, retratado em um lugar ambivalente que incorpora uma constante alternância entre repulsa e desejo3.
Lançado à condição de natureza animalizada, o negro incorpora a pulsão em sua força incontida, ele “encarna a potência acima da moral e das interdições” (Fanon, 2008, p. 152), ou seja, aquilo que, no campo da representação, aponta para o não assimilável. Em outros termos, ele representa projetivamente aquilo que, para o colonizador branco, permanece, tal como anuncia Freud (1930/1996c), indomado, como resultado da produção da civilização e da vida organizada em sociedade. Em última instância, diz Fanon, o substrato dessa coisificação redunda na conclusão de que, para o sujeito branco, “o negro é o símbolo do mal e do feio” (Fanon, 2008, p. 154). O negro encarna a abjeção estética e moral que a civilização evoca para se constituir.
Por existir nesse lugar de contraface, Fanon compreende que, para o eu branco, o negro cumpre a função de Outro. Ele ocupa o lugar daquele que “será o suporte de suas preocupações e de seus desejos” (Fanon, 2008, p. 147). O negro informa a representação fantasmática do modelo colonizador, daí que, para Fanon (2008), tal representação evoca, frequentemente, mecanismos de defesa ante o Outro temido. De acordo com Kilomba (2019), a difusão da atribuição nos planos da subjetividade e da cultura aponta para o fato de que o negro, mais que a representação de Outro, ocupa, para o modelo civilizatório branco, o lugar de “Outridade” (Kilomba, 2019, p. 38). Isto é, a redução do negro ao corpo biológico não é apenas uma régua através da qual o eu branco mede e fabrica a si mesmo. Como afirma, “as pessoas negras tornam-se a representação daquilo que a sociedade branca tem empurrado para o lado e designado como perigoso, ameaçador e proibido” (Kilomba, 2019, p. 159). O corpo negro é a personificação encarnada dos atributos repressores que esse modelo rejeita em si mesmo.
Tensionado entre ser um corpo que é visto como representação do horror, ou do não-representável do desejo, não é possível para o negro ocupar um lugar de “indiferença” (Fanon, 2008, 146), isto é, existir e ser visto fora de sua condição racializada. É graças ao efeito de tal redução objetificada que, afirma Fanon (2008, p. 140), “para se compreender psicanaliticamente a situação racial, concebida não globalmente, mas sentida por consciências particulares, é preciso dar uma grande importância aos fenômenos sexuais”. A hipótese lançada por Fanon é que, para nos aproximar das particularidades do sofrimento psíquico que alcança a subjetividade dos negros, é necessário conferirmos crédito (além das estruturas de poder) a esse lugar imaginário e simbólico de degradação e de redução do corpo negro ao biológico.
Por oposição a uma leitura global, que não considere os efeitos da marcação racial, Fanon sustenta a necessidade de um enfoque teórico-clínico que seja sensível ao sujeito negro em sua constituição social-histórica. Tal atenção, que aproximaria o discurso psicanalítico das experiências de sofrimento decorrentes do racismo, suporia, contudo, uma consideração da diferença racial em psicanálise. Uma apreciação, portanto, do fato de que haveria uma dissimetria nas condições de montagem subjetiva que distingue a construção dos sujeitos negros como efeito da incidência colonial e racial.
A resultante maior desse processo objetivo de coisificação sexual é que o negro experimenta a si mesmo como um estranho, como um não-eu. Não é necessário muito preâmbulo para afirmar que, construído sob essas condições, narcisicamente o negro existe em uma ferida. Para ele, a experiência fundante e continuada da violência resulta em um “desmoronamento do ego” (Fanon, 2008, p. 136), um destroçamento narcísico. Fanon (2008), em diferentes momentos de Pele negras, máscaras brancas, exemplifica “a vergonha e o desprezo de si” (Fanon, 2008, p. 109) que se apossa da existência e norteia os marcos relacionais dos negros.
Aliás, Pele negra, em muitas passagens referenciadas em primeira pessoa, expõe o flagelo, a descida ao inferno exigida para aqueles que procuram afirmar a si mesmos fora do lugar de resto biológico. Nessa direção, o livro pode ser anunciado como expressão dialética que, não apenas evidencia a construção do negro na abjeção, mas também, a recusa “com todas as minhas forças [d]esta amputação” (Fanon, 2008, p. 126). O capítulo A experiência vivida do negro (Fanon, 2008, p. 103) sintetiza suficientemente bem esse movimento, revelando as fragilidades impostas à vida emocional dos negros, ao tempo em que afirma a força exigida para a reinvenção de si. Assim, sem negar a incidência e a necessidade de alterações que contemplem as estruturas sociais, afirma Fanon (2008, p. 189): “o verdadeiro salto consiste em introduzir a invenção na existência”. Ou seja, o autor reconhece o lugar político de um trabalho sobre si que possa oferecer novos destinos ao destroçamento narcísico.
A trilha é a mesma seguida por Souza (1983), que, já no título do seu livro, enuncia, em uma apropriação estratégica da raça, o tornar-se como signo de um deslocamento que explicita a reinvenção de si fora dos marcos de subalternidade. O texto da psicanalista é farto em relatos que traduzem os impasses dessa condição subjetiva de não-existência e dos esforços para ressignificá-los:
Depois eu deixei de falar no espelho, mas eu me lembro que era uma coisa de eu me sentir. Não consigo explicar isto. Talvez esses fossem momentos onde eu não estava dispersa (...) Um dia eu me percebi com medo de mim no espelho e um dia tive uma crise de pavor e foi terrível. (Souza, 1983, p. 47)
Para Neuza Souza, tornar-se significa reconhecer a incidência ideológica da violência racista e exercitar-se na tarefa de desalienação, ou seja, na interrogação do “veredito impossível” (Fanon, 2008, p. 137), que transforma a brancura no ideal constitutivo de si mesmo. Partindo de Fanon, com Neuza Souza, o que é (re)afirmado é o destaque a um maior comprometimento do discurso psicanalítico em direção ao sofrimento imposto pela violência racial.
Finalmente, o que podemos depreender do percurso de Fanon é que essa condição de suporte constitutivo que o corpo negro realiza para sujeito branco cumpre a função daquilo que Judith Butler (2017), ao analisar a construção normativa, define como exterior constitutivo. Isto é, o fato de que a norma, para existir em sua condição regular, exige um fora, um externo, que, ao mesmo tempo que funciona como baliza, opera a sua construção. Se tivermos presente que o complexo de Édipo é correlato da instauração da função normativa no psiquismo, então, podemos afirmar que a norma psíquica conta, em seu funcionamento, com a montagem do corpo-racializado-negro.
É nesse sentido que, para Fanon, o corpo negro em situação colonial não surge exatamente como resultante das identificações psíquicas derivadas de um processo de triangulação edipiana, mas, de outra forma, será posicionado, marginalmente, como efeito/condição, isto é, como suporte para a existência do eu-corporificado-branco. Em outros termos, para o autor, a construção do sujeito branco, forjado a partir do recalque inconsciente da sexualidade e regulado pelas identificações trianguladas no complexo de Édipo, encontra-se apoiado na fabricação do negro como um subalterno, como um inferior. O corpo negro existe como contraface coisificada que encarna as ambivalências rechaçadas, em si mesmo, pelo eu branco e pela matriz civilizatória.
Complexo de Édipo e matriz colonial
A inegável controvérsia que acompanha a proposição freudiana do complexo de Édipo possui, como ponto de partida, a interrogação sobre a imprescindibilidade e a ocorrência invariável desse constructo. O estabelecimento dessas críticas trouxe consigo uma pergunta sobre os compromissos do discurso psicanalítico com o ideal colonizador. Ou seja, lançou um questionamento sobre o quanto a defesa apriorística do Édipo implicou certa padronização colonial na produção das formas de subjetivação.
Embora em sua amplitude essa interrogação não se reduza à psicanálise, ela compõe de forma importante o movimento que, desde os anos de 1930 e 1940, motivou o engajamento de intelectuais negros radicados na França e comprometidos com fortalecimento da luta anticolonial.
Na mesma direção, a objeção a essa matriz colonizadora é um desdobramento central propagado, na efervescência dos anos de 1960, por Deleuze e Guattari (2011). Para os autores, a crítica à universalidade do Édipo está ancorada na oposição à maquinaria do poder colonial, de maneira que “é tão verdade dizer que o colonizado resiste à edipianização como dizer que a edipianização procura fechar-se sobre ele. A edipianização é sempre um resultado da colonização (...)” (Deleuze & Guattari, 2011, pp. 174-175). Através dessa articulação, a defesa da ocorrência universal do modelo edípico é anunciada como adjacente à operação da matriz colonizadora.
Em outros termos, é a matriz colonial que, afirmando a centralidade institucional da família, predica a regulagem entre a subjetivação e a socialização e a realiza com recursos à opressão, uma vez que “supõe que esses Selvagens não estão sob o controle de sua produção social, prontos para serem rebatidos sobre a única coisa que lhes resta, a reprodução familiar que lhes é imposta tão edipianizada como alcoólica ou doentia” (Deleuze & Guattari, 2011, p. 185). Assim, a insistência do discurso psicanalítico na universalidade do Édipo produz, como consequência, um comprometimento desse discurso com a reprodução da mecânica colonial. Nesse sentido, para Deleuze e Guattari, a patologia a ser nomeada não é aquela que decorre de uma ausência, ou de uma insuficiência na inscrição Édipo, mas sim a que persiste através da imposição do constructo edípico como condição imprescindível que articula subjetividade e civilização.
Assim, se a prevalência desse modelo universalizante implicou em um compromisso com as estruturas coloniais do poder, Fanon (2008), por sua vez, interroga a pretensa universalidade estruturante do Édipo tendo em conta a diferença racial. Através da circunscrição das estruturas de poder, o autor delimita a insuficiência desse modelo abstrato, problematizando a diferencialidade da situação colonial, que fabrica o negro em condição de subalternidade. No que diz respeito ao discurso psicanalítico, com Fanon, o que fica colocado em evidência é a desconsideração desse discurso à diferença racial.
Ao indicar o limite explicativo do constructo edipiano, Fanon diagnostica a violência racial como um sintoma social, político e com consequências subjetivas que dizem respeito à psicanálise. Se, com Hall (1996), localizamos um diálogo aberto de Fanon com a psicanálise, é preciso reconhecer que a este se seguiu um ruidoso silêncio em relação ao pensamento de Fanon (Kilomba, 2020). Não obstante, retomemos as apostas do psiquiatra martinicano, para quem “só uma interpretação psicanalítica do problema do negro pode revelar as anomalias efetivas responsáveis pelas estruturas do complexo” (Fanon, 2008, p. 27). Essa aposta, no entanto, pressupõe desamarrar os compromissos estabelecidos entre a psicanálise e a perpetuação da matriz colonial, considerando a diferença imposta pela marcação racial.
Desse modo, o “problema do negro" referido acima por Fanon não diz respeito a um enquadramento do negro em uma especificidade psicopatológica, tampouco o considera a partir de uma inferioridade supostamente constitutiva (Fanon, 2008). Mas aponta para uma atenção teórico-clínica que, localizando os limites de um constructo invariável, possa ser sensível ao sofrimento decorrente da violência racial. Trata-se, pois, de, a partir da psicanálise, problematizar as práticas discursivas que naturalizam a produção subjetiva do corpo branco em sua relação de diferencialidade com a subjetividade negra.