Uma fonte interessante de aprendizado na leitura dos seminários e textos de Lacan são os pontos que se apresentam como contradições em sua obra, como salienta Balmès (2012). Um ponto digno de nota é que, em seu retorno a Freud, quando adere a sua maneira ao movimento estruturalista, o autor realiza uma particular articulação dos instrumentos da linguística estrutural com o vocabulário ontológico do ser. Não obstante a complexidade do tema, diante da questão de como o analista deve se situar na tarefa de acompanhar o analisando em sua cura, Lacan faz algumas proposições diretas no seminário O Desejo e sua Interpretação (Lacan, 2016) e em A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder (Lacan, 1998a). No entanto, faz essas proposições em termos ontológicos, o que inscreve a questão em um campo nada evidente, pois, como costuma acontecer na obra lacaniana, não se trata de um uso meramente metafórico dos termos.
No presente artigo, gostaríamos de sustentar a hipótese de que a aparente contradição em termos teóricos, entre estruturalismo e vocabulário do ser, decorre da necessidade de afastar a experiência analítica do realismo ingênuo do eu. A partir de uma leitura estruturalista do inconsciente, foi necessário lançar mão de temas ontológicos (o ser, ente) a fim de abordar os problemas de inscrição do sujeito e da falta no seio da estrutura. Nesse sentido, o sujeito no programa estrutural de Lacan posiciona uma forma de agência diante das experiências de transformação propiciadas na análise, que se associam, epistemologicamente, pela cadeia de significantes. Tal operação surge tanto como resposta teórica para os limites do registro imaginário quanto uma crítica efetiva sobre a direção do tratamento conduzida, naquele momento, entre movimentos na psicanálise que indicavam uma gradual identificação com o eu do analista.
Para tanto, desenvolvemos a hipótese descrita no parágrafo anterior no próprio movimento do texto. Inicialmente, mostramos as fontes da leitura estruturalista do inconsciente, seguida da necessidade de abertura ontológica para abordar os problemas de inscrição do sujeito e da falta no seio da estrutura. Posteriormente, indicamos como a crítica sobre o realismo ingênuo do eu já se faz presente no artigo do Estádio do Espelho (Lacan, 1998d), o que indica uma preocupação de longa data de Lacan acerca de eventuais processos de subjetivismo e naturalização em torno do eu. Por fim, apresentamos a teoria do desejo e sua implicação na direção do tratamento como plano de orientação clínica; isto é, um modo de crítica à metafísica, quando propõe a falta-a-ser como a política que deve orientar o analista em sua missão de recuperar terreno perdido do ser para o sujeito.
A ideia, portanto, é de que a consideração à ontologia no decorrer do ensino de Lacan indica uma necessidade de política de campo em torno do tratamento psicanalítico e seus efeitos. Na ausência de uma discussão ontológica, a psicanálise recairia em um realismo ingênuo, sendo seu efeito político o exercício alienante de poder. Entendemos que esse é o sentido ontológico e político de propor a formação do eu e a estruturação do mundo humano através do estádio do espelho e, posteriormente, recorrer à categoria de desejo ligada ao vocabulário do ser no interior da apropriação estruturalista.
O uso do vocabulário do ser em uma estratégia estruturalista
A linguística estrutural e o vocabulário do ser foram instrumentos utilizados por Lacan em seu retorno a Freud. Nesse ponto, inicialmente é importante destacar que esse retorno, além de ofertar novos encaminhamentos epistemológicos à psicanálise, situa uma “retificação subjetiva” de Lacan em relação ao saber de Freud (Zafiropoulos, 2018, p. 22); a saber, o “retorno a” não é um procedimento genérico de leitura como pode parecer em um primeiro momento, no qual Lacan é um comentador entre outros. Trata-se de um verdadeiro marco estratégico, geralmente datado após o Discurso de Roma (Lacan, 2003), que procura sinalizar separações de Lacan com a psicanálise naquele momento, entre discordâncias técnicas e institucionais que, progressivamente, o afastam dos enquadramentos da IPA. Nesse sentido, o “retorno a” é uma política de campo pautada, sobretudo, pela ideia de que o conhecimento aberto por Freud precisava ser alçado a um estatuto subversivo, com ênfase para a dimensão inconsciente da experiência analítica, sendo o desejo aquilo que a motiva.
Com relação ao estruturalismo, o motivo histórico e epistemológico para a adesão foi ter encontrado nesse modelo uma forma de oposição muito consistente ao processo de naturalização e redução biológica que a psicanálise sofria. Em partes, porque o próprio Freud se mostrou esperançoso de que seus conceitos e hipóteses, em particular sobre o aparelho psíquico, pudessem encontrar essa redução, tendo manifestado diversas vezes o interesse de diálogo com a biologia, sendo o manuscrito do Além do Princípio do Prazer (Freud, 1920/1996) um grande exemplo desse movimento, à medida que no quadro de referências do texto a especulação filogenética aparece como recurso privilegiado em torno da discussão do tema da vida, o rejuvenescimento contido nas pulsões de vida, a partir de estudos com células protistas. Na Autobiografia (Freud, 1920/2011), Freud localiza a psicanálise como uma ciência natural (Naturwissenschaften) e conclui que a definição rigorosa e mais precisa dos conceitos decorre de uma exigência das ciências do espírito (Geisteswissenschaften). Enfim, acrescentemos ainda que o quadro das ciências – do final do século XIX, início do século XX – e a formação de neurólogo de Freud contribuíram para que ele tivesse localizado a psicanálise como uma ciência natural.
Por outro lado, o estruturalismo, nesse aspecto, é uma estratégia metodológica que prioriza a relação entre os elementos de uma dada estrutura, colocando entre parênteses questões concernentes à ontologia dos elementos (Medeiros, 2021). Nos anos cinquenta, a partir das renovações efetuadas por Saussure (2008), a linguística se tornou um dos territórios epistêmicos no qual as ciências humanas se instrumentalizam para operar suas próprias renovações conceituais. Como afirmou Lacan (1998c, p. 286): “A linguística pode servir-nos de guia neste ponto, já que é esse o papel que ela desempenha na vanguarda da antropologia contemporânea”. A grande figura conceitual da linguística nesse momento era derivada do uso do significante de Saussure.
Lacan, nesse ínterim, realizou um processo bastante singular de apropriação da concepção de significante para abordar os diversos modos de representação em Freud. De acordo com Arrivé (2001), a origem epistemológica do significante lacaniano provém do significante de Saussure, mas estes homônimos guardam diferenças entre si, apesar de manterem relações. A principal diferença é que, para Saussure (2008), o signo é formado por uma unidade fundamental entre o significado e o significante, ao passo que, para Lacan, o significante goza de autonomia. O par significante e significado aparece já no Discurso de Roma (Lacan, 2003), embora sem qualquer menção ao nome de Saussure. Foi durante o Seminário 3, sobre “As psicoses” (Lacan, 1986), que houve a intervenção maciça de concepções de Saussure nas formulações sobre o inconsciente freudiano. Assim, como um exemplo de sua releitura de Freud a partir do estruturalismo linguístico, no texto sobre a teoria do simbolismo em Ernest Jones, Lacan (1998b) assimila o Vorstellungsrepräsentans (representante-representação) ao significante. Em um momento mais adiantado da obra, no Seminário 11, Lacan (2008b) realiza o mesmo procedimento com o Wahrnehmungszeinchen (signo de percepção), conceito extraído de um dos textos iniciais da obra freudiana.
Além da linguística, no quadro de construção do estruturalismo, a antropologia de Lévi-Strauss também exerceu um papel fundamental. Roudinesco (2008) relata que o uso da noção de significante efetuado por Lévi-Strauss (2012) nas Estruturas Elementares de Parentesco teve um enorme impacto em Lacan. Nesse texto, o inconsciente é formalizado como um lugar vazio em que se produz a função simbólica, permitindo, como consequência, a instauração de um regime de existência em que os símbolos são mais reais do que seus referentes, e que o significante prevalece sobre o significado e a ele impõe suas leis. Posteriormente, Lacan utilizaria das coordenadas conceituais de Jakobson para reler a condensação e o deslocamento do processo primário freudiano, nas leis da metáfora e da metonímia do campo da retórica (Bousseyroux, 2021). A metonímia, então, seria formalizada como o emprego de um significante qualquer para dar a entender uma significação diferente da esperada. Esse efeito pressupõe alguma conexão entre os dois significantes, como a homofonia ou contiguidade. Já a metáfora foi teorizada como a produção de uma significação nova, pela substituição de um significante por outro (Safouan, 2016).
No mesmo sentido, o sintoma, nesse momento, foi teorizado como uma metáfora, uma aglutinação de significantes, e o desejo associado a um movimento metonímico, a articulação de um significante a outro por deslizamento. Lacan (1998c, p. 498) chega a afirmar que “...é toda a estrutura da linguagem que a experiência analítica descobre no inconsciente”. Desse modo, Lacan reconhece a palavra como a intercessora da experiência analítica, sendo essa uma experiência centrada na existência do significante e na manifestação dos seus efeitos. Nesse contexto, podemos pensar que o discurso de Roma se situa como um manifesto político-epistemológico de integração da psicanálise neste cenário conceitual que se estabelecia nas ciências humanas.
Por meio destas articulações teóricas que Lacan (2008b, p. 27) chega a um de seus aforismos mais importantes: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Dizer que o inconsciente é estruturado como linguagem é dizer, de acordo com Couto e Souza (2013), que entre os modos de manifestação do inconsciente e os modos de organização interna da linguagem existem claros pontos de convergência. Se isso pode ser admitido, a consequência teórica é a de que, conhecendo a lógica intrínseca do funcionamento da linguagem é possível conhecer a lógica pela qual o inconsciente opera. Por isso, Lacan recorre ao estruturalismo, como o método que propõe abordar os objetos pela estrutura, para construir sua formalização do inconsciente.
Couto e Souza (2013, p. 194) afirmam que, no estruturalismo, o “...ser e as palavras não estão vinculados numa ordem hierárquica natural”. Dessa forma, abordar os objetos pela estrutura tem o efeito epistemológico de colocar o referente entre parênteses, pois as “...perguntas sobre a gênese da linguagem, a sua pertinência à natureza que ela representa, ou ainda tantas outras inquirições que objetivam percorrer o complexo universo que a atrela a uma ontologia, devem ser abandonadas” (Couto & Souza, 2013, p. 194). No lugar disso, a estratégia estruturalista toma a linguagem como um sistema autônomo desvinculado de qualquer referente, de modo que a realidade não apenas perde a primazia, como passa por uma inversão radical, ao deixar de ser compreendida como causa e passar a ser compreendida como efeito dos processos de linguagem. Deste modo, os signos possuem uma realidade mais substancial do que um hipotético referente que fica entre parênteses, ou seja, o resultado do estruturalismo é uma espécie de “anulação da facticidade do referente” (Couto & Souza, 2013, p. 194).
Com isso, no Seminário 3, Lacan (1986, p. 276) propõe a seguinte definição: “A psicanálise devia ser a ciência da linguagem habitada pelo sujeito. Na perspectiva freudiana, o homem é o sujeito preso e torturado pela linguagem”. Nesse sentido, Altoé e Martinho (2012) afirmam que existem dois pontos de divergência que afastam a psicanálise lacaniana do estruturalismo. A primeira dessas divergências consiste no fato de que Lacan integra a categoria de sujeito em sua teoria. No modo como o campo da psicanálise costuma se referir ao campo da linguística, existe um certo entendimento de que, para se constituir como ciência a linguística delimitou como seu objeto a língua, excluindo o agente da fala do campo de análise1. Desse modo, como uma estratégia clínica poderia prescindir em suas teorizações do “quem”, isto é, do agente, seja do enunciado ou da enunciação? Esta pergunta, para tanto, consistiria em uma pergunta ontológica. Assim, na teoria lacaniana o agente da fala é abordado em termos de uma teoria do sujeito como efeito da cadeia significante, que o determina e o faz “advir como desejo” (Altoé & Martinho, 2012, p. 19). O sujeito lacaniano não pode ser localizado na cadeia significante. Ele pode apenas ser apreendido no intervalo, nas falhas do discurso, tal como Freud indica a respeito dos atos falhos. Ou seja, o sujeito não pode ser pensado de maneira substancial, como suporte das modificações acidentais do significante, como uma coisa subsistente, da qual se possa supor que está aí à espera de uma descoberta. Como efeito do jogo significante o sujeito é evanescente. O sujeito aparece hora aqui e hora ali, nos lapsos produzidos pela fala, nesta corrida da cadeia significante do movimento metonímico do desejo, que se desloca por contiguidade. Essa, portanto, é uma concepção não substancial que aborda um sujeito que não está fixado na estrutura, mas que habita nela no modo paradoxal de uma “posição de inclusão externa”, como afirma Couto e Souza (2013, p. 198).
A segunda divergência da teoria lacaniana com o estruturalismo, de acordo com Altoé e Martinho (2012), advém da importância atribuída à categoria do real, que engloba aquilo que não pode ser simbolizado, o que de algum modo escapa à dimensão do tecido significante. Dessa forma, a noção de real traz uma novidade à estrutura de Lacan, definindo-a como uma estrutura marcada pela falta. Ou seja, de acordo com esses autores, o que diferencia a obra de Lacan do movimento estruturalista são duas categorias ontológicas: sujeito e real. Em função dos problemas levantados pela concepção do sujeito e pela estrutura da falta na linguagem, é que surgiria a necessidade de formalizar a categoria do real. Dessa forma, Lacan recorre ao uso de um vocabulário ontológico dentro de um projeto de cunho estruturalista, e ao usar o vocabulário do ser, segundo Balmès (2002), Lacan parece corroer toda intenção de construir um sistema de pensamento que tenha na estrutura seu sentido último. Para tanto, em seu programa de releitura estruturalista da obra freudiana, Lacan utiliza em abundância o vocabulário do ser.
Dessa maneira, de acordo com Leguil (2013), o que separa Lacan dos estruturalistas de seu tempo é justamente que, ao introduzir o estruturalismo na psicanálise, o autor acabou por formular uma ontologia assentada no sujeito e no desejo de ser, na qual o tema da falta é fundamental. Como afirma Safatle (2018, p. 38): “a falta é aqui um modo de ser do sujeito, o que levará Lacan a falar do desejo como uma “falta-a-ser”. A falta é parte integrante da estrutura do desejo e na consecução do programa de releitura estruturalista da obra freudiana, e a teorização sobre o desejo tem um papel fundamental. Nesse contexto, guarda importância os seminários realizados entre os anos 1957 a 1960 – nomeadamente, Seminário 5, As formações do Inconsciente (Lacan, 1999), Seminário 6, O desejo e sua Interpretação, e o Seminário 7 (Lacan, 2016), A Ética da Psicanálise (Lacan, 2008a) – já que nesse período são formulados os alicerces de sua teoria do desejo. No Seminário 5, Lacan (1999) apresenta uma releitura das manifestações do inconsciente abordadas por Freud, os chistes, os lapsos, os sonhos e os sintomas, através de sua teoria do significante. Nessas elaborações, a figura do desejo está como pano de fundo teórico e ocupa a função de modelo interpretativo das manifestações do inconsciente. Como salienta Safouan (2006), todos os termos das construções lacanianas convergem para uma teoria do desejo, que acaba por consumar a ruptura com os pressupostos de ordem biológica.
Além disso, no Seminário 6, Desejo e sua Interpretação, Lacan (2016) aproxima o real do plano do ser e aborda o desejo na psicanálise em termos ontológicos. Lacan, então, apresenta o desejo como a relação de um sujeito com o ser e propõe que a interpretação, ao restaurar o sentido de um desejo, tem a função de confrontar o sujeito com seu ser. Dessa maneira, afirma que o sujeito no qual a psicanálise intervém só pode ser localizado como sujeito de uma cadeia articulada, que é um discurso, e que um discurso não se sustenta sem um suporte, sendo que Lacan qualifica este suporte em termos de ser. Por sua vez, define neste seminário o sujeito como uma descontinuidade no real e afirma que é no ponto de ruptura na cadeia significante que o sujeito se localiza.
Já no Seminário 7, Lacan (2008a) propõe o desejo como o horizonte ético da psicanálise ao definir a ética da psicanálise como uma ética centrada pelo desejo. Lacan propõe que, falando a partir da psicanálise, alguém só pode ser culpado de ter cedido de seu desejo. Ou seja, só se pode ser culpado de ter abandonado o caminho mais próprio em favor do cuidado dos bens. Nesse sentido, por consequência, a ética da psicanálise rompe com a ética aristotélica, que se orienta de modo teleológico para o bem. A ética aristotélica se articula no território da metafísica da substância, na medida em que coloca como parâmetro para a ação humana um ser a cumprir, uma substância a realizar.
Parece se sustentar, sem maiores problemas, a leitura que afirma que a ontologia com que Lacan rompe explicitamente foi a ontologia aristotélica. Em relação a isso, concordamos com o diagnóstico de Bréhier (2012, p. 23), no qual afirma que “o ser que se apreende da metafísica aristotélica é a unidade e o centro de todas as partes que constituem sua substância e todos os acontecimentos que constituem sua vida”. Em contraposição, o Outro, que instaura o sujeito inconsciente, não é da ordem de um ser e se trata de um lugar. Ele não se constitui por si mesmo, em uma posição distintiva, como um centro predicativo para o sujeito, ao contrário do que poderia se supor se seguirmos a ontologia aristotélica. A definição ontológica de Lacan sobre o Outro é da ordem de um “não um”, “um que não é”, em referência ao Parmênides de Platão (Mohr, 2020). Ou seja, o Outro, tem seu estatuto mediante uma função simbolizadora através da fala, como indicado em Função e Campo da Fala e da Linguagem (Lacan, 1998c, p. 297): “...transformar o sujeito a quem se dirige, através da ligação que estabelece com aquele que a emite”.
No entanto, permanece como uma questão aberta às influências ontológicas na construção da teoria do desejo. Além da evidente influência hegeliana, sobretudo quando Lacan aborda o desejo como desejo de reconhecimento, o autor teria se apropriado de influências da ontologia fenomenológica de Sartre (2015), presente em O Ser e o Nada, publicado em 1943, ou a analítica existenciária de Heidegger (2012), presente em Ser e Tempo, que foi publicado em 1927.
Leguil (2013) sustenta que as questões ontológicas tratadas por Lacan na sua teoria sobre o desejo não revelam apenas uma relação com Hegel (1991) ao conceber a psicanálise como um processo dialético de reconhecimento do desejo, mas que é possível encontrar diversos elementos da ontologia fenomenológica de Sartre. Assim, por exemplo, teria sido a influência de O Ser e o Nada de Sartre (2015) que Lacan teria em mente ao propor o nada de ser que se pode encontrar na travessia do fantasma no fim de uma análise. Em sua teoria do desejo, Lacan teria se apropriado da noção de que, estando cada sujeito separado de sua essência, em uma posição de um nada de ser, cada sujeito buscaria através de seu projeto uma solução para o problema do ser. De acordo com o autor, Lacan teria utilizado a ontologia fenomenológica para construir um discurso sobre o desejo de ser e sua precariedade contra todo o ideal de adaptação do eu à realidade que dominava o campo psicanalítico nos anos cinquenta.
De fato, existem ressonâncias com a teoria do desejo em Lacan, quando o desejo é proposto como a metonímia da falta-a-ser. Sartre (2015) afirma que a realidade humana é fundamentalmente falta e, para demonstrar isso, bastaria tomar o desejo como fato humano. Para o autor, não é possível considerar o desejo como um estado psíquico acabado, como um estado que já é o que é por si mesmo e que nada precisaria para se completar, para ser o que já se é. Nem mesmo pode ser considerado um círculo inacabado que poderia ser completado pelo traço que falta. Ou seja, o desejo não pode ser entendido como a falta de um objeto externo, que ao ser absorvido faria com que o desejo não fosse mais desejo. O desejo em Sartre (2015, p. 138) se identifica com a própria falta, “...o desejo é falta de ser...” e “...revela a existência da falta no ser da realidade humana”.
Mas é preciso lembrar que estes dois autores parisienses, Sartre e Lacan, cada um ao seu modo, foram leitores de um terceiro, que influenciou toda uma geração de pensadores na França, que é Heidegger. Bastaria observar que o eixo de O Ser e o Nada (Sartre, 2015), ou seja, o enunciado de que a existência precede a essência, provém das construções de Ser e Tempo, em que Heidegger (2012, p. 143) propõe a “...precedência da “existentia” em relação à essentia...”. Do mesmo modo, em relação à ideia sartreana do projeto como solução para a questão do ser, em Ser e Tempo há toda uma abordagem que trata do ser como abertura projetada para o campo de suas possibilidades. Enquanto a obra de Heidegger era desacreditada na Alemanha, pelo escândalo do reitorado, ela foi alvo de um grande debate crítico na França.
Toda uma geração de pensadores passou por Heidegger, como afirma Roudinesco (2008), e parte importante desse debate se centrou justamente em O Ser e o Nada de Sartre, no momento em que o pensamento de Heidegger era interpretado como uma espécie de antropologia existencial. Esta interpretação existencialista foi refutada por Heidegger, no momento que Jean Beaufret pediu que o filósofo intervisse no debate na França. Beaufret foi responsável pela disseminação de uma linha de tradução e leitura dogmática da filosofia de Heidegger na França e foi analisando de Lacan. Registra-se que por seu intermédio o psicanalista francês travou uma relação pessoal com o filósofo (Alemán & Larriera, 2009; Roudinesco, 2008).
A resposta de Heidegger (1991) foi o texto conhecido como “Carta ao Humanismo”. Nesse texto, Heidegger desautoriza o uso que Sartre fez da precedência da existência sobre a essência. O cerne da crítica é que o autor de Ser e Tempo afirma que a precedência da existentia foi uma estratégia utilizada na época para perfurar a solidez da ουσία (em grego, substância) da metafísica clássica, de modo a abrir um campo para a pergunta pelo ser. Nos moldes em que Sartre (2015) propõe em O Ser e o Nada, o que ocorreu foi uma pura inversão, e segundo Heidegger, ao simplesmente inverter um par de oposições da metafísica ainda estamos em seu terreno.
Existe uma diferença fundamental entre Heidegger e Sartre no que concerne a ideia de projeto. Heidegger (1991) salienta que o ser se manifesta ao homem no projeto, mas este projeto não instaura o ser. O projeto é essencialmente um modo de ser no estar lançado. Para o pensador alemão, o que se lança no projeto não é o homem, mas o próprio ser que destina o homem para a ex-sistencia do Dasein como sua essência. Ex-sistencia é o termo heideggeriano utilizado para indicar a posição existencial do Dasein, na sua condição de transcendência, de estar exposto à dimensão da verdade do ser; e aquilo que expõe o homem à verdade do ser é a linguagem. Assim, o projeto sartreano estaria mais ligado à instância do ego cogito do homem, que fomenta uma concepção de homem como estando em posição de soberania perante os entes. Para Heidegger, o projeto não é uma construção egoica, mas o desdobramento do modo de ser do estar projetado.
Leguil (2013), para tanto, afirma que Lacan propôs uma sua ontologia do desejo de ser contra uma psicologia do ego. Nesse sentido, Lacan abordou a raiz ontológica de um problema político no seu trabalho sobre a formação do eu no estádio do espelho, como veremos a seguir. Em nosso entender, Lacan construiu uma teoria do desejo de alcance ontológico conjugada a uma estratégia metodológica estruturalista pela necessidade política de enfrentar a substancialização do “eu” na psicanálise. O problema político da substancialização do eu decorre dos efeitos de poder vinculados à perspectiva ontológica de um realismo ingênuo, como pretendemos defender posteriormente.
O Eu e o problema político do realismo ingênuo
De acordo com Levinas (1980), é possível dizer que nossas produções culturais, filosóficas e científicas são sedimentações de construções da metafísica que carregam aspirações à totalidade (Carrara, 2019). Essas sedimentações transformam nossa cultura em uma egologia, modo com que o autor denomina a face do ser que se manifesta na guerra ou neste mal-estar geral, em que cada um está sempre prestes a cair no estado permanente da guerra de todos contra todos. Para o autor, essa face violenta do ser é o ego, que funda o modo de apreensão do outro pelos moldes de um aparelho que captura qualquer índice de diferença e alteridade. O “eu”, isto é, este fenômeno integrante da experiência de cada um, que Heidegger descreveu como a percepção simples e reflexiva do eu-percipiente, mesmo considerando em sua estrutura a soma das mais elevadas funções psíquicas, não fornece por si só nenhum tipo de acesso privilegiado à realidade (Mehl, 2018). Por esse motivo, conceituar os princípios da direção de um tratamento por meio da figura teórica do “eu” seria incorrer em um erro político.
De modo inerente ao tratamento psicanalítico está o problema político do poder. O analista que dirige o tratamento, como aquele que escuta e se mantém na posição de possível intérprete do que é dito, está em uma situação em que inequivocamente se faz presente a questão do poder. Dunker (2010) afirma que as questões envolvidas nas práticas discursivas que constituem o tratamento psicanalítico, como um tratamento que se dá pela palavra, são questões que se referem ao tema do poder. Desse modo, não basta negar o problema político para evitar os efeitos de poder no dispositivo analítico, pois tal estratégia apenas nublaria o tema das influências recíprocas entre analista e analisando. Para o autor, é uma tarefa indelével conhecer a microfísica do poder envolvida na situação analítica, “...os modos de subjetivação, as estratégias do dizer e do calar que a psicanálise emprega” (Dunker, 2010, p. 353).
Ainda de acordo com Dunker (2010), a psicanálise envolve uma política discursiva peculiar, diferente de outras políticas, pois se refere ao exercício do poder de conduzir um sujeito no confronto com seu desejo e seu destino. Nessas circunstâncias, a política é um campo definido pela noção de conflito, no que argumenta que a psicanálise se caracteriza por admitir o caráter constitutivo do conflito. Isso se figura quando Lacan, por exemplo, aborda o desejo a partir da relação dialética entre o senhor e o escravo, uma relação definida pelo conflito entre as formas de desejo emaranhadas nessa situação política.
Lacan (1998a), para tanto, subordina o tratamento à política da falta-a-ser e afirma que um analista estaria muito mal posicionado se estiver assentado em seu ser. Melhor seria se estivesse situado em sua falta-a-ser. Com isto, Lacan se opõe à figura conceitual do ego, nas quais se inscrevem todo um conjunto de diretrizes de tratamento que se asseguram nas esperanças dos efeitos de síntese que o dispositivo analítico poderia ter sobre o “eu”, síntese esta que subordina os fins do tratamento, os fins da formação de um analista e os meios da condução de um tratamento. Essas esperanças prescindem da crítica ao realismo correlato a determinadas formas de teorizar o “eu”.
Existe, desse modo, uma questão ontológica inerente ao problema político do poder que envolve a figura conceitual do “eu”, gerando consequências teóricas e clínicas. A posição política de Lacan, sobre o conceito do “eu”, é bem clara e centrada na condição fundamental do conflito: não há integração possível a partir do “eu” e nem forma possível de conciliação com a realidade. Lacan (1998d, p. 103) afirma que o “eu” tem uma função fundamental de desconhecimento, que caracteriza a essência de suas estruturas. Do mesmo modo, afirma que a experiência analítica demonstra que o “eu” é um “nó de servidão imaginária” (Lacan, 1998d, p. 103) e por esse motivo não seria possível concebê-lo como situado no sistema percepção-consciência e organizado pelo princípio de realidade.
Dessa forma, Lacan procurou romper com concepções psicológicas acerca do “eu” ancoradas em um suposto desenvolvimento natural e linear das funções psíquicas, tal como aparecem em textos ligados à psicologia do ego (Bergman et al., 2000). Vale lembrar que o modo como a obra freudiana se estabeleceu a partir das reformulações situadas nos anos 1920, de acordo com a Roudinesco (2008), permitia seguir por dois caminhos. O primeiro era fazer do “eu” o resultado de uma progressiva diferenciação do “isso”, que teria como função representar a realidade e manter as pulsões sob controle. O segundo caminho seria desconstruir a ideia de autonomia do “eu” para entender sua constituição a partir dos processos de identificação. É necessário avaliar essa posição, pois as construções da segunda tópica, embora tenham originado diferentes encaminhamentos, como ressalta a autora em questão, permitem pensar a convergência dos dois caminhos sem haver contradição.
Portanto, foi seguindo o segundo caminho que Lacan propôs sua teoria sobre o estádio do espelho em 1936. O estádio do espelho, segundo Roudinesco (2008, p. 159), é “...uma operação psíquica, ou mesmo ontológica, pela qual se constitui o ser humano numa identificação com seu semelhante quando percebe, em criança, sua própria imagem no espelho”. Essa operação forma a matriz antecipatória do devir imaginário do “eu”, uma representação narcísica que explicaria desde a unidade psíquica do corpo humano, passando pela dolorosa angústia de despedaçamento que o homem carrega consigo, até os processos psicopatológicos de fragmentação típicos da psicose.
Lacan (1998d) vinculou esta ideia da antecipação da imagem do corpo ao regozijo que é possível observar nas crianças entre os 6 e 18 meses de idade quando estão diante de sua imagem no espelho. Este fenômeno seria o índice que revela a existência de um acontecimento que, em sua natureza, mais do que um movimento libidinal, testemunha a formação de “uma estrutura ontológica do mundo humano” (Lacan, 1998d, p. 97). A formação dessa estrutura se explica fundamentalmente por um processo de identificação, ou seja, a mudança que ocorre em um sujeito quando este assume uma imagem. Esse processo de identificação dá-se por meio da captura da imagem especular por um sujeito que ainda está mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação2. Essa identificação produz a forma primordial, a matriz simbólica do “eu” sobre a qual se precipitará todas as demais identificações.
O essencial desse processo é que ele ocorre no desamparo gerado pela condição neotênica do homem, que tem por efeito um hiato temporal no processo de estabelecimento da relação do organismo com a realidade que o circunda, ou seja, da relação do Innenwelt ao Umwelt (ambiente). Por isso, diante da desintegração de seu mundo, o sujeito se agarra a uma imagem unificada ofertada desde fora; e, neste processo, há um fenômeno temporal que Lacan denomina de antecipação. Este movimento de antecipação, embora pouco comentado, Lacan (1986e) retira da interpretação da temporalidade do cuidado presente na analítica existenciária. Compreende-se, então, que a antecipação é o modo de ser do tempo próprio. O sujeito se precipita em um movimento que vai da fragmentação do mundo para a antecipação de uma imagem unificada do corpo. A captura desta imagem forma “a quadratura inesgotável dos arrolamentos do eu” (Lacan, 1986e, p. 100); e é essencial compreender que este movimento funda o eu numa “linha de ficção” (Lacan, 1986e, p. 98) que tem o efeito paradoxal de possibilitar, ao mesmo tempo, uma espécie precária de síntese e manter o homem sempre numa certa relação de discordância com sua realidade. O “eu” é uma estátua, afirma Lacan, que guarda a ilusão fundamental de sua autonomia e atrai para si todos os fantasmas que o dominam ao constituir um mundo de sua fabricação.
Esta passagem indica que há uma consequência ontológica nesta teorização, a saber, o homem estaria do alto de seu narcisismo mergulhado no realismo ingênuo que é um produto de sua própria fabricação. Esse mundo é abordado na psicanálise pela categoria do imaginário, lugar este em que o ingênuo está seguramente instalado, de modo que a matriz antecipatória da imagem cristaliza, a partir de um traço, a realidade que se apresenta a nós. É revertendo esse princípio, que poderia dar forma a um conteúdo psicológico bem-acabado na consciência, que o simbólico é introduzido como dimensão crítica, fazendo com que a mensagem que, poderia parecer autoevidente e bem articulada em termos de comunicação, receba sua inversão a partir do Outro e de seu deslizamento através da cadeia de significantes. Deste modo, contrariamente à ideia da regulação do ingênuo a partir do imaginário, como seria possível propor a política da condução de um tratamento assentada na integração egoica de um analista? Este é um problema ontológico na raiz de um problema político, pois pensar a análise deste modo seria propor uma situação de poder em que um mundo fabricado deve ganhar terreno e avançar sobre outro mundo fabricado, produzindo uma imagem política similar à ideologia dos impérios de civilizar os bárbaros. Aqui podemos recordar a abordagem de Levinas (1980) sobre esta face colonialista do ser que pode estar presente desde a macropolítica até a micropolítica das estratégias clínicas (Carrara, 2019). A ilusão de plenitude imaginária do eu é a sede de um realismo ingênuo, de uma subjetividade fundada num “eu” soberano que, senhor entre os entes, habita um mundo que circunscrito por uma linha de ficção se apresenta de modo ordenado. De acordo com Stein (2011), a extrema subjetividade é o par metafísico do extremo objetivismo que em nosso tempo faz com que o homem se dilua no excesso de afirmação do seu eu. Assim, nessa ânsia de afirmação, diante dos entes da terra, o homem se coloca numa posição de soberania.
O realismo ingênuo é uma apreensão acrítica da ontologia da substância tal como ela foi se sedimentando nos modos de perceber, pensar e dizer na história do pensamento ocidental. Como desdobramos de Levinas (como citado em Carrara, 2019), nossa cultura no ocidente é ontologia metafísica decantada e, repercutindo os trabalhos de Stein, o pensamento ocidental não é apenas a história do conhecimento, mas algo que nos afeta diretamente (Stein, 2011). A história do ocidente é a história da formação das categorias que forjaram os modos de conhecer, pensar, perceber e julgar. Nesse sentido, Lacan (2017) diz em 1978 que todo analisante é um aluno de Aristóteles, o que, por consequência, traz problemas de ontologia incontornáveis para a clínica (Dunker, 2019). Entendemos que, por esse motivo, a crítica ontológica é necessária às práticas clínicas. Por isso Lacan subordina a política da psicanálise a uma posição ontológica, a falta-a-ser, que é a principal definição do desejo na teoria psicanalítica.
O desejo como constelação que orienta a direção do tratamento
A ontologia tem uma dupla função. Por um lado, é um exercício de crítica aos fundamentos, por outro, o resultado do trabalho de crítica que serve de fundamento para decisões de ordem clínica. A teoria do desejo, portanto, além de uma crítica à metafísica presente nas conceituações substancialista do “eu”, compõe um conjunto de decisões que cumprem a função de norte para a direção de um tratamento. Neste ponto, identificamos nessa categoria conceitual e seus desenvolvimentos uma forma de condensar a dupla condição para a efetividade da clínica psicanalítica; isto é, ela precisa questionar o realismo ingênuo que precipita para cada um o campo das certezas, ao mesmo tempo que, mesmo apoiado na determinação simbólica do sujeito, precisa indicar um certo nível de responsabilidade, o que promove transformação e evita a possibilidade de indiferença.
Isso se relaciona com os propósitos do tratamento no Seminário 6, quando Lacan (2016) coloca a questão acerca do que consistiria, afinal, conduzir uma psicanálise. Seria restituir ao sujeito um parâmetro de realidade que a humanidade conseguiu estabelecer pelo acúmulo do conhecimento científico? O autor é categórico ao responder que não. Qualquer realidade em que o analista busque se situar será inevitavelmente a realidade do “eu” do analista. Um analista, em sua existência, é sempre alguém que têm uma adesão implícita a um sistema de valores, adesão que, “por ser implícita não está menos presente” em sua prática clínica (Lacan, 2016, p. 505). Desse modo, sem uma diretriz ontológica, como a da teoria do desejo, as coisas tendem a tomar o caminho da sustentação de uma normatividade ideal e conduzir a direção do tratamento a uma conclusão identificatória.
A teoria do desejo implica a ideia de que não é possível promover uma adaptação ontológica do sujeito à realidade. Todavia, circunscreve Lacan (2016, p. 190), é no âmbito do desejo, que um analista pode entender o sentido de sua missão e se situar em algumas coordenadas fixas: “Há interesse em reconhecê-las, pois, caso contrário, o pensamento escorrega sempre um pouco mais para a direita, um pouco mais para a esquerda, aferra-se a relações mal definidas, e isso nem sempre deixa de gerar inconvenientes à condução da interpretação”.
Um analista orientado pelas referências da teoria do desejo está em condições de aceder a algo do mundo de seu paciente. Seja lá qual for a posição subjetiva do seu paciente, afirma Lacan (2016), o analista pode manter laços de fraternidade e respeito, pois a matéria com que vai lidar não deixa de ser uma variação dos mesmos elementos da constelação que posiciona qualquer sujeito no mundo, como sujeito subvertido pelos efeitos da fala. Em relação ao desejo do sujeito, a função do analista não é guiar este desejo até o seu próprio desejo, mas permitir o desejo do sujeito para outro, que não o analista. Deste modo, os analistas estão na posição de “casamenteiros do desejo, seus parteiros, aqueles que presidem seu advento”, afirma Lacan (2016, p. 518).
Por isso o analista se coloca como suporte das demandas e não atende a nenhuma, o que é a incidência do corte na prática analítica, ao deixar este espaço vazio para o desejo. Por isso mesmo, o corte se põe como o modo mais eficaz da interpretação. Em um texto contemporâneo ao Seminário 6, A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder, Lacan (1998a) afirma que um analista estaria muito mal situado ao se posicionar em seu próprio ser para conduzir uma análise. Ao contrário, o autor propõe que o analista deve se situar em sua falta-a-ser, esta instância ontológica do homem da qual a metonímia consiste no desejo. A falta-a-ser é proposta como a política da psicanálise, política que deve orientar os passos da estratégia e da tática, ou seja, o manejo da transferência e o uso da interpretação. A falta-a-ser se abre a muitos sentidos, mas, no contexto da condução de um tratamento, significa que o analista, pela experiência de finitude que realizou em sua própria análise, sabe confiar no seu desejo e aprendeu a dissolver as certezas de seu “eu”. Em Variantes do Tratamento Padrão (Lacan, 1998e), texto de um período anterior, Lacan recomenda ao analista não ter uma ideia muito elevada de sua prática e muito menos “fazer-se de profeta de alguma verdade estabelecida” (Lacan, 1998e, p. 332). O autor argumenta que, para um analista sustentar a transferência, deve despojar a imagem narcísica do seu eu e reduzi-la ao que sustenta todas as suas máscaras: a morte. O autor designa isto como atingir a “subjetivação de sua morte” (Lacan, 1998e, p. 350), em uma clara referência ao ser para a morte heideggeriano.
Lacan afirma nesse momento que a morte é o único critério absoluto que o analista deve conhecer para que a vida de seu paciente lhe seja amigável. Reconhecer o senhorio da morte é realizar uma ascese do ser que coloca os saberes objetivos em estado de suspensão. Para poder realizar esta ascese, o analista deve se saber como um “ser prometido à morte” (Lacan, 1998e, p. 351). Nenhum saber construído pode ter preferência à experiência do analista de haver reduzido todos os poderes de seu eu para assumir o seu ser-para-a-morte, afirma o autor. O resultado disto é uma certa relação com o saber: “o fruto positivo da revelação da ignorância é o não-saber, que não é uma negação do saber, porém sua forma mais elaborada” (Lacan, 1998e, p. 360). Vê-se que o autor evoca a figura da douta ignorância para indicar esta forma elaborada de não-saber. Nessas passagens temos indicações de algumas coordenadas que culminaram na proposição da posição ontológica da falta-a-ser como política que orienta a direção da cura.
Estabelecer, portanto, a falta-a-ser como determinação ontológica, orientando a estratégia no manejo da transferência e do uso tático da interpretação, coloca a direção do tratamento em uma metáfora militar de conquista de território: “devemos reconquistar o terreno perdido do ser do sujeito” afirma Lacan (2016, p. 405).
Lacan (1998a) afirma em A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder que o analista tem de pagar com suas palavras, com sua pessoa ao ser suporte da transferência, e com o seu ser para que algo do ser do paciente possa avançar. Segundo López (2011), dizer que o analista paga com suas palavras significa que ele aceita ser despossuído do domínio do sentido e se converte em um ser indigente que aceita ceder suas palavras ao efeito da interpretação que se constitui no outro através dele. Ele paga com seu ser, pois aceita ocupar o lugar do morto e se converter como suporte da transferência em um semblante do ser. No final das contas, o desejo do analista é desejo de diferença absoluta com seu próprio ser.
Por fim, podemos lembrar que no Seminário 6, Lacan (2016, p. 224) retoma a metáfora freudiana do jogo de xadrez, que consiste em uma série de movimentos em réplica, que tem por objetivo eliminar as peças do campo adversário. Do mesmo modo, uma análise tem como seu proceder o eliminar pelo “corte” uma quantidade suficiente de significantes, para entrever onde está, no interior da estrutura, a posição do sujeito. Lacan afirma que o corte presentifica o ser no simbólico e pode revelar a estrutura do sujeito como uma descontinuidade no real, ou seja, sua falta-a-ser. Essa discussão ontológica sobre o corte fornece as coordenadas para se pensar a função técnica do corte na direção de um tratamento, no qual ele possui uma importância capital.
Considerações finais
Pretendemos ter demonstrado que uma das faces do retorno de Lacan a Freud, realizado com coordenadas do estruturalismo, foi propor uma teoria do desejo em sua relação com o ser. Tomar o desejo como constelação que orienta a direção da cura é uma política de tratamento que visa abordar uma dimensão do ser em sua equivocação com a falta que não se deixa capturar nas cristalizações das figuras do ente. Poderíamos estabelecer uma linha de continuidade entre as positividades da solidez do eu e o exercício alienante do poder. No lugar disso, a psicanálise, como crítica da metafísica, propõe se orientar nesta margem do pouco de sentido que é a política da falta-a-ser, de modo que se possa recuperar algo do terreno perdido de ser do sujeito.
Entendemos que uma chave essencial para compreender a origem ontológica desta concepção está na diferença ontológica de Heidegger e em sua leitura da vontade de potência como o último capítulo da metafísica. Esta leitura nos parece indicar um importante caminho para pensar a política da psicanálise. A era da técnica, do domínio absoluto do homem sobre o ente, que por um lado engendra um extremo objetivismo, tem como seu correlato o extremo subjetivismo centrado na figura do eu.
Com relação ao problema, Lacan aborda a direção do tratamento pensando, por um lado, o ser, com o seu poder de nadificação quando confrontado em sua diferença com o ente (falta-a-ser). E, de outro lado, o ego, que com sua vontade de poder, soberano dos entes no mundo, é a expressão acabada de uma metafísica da subjetividade na psicanálise. Deste modo, podemos compreender a política da falta-a-ser como uma crítica da metafísica na psicanálise e um recurso para fazer furo na sanha imperialista do “eu”.
Portanto, tentamos apresentar um percurso teórico que, inicialmente, teve como índice a aparente contradição entre o vocabulário do ser e o uso do estruturalismo no pensamento lacaniano. Para nós, tal condição teórica é uma estratégia que tem a intenção de associar a direção do tratamento e crítica da metafísica, nos dois lados do processo analítico (analista e analisando). Isto é, avança-se em um processo de análise a partir da derrubada de certos elementos da figurabilidade ingênua do eu: a realidade que adquiriu consistência e o campo das certezas antecipadas, terreno dos preconceitos e das insuspeitas. O correlato dessa condição, em relação ao psicanalista, é o de que o grau de influência sobre esse processo precisa se apoiar em uma douta ignorância e recuar ao saber como signo de poder. O desejo, nesse sentido, a partir de sua definição como metonímia da falta-a-ser, responde como aquilo que está para além da pura determinação simbólica na ordem epistemológica, ao mesmo tempo que indica o oposto daquilo que, em termos de política de tratamento, seria mantido pelo realismo ingênuo do eu.