SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10 issue20Psychoanalyses’ approach to a squizophrenia caseMemory, record and subjectivity: teachers’ writings author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Interações

Print version ISSN 1413-2907

Interações vol.10 no.20 São Paulo Dec. 2005

 

ARTIGOS

 

Contribuições do referencial das habilidades sociais para uma abordagem sistêmica na compreensão do processo de ensino-aprendizagem

 

Contributions of the social skills approach for a systemic understanding of the teaching-learning process

 

 

Zilda Aparecida Pereira Del PretteI; Mirella Lopez Martini Fernandes PaivaII; Almir Del PretteIII

Universidade Federal de São Carlos. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No presente trabalho são examinadas algumas explicações para o fracasso escolar em nosso meio, defendendo, em linhas gerais, a proposta de uma abordagem sistêmica sobre o processo e os produtos da educação escolar, mesmo quando focalizando, como ponto crítico, as relações professor-aluno. Em seguida apresenta conceitos sobre relações interpessoais e habilidades sociais, defendidos como compatíveis com essa visão sistêmica e aplicados à análise e intervenção sobre as relações professor-aluno. Ao final discute algumas implicações dessa proposta para a pesquisa e a prática educacional. Embora ainda exploratória e não isenta de desafios, possibilita uma compreensão ampla do processo de ensino-aprendizagem e oferece subsídios para uma prática docente mais eficaz.

Palavras-chave: Abordagem sistêmica, Educação escolar, Relações professor-aluno, Relações interpessoais, Habilidades sociais.


ABSTRACT

This essay examines some explanations for school failure. We argue for systemic approach of the process and the products of school education even when dealing with the crucial point of the teacher-student relationship. Moreover, we present concepts regarding interpersonal relationships and social skills, arguing that they are compatible with this systemic perspective and may be applied to the analysis of, and intervention in, the teacher-student relationship. Finally, some implications of this argument for educational research and practice are discussed. Despite its exploratory character and inherent challenges, this argument paves the way to a wider understanding of the teaching-learning process which contributes for a more effective educational practice.

Keywords: Systemic approach, School education, Teacher-student relationship, Interpersonal relationships, Social skills.


 

 

A análise das diversas teorias e perspectivas que buscam explicar o sucesso escolar e os problemas e/ou dificuldades de aprendizagem revela a existência de diferentes concepções sobre os fatores associados ao rendimento escolar dos alunos. Algumas atribuem o desempenho escolar a características biológicas, psicológicas e sociais do aluno, e às variáveis do contexto imediato de aprendizagem, especialmente as características do professor (Pain, 1985; Witter e Copit, 1971). Outras enfocam os aspectos sócio-políticos da educação, atribuindo o desempenho do aluno às condições políticas, econômicas e culturais que influem sobre o contexto escolar e sobre o processo de ensinoaprendizagem (Althusser, 1980; Ribeiro, 1993; Gramsci, 1982). Existem, ainda, as perspectivas que relacionam o sucesso e o fracasso escolar a fatores presentes no processo de ensino-aprendizagem e nas relações professor-aluno, colocando maior ênfase na qualidade desse processo e/ou nas características de seus agentes (Bernstein, 1985; Carraher, Carraher e Schlieman, 1989; Nunes, 1990). Isoladamente, essas abordagens oferecem explicações pertinentes, porém parciais sobre esse processo, que se caracteriza pela complexidade e multiplicidade de determinantes.

A compreensão do desempenho escolar, mais especialmente do fracasso escolar, exclusivamente a partir das características do professor (características afetivas e de personalidade, crenças, falhas da formação docente e da formação continuada etc) ou do aluno (déficit de inteligência, subnutrição, imaturidade, falta de preparo, problemas emocionais, abandono ou falta de ajuda dos pais, desorganização familiar, entre outros) revela uma certa patologização das dificuldades de aprendizagem e do insucesso acadêmico e, acaba convertendo os problemas de ensino em problemas de aprendizagem (Leite, 1988; Almeida e colaboradores, 1995; Neves e Almeida, 1996).

Ao se focalizar unicamente as condições econômicas, políticas e culturais, reduz-se o papel central que a escola e a relação social pedagógica básica entre professores e alunos exercem sobre o processo de ensinoaprendizagem. As perspectivas que enfatizam a qualidade desse processo não excluem o papel decisivo que a escola desempenha na produção do fracasso escolar, mas certamente minimizam o peso das dificuldades por que passa hoje a educação brasileira, caracterizada pela baixa qualidade da formação do educador e pelas condições precárias de ensino, reflexos de condições estruturais mais amplas, e principalmente de uma história de parcos investimentos.

Entende-se, portanto, que a compreensão do processo de ensinoaprendizagem não pode prescindir de análises que considerem as características dos professores e dos alunos (inteligência, motivação, crenças, aspectos afetivos, rendimento acadêmico, formação profissional, habilidades sociais educativas, entre outros) e do contexto imediato em que se dá esse processo (condições econômicas e físicas da escola, estrutura e funcionamento, ambiente de sala de aula, relação pedagógica etc), nem do conjunto de condições mais amplas, como a filosofia da educação, a política educacional, a qualidade da formação de professores. A consideração simultânea desses conjuntos de relações na análise do processo de ensino-aprendizagem constitui a base de uma visão sistêmica sobre educação e escola (Arón e Milicic, 1994; Curtis e Stollar, 1995; Curonici e McCulloch, 1999; Sá, 1984; Martini, 2003; Souza e Machado, 1997; Machado, 1997).

Uma visão sistêmica não impede que o foco de determinada análise privilegie um conjunto de segmentos dentro de um complexo de interdependências. Neste trabalho, a ênfase de análise recai sobre as relações professor-aluno, contextualizadas sistemicamente no conjunto dos demais componentes do sistema escolar e entendidas a partir de noções do campo das Relações Interpessoais e das Habilidades Sociais. Além disso, ainda coerentemente com uma perspectiva de dialética análise-síntese, essas relações são entendidas como um subsistema, que ao ser decomposto sugere novas articulações relacionais relevantes. Ao final deste trabalho são brevemente consideradas algumas das implicações desta abordagem para a pesquisa e a prática educacional, e para a compreensão e intervenção sobre o processo de ensino-aprendizagem.

 

O sistema escolar e a importância das relações professor-aluno

O enfoque sistêmico, originalmente concebido na biologia, bem como nas teorias da informação e da cibernética, é hoje amplamente reconhecido como parte dos novos paradigmas culturais que buscam uma visão integrada do homem e seu contexto (Sarriera, 1998). Aplicado à compreensão do comportamento, o modelo sistêmico contrapõe-se às explicações lineares baseadas exclusivamente em aspectos intrapsíquicos ou eventos mais imediatos, buscando abarcar a complexidade do contexto mais amplo no qual ele ocorre. Aí também estariam incluídas as variáveis internas dos indivíduos, porém vistas como resultado de processos de interação com o ambiente.

Um sistema deve ser necessariamente entendido como um conjunto de componentes interdependentes (Del Prette e Del Prette, 2001a) que possuem uma dinâmica própria. Conforme Mariotti (2000), os sistemas funcionam de modo integrado, com os subsistemas influenciando-se reciprocamente, em movimentos que buscam manter o equilíbrio (homeostase) a cada desequilíbrio. Este é visto como condição para novos níveis de homeostase: a partir de intervenções específicas, em um dado subsistema, novas mudanças (desequilíbrios) podem ocorrer, permitindo que todo o sistema se reorganize e adquira um funcionamento qualitativamente mais avançado.

As mudanças percebidas na totalidade ocorreriam porque os sistemas têm pontos críticos de ligação entre suas estruturas – os chamados “pontos de alavancagem”, aos quais se refere Mariotti (2000), e que ao serem mobilizados gerariam efeitos em outras ou em todo sistema. A abordagem sistêmica reconhece, portanto, a existência de níveis intermediários de análise e intervenção, valorizados por suas articulações com outros subsistemas componentes e com o sistema mais amplo.

A adoção de uma perspectiva sistêmica na análise do processo de ensino-aprendizagem traz importantes implicações para a pesquisa sobre os fatores associados ao desempenho escolar e também para a prática educacional comprometida com a promoção do sucesso escolar e a minimização do fracasso escolar.

A primeira implicação é, sem dúvida, a de questionar explicações parcializantes ou genéricas sobre o processo de ensino-aprendizagem e seus produtos quando se pretende compreender o fracasso escolar. As explicações parcializantes, que se restringem a um determinado subsistema (por exemplo, o professor ou o aluno) podem produzir estigmatização de alunos e professores, bem como a patologização das dificuldades de aprendizagem e do insucesso acadêmico. As explicações genéricas, que atribuem o problema ao sistema mais amplo, desconsiderando-se seus componentes e articulações, podem gerar uma atitude paralisante, que desvaloriza quaisquer tentativas de intervenção local, independentemente de suas repercussões potenciais, esperando ad infinitum que mudanças estruturais mais amplas ocorram. Estas, defendidas como as únicas válidas, dependem de condições usualmente muito além do controle dos profissionais de educação.

Uma segunda implicação refere-se aos desafios da pesquisa na análise e compreensão dos fatores de sucesso ou fracasso escolar. Considerandose a inviabilidade de pesquisas que focalizem simultaneamente todos os subsistemas e suas interligações, cabe ao pesquisador manter sempre em mente algumas perguntas, como: qual o nível possível e desejável de análise ou de recorte da realidade a ser investigada para produzir algum conhecimento científico socialmente relevante? Para um problema de pesquisa específico, quais seriam os pontos críticos ou “pontos de alavancagem” a serem investigados? Como identificar estados de equilíbrio ou desequilíbrio do sistema a ser investigado, ou seja, quais os indicadores confiáveis para isso? Como caracterizar a transição entre um estado e outro?

Sem pretender responder a todas essas questões, entende-se, no entanto, que um ponto de alavancagem importante na análise e intervenção sobre o sistema escolar pode ser situado nas relações interpessoais que caracterizam o processo de ensino-aprendizagem. Dentre tais relações, pode-se defender, como nuclear e básica, a relação professor-aluno (Almeida e Lima, 1988; Davis, Silva e Esposito, 1989): a natureza e a qualidade dessa relação influem decisivamente sobre as características do processo e dos produtos da escola, podendo-se considerá-la como um possível ponto de alavancagem para outras mudanças. Mesmo assim, pode-se questionar quais os esquemas conceituais potencialmente apropriados para a análise desse recorte, tendo em vista a compreensão sistêmica antes esboçada. Nesse caso, não poderia ser ignorado também o próprio pesquisador como subsistema vinculado à produção do conhecimento: suas referências conceituais e competências certamente ampliam ou reduzem os horizontes de análise, orientando decisões teóricas e metodológicas.

 

Relações professor-aluno, relações interpessoais e habilidades sociais

As atuais concepções acerca do significado da ação de ensinar vêm superando a noção de transmissão de conhecimentos que supunha um aluno passivo, redefinindo-se como uma tarefa complexa que envolve orientar, promover e mediar o desenvolvimento de novas capacidades intelectuais e sócio-emocionais, necessárias à aprendizagem dos diferentes conteúdos curriculares e ao desenvolvimento mais geral desse aluno. Essa tarefa amplia a antiga ênfase no conteúdo a ser ensinado, para incluir novos objetivos e resultados que dependem, em última instância, das características e da qualidade das relações professoraluno (Saint-Onge, 1999). Essa relação pedagógica básica tem sido, nos últimos anos, objeto de crescente interesse e referência obrigatória para a investigação dos resultados e produtos educacionais da escola. Ela pode ser entendida como um subsistema, que pode ser decomposto em novos elementos, e por sua vez, manter articulações produtivas com outros do sistema escolar.

O subsistema composto pelas relações professor-aluno pode ainda ser subdividido em pelo menos três outros: o professor, o aluno e a relação propriamente dita entre eles, entendendo-se essa “relação”, conforme a perspectiva de Hinde (1981), como um processo que envolve dependência e interdependência de comportamentos, que ao longo do tempo afetam e são afetados pelas variáveis cognitivas e afetivas de cada um dos integrantes da relação e pelas variáveis do contexto em que vivem.

As variáveis cognitivas e afetivas do professor e do aluno afetam, portanto, essa relação e incluem crenças, motivações, sentimentos e habilidades. As variáveis contextuais incluiriam, no caso da escola, as ações dos demais professores, técnicos e especialistas, dos setores de apoio e serviços, dos pais e da administração escolar, bem como suas articulações com as instituições que definem a função social da escola a partir de uma política sócio-econômica e educacional, com seus valores, ideologia, normas e outras características sócio-historicamente situadas (Martini, 2003).

Uma abordagem sistêmica do processo educativo centralizando as relações professor-aluno como ponto de alavancagem não exclui nem pode ignorar, de um lado, o estudo das características individuais de professores e alunos, e de outro, a influência dos elementos que caracterizam o contexto escolar; nem minimiza a importância dos aspectos políticos, econômicos e culturais da educação. Ao contrário, deve considerar simultaneamente o peso dos sistemas micro e macro sobre as características dos relacionamentos interpessoais e intergrupais que compõem o ambiente educacional e, em particular, as relações professor-aluno, consideradas a base para a promoção de conhecimento, habilidades e valores que definem a função social da escola. Em outras palavras, a compreensão do processo educacional, e em especial de sua articulação com o rendimento acadêmico dos alunos, impõe a adoção de um modelo sistêmico de análise que contemple ao mesmo tempo seus aspectos molares e moleculares.

Nessa direção, o uso do conceito de relação proposto por Hinde (1981) implica diferenciar três níveis de análise: o da interação, o da relação propriamente dita e o da estrutura social. A interação refere-se à dimensão mais diretamente observável e acessível da relação: as trocas comportamentais entre os agentes sociais. A compreensão da relação inclui a análise dos padrões de interação (conteúdo, freqüência, reciprocidade etc), porém leva também em conta as variáveis cognitivas e afetivas dos indivíduos nela envolvidos, nem sempre acessíveis à observação direta (embora possam ser inferidas), mas que afetam e são afetadas por essas interações e por outras variáveis. A análise da estrutura social refere-se às articulações entre diferentes padrões de relações, que coexistem no sistema social juntamente com as variáveis macro-estruturais que determinam suas características.

No caso da escola, a complexidade das relações professor-aluno, especialmente em sala de aula, requer uma análise das interações do professor com seu(s) aluno(s) e entre os alunos em sala de aula, bem como a compreensão das variáveis cognitivas e afetivas desses dois personagens principais, que influenciam tais interações e são por elas influenciadas. Essas variáveis incluem ainda o compromisso com a relação, que Hinde define como “a extensão pela qual os parceiros aceitam a continuidade da relação ou dirigem seu comportamento no sentido de assegurar essa continuidade ou otimizar suas propriedades” (p. 14). Considerando-se o papel central atribuído ao professor, no sentido de garantir os produtos esperados da relação pedagógica, seu compromisso pode ser inferido de seus esforços para otimizar condições efetivas de ensino e superar eventuais limitações do contexto escolar, aqui incluindo-se suas relações com os alunos e as que medeia entre os alunos, e destes com os outros agentes educativos (Del Prette, 1990).

Efetivamente, pesquisas têm mostrado que as crenças, sentimentos, motivações e habilidades dos professores influenciam e são influenciadas por suas ações e interações educativas junto aos alunos, bem como pelos resultados em termos de rendimento acadêmico e desenvolvimento cognitivo e emocional desses alunos. No outro pólo, o aluno é também um complexo de sentimentos, motivações e crenças que afetam seu próprio rendimento escolar e podem estar associados, de diferentes maneiras, às ações do professor (Sadalla, 1998; Martini e Boruchovitch, 2001; Sadalla, Saretta e Escher, 2002; Martini e Del Prette, 2002; Leite e Tassoni, 2002).

Existem diferentes modelos teóricos que buscam compreender as relações interpessoais, bem como tentativas de integrar microteorias em um referencial mais amplo, uma vez que geralmente elas não contemplam de forma exaustiva a complexidade do fenômeno. Nesse caso, tem-se o desafio de manter a coerência epistemológica entre os modelos adotados. Um exemplo desse tipo de abordagem pode ser encontrado no campo teórico-prático do Treinamento de Habilidades Sociais, crescentemente explorado no contexto educacional, e mais especificamente na análise e intervenção sobre as relações professoraluno. Embora construído em grande parte sob uma perspectiva linear, apresenta conceitos e noções que permitem aplicá-lo produtivamente sob uma visão sistêmica (Del Prette e Del Prette, 2001b).

O campo do Treinamento de Habilidades Sociais representa na atualidade um importante enfoque da Psicologia sobre as relações interpessoais, tanto em seus substratos teóricos, em grande parte derivados de dados empíricos, como em sua aplicação. Ele vem produzindo conhecimentos relevantes sobre as relações interpessoais que caracterizam diferentes contextos sociais, e caracteriza-se como um campo aberto, valendo-se de diferentes disciplinas que têm interesse no mesmo tema. Assim, articula alguns modelos teóricos da Psicologia e estabelece importantes conexões com outras ciências, como a Sociologia, a Antropologia, a Etologia, a Biologia Evolutiva, entre outras (Del Prette e Del Prette, 2000; 2001a). Embora ainda careça de uma teoria geral integradora, o Treinamento de Habilidades Sociais pode contribuir na formulação de teorias mais abrangentes sobre as relações interpessoais, fortalecendo, em retorno, essas mesmas disciplinas.

As aplicações desse campo à educação e à escola tornaram-se objeto, em nosso meio, de uma produção que, embora ainda incipiente, é reveladora do interesse na área, como pode ser visto nas referências já citadas. Parece-nos, contudo, que a visão sistêmica sobre as relações interpessoais, nessa perspectiva, representa um amplo conjunto de possibilidades ainda não totalmente explorado (Del Prette e Del Prette, 2001a).

O termo habilidades sociais é entendido como o conjunto dos desempenhos disponíveis no repertório do indivíduo, enquanto o de competência social refere-se à capacidade do indivíduo apresentar desempenhos, que articulando pensamento, sentimento e ação, garantam a realização dos objetivos de uma situação interpessoal, a manutenção e a melhoria da auto-estima e da relação com o interlocutor, o exercício e defesa dos direitos humanos socialmente estabelecidos e o equilíbrio nas relações de poder (Del Prette e Del Prette, 2001b). O conceito de competência social possui, assim, um caráter mais avaliativo do que descritivo, o contrário ocorrendo com o conceito de habilidades sociais.

A análise das habilidades sociais e da competência social nos desempenhos interpessoais deve necessariamente levar em consideração, conforme Del Prette e Del Prette (1999), três importantes dimensões: a pessoal, a situacional e a cultural. A dimensão pessoal refere-se aos componentes comportamentais (fazer/responder perguntas, pedir/dar feedback, fazer pedidos, elogiar, recusar etc), cognitivo-afetivos (conhecimentos prévios, autoconceito, objetivos e valores pessoais, empatia, resolução de problemas, auto-instrução, auto-observação etc) e fisiológicos (taxa cardíaca, respiração) do desempenho social. As características dos interlocutores e das demandas do contexto onde ocorre o desempenho interpessoal (com o reconhecimento de que diferentes situações criam demandas sociais diferenciadas) compõem a dimensão situacional das habilidades sociais. A dimensão cultural destaca o papel fundamental que as normas, valores e regras das diferentes culturas exerce sobre o desempenho social.

As dimensões do desempenho social, preconizadas pela área do Treinamento de Habilidades Sociais, podem ser aplicadas às relações professor-aluno na análise da multiplicidade de variáveis que caracterizam a complexidade desse fenômeno. A dimensão pessoal implicaria considerar as variáveis individuais de professores e alunos, como crenças, habilidades, valores, sentimentos e motivações desses interlocutores. A dimensão situacional levaria à análise das condições físicas e humanas da escola, do projeto pedagógico, da dinâmica organizacional e autonomia do professor, entre outros aspectos. A dimensão cultural implicaria examinar todos esses aspectos à luz da filosofia da educação, da política educacional e do papel que a educação e a escola assumem no contexto sócio-histórico sob exame.

A visão integrada dessas três dimensões representa um notável avanço em direção a uma perspectiva sistêmica de compreensão do processo de ensino-aprendizagem, pelo menos no que se refere à sua base nas relações professor-aluno. Ela implica considerar a natureza do processo e dos produtos associados à qualidade das interações que ocorrem em sala de aula, em suas articulações, de um lado, com as características pessoais desses protagonistas, e de outro, com os objetivos, valores e metas educacionais que definem a subcultura escolar. Em uma visão mais geral, esse conjunto de componentes interdependentes deve ser entendido em sua determinação recíproca com as condições sociais e políticas de determinado momento histórico.

 

Uma reflexão final

A utilização de uma perspectiva sistêmica na análise dos fatores associados ao sucesso e ao fracasso escolar constitui, sem dúvida, um desafio tanto para o pesquisador como para o profissional comprometido com mudanças no sistema educacional.

Para o pesquisador implica estabelecer recortes apropriados de análise e encontrar “pontos de alavancagem”, que articulados a referenciais conceituais potencialmente heurísticos permitam a produção de conhecimentos científica e socialmente relevantes tanto para a compreensão do sistema como para a indicação de alternativas efetivas, visando sua transformação. Ainda que a análise sistêmica localize diferentes pontos de alavancagem não propriamente no contexto escolar, as intervenções podem demorar a produzir mudanças significativas nas relações professor-aluno. Nesse caso, os recursos de procedimentos derivados da área do Treinamento de Habilidades Sociais poderiam ser explorados em estratégias coadjuvantes e concomitantes para a melhoria do processo educativo, e mesmo em um sentido profilático.

Para o profissional, implica desenvolver suas próprias capacidades analíticas e técnicas, pelo menos em duas direções. A primeira no sentido de selecionar, do conjunto de conhecimentos disponíveis e usualmente não sistematizados, aqueles que contribuem para intervenções viáveis que, conquanto localizadas, tenham repercussões mais amplas no sistema. A segunda direção, mais propriamente prática do que analítica, refere-se à seleção e aplicação de procedimentos apropriados a uma atuação efetiva, partindo de uma contextualização micro e macro do ambiente social em que está inserido.

A proposta defendida neste trabalho, de adoção do referencial das relações interpessoais e das habilidades sociais em uma perspectiva sistêmica, é também exploratória e não isenta de desafios. Ela requer do pesquisador e do profissional a capacidade de articular aspectos moleculares e molares de um contexto interativo, em suas dimensões pessoal, situacional e cultural.

No caso específico dos produtos da educação escolar, o rendimento escolar passa a ser visto como função de um conjunto amplo de condições, que podem ser em grande parte mediadas pela natureza e qualidade das relações interpessoais que ocorrem na escola, sem perder de vista sua inserção como parte de um sistema mais amplo. Longe de culpabilizar os agentes interativos pelo fracasso escolar, o olhar desloca-se para os processos de interdependência entre eles e para os fatores escolares e extra-escolares que afetam esses processos, mas que podem ser afetados por intervenções focais, cuidadosamente planejadas. Evita-se, assim, tanto a perspectiva ingênua de supor que qualquer intervenção focal desse tipo modifique todo o contexto, como a perspectiva imobilizante de esperar por amplas mudanças sociais que um dia alterem a educação em seus processos e produtos.

 

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, N.V.; LIMA, C.G. (1988). O psicólogo na instituição escolar: relato de uma experiência. Revista de Psicologia. 6(1): 111-122.        [ Links ]

ALMEIDA, S.F.C.; RABELO, L.M.; CABRAL, V.S.; MOURA, E.R.O.; BARRETO, M.S.; BARBOSA, H. (1995). Concepções e práticas de psicólogos escolares acerca das dificuldades de aprendizagem. Psicologia: Teoria e Pesquisa. 11(2): 117-134.        [ Links ]

ALTHUSSER, L. (1980). Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3. ed. Lisboa: Presença.        [ Links ]

ARÓN, A.M.; MILICIC, M. (1994). Viver com os outros: programa de desenvolvimento de habilidades sociais. Campinas: Workshopsy.        [ Links ]

BERNSTEIN, B. (1985). Uma crítica ao conceito de “educação compensatória”. In: BRANDÃO, Z. Democratização do ensino: meta ou mito?. Rio de Janeiro: Francisco Alves.

CARRAHER, T.N; CARRAHER, D.W.; SCHLIEMANN, A.D. (1989). Na vida dez, na escola zero. 3. edição. São Paulo: Cortez.        [ Links ]

CURONICI, C.; MCCULLOCH, P. (1999). Psicólogos e professores: um ponto de vista sistêmico sobre as dificuldades escolares. Bauru: EDUSC.        [ Links ]

CURTIS, M.J.; STOLLAR, S.A. (1995). Best practices in system-level consultation and organizational change. In: THOMAS, A.; GRIMES, J. (orgs). Best practices in School Psychology-III (51-58). Washington DC: The Nacional Association of School Psychologists.        [ Links ]

DAVIS, C.; SILVA, M.A.S.; ESPÓSITO, Y. (1989). Papel e valor das interações sociais em sala de aula. Cadernos de Pesquisa. 71: 49-54.        [ Links ]

DEL PRETTE, A.; DEL PRETTE, Z. (2001a). Habilidades sociais: biologia evolucionária, sociedade e cultura. In: GUIHARDI, H.J.; MADI, M.B.B.P.; QUEIROZ, P.P.; SCOZ, M.C. (org). Sobre comportamento e cognição: expondo a variabilidade. Santo André: ESETec. vol. 8.        [ Links ]

DEL PRETTE, A.; DEL PRETTE, Z. (2001b). Psicologia das relações interpessoais e habilidades sociais: vivências para o trabalho em grupo. Petrópolis: Vozes.        [ Links ]

DEL PRETTE, Z.A.P. (1990). Uma análise da ação educativa do professor a partir de seu relato verbal e da observação em sala de aula. Tese (Doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo.        [ Links ]

DEL PRETTE, Z.A.P.; DEL PRETTE, A. (1999). Psicologia das habilidades sociais: terapia e educação. Petrópolis: Vozes.        [ Links ]

DEL PRETTE, Z.A.P.; DEL PRETTE, A. (2000). Treinamento em habilidades sociais: panorama geral da área. In: HAASE, V.G.; ROTHE-NEVES, R.; KÄPPLER, C.; TEODORO, M.L.M.; WOOD, G.M.O. (eds). Psicologia do desenvolvimento: contribuições interdisciplinares. Belo Horizonte: Health.        [ Links ]

GRAMSCI, A. (1982). Os intelectuais e a organização da cultura. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.        [ Links ]

HINDE, R.A. (1981). The Bases of a Science of Interpersonal; Relationships. In: DUCK, S.; GILMOUR, R. (eds). Personal relationships 1: Studying personal relationships. New York: Academic Press.        [ Links ]

LEITE, S.A.S. (1988). O fracasso escolar no ensino de 1 o grau. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. 69(163): 510-540.        [ Links ]

LEITE, S.A.S.; TASSONI, E.C.M. (2002). A afetividade em sala de aula: as condições de ensino e a mediação do professor. In: AZZI, R.; SADALLA, A. (orgs). Psicologia e formação docente. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

MACHADO, A.M. (1997). Avaliação e fracasso: a produção coletiva da queixa escolar. In: AQUINO, G. (org). Erro e fracasso na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus.        [ Links ]

MARIOTTI, H. (2000). As paixões do ego: complexidade, política e solidariedade. São Paulo: Palas Athena.        [ Links ]

MARTINI, M.L. (2003). Variáveis psicológicas de professores e alunos, ações interativas e desempenho acadêmico. Investigando possíveis relações. Tese (Doutorado). Programa de Pós-graduação em Psicologia. Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP/USP). Ribeirão Preto.        [ Links ]

MARTINI, M.L.; BORUCHOVITCH, E. (2001). Atribuições de causalidade: a compreensão do sucesso e fracasso escolar por crianças brasileiras In: BZUNECK, A.; BORUCHOVITCH, E. (orgs). A motivação do aluno: contribuições da Psicologia Contemporânea. Petrópolis: Editora Vozes.        [ Links ]

MARTINI, M.L; DEL PRETTE, Z.A.P. (2002). Atribuições de causalidade de professoras do ensino fundamental para o sucesso e o fracasso escolar dos seus alunos. Interação em Psicologia. 6(2):149-156.        [ Links ]

NEVES, M.B.J.; ALMEIDA, S.F.C. (1996). O fracasso escolar na 5 a série, na perspectiva de alunos repetentes, seus pais e professores. Psicologia: Teoria e Pesquisa. 12: 147-156.        [ Links ]

NUNES, A.N.A. (1990). Fracasso escolar e desamparo adquirido. Psicologia: Teoria e Pesquisa. 6(2): 139-154.        [ Links ]

PAIN, S. (1985). Diagnóstico e tratamento de problemas de aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

RIBEIRO, S.C. (1993). A Educação e a inserção do Brasil na modernidade. Cadernos de Pesquisa. 84: 63-82.        [ Links ]

SÁ, M.I. (1984). Professor-aluno: que relação é essa?: uma abordagem sistêmica. Revista de Psicologia. 2(2): 23-27.        [ Links ]

SADALLA, A.M.F. (1998). Com a palavra, a professora: suas crenças, suas ações. Campinas: Alínea.        [ Links ]

SADALLA. A.M.F.; SARETTA, P.; ESCHER, C.A. (2002). Análise de crenças e suas implicações para a educação. In: AZZI, R.; SADALLA, A. (orgs). Psicologia e Formação Docente. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

SAINT-ONGE, M. (1999). O ensino na escola: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola.        [ Links ]

SARRIERA, J.C. (1998). O modelo ecológico-contextual em Psicologia Comunitária. In: SOUZA, L.; FREITAS, M.F.Q.; RODRIGUES, M.M.P. (orgs). Psicologia: Reflexões (im)pertinentes. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

SOUZA, M.P.R.; MACHADO, A.M.M. (1997). As crianças excluídas da escola: um alerta para a Psicologia. In: MACHADO, A.M.M.; SOUZA, M.P.R. (orgs). Psicologia escolar: novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

WITTER, G.P.; COPIT, M.S. (1971). Lendo e escrevendo: manual do professor. São Paulo: Vetor.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Mirella Lopez Martini Fernandes Paiva
Rua XV de Novembro, 1168 – Centro
13561-160 – São Carlos/SP
Tel.: (16) 3371-1511
E-mail: mirellapaiva@gmail.com

Zilda A.P. Del Prette
Departamento de Psicologia/UFSCar
Via Washington Luis, km 235 – Cx. Postal 676
13565-905 – São Carlos/SP
Tel.: (16) 3351-8447
E-mail: zdprette@power.ufscar.br

Almir Del Prette
Departamento de Psicologia/UFSCar
Via Washington Luis, km 235 – Cx. Postal 676
13565-905 – São Carlos/SP
Tel.: (16) 3351-8447
E-mail: adprette@power.ufscar.br

recebido em 18/05/04
versão revisada recebida em 11/05/05
aprovado em 25/10/05

 

 

I Psicóloga; Mestre em Psicologia Comunitária; Doutora em Psicologia Experimental (USP); Pós-doutorado em Habilidades Sociais; Professora Titular do Departamento de Psicologia (UFSCar).
II Psicóloga; Mestre em Psicologia Educacional (UNICAMP); Doutora em Psicologia (USP); Membro do Grupo de Pesquisa Relações Interpessoais e Habilidades Sociais e do Núcleo de Estudos da Motivação Acadêmica (UFSCar).
III Psicólogo; Mestre em Psicologia Clínica; Doutor em Ciências (USP); Professor Doutor do Departamento de Psicologia (UFSCar).