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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.22 no.3 Fortaleza  2022  Epub 22-Nov-2024

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v22i3.e12759 

Estudos Teóricos

PSICANÁLISE E FEMINISMO EM KAREN HORNEY: A CRÍTICA AO REFERENCIAL MASCULINO

Psychoanalysis and Feminism in Karen Horney: The Critique to Male Referential

Psicoanálisis y Feminismo en Karen Horney: La Crítica al Referencial Masculino

Psychanalyse et Féminisme chez Karen Horney: Le Critique du Référentiel Masculin

Larissa Ramos da Silva1 
http://orcid.org/0000-0001-9299-7300; lattes: 2352913432403018

Andrea Gabriela Ferrari2 
http://orcid.org/0000-0002-4262-3033; lattes: 2433984194120349

1Psicóloga e Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

2Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Co-coordenadora do Núcleo de Estudo em Psicanálise e Infâncias (NEPIs)


Resumo

Karen Horney foi uma psicanalista alemã, pioneira da psicanálise, que publicou importantes textos nas décadas de 1920 e 1930, notadamente quando uma discussão intensa sobre a feminilidade despontava nos círculos psicanalíticos, mobilizando diversos autores e autoras. Mesmo assim, sua obra é pouco conhecida no Brasil. Desse modo, o presente artigo tem como objetivo o resgate de algumas de suas principais contribuições no que tange à crítica ao referencial masculino na psicanálise, com vistas a apontar sua relevância histórica e as possibilidades de inserção de suas formulações no contexto atual de discussões sobre psicanálise, feminismos e estudos de gênero no Brasil.

Palavras-chave teoria psicanalítica; feminismo; inveja do pênis; Karen Horney

Abstract

Karen Horney was a German pioneer psychoanalyst who published important texts in the 1920s and 1930s, notably when an intense discussion about femininity took place in psychoanalytic circles, mobilizing many authors. Nevertheless, her work is little known in Brazil. The present article aims to review some of her main contributions on the critique to male referential in Psychoanalysis, with the purpose to point out their historical relevance and the possibilities to articulate them with current discussions on Psychoanalysis, Feminisms and Gender Studies in Brazil.

Keywords psychoanalytic theory; feminism; penis envy; Karen Horney

Resumen

Karen Horney, psicoanalista alemana y una de las pioneras del psicoanálisis, publicó importantes textos en las décadas de 1920 y 1930, especialmente cuando surgió una intensa discusión sobre la feminidad en los círculos psicoanalíticos, movilizando a varios autores y autoras. Aun así, su obra es poco conocida en Brasil. Este artículo pretende rescatar algunos de sus principales aportes en torno a la crítica del marco masculino en el psicoanálisis, con el fin de señalar su relevancia histórica y las posibilidades de incluir sus formulaciones en el contexto actual de discusiones sobre psicoanálisis, feminismos y estudios de género en Brasil.

Palavras chave teoría psicoanalítica; feminismo; envidia del pene; Karen Horney

Résumé

Karen Horney a été une psychanalyste allemande et pionnière de Psychanalyse qui a publié des textes importants dans les décennies de 1920 et 1930, spécialement quand une discussion sur la féminité était née dans les cercles psychanalytiques, en mobilisant beaucoup des auteurs. Toutefois, ses travaux ne sont pas assez connus au Brésil. Cet article a l’objectif de revisiter ses principales contributions référant à critique du référentiel masculin à Psychanalyse, en vue de souligner sa pertinence historique et les possibilités d'inclure ses formulations dans le contexte actual des discussions sur psychanalyse, féminismes et études de genre au Brésil.

Mots-clés théorie psychanalytique; féminisme; envie du pénis; Karen Horney

Karen Horney foi uma médica e psicanalista alemã, nascida em 1885 nas imediações de Hamburgo, na Alemanha. Formou-se médica em 1913 pela Universidade de Berlim, quando recentemente alguns cursos de medicina na Europa passaram a aceitar alunas mulheres, e deu seguimento a seus estudos nas áreas de psiquiatria e psicanálise (Natterson, 1966; Sayers, 1992). Antes mesmo de obter seu diploma de médica, já havia se interessado pela psicanálise e fez análise com outros colegas pioneiros, como Abraham e Sachs1.

Em 1911, começou a frequentar a Sociedade Psicanalítica de Berlim, onde atendeu pacientes e apresentou trabalhos e palestras. Mais tarde, em 1920, foi a primeira mulher a se tornar membro do Instituto Psicanalítico de Berlim, que ficou historicamente conhecido por sua policlínica que oferecia atendimentos gratuitos em psicanálise, em um esforço de ampliação do campo de ação da clínica psicanalítica (Eckardt, 2005). Horney lá se ocupava tanto da transmissão da psicanálise, treinando novos analistas, quanto de atendimentos clínicos.

Mudou-se para os Estados Unidos em 1932 para ser diretora associada do primeiro instituto de psicanálise do país, em Chicago, a convite de Franz Alexander, outro pioneiro nessa área, que a conhecera no Instituto Psicanalítico de Berlim e interessou-se por sua postura inovadora, sua formação e sua fundamentação eminentemente clínica (Alexander et al., 1966). Em 1934, mudou-se para Nova York, onde mantinha um consultório e lecionava tanto no Instituto Psicanalítico de Nova York quanto na New School for Social Research, instituição fundada em 1919 por intelectuais progressistas para o estudo de humanidades e problemas sociais, existente até hoje. Suas produções e ideias revolucionárias, que se contrapunham a várias premissas de Freud, não foram bem aceitas pelo Instituto Psicanalítico de Nova York, culminando em sua saída em 1941, depois da qual fundou o Instituto Americano de Psicanálise, também existente até hoje (Eckardt, 2005; Gilman, 2001). Falecida vítima de câncer em 1952, em Nova York, sua obra inclui diversos textos e livros, como A Personalidade Neurótica de Nosso Tempo, de 1936, e Novos Rumos na Psicanálise, de 1939. Horney costuma ser mencionada como a primeira psicanalista a introduzir críticas feministas na psicanálise, tensionando alguns atravessamentos da lógica patriarcal nas teorizações freudianas e de outros/as colegas de sua época (Brasil & Costa, 2018; Garrison, 1981). Nas décadas de 1920 e 1930, as discussões sobre feminilidade e sexualidade feminina tomaram lugar central nas produções psicanalíticas, notadamente de psicanalistas mulheres (Rosa & Weinmann, 2020), dentre as quais Horney foi a mais enfática em suas críticas ao entendimento psicanalítico hegemônico da época em relação a essa temática (Garrison, 1981). Malgrado esse tenha sido um importante momento para os enlaces entre psicanálise e feminismo, muitas das contribuições de psicanalistas dessa época, em especial as mulheres, foram esquecidas (Rosa & Weinmann, 2020), levando à falsa noção de que a teorização freudiana sobre feminilidade era amplamente aceita inicialmente e teria sido criticada apenas posteriormente, por feministas na década de 1970 e 1980, após as leituras lacanianas de Freud.

Cabe resgatar, portanto, as contribuições elaboradas pelas pioneiras para relembrar os traçados históricos dos entrelaçamentos entre feminismo e psicanálise, o que torna possível melhor compreender o atual panorama da produção de conhecimento nesse terreno. Ou seja, se como afirma Winnicott (1975), de que só é possível ser criativo e original a partir de uma tradição, entende-se como fundamental conhecer as primeiras aproximações desses dois campos, nas quais Horney foi central para que possamos avançar em relação a elas hoje. Dessa forma, podemos prescindir da postura de considerar esses imbricamentos como estritamente contemporâneos, mas apontar as construções já elaboradas nesse âmbito há quase um século e, a partir delas, criar as condições de possibilidade para novas contribuições.

Assim, embora tenha sido uma pioneira da psicanálise, contemporânea de Freud e engajada no movimento psicanalítico de sua época, Karen Horney é pouco conhecida e estudada no Brasil. Enquanto, nos Estados Unidos, Horney teve influência mais explícita e duradoura, tendo fundado instituições e circulado suas obras e ideias mais amplamente em comparação ao Brasil, em nosso país é quase que desconhecida em suas elaborações teóricas e raramente lembrada ou mencionada em sua importância histórica no movimento psicanalítico. Suas contribuições teóricas são refletidas apenas escassamente na literatura acadêmica no Brasil, tendo apenas um artigo científico – produção bastante recente – que se debruça mais longamente sobre sua obra.

Trata-se de um artigo de Amorim e Belo (2020), que aborda o tema da monogamia em Karen Horney, enfatizando as formulações pioneiras da autora sobre o tema. No texto, os autores pinçam algumas das principais contribuições de Horney sobre a monogamia, no sentido de uma problematização desta enquanto ideal e da análise dos problemas no casamento, enquanto contrato social monogâmico por excelência, que apareciam com frequência em sua clínica. Em resumo, os autores apontam que Horney, por mais que se ancore em alguns pressupostos heteronormativos para suas teorizações, aporta também críticas em relação à monogamia que foram importantes para a época, como a proposta de relativizar a monogamia enquanto padrão absoluto nas relações. A construção dessa crítica se baseia, fundamentalmente, na demonstração de que dentro do arranjo monogâmico existem diversos desencontros provocados pelos atravessamentos inconscientes, indicando a não existência de uma perspectiva real de satisfação dos desejos inconscientes apenas pela via do casamento. Ou seja, a monogamia enquanto saída ideal para a relação entre parceiros deveria ser reavaliada, já que, como outros arranjos, também abarca inevitáveis conflitos; portanto, não deveria ser considerada melhor ou pior que os demais formatos de relacionamento através de padrões valorativos morais.

Por fim, o artigo coloca em relevo os apontamentos da autora no sentido de mostrar que os ideais patriarcais da cultura em que vivia traziam exigências maiores para mulheres do que homens, no que tange à monogamia, por conta da naturalização da mulher como objeto sexual, como um “bem móvel” (Amorim & Belo, 2020, p. 259). Se em um relacionamento monogâmico a noção de exigência de amor estaria ligada à exigência de posse, a fidelidade estaria mais a serviço da satisfação de impulsos narcísicos e sádicos do que, necessariamente, da demonstração de amor pelo outro. Em uma sociedade patriarcal na qual o ideal de feminilidade designa uma mulher objetalizada cujos anseios limitam-se à esfera familiar conjugal, isto se impunha mais fortemente às mulheres. Neste ponto, cabe comentar que a afirmação de Horney converge com aquela feita por Freud (1908/1977a) quando sugere uma moral dupla, mais permissiva com homens do que com mulheres em relação às exigências sexuais da vida moderna.

A quase ausência de conhecimento da obra de Horney em universidades e mesmo em instituições de psicanálise no Brasil contrasta com o aumento das produções acadêmicas com enfoque nos entrelaçamentos entre psicanálise e estudos de gênero, ou psicanálise e feminismo, tanto na forma de publicações de livros (Ambra & Silva, 2014; Ceccarelli, 2019; Mariotto, 2018; Martins & Silveira, 2020) quanto de artigos científicos (Cavalheiro & Silva, 2020; Martins, 2021; Santos, 2018; Stona & Ferrari, 2020), a partir dos mais diversos referenciais teóricos e posicionamentos ético-políticos. Surpreende-se, portanto, dada a importância de Karen Horney no estabelecimento das aproximações nessas áreas, que a autora seja pouco lembrada e referenciada nas produções acadêmicas do Brasil nessa mesma seara. Horney, desde momentos muito precoces da psicanálise, trouxe variados apontamentos relevantes para grande parte das reflexões em efervescência nesse campo hoje, tais como: a crítica ao referencial masculino nas teorizações e à universalidade do Édipo, a proposição de leituras da feminilidade que não se ancoram em um ideal de sujeito masculino, a ênfase na influência da cultura nas produções científicas e na própria subjetividade, a necessidade de um olhar para questões culturais na clínica psicanalítica, entre tantas outras (Horney, 1926/1991b, 1936/1977, 1939/1966). Além disso, foi uma crítica das generalizações e universalizações no pensamento psicanalítico, apontando também a necessidade de não tomarmos teorias produzidas em determinada cultura, a partir de diversos atravessamentos sociais específicos, como aplicáveis em qualquer contexto (Horney, 1935/1991g, 1939/1966). A partir disso, a autora alertava também que a psicanálise não deveria se tornar uma ferramenta de adequação ao que era considerado normal em uma cultura, mas preocupar-se com a saúde psíquica do sujeito, entendida por ela como a maior liberdade subjetiva possível para usufruir das próprias capacidades (Horney, 1939/1966).

Em um momento no qual a noção hegemônica sobre feminilidade na psicanálise incluía as ideias de masoquismo feminino, passividade inata, abandono do clitóris para a sexualidade vaginal, inveja do pênis e desvantagem/deficiência biológica, Horney teceu críticas pioneiras e proposições que fizeram avançar a psicanálise (Garrison, 1981), dialogando com estudos recentes à época nas áreas de sociologia, filosofia e antropologia, por exemplo. A autora sugeria que “a psicanálise terá de se libertar da herança do passado, se desejar desenvolver as suas grandes potencialidades” (Horney, 1939/1966, p. 41). Assim, Horney criticava alguns aspectos da psicanálise, especialmente no que tange à feminilidade, não para execrá-la ou condená-la, mas para libertá-la de “certas premissas condicionadas historicamente e das teorias a que deram origem” (Horney, 1939/1966, p. 12).

Pode-se pensar, portanto, que muitas de suas contribuições se mantêm atuais na produção psicanalítica, inclusive abrindo caminhos para os diversos diálogos, embates e entrelaçamentos entre psicanálise e feminismo que vieram posteriormente através de outras autoras. Sendo assim, a relevância de retomar sua obra não se limita, apenas, à importância de conhecer a tradição das produções nesse campo, mas amplia-se para pensar algumas das elaborações da autora como ferramentas potentes para a psicanálise atualmente. Isto é, sua obra, apesar de datada e limitada em alguns aspectos, que serão discutidos neste artigo, traz contribuições teórico-clínicas ainda úteis para reflexões contemporâneas.

Nessa esteira, torna-se relevante retomar algumas produções da autora para extrair de sua obra concepções que contribuam para as discussões atuais nesse terreno fértil de produções acadêmicas no Brasil. Tendo em vista a amplitude e complexidade da obra de Horney, tanto em extensão quanto em temáticas abrangidas, faz-se necessário, para o escopo do presente trabalho, selecionar um fio condutor para as discussões propostas, de forma a possibilitar uma reflexão aprofundada. Sendo assim, das questões suscitadas mencionadas anteriormente pela autora, optou-se pelo enfoque nas críticas de Horney ao referencial masculino na psicanálise, através da crítica da inveja do pênis enquanto parâmetro para pensar a feminilidade e da proposição de leituras que fogem desse paradigma. Esse aspecto da obra da autora será discutido em maior profundidade nas seções a seguir, com destaque para os enlaces possíveis entre psicanálise e feminismo.

A crítica de Horney ao referencial masculino

Nas décadas de 1920 e 1930, a discussão sobre sexualidade feminina e feminilidade foi protagonista no campo psicanalítico, o que esteve relacionado, segundo o próprio Freud (1933/2006), ao aumento da participação de analistas mulheres na produção teórica neste campo. Dentro desse cenário, psicanalistas debruçaram-se sobre conceitos como inveja do pênis, masoquismo feminino e feminilidade normal, para citar alguns. Nesse contexto, Karen Horney não foi a única autora a questionar alguns pressupostos psicanalíticos da época, acompanhada de nomes como Jeanne Lampl-de-Groot e Melanie Klein2, entre outras (Rosa & Weinmann, 2020). Contudo, foi a primeira a tecer apontamentos enfáticos sobre os atravessamentos da estrutura do patriarcado na produção psicanalítica (Garrison, 1981; Sayers, 1992), assim como muitas outras o fizeram e ainda fazem depois dela.

Um dos pontos iniciais do qual Horney (1926/1991b) parte nesse empreendimento é o de questionar o que chama de unilateralidade das pesquisas psicanalíticas e, até aquele momento, apontada pelo próprio Freud (1923/1996), (1933/2006), salientando que se baseava apenas no ponto de vista do menino, tomando-o como referência para presumir alguns aspectos da sexualidade feminina. Para tal, a autora começa por reconhecer que, naquela época, os principais pressupostos teóricos da psicanálise foram construídos por homens de uma determinada cultura, apontando um viés nos agentes de produção do conhecimento e as possíveis influências disso na psicanálise enquanto corpo teórico: “A psicanálise é criação de um gênio masculino, e quase todos os que desenvolveram as suas ideias são homens. É justo que desenvolvam com mais facilidade uma psicologia masculina (...)” (Horney, 1926/1991b, p. 51). Em outro texto, a autora menciona que o narcisismo masculino poderia ser uma das razões pelas quais alguns conceitos psicanalíticos, como a inveja do pênis, não fossem problematizados, mas tomados como obviedades:

(...) admitimos como verdade axiomática que as mulheres se sentem em desvantagem por causa de seus órgãos genitais, sem que isto seja considerado um problema em si; possivelmente devido ao narcisismo masculino isso tenha sido por demais evidente para precisar de explicações. (Horney, 1923/1991b, p. 35)

Assim, ela levanta a questão sobre um possível viés na produção de conhecimento sobre a feminilidade no campo psicanalítico até aquele momento através do apontamento de uma hegemonia no lugar dos agentes de produção do conhecimento psicanalítico. Para Horney (1926/1991b), a ideia de neutralidade na produção acadêmica e científica não procede, tendo em vista que toda a experiência contém um fator subjetivo. Como a psicanálise desde os primórdios se constituiu enquanto corpo teórico a partir da experiência clínica, as leituras teóricas possíveis referentes ao que se manifesta em análise não carregam apenas o conteúdo do que foi produzido pelo/a analisando/a, mas também “das interpretações que fazemos ou conclusões que tiramos de tudo isto” (Horney, 1926/1991b, p. 55). Através desse raciocínio, Horney (1926/1991b) afirmava que o fato de a grande maioria dos psicanalistas a teorizar sobre feminilidade, até a década de 1920, serem homens produzia limitações em relação ao que poderia ser elaborado enquanto teoria e interpretações de material clínico. É interessante notar que a autora, para inserir um estranhamento em relação a algumas teorizações psicanalíticas, aponta seu lugar de analista mulher: “Agora, como mulher, pergunto atônita (...)” (Horney, 1926/1991b, p. 56).

Partindo da interlocução com as propostas do sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918), que indicava que toda a noção de civilização era atravessada por sistemas hierárquicos de valorização que traziam o masculino como ideal e o feminino como inferior, Horney (1926/1991b) entende que a psicanálise, no que se refere à feminilidade, também estava sendo “medida por padrões masculinos” (Horney, 1926/1991b, p. 54). Apoiando-se nisso, postula a necessidade de um novo olhar sobre algumas concepções psicanalíticas, a fim de evitar que seguíssemos enquadrando tudo o que de novo pudesse surgir na clínica dentro de ideias já definidas sobre feminilidade.

Se, por um lado, Horney apontava a perspectiva hegemônica dos autores homens na psicanálise como um aspecto da unilateralidade das pesquisas psicanalíticas, por outro destacava o referencial masculino também acerca do objeto de estudo. Ou seja, como Freud (1923/1996), (1933/2006), notava que a maior parte das produções psicanalíticas, até a metade da década de 1920, baseavam-se apenas no desenvolvimento psicossexual do menino, inferindo que a menina deveria seguir caminho oposto – quase como um negativo do curso da constituição edípica do menino.

Como efeito disso, Horney (1926/1991b) entende que as ideias correntes à época sobre o desenvolvimento feminino quase que não diferiam das ideias típicas que um menino teria sobre uma menina em relação à diferença sexual. Isto é, se o menino valoriza seu pênis, apreende sua ausência nas meninas e faz a leitura de que são castradas e, portanto, inferiores, afirmando que a menina iria valorizar o pênis e invejá-lo a partir da apreensão de sua ausência em si mesma, e se veria como castrada e inferior. A autora problematiza essa concordância demasiada e propõe pensar em algo específico da feminilidade, que não parta necessariamente de um ideal de sujeito masculino e da noção de primazia do falo sugerida por Freud (1923/1996), que tomava o falo como referência para compreender a sexualidade de meninos e meninas. Sendo este um debate amplo e notório à época, Freud (1931/1977b) não se absteve de comentar as contribuições e críticas de Horney e outras autoras. Especificamente sobre a inveja do pênis, em relação à Horney, o autor menciona que não concorda com suas colocações, pois entendia que a inveja do pênis era constatável clinicamente, além de explicar conceitualmente, sob sua perspectiva, a repressão enérgica da feminilidade encontrada na clínica e na cultura.

Além disso, ao longo de sua obra, em muitos momentos Horney (1926/1991b), (1931/1991c), (1935/1991g), (1939/1966) aponta atravessamentos culturais nos entendimentos psicanalíticos sobre diferença sexual e feminilidade, sugerindo que preconceitos advindos do social estavam influenciando algumas teorizações sobre esses temas, o que impedia a psicanálise de avançar. Esses preconceitos estariam ligados a efeitos do patriarcado, como o referencial masculino enquanto ideal, a inferiorização das mulheres, a expectativa de que mulheres só se interessassem na vida do lar e na maternidade, entre outros (Horney, 1926/1991b, 1934/1991f). O chamado culturalismo da autora tomou espaço, notadamente, no decorrer de seus textos, tornando-se mais evidente e enfático em seus trabalhos mais recentes. Horney (1931/1991c), (1934/1991f), (1935/1991g), (1939/1966) empenhou-se, cada vez mais, no empreendimento de reconhecer o papel das contingências culturais da vida para o psiquismo e para o trabalho psicanalítico, pensando em como engendram as subjetividades de homens e mulheres:

A mulher norte-americana é diferente da alemã e ambas são diferentes de uma índia da tribo Pueblo. A mulher da sociedade de Nova York é diferente da esposa do fazendeiro de Idaho. O que esperamos poder compreender é a maneira pela qual condições culturais específicas engendram qualidades e faculdades, também específicas, tanto no homem quanto na mulher. (Horney, 1939/1966, p. 99)

Nessa via, a autora alertou para a presença de uma ideologia masculina estruturante da cultura e suas repercussões, tanto na teoria psicanalítica, quanto na constituição dos sujeitos e na forma como escutamos as manifestações clínicas em análise. Cabe ressaltar, neste ponto, que muito do que Karen Horney propõe em termos de leitura teórica apoia-se em sua experiência clínica com mulheres (Horney, 1926/1991a, 1923/1991b). Partindo de sua escuta de mulheres e do seu próprio lugar de analista mulher, como ela mesma sublinha (Horney, 1926/1991b), propôs a necessidade de questionar, por exemplo, por que a feminilidade era entendida como referenciada sempre à inveja do pênis como primordial e universal, como ponto de partida da sexualidade feminina.

Na verdade, Horney (1939/1966) chega a afirmar que, naquele momento, os analistas estavam deixando-se levar por um modo de pensar viciado que interpretava qualquer manifestação clínica vinda de pacientes mulheres através da chave de leitura da inveja do pênis. As mais diferentes ambições, desejos, sintomas, expressões de sentimentos, sonhos, tinham seus caminhos traçados até a inveja do pênis. Ela conclui: “De fato, são muito poucos os traços do caráter feminino que não são supostos ter origem da inveja do pênis” (Horney, 1939/1966, p. 87).

Em variados momentos de sua obra, Horney (1926/1991b), (1931/1991c, 1932/1991d, 1935/1991g, 1939/1966) critica o papel central que o conceito de inveja do pênis tomou para pensar a feminilidade. Para ela, dava-se pouca importância ao fato de os meninos também frequentemente manifestarem inveja de características físicas atribuídas à mulher, tais como os seios e a possibilidade de gestar. Ademais, Horney (1926/1991a), (1923/1991b, 1931/1991c, 1932/1991d) entendia que a inveja do pênis poderia, de fato, ser predominante em determinado momento da constituição psíquica, quando a menina compara sua capacidade de explorar seus genitais com a do menino, que os teria mais visíveis. Apontava, também, que o fato de ao menino ser permitido manipular e explorar seus genitais ao urinar poderia causar a impressão, na menina, de que a ele era permitido maior gratificação por meio da masturbação, o que traria algum nível de ressentimento. Entretanto, não considerava que isso fosse o suficiente para causar na menina ferida narcísica tal que a fizesse sentir-se inferior, abandonar a masturbação do clitóris e seguir ao longo da vida toda, em algum grau, buscando compensar a ausência do pênis.

Uma das razões pelas quais afirmava a insuficiência dessas colocações seria que, a partir de premissas da própria psicanálise freudiana, dificilmente abandonamos uma fonte de prazer já experimentada (Horney, 1935/1991g). Portanto, a ferida narcísica da menina ao dar-se conta da ausência do pênis teria de ser intensa e profunda a ponto de causar tal reviravolta na constituição da menina. Contudo, essa inveja não poderia ser fundamentada a nível biológico, tendo em vista o papel da mulher na reprodução, que considerava decididamente maior que o do homem, devido sua capacidade de gestar e nutrir. A autora sustenta que, em nível da luta social de reivindicação por maior ocupação dos espaços públicos por mulheres, a possibilidade da maternidade poderia ser vista como desvantagem, naquele momento cultural. Mas aponta que, na psicanálise, até aquele momento, a inveja do pênis era pensada a nível biológico e anatômico, e não social. Por conseguinte, trazia que, biologicamente, a inveja do pênis não teria como ser sustentada enquanto central na constituição das mulheres. A comparação do tamanho do pênis e do clitóris em relação à possibilidade de urinar em pé e de olhar e tocar o membro ao urinar, para Horney (1926/1991b), teria um papel limitado de importância pré-genital; contudo, a contrapartida da inveja da mulher seria tão importante ou maior e, ao contrário da inveja do pênis, não era considerada teoricamente, nem encontrava lugar na psicanálise ao pensar o desenvolvimento psicossexual do menino.

Além disso, ainda no âmbito da anatomia, a autora apontava as limitações no entendimento do papel da vagina no psiquismo das crianças. Freud (1923/1996) afirmava que a vagina seria desconhecida até a puberdade e, mais tarde, valorizada justamente como abrigo para o pênis e, eventualmente, para um bebê, visto enquanto substituto do pênis. Enquanto isso, Horney (1933/1991e) compreendia, a partir de sua experiência clínica com mulheres, tomando fantasias de suas pacientes, que a vagina não era desconhecida, causava sensações e era objeto de investimento psíquico das meninas, além de suscitar formas específicas de masturbação. Também neste ponto, discordava de alguns posicionamentos freudianos sobre as consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, pois o autor relacionava a inveja do pênis e a relevância desse órgão para meninos e meninas ao desconhecimento da vagina na infância. Para Horney (1926/1991b), (1933/1991e), outra limitação do conceito de inveja do pênis seria essa premissa errônea de que a vagina não teria efeitos psíquicos na infância. Na seção seguinte, as considerações da autora sobre esse ponto serão analisadas mais detidamente.

Em resumo, em termos biológicos e anatômicos, Karen Horney argumentava que a inveja do pênis e o desejo de masculinidade não se sustentavam. Não haveria motivos, no âmbito estritamente biológico, para que a inveja do pênis tivesse papel tão importante no psiquismo das mulheres e a inveja do útero e de outros atributos não tivesse o mesmo papel para homens. Aliás, se a inveja do pênis só se sustentava em relação a um momento pré-genital e a vagina não era desconhecida, como afirmou a autora, ler a feminilidade com centralidade nesse conceito não se sustentaria. Se fosse tomada a nível social, a inveja do pênis poderia abrir outras discussões. Horney (1926/1991b), (1934/1991f) apontou, por exemplo, que as mulheres ocidentais de classe média dispunham de menos saídas sublimatórias para a inveja do que os homens, tendo muitas esferas da vida limitadas ou restritas por imposições sociais. Indicou, ainda, que a “ideologia masculina” de que as mulheres são inferiores e de que todos os aspectos valorizados da cultura humana são relacionados ao masculino é introjetada desde cedo, fazendo com que as meninas cresçam interiorizando o olhar que as colocam como inferiores. Apesar de entender que a inveja do pênis não seria apenas um reflexo desse aspecto da cultura ocidental de seu tempo, considerava que era fundamental compreender o complexo cultural que fazia com que ela fosse tão facilmente aceita como central e universal, restringindo as possibilidades de pensar a feminilidade para além dela.

Ademais, a autora criticou a generalização do uso do conceito de inveja do pênis, amplamente adotado como norteador clínico e teórico à época (Horney, 1939/1966). Apontava que a experiência clínica da psicanálise com mulheres neuróticas não refletia, necessariamente, um paradigma para pensar as mulheres como um todo. Defendia que a dita inveja do pênis não poderia ser presumida como universal a partir de um número de experiências limitado com mulheres neuróticas, e que talvez não tivesse nenhum papel na vida de mulheres “normais”. Cabe lembrar, neste ponto, que por mais que a psicanálise tenha borrado as fronteiras entre normal e patológico desde seu início, na época em que Horney escrevia seus textos iniciais, era comum ainda haver uma certa divisão entre sujeitos neuróticos e “normais”. Ao longo de sua obra, em publicações posteriores, a autora segue um caminho diferente, problematizando os conceitos de “neurose” e “normalidade” e discutindo seus atravessamentos na psicanálise (Horney, 1937/1977, 1939/1966). Contudo, no contexto mencionado anteriormente, a afirmação da autora vai em direção de pontuar que a psicanálise não poderia generalizar a inveja do pênis para todas as mulheres, a partir da experiência clínica com mulheres em sofrimento que traziam essa problemática.

Por fim, a autora também enfatizava a necessidade de não generalizar o que a psicanálise havia construído como feminilidade por razões culturais. A experiência com mulheres inseridas em um determinado complexo cultural, que entendia a feminilidade de uma maneira, atravessada por diversas pressuposições ideológicas, não poderia servir de parâmetro universal para todas as culturas (Horney, 1935/1991g, 1939/1966).

A feminilidade para além da inveja do pênis

Horney não se limitou às críticas. Muitas vezes, quando se trabalha com os imbricamentos entre feminismo e psicanálise, existe a tendência de um enfoque nas críticas à psicanálise, que leva os/as psicanalistas a se questionarem: então, o que resta? Geralmente, essa pergunta implica que a crítica seria uma destruição da teoria, a partir da qual nada se coloca no lugar. Podemos entender, contudo, que o furo discursivo apontado pela crítica abre espaço, justamente, para novas construções que não seriam possíveis sem ela. Outra autora pioneira da psicanálise, Sabina Spielrein (1911/2014), embora não estivesse se referindo a isso especificamente, sustentou que a criação pressupõe a destruição. Ou seja, tomando a destruição como origem do devir, sugeriu uma ruptura com a dicotomia destruição versus construção/criatividade. Podemos transpor sua contribuição para o âmbito da construção da teoria, entendendo, assim, que as críticas que sugerem o abandono de alguns pressupostos fazem, justamente, a teoria avançar, como propôs a própria Horney (1939/1966, p. 35):

(...) ninguém, nem mesmo um gênio, pode-se libertar completamente do seu tempo e que, apesar da agudeza da sua visão, o seu pensamento é, de muitas maneiras, influenciado pela mentalidade de sua época. Reconhecer esta influência na obra de Freud, não só é interessante do ponto de vista histórico, como é importante para aqueles que se esforçam para entender, com maior profundidade, a intrincada e aparentemente obscura estrutura das teorias psicanalíticas.

Assim, podemos pensar que a crítica à teoria freudiana da feminilidade baseada na inveja do pênis foi fundamental para que Karen Horney pudesse avançar em suas produções. Poderíamos considerar que essa crítica, por si só, já foi uma construção inovadora da autora para sua época. Não obstante, partiu dessas críticas para construir leituras próprias, apoiadas e em diálogo com outros/as autores/autoras.

Cabe ressaltar, neste ponto, que as produções de Horney tiveram lugar em uma época em que o próprio feminismo estava em destaque na Europa e provocando movimentações sociais importantes e recentes, das quais a própria Horney pôde se beneficiar: aberturas de turmas que aceitavam mulheres em universidades, reivindicações sufragistas, maior entrada das mulheres de classe média no mercado de trabalho, entre outras. Nesse ínterim, é importante lembrar que o feminismo branco e europeu do fim do século XIX e início do século XX esteve focado em reivindicar direitos às mulheres e afirmar um lugar de mulher que não fosse ligado apenas a estereótipos de fraqueza e inferioridade.

Essas considerações são importantes, pois, mesmo que indiretamente, o trabalho de Horney se comunica com essa conjuntura. Quando propõe leituras da feminilidade alternativas às mais conhecidas à época, Horney produz um movimento de busca de afirmação de uma feminilidade que não estivesse totalmente referenciada no conceito de inveja do pênis. Na tentativa de teorizar sobre especificidades da feminilidade, a autora incorre, em muitos momentos, em visões essencialistas e biologizantes sobre feminilidade e diferença sexual. Constatamos em sua obra a existência de ideais cisheteronormativos, como a ideia de uma suposta linearidade entre feminilidade, mulher e útero/vagina. Assim, apesar da grande importância de seus textos para sua época e da possibilidade de utilizarmos algumas de suas formulações como ferramentas teórico-clínicas atuais, essa é uma ressalva importante, pois alerta para a necessidade de contextualização de suas proposições, para que não sejam inadvertidamente replicadas hoje sem leitura crítica. Por utilizar o corpo como suporte para certas conceituações, quando, por exemplo, parte do útero e da vagina para algumas teorizações acerca da feminilidade, como veremos a seguir, pode-se pensar que algumas lógicas normativas sobre corpo e sexualidade são reforçadas.

Uma das primeiras propostas teóricas de Horney no sentido de pensar a feminilidade em suas especificidades foi a importância psíquica do útero e da vagina, ainda para a criança. Ao contrário de Freud, Horney (1933/1991e), como referido anteriormente, não considerava que a vagina era desconhecida até a puberdade. A partir da experiência clínica com mulheres, a autora postulou que fantasias inconscientes referentes à vagina fazem parte da experiência infantil, bem como a masturbação vaginal – além da clitoriana. Portanto, Horney (1926/1991b) considerava equivocado pensar a masturbação como masculina, noção introduzida por Freud (1923/1996) em relação à organização fálica a partir do correlato pênis-clitóris:

Serão estes fatos tão misteriosos, quando falamos de meninas, só porque sempre os vimos pelos olhos masculinos? É provável, quando nem mesmo lhes concedemos forma específica de onanismo e tranquilamente descrevemos como masculinas suas atividades autoeróticas. (...) E não vejo porque, apesar da evolução, não se possa aceitar que o clitóris faça parte integrante do aparelho genital feminino e a ele pertença legitimamente. (Horney, 1926/1991b, p. 61)

Para Horney (1926/1991b), (1933/1991e), a vagina provocaria consequências psíquicas específicas já na infância. Baseada em um modelo edipiano clássico, afirma que a menina teria fantasias de penetração em relação ao pai, assim como o menino teria fantasias de penetrar a mãe, por conta de sensações fisiológicas. Para a menina, isso implicaria na angústia de castração frente à possibilidade de penetração pelo pênis desproporcionalmente maior do adulto, fazendo com que a angústia da menina tenha relação com a mutilação física. Enquanto isso, o menino sofreria de uma angústia narcísica frente à mulher adulta, já que seu pênis infantil seria sentido como pequeno demais para a penetração. Horney, à maneira de Freud, propõe então uma consequência psíquica da diferença anatômica entre os sexos, porém partindo de pressupostos diversos: enquanto Freud se baseia na primazia do falo, Horney parte da especificidade de cada órgão.

Além disso, como Freud, a autora considera que as fantasias edipianas infantis são acompanhadas de práticas de masturbação. No caso da menina, Horney (1923/1991b), (1932/1991d) propõe que a angústia de castração vinculada à mutilação corporal é demonstrada nas fantasias de pacientes que acreditavam ter provocado uma ferida interna ou buraco com a masturbação vaginal, acompanhadas de culpa pelas fantasias incestuosas em relação ao pai e medo de serem descobertas.

Horney (1926/1991b), (1931/1991c) afirma, ainda, que a possibilidade de gestar sugerida pela presença do útero faria com que mulheres tivessem seu papel na reprodução e no avanço da cultura humana garantido, através do potencial de criar e nutrir uma nova vida. Portanto, se a inveja do pênis tinha um lugar psíquico importante na comparação com meninos a nível pré-genital, a nível genital ela seria superada. Os homens, ao contrário, teriam grandes dificuldades em superar a inveja do útero e dos seios, pelo seu papel biológico relativamente menor em relação à mulher. Uma parte da razão pela qual os homens insistiam em inferiorizar as mulheres, mesmo em âmbito científico, segundo a autora, seria justamente a forte inveja reprimida e a angústia narcísica frente às mulheres.

Em termos do desenvolvimento psicossexual e suas influências biológicas e anatômicas, essas foram as principais propostas da autora em relação à feminilidade. Entretanto, com o passar dos anos, sua obra foi dando cada vez mais destaque ao papel da cultura, notadamente a partir do contato com algumas obras sociológicas e filosóficas, além de ginecologistas, antropólogos e biólogos, e da análise de produções científicas recentes e de criações culturais como teorias religiosas, mitologias e obras literárias. Ademais, o conhecimento de culturas diversas, principalmente após sua mudança para os Estados Unidos, também teve influência nas movimentações de sua produção:

A grande emancipação dos pensamentos dogmáticos que encontrei nos E.U.A. facilitou-me a tarefa de não aceitar, como certas, as teorias psicanalíticas e deu-me a coragem de prosseguir pelo caminho que considerava justo. Mais ainda, o familiarizar-me com uma cultura que em muitos pontos é diferente da europeia ajudou-me a compreender que muitos conflitos neuróticos, em última análise, são determinados por condições culturais. (Horney, 1939/1966, p. 15)

Assim, suas contribuições mais tardias não apresentam mais uma crítica centralizada no reconhecimento das especificidades do que seria o corpo da mulher e sua constituição psíquica a partir da afirmação de uma feminilidade que não se ampara totalmente no masculino. Começaram a aparecer noções sobre um complexo cultural que priorizam ideais tidos como masculinos, que transmite às meninas, desde cedo, a crença de que são inferiores, além de estimular manifestações clinicamente interpretadas como masoquistas mais em mulheres que em homens:

É preciso considerar em particular o fato de que, se alguns ou todos os elementos sugeridos estão presentes no complexo cultural, podem aparecer certas ideologias fixas quanto à “natureza” da mulher; assim, como doutrina de que ela é congenitamente fraca, emotiva, gosta de ser dependente, tem pouca capacidade para trabalhar independentemente e pensar sozinha. Fica-se tentado a incluir nesta categoria a crença psicanalítica de que a mulher é masoquista por natureza. É bastante óbvio que essas ideologias funcionam não só para reconciliar as mulheres com seu papel subordinado, apresentando-o como inalterável, mas para implantar também a crença de que isto representa realização pela qual elas anseiam ou ideal pelo qual é louvável e desejável que se esforcem. (Horney, 1935/1991g, p.227)

Horney (1935/1991g); (1939/1966) propunha, ainda, que as teorizações psicanalíticas não deveriam ser generalizadas ou tomadas como universais, e que contextos culturais diversos do europeu poderiam engendrar noções diferentes sobre feminilidade. Criticando algumas ideias correntes à época sobre uma suposta disposição inata das mulheres a voltarem-se exclusivamente para os homens e a maternidade, chegou a afirmar que “(...) os fatores biológicos jamais se manifestam de forma pura e franca, mas sempre são modificados pela tradição e o ambiente” (Horney, 1934/1991f, p. 181). Ou seja, mesmo leituras sobre o biológico ou o inato não revelariam uma pureza ou natureza referentes à feminilidade. Dessa forma, a autora propôs não apenas uma leitura do biológico que afirmasse uma especificidade do lugar da mulher não ancorada em ser o negativo do homem, como abandonou algumas premissas biologizantes para, futuramente, colocar em relevo o papel da cultura na constituição do que se conhecia por feminilidade e na própria teoria psicanalítica.

Considerações finais

O presente artigo objetivou, através de estudo teórico, retomar algumas produções de Karen Horney em relação à crítica ao referencial masculina presente em sua obra e suas consequentes produções sobre feminilidade. O intuito dessa retomada não consiste em sugerir que suas contribuições devem ser relevadas em detrimento de outras, mas em mostrar que as críticas a algumas concepções psicanalíticas sobre diferença e sexual não são recentes e a teoria freudiana sobre o tema não foi aceita unanimemente nos círculos psicanalíticos até poucos anos atrás. Na realidade, desde os momentos mais iniciais no campo psicanalítico, críticas e outras possibilidades de leitura sobre a feminilidade que reconhecessem o atravessamento do patriarcado na construção da própria teoria foram realizadas, notadamente por Horney.

Sublinha-se que, malgrado suas produções contenham algumas noções cisheteronormativas, suas contribuições em relação ao atravessamento de preconceitos de uma cultura patriarcal na teoria psicanalítica e de ideologias masculinas que provocam ruídos para a escuta e a teorização são ferramentas para discussões atuais no campo dos enlaces entre Psicanálise, feminismos e estudos de gênero. Ademais, a atenção prestada à dimensão cultural que atravessa a constituição do psiquismo e a defesa de que psicanalistas se ocupassem dessas questões também se apresenta como concepção que se mantém atual.

Concluímos, assim, que tanto em termos históricos quanto em termos de relevância teórica, a obra da autora se faz relevante para o campo psicanalítico em suas intersecções com feminismos e estudos de gênero. É digno de nota que Karen Horney influenciou diretamente outras autoras que trabalharam nas encruzilhadas desses campos, como Gayle Rubin (1975) e Luce Irigaray (2017). A ampliação das perspectivas de leitura que possibilita a aposta na hibridez com outras áreas de conhecimento e no avanço da psicanálise em detrimento da fixidez em determinadas doutrinas atualizam-se como contribuições que, mesmo datadas em quase um século, permanecem vivas e atuais.

1Karl Abraham (1877-1925), psicanalista alemão, e Hanns Sachs (1881-1947), psicanalista austríaco.

2Jeanne Lampl-de-Groot (1895-1987), psicanalista holandesa, e Melanie Klein (1882-1960).

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Recebido: 22 de Junho de 2021; Revisado: 09 de Fevereiro de 2022; Aceito: 28 de Fevereiro de 2022; Publicado: 27 de Dezembro de 2022

Larissa Ramos da Silva E-mail: larissa.ramos63@gmail.com

Andrea Gabriela Ferrari E-mail: ferrari.ag@hotmail.com

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