Os estudos na clínica com crianças autistas sempre nos dirigiram a buscar sua lógica de funcionamento para tratá-las. Do mesmo modo, a clínica de adolescentes e adultos autistas nos tem interrogado em relação a esse fazer na clínica a partir de seus relatos. Apoiados em leituras de autobiografias de autistas adolescentes e adultos (Bialer, 2017) e em fragmentos de memória da escuta de um caso da nossa experiência clínica, nos deparamos com os relatos de um sujeito sobre sua vida solitária, porém profícua no que se refere à busca de entendimento de um mundo que lhe é intrusivo, buscando, à sua maneira, um modo particular de relação com o Outro.
Nossa experiência na clínica com adolescentes autistas nos convoca a interrogar, essencialmente, seu modo particular de manejo da linguagem. Isso porque, ao escutar o que nos falam esses sujeitos, percebemos que há, por parte deles, uma língua muito específica, única, para representar seus sentimentos e se defender do mundo invasivo. Todavia, o que nos interroga nessa clínica, e que iremos tratar neste artigo, é a fala dos autistas, que, tomada por expressões linguísticas muito particulares, nos leva a investigar o modo como eles se apresentam no campo da linguagem.
Estar aberto à linguagem é estar aberto às demandas vindas do Outro, o que convoca o sujeito a uma posição de enunciador. Os autistas são sujeitos para quem as palavras carregam um peso muito grande, como nos lembra Vorcaro (2017, p. 9) ao remeter à orientação de Lacan em relação aos autistas. Justamente por isso, enunciar é tomado por eles como uma perda de si. Apoiados nessa dificuldade que se faz notável na relação particular do sujeito autista com a linguagem e sua enunciação, acreditamos que a memória da escuta de fragmentos das falas dos adolescentes autistas, que realizamos em nossa clínica, podem ajudar a nos aproximarmos de certo entendimento sobre a posição do autista na linguagem. Os conceitos de linguagem, a língua e voz serão nossos condutores nesta investigação, seguindo em parte a orientação de Patrício Alvarez Bayón (2020). Para tal percurso, iremos nos ater à importância da linguagem enquanto campo, que permite o advento do sujeito e como o autista se apropria desta, para podermos elucidar o uso peculiar que ele faz da língua.
Método
A produção deste artigo se orientou pelos princípios fundamentais da psicanálise no que concerne à experiência de pesquisa em uma universidade. Porém, faz-se relevante “considerar que a intensa presença da psicanálise na universidade não pode se limitar unicamente à expressão de seus princípios fundamentais” (Calzavara, 2020, p. 14). Do mesmo modo, reiteramos que a formação do pesquisador em psicanálise deve estar associada ao exercício da prática clínica psicanalítica. Sendo assim, utilizamos como metodologia a psicanálise aplicada a partir da construção do caso clínico por meio da recordação de fragmentos da escuta de um adolescente autista na clínica. No que concerne à psicanálise aplicada tomamos Frayze-Pereira (2006) em seu trabalho no campo da estética quando aponta sobre a relação entre psicanálise aplicada e a obra de arte. O autor cita o ensaio freudiano de Moisés de Michelangelo, em que Freud, ao observar a obra de arte, em sua dimensão visível, busca apreender o que suscita no observador da dimensão invisível intrínseca à obra. Seguindo Frayze-Pereira tomamos o caso clínico neste artigo como fonte de ilustração ao utilizarmos a modalidade específica da escuta psicanalítica.
Desde o início de seus estudos, Freud se amparou, para a construção de sua teoria, nos relatos dos casos atendidos por ele, apresentando a nós a necessária articulação entre teoria e prática do caso clínico. Essa proposta de construção do caso clínico, como demonstram Vorcaro e Mendes (2021) se faz por meio da singularidade de cada caso e por entender que cada sujeito encontra um modo particular de saída àquilo que se apresentou como ruptura a partir do desencadeamento de uma crise. Construir o caso clínico é colocar o sujeito a trabalho e estar pronto para escutar e construir um saber sobre sua história.
É preciso sempre se lembrar, em uma prática psicanalítica que refere à construção do caso clínico, que devemos ser aprendizes da clínica. Dessa maneira, poderemos, a partir das elaborações do sujeito, construir os passos para a condução do tratamento. A função do analista nessa clínica aplicada à terapêutica é sempre estar a postos para o que de espanto e surpresa pode surgir na clínica.
Do mesmo modo, é na recordação da escuta do relato clínico do sujeito em questão que construímos o caso. A recordação do relato do caso apresentado, realizado por um dos autores deste artigo, nos leva a construir algumas características importantes desse discurso analisante tal como destaca Dunker (2013, p. 71). São elas: a recordação, a implicação e a transferência. A recordação apresenta em seu âmago a possibilidade de “se guiar pela história e pelas filiações e contingências que ela implica”. Por isso, a implicação corresponde a “um discurso que possa se interrogar eticamente sobre as formações de estranhamento com as quais se depara”, e a transferência, “isto é, um discurso que se articule em relação a uma suposição de saber, que se faça, portanto, pelo menos intenção de diálogo”. Essas características, como diz Dunker (2013), fazem da psicanálise aplicada e do discurso do analisante a ela associado um método de descoberta.
O método do relato clínico se faz na passagem da experiência clínica para sua elaboração teórica. Figueiredo (2004) fala de binômios para a construção de caso clínico, que seriam balizas orientadoras para a construção. São eles: a história e o caso. A história seria o relato do sujeito com sua narrativa própria, e o caso “é o produto do que se extrai das intervenções do analista na condução do tratamento e do que é decantado de seu relato” (Figueiredo, 2004, p. 79). Assim, a recordação do relato do caso clínico permitirá certa formalização do caso, permitindo sua construção como método clínico de trabalho. O caso clínico, se for muito detalhado, torna-se exaustivo. Por outro lado, se for reduzido demasiadamente, ele se perderá em seus significantes essenciais. Entretanto, é preciso reiterarmos que foi possível, a partir de uma escuta especializada amparada na psicanálise, depreendermos as dificuldades inerentes à enunciação desse adolescente e construirmos o caso a partir da memória de seus relatos. Acreditamos que artigos que tratam de relatos de casos clínicos como os de Rezende (2021) e de Toniolo (2021) a partir da recordação desses relatos promovem uma contribuição relevante para a psicanálise em intenção e extensão no que tange às questões e discussões clínicas do caso relatado.
Resultados e Discussão
Alíngua e linguagem
No campo da constituição dos sujeitos, a linguagem se inscreve como fundamental para o sujeito advir. No entanto, essa operação, por si só, não dispõe ao sujeito a capacidade de falar, já que esta não é um processo natural, mas uma conquista do sujeito. Lacan inscreve o sujeito segundo duas operações lógicas para a sua constituição: a alienação e a separação. Na alienação, Lacan destaca a relação entre o sujeito e o Outro, sendo este definido como o lugar da cadeia significante e que participa da direção do que vai ser dito sobre o sujeito. Logo, na alienação, o sujeito está inscrito no campo da linguagem recebendo as marcas significantes do Outro e sendo aí representado. Esse momento de alienação confere ao sujeito a posição de ser na linguagem. Por outro lado, a separação “envolve o confronto do sujeito alienado ao Outro; desta vez não como linguagem, mas como desejo” (Silva & Calzavara, 2016, p. 90). Na interseção entre o sujeito e o Outro, o que excede dessa interseção é subtraído na operação de separação. O que é subtraído é da ordem do objeto a, que promove, a partir de sua queda, a assunção do sujeito no campo do desejo, dando início, a partir dos dois pares de significantes S1 e S2, à cadeia discursiva.
Para o sujeito autista, no âmbito estrutural, o que fica evidente é que a operação de separação não se efetuou. Assim, temos um sujeito parcialmente alienado ao Outro, por meio da linguagem que o antecede e o faz advir, e por conta dessa alienação parcial tem dificuldades com a operação de separação que o colocaria em relação com o desejo e a falta (Maleval, 2018). Portanto, não havendo a operação que localiza a falta, o Outro se apresenta como uma presença de gozo demasiadamente invasiva, maciça, levando o sujeito a recusá-lo por tal invasão. Ainda que o sujeito autista se defenda, por meio da cessão de gozo, que o campo da linguagem lhe implica, ele está no seu campo, mas não articula um discurso que permita a emissão de mensagem ao Outro. Há, nesse momento constitutivo, algo no autista que se congela. Esse algo seria da ordem do S1, que não faria cadeia discursiva e, desse modo, não representa o sujeito para outro significante. Todavia, apesar desse congelamento de S1, não se pode dizer que o autista não fala, mas que tem com a linguagem uma relação muito particular.
Entretanto, Lacan (2008, pp. 148-149), em seu “Seminário livro 20: Mais ainda”, diz que “a linguagem é apenas aquilo que o discurso científico elabora para dar conta do que chamo de a língua”. Isso porque, continua Lacan, “se eu disse que a linguagem é aquilo como o que o inconsciente é estruturado, é mesmo porque a linguagem, de começo, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber concernentemente à função de a língua”, pois a língua, completa Soler (2012), evoca a língua antes da linguagem estruturada em sua sintaxe. Lacan (2008), ao dizer que a linguagem de começo não existe, está concedendo à a língua sua relevância e sua anterioridade na relação com a linguagem. A língua, ela não serve ao diálogo. Ela nos afeta primeiro e, sem dúvida, como diz Lacan (2008, p. 149), “a linguagem é feita de a língua. É uma elucubração de saber sobre a língua. Sendo assim, continua Lacan, “se se pode dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de a língua, que já estão lá como saber, vão bem além de tudo que o ser que fala é suscetível de enunciar”.
Em seus estudos sobre o autismo, Maleval (2018, p. 9) atesta a entrada do autista em alíngua, definindo-a como “pura bateria significante, sem gramática, constituída de S1, fundada nas homofonias infantis, enraíza-se no balbucio. Ela constitui o caminho pelo qual se dá a incorporação significante”. Porém, o autor aponta uma especificidade da a língua autista revelando que dela não emergem significantes-mestres. Isso porque, devido ao fato de o grito do infans não ter se tornado um apelo, ele recebe os significantes de maneira passiva e não os articula com outros significantes. A língua autista é pobre, porque seus S1 não têm potencial para se tornarem significantes-mestres. Ela é constituída de vários S1 sozinhos, não estando a serviço da comunicação, já que esses Uns sozinhos permanecem como um enxame de significantes isolados. É a essa questão que Lacan (2008, p. 152) se refere em “Mais, ainda” ao dizer que “o significante, em si mesmo”, ou seja, sozinho, “não é nada definível senão como uma diferença para com um outro significante”. Entretanto, é a partir desse enxame de Uns que o caminho, o qual mencionamos, que poderia culminar em um significante-mestre e que afirmaria “a unidade de copulação do sujeito com o saber” (Lacan, 2008, p. 154), possibilitando a articulação de uma cadeia significante, estruturalmente não ocorre de modo integral no autismo.
Isso nos leva ao entendimento, completa Maia (2017, p. 119), de que “alíngua e simbólico se constituem de S1 e na elucubração do saber é preciso produzir algo como um S2, ou seja, colocar os S1 em cadeia, para se estabelecer um discurso”. É preciso que o significante mestre (S1) se articule com os significantes do saber (S2) para que a cadeia discursiva se faça, surgindo, então, o sujeito entre dois significantes. Em razão dos deslizamentos metafóricos e metonímicos da cadeia significante, há um deslizamento indefinido do sentido. Em outras palavras, é fundamental que a criança localize no campo do Outro a falta necessária como primeiro momento da constituição de um lugar onde ela possa responder na linguagem. Por isso, há uma grande dificuldade que persiste em graus variados no autismo: tomar uma posição de enunciador na linguagem.
Dessa forma, o encontro com a linguagem se apresenta tão insuportável para o autista que ele não cede sua voz à articulação pulsional com o Outro. É nesse ponto que o sujeito coloca obstáculo em sua inscrição no campo do Outro e, desse modo, à possibilidade de cifrar o gozo do Outro. Sendo assim, a voz é sentida pelo sujeito como estranha e assustadora, sendo essa voz representante de um objeto pulsional, “que em relação aos outros três objetos pulsionais – oral, anal e escópico, a voz tem o privilégio de ser o que comanda o investimento da linguagem” (Maleval, 2017, p. 91). A não cessão sobre esse objeto pulsional específico é o que nos permite concordar com os autores, que defendem o autismo como uma estrutura clínica própria: não ceder sobre a voz dificulta um saber-fazer com e na linguagem, que implica se situar na posição de enunciador e suportar a resposta do Outro que essa posição provoca.
O objeto voz no autismo
Freud trabalhou as questões relativas à voz tanto na paranoia quanto na alucinação bem como no insulto masoquista na neurose e perversão, acentuando, também, a voz da consciência caracterizada pelo supereu (Catão & Vivés, 2011). Todavia, como nos diz Miller (2013, p. 1), foi Jacques Lacan quem deu à voz um lugar específico na psicanálise, “um lugar de objeto a, com minúscula, naquilo que chamou de sua álgebra”.
No que concerne à voz, Miller (2013, p. 6) assevera que ela é uma instância que “merece inscrever-se entre a função da fala e o campo da linguagem”. Isso porque a fala confere um certo sentido às funções do sujeito, pois ela permite o enlace entre o significante e o significado no campo da linguagem. A partir disso, a noção de voz em psicanálise não se inscreve como entende o senso comum. A voz, no sentido dado por Lacan, conforme diz Miller (2013, p. 7), “não somente não é a fala, como em nada é o falar”. Continua:
A voz, no uso muito especial que Lacan faz desse termo, é sem dúvida uma função significante – ou melhor, da cadeia significante como tal. Como tal implica que não é somente a cadeia significante como falada ou entendida, também pode ser muito bem enquanto lida ou escrita. O ponto crucial dessa voz é que a produção de uma cadeia significante – eu lhes digo nos termos mesmo de Lacan – não está ligada a este ou aquele órgão dos sentidos, a este ou aquele registro sensorial. (Miller, 2013, p. 8)
Interessante recordarmos que os gregos retratam esse poder de encanto e horror da voz no poema épico de Homero – “Odisseia” –, justamente na narrativa que descreve a passagem de Ulisses próximo à ilha de Capri, local já representado por ser habitado por sereias. Conhecedor do encantamento provocado pela voz das sereias, Ulisses aponta uma saída para a passagem pela ilha: propõe aos seus marinheiros amarrá-lo em um mastro no navio e não o desamarrar até que finde a passagem. Além disso, ordenou que seus marinheiros tapassem os ouvidos com cera. A narrativa prossegue e o texto relata que, ao chegarem próximos à ilha, Ulisses gritava desesperadamente para ser desamarrado, o que não era ouvido pelos demais ali na embarcação. Assim, Ulisses foi capaz de ouvir o canto da sereia e sobreviver (Bentata, 2009). O percurso de Ulisses, prossegue Bentata (2009, p. 19):
(...) seria semelhante ao do Infans que, para se nomear, se subjetivar, deve, imperativamente, transpor a difícil etapa da montagem pulsional da Voz. Do ponto de vista clínico, provavelmente, a maior dificuldade para o jovem autista é poder amarrar-se ao mastro e suportar a acalentadora voz materna, em uma travessia que lhe permitiria apropriar-se dela, de fazê-la sua.
Apresenta-se, então, a voz em sua face pulsional em detrimento de se pensar nela como um mero veículo das palavras. Isso nos faz relembrar que a voz não tem somente seu caráter simbólico, mas se reveste também do real.
A partir disso, Lacan (2005, pp. 299-301) continua: “A linguagem não é vocalização. Vejam os surdos. (...) A voz, portanto, não é assimilada, mas incorporada”. Assim, esclarecem-nos Catão e Vivés (2011), a voz não se identifica ao som, pois sua materialidade não é sonora, mas incorpórea. No que concerne aos três registros – o imaginário, o simbólico e o real –, os autores destacam: “O som é a vestimenta imaginária da voz. A prosódia é seu registro simbólico. As alucinações psicóticas são uma mostração do real da voz, de outro modo impossível de acessar” (Catão & Vivés, 2011, p. 85). É dessa maneira que a voz é uma dimensão de qualquer cadeia significante, seja ela sonora, escrita e visual, que comporta uma atribuição subjetiva para o sujeito e designa um lugar para ele. Lacan chama a voz como um efeito da foraclusão do significante (Miller, 2013). Ela é o paradigma do objeto pulsional, uma vez que esse, sendo o primeiro a se constituir, é o articulador por excelência da necessária incorporação da linguagem. Primeiro vazio em torno do qual se organiza o circuito pulsional próprio ao funcionamento do ser falante” (Catão & Vivés, 2011, p. 85), então, a voz constitui para o objeto uma função primordial.
Sendo assim, como diz Lacan (2005, p. 298), “tudo que o sujeito recebe do Outro pela linguagem diz a experiência comum que ele recebe sob forma vocal”, porque, muito antes de falar, o sujeito é colocado sob o campo da escuta. A criança não pode não ouvir, já que o ouvido é um orifício que não se fecha. O que pode ocorrer é a criança recusar a dar seu consentimento à incorporação da voz. No entanto, é preciso que a criança dê seu consentimento à alienação à linguagem. Esse seria um primeiro sim que a criança daria no estabelecimento do laço com o Outro.
A mitologia, retratada na “Odisseia” com Ulisses e o canto da sereia, continua a contribuir com o esclarecimento da voz como primeiro objeto pulsional, agora, por meio de Orfeu. Este último, tal qual Ulisses, escapou do canto das sereias, mas Orfeu encobriu a voz das sereias com o som de sua Lira (Bentata, 2009). Vivés (2013) faz uma analogia, utilizando a mitologia grega, sobre a voz da sereia, que, na tradução do grego, significa grito, um grito que faz um apelo incondicional, e o canto de Orfeu, que nesse canto traz, também, inserida a palavra. A partir disso, Vivés (2013, p. 22) destaca uma correspondência entre a posição da mãe em sua relação com a criança dizendo:
Esses dois aspectos da relação da mãe com a criança – a de sereia e de Orfeu –, de fato, poderão ser descritos sob a dupla injunção: venha, a injunção da sereia, e advenha, a injunção do poeta Orfeu. Há o encontro entre esse duplo apelo maternal e a recepção que a criança vai fazer desse encontro.
A despeito de se pensar que tudo se passa do lado da mãe, não é disso que se trata. É essencial destacarmos que há dois aspectos no que concerne à determinação do sujeito: um que se traduz por um venha para o sujeito, mas que necessita, em um segundo tempo, que esse sujeito consinta, com esse chamado, para advir. Seguindo a hipótese metapsicológica, sustentada por Vivés e Catão (2011, p. 86), o sujeito “deve, ainda, tornar-se surdo para a voz do Outro, momento correlativo do recalque originário. Há, então, uma surdez necessária à estruturação psíquica”, isso porque o momento em que o sujeito advém, pela emergência do recalque originário, seria ligado à necessidade de poder manter à distância o real sonoro primordial.
A partir disso, sobre o ato de falar do sujeito, como diz Vivés e Catão (2011), não há nada de natural na fala, uma vez que a criança, ao exercer a função da fala, nos indica que ela percorreu o caminho complexo que a inscreve no campo da linguagem; um caminho que se inicia antes mesmo da constituição de um corpo próprio, determinado pelo estádio do espelho, constituindo-se em um jogo que considera um ponto de escuta e um ponto surdo num laço entre a criança e o Outro, o que quer dizer que ela deve escutar o chamado da voz e, em um segundo tempo, tornar-se surda a ela. Portanto, a criança autista não tem dificuldade de se comunicar e mostrar o que quer. No entanto, sua dificuldade é com a dimensão enunciativa do que diz. Por isso, ela fala, mas reproduz uma fala desconectada da dimensão subjetiva.
Ponto surdo e pulsão invocante
A dificuldade do autista em se fazer sujeito da enunciação nos remete a uma dificuldade anterior, ou seja, ao impasse desse sujeito frente à pulsão invocante (Maleval, 2017). Esta última se dá em um circuito entre o “chamar”, o “ser chamado” e o “se fazer chamar” (Vivés, 2009, p. 330). Ainda que em um primeiro momento os gritos do infans sejam somente um meio para denunciar um desequilíbrio endógeno, é a partir deles que aquele que encarna o Outro pode interpretar o grito como apelo, como um chamamento e, assim, através da voz, responder ao apelo chamando o infans a se fazer sujeito. Desse modo, Vivés (2009) aponta que “o grito puro [pur] se tornará grito para [pour]” (Vivés, 2009, p. 335, grifos do autor), pois é pela resposta enunciada pelo Outro que o significante – ou os significantes – atravessa(m) o ser vivo para que se torne ser falante. Nas palavras do autor, a fim de que a pulsão invocante estabeleça um circuito, o ser vivo precisa ter recebido a voz “(...) do Outro que terá respondido ao grito, que ele terá interpretado como uma demanda” (Vivés, 2009, p. 330). Mas, há um porém: “É preciso também que, posteriormente, ele a tenha esquecido, a fim de poder dispor de sua própria voz sem estar saturado da voz do Outro”. Para que o sujeito consiga invocar uma voz própria que dê conta de sua enunciação, é imprescindível haver um ponto em que o sujeito se faz surdo à voz do Outro, a fim de esquecer esse primeiro som. Caso contrário, o falasser precisa fazer uso dos meios disponíveis para barrar a voz que o invade em toda a sua dimensão real.
Não é incomum vermos relatos – seja de familiares, dos próprios autistas ou até mesmo de clínicos – sobre como alguns desses sujeitos preferem fazer uso da escrita do que da fala para se comunicarem ou sobre como aceitam melhor a voz do outro quando esta é emitida de maneira cantarolada, para citar aqui alguns exemplos. Se o infans não pode não ouvir, então não pode não entrar em contato com a língua. O que o infans pode é posicionar-se frente a voz que advém do campo do Outro, utilizando o termo de Catão e Vivés (2011), tornar-se ou não surdo ao real da voz, ao aspecto alíngua da voz. Fazemos a hipótese, conforme nos dizem Catão e Vivés (2011, p. 86), “de que o autismo resultaria de um mau encontro entre uma criança não surda – que não constituiu o ponto surdo – com um Outro surdo, de uma surdez significante”.
Rabinovitch (2001) nos auxilia a pensar essa questão a partir dos conceitos de Bejahung e de Ausstossung. O primeiro indica uma assimilação, por meio de uma afirmação, dos significantes Uns que o infans não pode não ouvir, enquanto o segundo seria a negação, ao fazer-se surdo, do aspecto real desses Uns significantes. Desse modo, é a partir da Bejahung que o infans é lançado no campo da linguagem para que a Ausstossung possa separar o “(...) Outro, tesouro dos significantes, e a Coisa, gozo para sempre perdido, ela faz do Outro um lugar esvaziado de gozo e exilado do real” (Rabinovitch, 2001, p. 31). Antes mesmo de nascer, o ser já é mergulhado na língua, em um oceano de significantes – mergulhado no enxame de significantes dos S1 sozinhos. É pela Bejahung que um desses significantes é afirmado como significante-mestre, que inscreve uma marca no falasser. A Ausstossung permite esvaziar desse Um o caráter real que outrora carregava, assim distinguindo o Real e o Simbólico de modo que o sujeito possa advir enquanto desejante. Entretanto, no caso dos autistas, há uma recusa frente a voz que enuncia os significantes de alíngua por não conseguirem se fazerem surdos. Se não é possível fazer-se surdo, então não é possível negar o real do Um, restando apenas a afirmação desse traço.
Em outras palavras, à Bejahung – ato de assunção originária do significante, primeiro sim concebido pelo infans –, deve poder advir a Ausstossung (forclusão primordial). Trata-se, aqui, de um não que se revela estar a serviço do sim primordial. O contrato definitivo entre o futuro sujeito do desejo e o Outro se estabelece no ato do recalque originário. É, então, que ele reafirma o sim (Catão & Vivés, 2011, p. 86).
Assim, consentimos, juntamente com Catão e Vivés (2011), que o autismo decorreria da ausência desse ponto surdo, crucial à constituição típica do sujeito dito neurótico, que esvazia o gozo da voz – o que fica mais evidente ao considerarmos a hipersensibilidade dos autistas em relação aos mais diversos sons e a aceitação que muitos têm em relação à música. Em decorrência da ausência desse ponto surdo, os autistas fabricam modos notáveis de comunicar ao outro e enunciar algo que diga respeito à sua vivência subjetiva. Partindo dessa premissa veremos como ela se realiza nas autobiografias e em um relato de caso.
As autobiografias
Usar a linguagem como um saber-fazer vai além da expressão falada, visto que muitos autistas não falam e, ainda assim, dizem muito. Cremos que se trata aqui de uma escritura ali onde a fala como enunciação está impedida por um gozo do objeto voz que o sujeito não consegue abrir mão no autismo. Na clínica com crianças, sejam elas autistas ou não, isso sempre é observável, já que o brincar, nesses casos, pode enunciar tanto quanto a fala em si mesma. Maleval (2017) deixa isso claro ao trabalhar o modo como esses sujeitos inventam seus meios particulares – seja através do uso dos objetos, do uso do duplo ou das ilhas de competência –, a fim de elaborar uma voz própria que dê conta de sustentar algo de uma enunciação.
O caso de Birger Sellin (1994), retratado na literatura como um caso grave, uma vez que não se comunicava e tinha dificuldades com a higiene pessoal e com o corpo de modo geral, é visto, pela maioria das pessoas, que têm contato com sua história, como um dos inúmeros casos de autismo sem solução. O ponto de virada na vida de Birger Sellin foi quando seus pais, na tentativa de alfabetizá-lo em casa, começaram a mostrar imagens com objetos ou pessoas que viviam no dia a dia do seu filho. Essa foi uma forma de apresentar a ele o mundo e buscar compreender sua lógica, pois entendiam que havia um potencial intelectual em Birger do qual ele não conseguia se apropriar. A partir de então, Sellin passa do fato de escrever palavras isoladas para escrever o alfabeto e os nomes das pessoas da sua família – ainda que escrevesse ao seu modo, sem espaço entre as palavras ou pulando linhas –, para depois escrever frases e até páginas. Posteriormente, passa a escrever sobre si e seus sentimentos, fato que revela que essa família, ao invés de aceitar que havia algum tipo de prejuízo quanto às suas faculdades mentais, destacava nesse comportamento um modo muito particular de estar no mundo. Ou seja, no momento em que se tenta compreender a lógica singular desse sujeito, ele pode se destacar em sua singularidade frente ao outro.
Naoki Higashida (2014), um autista japonês que, ainda que possa falar através da voz, prefere falar pela sua escrita, apresentava dificuldade na autonomia e independência de seu corpo. No entanto, aprendeu a escrever com a ajuda de sua mãe e de uma professora. Esse fato o ajudou no ato de comunicar, uma vez que tinha dificuldades na enunciação das palavras. Desse modo, a escrita se tornou um meio menos laborioso de comunicação, o que permitiu que, aos 13 anos, ele escrevesse sua autobiografia, na qual tratou suas questões sobre o seu autismo. No que concerne à dificuldade com a enunciação, Higashida sentia sua voz de duas maneiras: uma, cuja emissão era “reconfortante” (Higashida, 2014, p. 24), principalmente quando essa emissão não havia por objetivo a comunicação; e outra voz como “estranha”. Esta última tinha como objetivo uma defesa dessa invasão estranha. Dessa forma, ele tentava conter esse estranhamento ao ficar repetindo incessantemente o que o outro lhe dizia. Cabe, aqui, comentarmos, também, que ele considera conversar uma tarefa complicada e que exige muito trabalho, pois a sensação que tem é que, para se fazer entender em uma conversa, é como se ele precisasse falar em outra língua.
Outro caso paradigmático no que se refere à voz e citado por Bialer (2017) é o caso de Elizabeth Bonker, que, desde muito cedo, já tendo iniciado a fala, é acometida por uma parada brusca nesta e apresenta, a partir de então, um severo retraimento. É interessante notarmos que, em uma primeira testagem relativa à sua inteligência, ela obteve um Coeficiente de Inteligência (QI) bem inferior à média. Todavia, em uma retestagem, após iniciar a escrita para se expressar, ela obteve um QI superior à média. O ponto de virada no caso dessa jovem foi quando os profissionais responsáveis pelo seu tratamento começaram a se atentar à escrita de Bonker, em especial aos seus poemas, possibilitando avançar no tratamento. A partir dos seus poemas – muitos deles marcados pelo seu sofrimento psíquico –, Elizabeth Bonker abre uma fresta para que o outro consiga vislumbrar seus pensamentos, seus sentimentos, sua subjetividade e seu mundo (Bialer, 2017).
É curioso como esses três casos não recorrem nem ao comportamento verbal, muito menos a técnicas cognitivas para poder introduzir modos de se relacionar com os outros. A escrita como mediação não é sem razão: a escritura é o que permite, diante da dificuldade com a fala e a posição de enunciação, que o sujeito dê um tratamento ao gozo, demarcando aquele elemento pulsional que, muitas vezes, impede o sujeito de se expressar. A escritura promove um saber ali onde o real era pura repetição de gozo para ser uma repetição que vincula a esse gozo uma letra, abertura, por meio de uma escritura, de um outro modo de gozo, que passa a implicar um saber-fazer com o sintoma, como os três casos apresentados.
Luca e seu modo de estar na linguagem: a solidão de não ter uma voz própria
Articulando a teoria com as experiências vivenciadas na clínica e quando observamos sujeitos autistas, o que se apresenta como sua mais evidente característica é um certo mutismo e retraimento social. São sujeitos afetados pelo peso das palavras, que lhes insurgem como intrusivas e assustadoras. Desse modo, eles respondem com o mutismo ou com uma voz artificial, particular muitas vezes, e sem expressividade. Do mesmo modo, a verborreia, muito comum nos autistas, tem como objetivo tranquilizar o sujeito, pois, dessa maneira, ao não fazer a interlocução com o Outro, a voz fica apagada. Assim, ela não divide o sujeito e ele pode, então, ter o controle dela. A voz, diz Maleval (2017), causa horror pelo fato de não ser falicizada. Dessa forma, o sujeito autista não poupa esforços para poder soterrá-la.
Interessante observarmos, tanto na teoria quanto em fragmentos da prática clínica, como a dificuldade do sujeito autista em sua inscrição no significante é tão laboriosa e exige dele um esforço em fazer laço com o Outro. No entanto, esse trabalho de laço com o significante que vem do Outro apresenta sua particularidade na própria posição de sujeito. Dessa posição, o que é sempre recorrente, conforme apresentado, são as falas muito particulares, com neologismos ou outros artifícios utilizados, os quais definem seus sintomas primários, que são a solidão e a imutabilidade. Recorremos, aqui, aos fragmentos de memória da fala de Luca, que nos orienta quanto a essa questão.
A partir da memória de fragmentos do relato de um jovem autista em tratamento, que nomeamos Luca, ele se apresenta à sessão e indaga ao terapeuta se ele sabe o que é um autista de Asperger. Do mesmo modo que interroga, ele imediatamente responde dizendo que “é uma pessoa com a cabeça muito grande e com uma boca pequena”. Solicitado a falar sobre essa adjetivação que diz dele, o jovem responde que tem muita coisa nessa cabeça e pouco espaço para sair e relata, ao longo do trabalho analítico, sobre a dificuldade em falar com o outro, em se fazer entender pelo outro. Esse jovem, durante a sessão em que relata sua dificuldade na relação com o outro, inesperadamente diz: “Eu não penso com palavras, eu penso com sentidos”. Dessa forma, ele continua a dizer que pode falar misturando o inglês e o português e que fica um caos sua fala, sentindo-se como um estrangeiro no Brasil. Relevante notarmos que essa sensação de estar em um país de língua estrangeira já foi relatada tanto por outros autistas, como é o caso de Ido Kedar ao se referir à dificuldade de explicar suas ideias aos outros (Bialer, 2017). Muitos autistas buscam fazer-se entender seja por meio de uma língua privada ou pela construção de uma língua intelectual amparada em sua ilha de competência. Tais asserções podem ser explicadas pelo uso que o sujeito autista faz do signo em detrimento do significante.
Isso pode ser determinado pelo fato de que um elemento só tem seu significado em sua relação com um outro, exigindo, desse modo, um trabalho de interpretação subjetivo por parte do sujeito. O autista, porém, utiliza palavras que expressam a materialidade das coisas sem necessitar de uma interpretação delas. Dessa maneira, o signo “leva a privilegiar os elementos linguísticos isolados em detrimento da apreensão contextual”. Isto é, há uma apropriação das palavras em sua materialidade. O jovem Luca conta como se sente submisso em relação aos outros com quem convive e o quanto isso o incomoda. Ao ser indagado a respeito do porquê não se separa disso, ele imediatamente expressa: “Calma, você tocou num ponto (...) você pegou uma agulha para elefante esterilizada e acertou num nervo da espinha”. Curioso, também, quando Luca relata que, por conta dos inúmeros pensamentos que ele tem em sua cabeça, ele precisa anotar, para se organizar, mas tem que ser em um caderno, pois o caderno tem um peso físico; no computador, não tem peso o que ele anota, sem falar que ele pode esquecer as anotações ali. Assim, a utilização do signo pelo sujeito autista o coloca em uma posição na linguagem que não exige interpretações subjetivas. Entretanto, o entendimento que buscamos no que se refere à forma de se comunicar do sujeito autista exige compreensão do termo alíngua. Isso porque há uma anterioridade de alíngua que nos leva a considerar, cada vez mais, a precocidade da constituição psíquica do sujeito para um tempo impossível de ser datado cronologicamente.
Alíngua, que Lacan (2008) evoca em uma só palavra para designar essa língua, língua materna, primordialmente ouvida e correlata aos primeiros tratamentos do corpo do ser vivo, é aquela que dispõe somente a cifra do sentido, já que os significantes dentro de seu campo podem adotar qualquer sentido – que, ao ser decifrado, possibilita a passagem para a linguagem. Os significantes constituem alíngua, mas no nível da pura diferença, de modo a serem Uns sozinhos enquanto aparelho de gozo. “Logo”, diz Soler (2012, p. 39), “diferentemente do Simbólico, alíngua não é um corpo, mas uma multiplicidade de diferenças que não tomou corpo. Não há (-1) de alíngua que faça dela um conjunto. Não há ordem em alíngua”. Sendo assim, caracteriza-se por um aspecto a-estrutural nesse primeiro momento em que os significantes se encontram isolados em seu aparelhamento com o gozo. É na medida em que os significantes de alíngua deixam de ser um entre outros que passa a haver Um, com letra maiúscula, que exerce função de significante-mestre do gozo que se inscreve no sujeito sob o signo, a letra, do sintoma (Soler, 2012). Se falar “que há um sujeito não é outra coisa senão dizer que há uma hipótese” (Lacan, 2008, p. 153), é devido a essa passagem do significante ao signo que o sujeito pode ser suposto. Através da substituição – pela formalização na operação inconsciente – do significante unário pela letra do sintoma, torna-se viável estabelecer uma ordem entre os uns de alíngua e, consequentemente, o gozo, ainda que este Um que encarna alíngua permaneça em seu âmago como um enigma, “é algo que resta indeciso” (Lacan, 2008, p. 154).
Nos relatos de Luca, ainda que falasse, ele tinha uma grande dificuldade de se fazer enunciador, apresentando uma fala verborrágica e técnica, particularmente quando falava sobre seus interesses. Lemos nessa verborragia uma profusão de S1 em iteração. Entretanto, após um tempo de acompanhamento, Luca já se comunica com maior facilidade, mas se utiliza de neologismos pautados na área de programação (uma de suas ilhas de competência) para nos transmitir sua vivência subjetiva, seus pensamentos, seus sentimentos e seu modo de funcionamento singular. Assim, o uso dos neologismos foi ponto importante para a condução do tratamento. Um exemplo, para ilustrar, se deu em uma situação quando Luca relata sobre uma mensagem de voz que ele deveria enviar para um amigo. Todavia, depois que gravou a mensagem e ao escutá-la novamente, afirma que sua voz no áudio parecia com uma sintaxe própria da língua alemã. A partir do reconhecimento dessa sintaxe, ele relata sobre a estruturação das palavras e frases em alemão e aponta que, nessa língua, ao dizer duas coisas em separado, há uma junção natural das palavras. Por exemplo: ao invés de dizer “livro de bolso”, disse “livrodebolso” (bolso = tasche; livro = buch; livro de bolso = taschenbuch). Essa sua tentativa de estabelecer uma comunicação passa por um saber-fazer da escritura que precisa articular um saber técnico para que a mensagem, como enunciador, possa ser enviada. A profusão de saber passa a ser localizada a partir dessas elaborações, que levam em conta a materialidade da língua. Daí, é possível articular esse saber-fazer com as ilhas de competência.
No que concerne à solidão, Luca expressa recorrentemente sua dificuldade em falar e viver a solidão. Durante as sessões, ficava claro que esse assunto o deixava muito triste, chegando a chorar ao falar disso. Ao mesmo tempo, traz lembranças de suas relações com um amigo da internet e dos amigos da vida real. Repete que precisa de afeto e de contato, mas revela o quanto é difícil conseguir isso junto aos colegas do cursinho, por exemplo. Conta que a sua dificuldade em interagir está em achar que não vai acrescentar nada na conversa com o outro e diz isso na sessão em inglês (I think I won’t add anything to the conversation). Durante as sessões, em momentos pontuais, em que não conseguia se expressar, a fala em inglês era um artifício utilizado para a comunicação. Além do mais, na comunicação com o outro, ele se preocupa com o que vão achar dele e teme ser muito técnico, pois, ao falar, ele foca na forma como vai falar (“se tem acento ou não na palavra”, exemplo dele), e não no conteúdo. Essa passagem nos faz recordarmos o exemplo anteriormente citado sobre a voz no gravador. Nessa situação, ele ainda relata que, quando ouviu o áudio, conseguiu perceber um pouco de tristeza e um pouco de esperança em sua voz. Depois, completa: “Tô te falando isso, porque pessoas autistas têm dificuldades para reconhecer sentimentos nos outros”. Essas são formas expressivas usadas por ele de modo particular e que nos apresentam o tratamento que o sujeito autista necessita fazer no seu encontro com a linguagem.
Luca fala de uma falta de energia que atravessa sua vida e relata que isso começou quando o pai morreu, dizendo não ter superado a morte dele e carregando muitas coisas nas costas. Chega a dizer que se considera como “um copo de café, mas com uma tempestade dentro”. Desse modo, relata o medo de desagradar sua mãe. Sua dificuldade com a perda do pai o coloca numa posição de se sentir sobrecarregado e confuso, o que ele relata com a frase que diz da tempestade no interior do copo. A solidão, para esse sujeito, representa um lugar que acentua a dificuldade em ser um enunciador. Fazer-se enunciador se revela como uma batalha para esses sujeitos, gerando sofrimento por não darem conta da enunciação da linguagem.
Luca continua dizendo de seu esforço em demonstrar seus sentimentos e relata que, na relação com os outros, coloca “o muro do Trump” para barrar os sentimentos e as pessoas. “Eu coloco as pessoas do outro lado do muro e coloco arame farpado nele. Eu construí uma fortaleza onde ninguém entra. Eu entendo que todos têm uma fortaleza, mas eu não sei por que eu não saio e ninguém entra na minha”. Depois dessa fala, é lembrado a ele que permitiu que um amigo entrasse na fortaleza, ao que ele responde mantendo uma metáfora medieval: “Sim, mas eu fico com a mão na espada”. Ou seja, por mais que estabeleça a relação com alguém, ele ainda fica sob eterna atenção para que o Outro não compareça. Essa passagem nos remete ao entendimento da foraclusão do furo em detrimento da foraclusão do Nome do Pai. Esta distinção faremos mais à frente.
Ainda nos seus relatos, ele traz a lembrança da incerteza do mundo a partir de uma situação em que comprou, em um grande site na internet, uma conta de um jogo, uma vez que, segundo ele, queria criar uma inteligência artificial nesse jogo. No entanto, essa compra não se efetuou, porque o vendedor cobrou e não enviou o produto – o que causou uma necessidade de tentar ser reembolsado sem êxito. A partir desse episódio, diz que, se o mundo fosse mais certo, seria só comprar e receber, mas que parece que não é simples assim. Todas essas situações se apresentam para Luca de modo muito impeditivo, provocando mais embaraço para tentar se relacionar. Ele diz: “É como se de um lado tivesse uma barra de compressão e do outro um pistão e ficasse nesse gasto de energia sem levar em lugar nenhum”. A falta de garantias com o que nos cerca e causa tanto desconforto, para o sujeito autista, toma dimensões exacerbadas.
Frente às dificuldades que precisa enfrentar, ele descreve essa situação dizendo que é como se seu corpo estivesse afundado na lama e que, quando ele está saindo, limpando-se, ele fica se desviando da lama e, então, fica paralisado. Quando se vê nessa situação, chega a dizer que se acha meio louco, pois ele tenta explicar que fica paralisado, porque suas energias são roubadas por demônios. Os demônios o fazem ficar assim: fraco. Eles usam a sua energia para provocar guerras e causar caos. Nessa passagem, vemos um sujeito tentando dar uma explicação sobre as questões que não consegue entender: seu modo de lidar na vida, como ele é, quem ele é. Todo esse investimento realizado por ele para entender o que se passa no mundo é descrito a partir de uma queixa sobre um gasto de energia: nesse momento, faz uma analogia com um dispositivo de armazenar energia elétrica dizendo que ele vai perdendo energia e tem dificuldade para estocá-la. Apesar do “demônio” aparecer aqui pode trazer alguns questionamentos em termos estruturais. No caso de Luca, os “demônios” não comparecem como um elemento de dissolução de um mundo e construção de um mundo novo, o que é próprio da estrutura psicótica enquanto referência da foraclusão do Nome-do-Pai. Ao nosso ver, esses demônios remetem mais à “lama” e ao “muro de Trump ``, e isso se enquadra com o que Laurent (2012) propõe como foraclusão do furo como próprio da estrutura autística.
Da minha parte, proporia falar de foraclusão do furo, se aceitarmos estender a foraclusão até esse ponto. Essa foraclusão torna o mundo invivível e leva o sujeito a operar um furo por forçagem, via uma automutilação, para encontrar uma saída para o excesso de gozo que invade seu corpo. (Laurent, 2012, p. 80)
Menciona sobre sua posição de submissão ao outro, que o impede de fazer o que gosta, mas sempre fazendo o que o outro quer. Nesse momento, relembra a música “Deixa a vida me levar”. Como conclusão, ele questiona se “é levado pela vida” ou se “deixa a vida levá-lo”. Ao final, ele diz que é levado pela vida. Como abordamos anteriormente, ao ser inquirido sobre como poderia se separar dessa relação com o outro, ele imediatamente reage dizendo para ter calma, pois essa pergunta tinha tocado tal como “uma agulha para elefante esterilizada e acertou bem em um nervo da espinha”. A partir de então, ele sempre indagava: “Como faço isso?”, e continuou sua indagação sobre como poderia fazer o que quisesse e como não precisar ser escravo de ninguém.
Esses breves fragmentos de relatos das sessões de Luca nos permitem ilustrar e interrogar o lugar do sujeito autista frente a enunciação. Conforme abordamos antes, por não se fazer surdo à voz do Outro, o sujeito autista fica desprovido de voz própria (Vivés, 2009). Dessa maneira, esses sujeitos, como foi possível notarmos, ficam isolados em meio aos Uns sozinhos e, talvez, um pouco perdidos. Não à toa que Luca perguntou “Como faço isso?”; em outras palavras: “Como fazer com que esse Outro seja menos intrusivo?” ou “Como se fazer surdo ao Outro?” Luca não pode retornar para o momento de modo a agora tomar outra posição frente ao Outro, pois esse é um dado de estrutura. Entretanto, ao longo das sessões, Luca, assim como muitos autistas fazem, foi elaborando seu modo singular de responder sua própria pergunta, de permitir que o outro adentre o “muro do Trump” ainda que ele precise se manter vigilante.
Considerações Finais
Ao nos pautarmos em Catão e Vivés (2011) e em Rabinovitch (2001) no que tange ao momento primordial da constituição do ser falante, compreendemos o sujeito autista como aquele que não consentiu plenamente a Bejahung. Se essa primeira afirmação não pode ser realizada integralmente, esse sujeito não elege um S1, que possa ser esvaziado de seu caráter real através da Ausstossung, ao fazer-se surdo, permanecendo entre os Uns de alíngua. Assim, podemos pensar que o autista se apresenta no que Soler (2012) denominou como inconsciente real, visto que, para a autora, o inconsciente simbólico adviria de um saber sobre alíngua. Ao não assentir à incorporação da voz do Outro para posteriormente recusá-la, dificulta esses sujeitos a estabelecerem um saber frente o enxame de Uns para que possam tomar a posição de sujeito da enunciação (Maleval, 2017). Porém, isso não os impede de realizarem seus esforços singulares nessa direção.
Luca nos mostrou seus trabalhos únicos de estruturar um saber ao seu modo diante de alíngua para se fazer enunciador. O uso de duas línguas, a linguagem técnica sustentada pela sua ilha de competência e o uso de neologismos para dizer de suas questões apontam para a dimensão estrutural do autismo quanto ao uso do signo em detrimento do significante, devido à carência na articulação entre os significantes da língua materna, fazendo esses sujeitos recorrerem a novos meios de utilizar a linguagem.
A partir desses fragmentos de memória, é possível vislumbrarmos o quanto a ausência do ponto surdo obstaculiza as tentativas desse sujeito de estabelecer um laço com o outro, uma vez que no momento do laço há um muro do Trump. Esse muro, que separa Luca do laço com o outro, é o mesmo muro que o mantém aquém da linguagem. As sessões com esse jovem nos ensinaram sobre o lugar desse sujeito isolado por não conseguir se fazer surdo e, consequentemente, não adquirir uma voz própria que lhe permita ser sujeito da enunciação, mas que ainda assim permanece firme em seu trabalho constante de cifrar aquilo que retorna no real, a fim de conseguir estabelecer o laço que tanto deseja.