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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.15 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2010

 

Ensaio Acadêmico

 

Revoluções culturais e as mídias: reflexões sobre as relações de crianças e jovens com o conhecimento

 

Cultural revolutions and media: reflections about the children's relation with knowledge

 

Adriana Hoffmann Fernandes

Universidade Federal do Estado do Rio de janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

 

 


Resumo

Nesse ensaio, faço uma reflexão sobre a influência que a transformação na concepção de cultura, ocorrida ao longo do século XX, trouxe para a constituição das culturas infantis e juvenis, colocando em diálogo as posições de autores de diferentes campos de estudo como a história, a filosofia, a antropologia e os estudos culturais. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (1): 055-063.

Palavras-chave: cultura; mídia; formação de crianças e jovens.


Abstract

In this essay I make a reflection about the influence that the transformation in the concept of culture, occurred through the 20th century, brought to the constitution of youth and childlike cultures, putting in dialogue the point of view of authors from different study fields like history, philosophy, anthropology and cultural studies. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (1): 055-063.

Keywords: culture; media; children and youth's education.


 

 

Introdução

É cada vez mais necessário estarmos atentos às mudanças que vem acontecendo em nossa cultura percebendo como elas participam da formação de nossas crianças e jovens. Para realizar essa reflexão que empreendi nos estudos (Fernandes, 2003, 2009) busquei autores de diferentes áreas para ter um olhar mais amplo sobre a complexidade do momento vivido. No primeiro momento do texto discuto como a "revolução cultural", que marcou a segunda metade do século passado, foi determinante na configuração de novas maneiras de compreender a realidade, o que coloca em conflito as gerações mais velhas, socializadas na cultura letrada, e as gerações mais novas, cuja socialização vem sendo influenciada pela produção e difusão das mídias ou tecnologias da comunicação e informação; no segundo, apresento o modo como meus interlocutores teóricos se colocam face à tensão modernidade versus pós-modernidade, focalizando as diferentes concepções de cultura e de saber que subjazem a essa tensão; finalmente no terceiro momento, falo das mudanças da relação da criança e do jovem com o saber na atualidade dentro da complexidade desse contexto.

 

Mudanças na cultura da criança e do jovem

"Você não sente e não vê mas eu
não posso deixar de dizer, meu amigo,
que uma nova mudança em breve vai acontecer.
O que há algum tempo era novo e jovem
hoje é antigo
e precisamos todos rejuvenescer"
(Elis Regina, Velha roupa colorida)

A análise que Eric Hobsbawn (1995) traça da "revolução cultural" que marcou a segunda metade do Século XX é fundamental para refletirmos sobre as transformações culturais que vêm operando sobre as formas como a criança e o jovem se relacionam contemporaneamente com o conhecimento e com a cultura. O autor aponta que a melhor maneira de se abordar a revolução cultural é através da família e da casa, através da estrutura de relações entre os sexos e gerações. Segundo ele, o que aconteceu foi que, durante muito tempo, a vasta maioria da humanidade partilhava de um certo número de valores que com o tempo foram se modificando. Valores que eram partilhados entre pais e filhos. Valores como o casamento formal, a superioridade dos maridos em relação às esposas, etc. A concepção de família era a da família nuclear - um casal com filhos - o que se tornou modelo-padrão da sociedade ocidental dos séculos XIX e XX, quando havia uma unidade entre família e casa. Mas, segundo o autor, na segunda metade do século XX, essa realidade começa a mudar com grande rapidez nos países ocidentais desenvolvidos. Entre 1970 e 1985 triplicaram os divórcios em países como França, Bélgica e houve mudanças no casamento ocidental, tendo duplicado, entre 1960 e 1980, o número de pessoas que vivem sozinhas. Em 1991, 58% de todas as famílias negras nos EUA eram chefiadas por uma mulher sozinha e 70% de todas as crianças tinham nascido de mães solteiras. O aumento no número de divórcios, o aumento de famílias com somente um dos cônjuges nos indicavam uma crise da familia, um aumento da cultura juvenil que provocava uma profunda mudança na relação entre as gerações e no conceito de família.

Hobsbawn mostra que a radicalização política dos anos 60 aumentou o status dos jovens que não eram mais crianças e não queriam mais ser adolescentes. Começa a surgir uma nova autonomia da juventude que tinha como expressão cultural característica o rock. Juventude essa que, com o tempo, passou a ser vista não mais como um estágio preparatório para a vida adulta mas como um estágio final de pleno desenvolvimento humano, constituindo-se, nas sociedades ocidentais, como valor e parâmetro para todas as gerações. Assim, diante dessas mudanças, precisamos todos rejuvenescer como convida Elis Regina em sua música. Dessa forma, Hobsbawn aponta como a cultura juvenil tornou-se dominante nas economias de mercado já que essa nova geração de adultos era parte dessa cultura juvenil, apontando que a rapidez das mudanças tecnológicas dava a esses grupos jovens uma vantagem sobre as demais faixas etárias. Autores como Postman (1999) afirmam que parte dessas mudanças ocorreram com a entrada das mídias (Postman refere-se específicamente à TV) na vida dessas famílias trazendo diferentes valores e conceitos, deslocalizando os papéis de pais e filhos, homens e mulheres, colaborando nesse processo de mudança cultural. Afinal, a geração que não crescera com as máquinas e programas da TV se ressentia de sua inferioridade em relação ao saber das novas gerações. O que os filhos podiam aprender com os pais tornou-se menos óbvio do que o que os pais não sabiam. Inverteram-se os papéis das gerações. Difundia-se através do rádio, dos discos, das fitas, da moda, das universidades e da TV uma cultura juvenil global. Daí, portanto, uma revolução cultural, uma reviravolta nos valores que eram compartilhados entre pais e filhos.

Tudo isso nos coloca diante do desafio fundamental de compreendermos que estamos diante do surgimento de uma outra cultura, que exige das gerações mais velhas uma adaptação aos modos de ver, de ler, de pensar e de aprender das gerações que nos sucederam. Os saberes modificaram-se, os valores também e não há como não fazer referência ao papel das mídias ou das tecnologias nesse contexto. Como nos fala Hobsbawn, foi depois que eles passaram a atuar como lugares de produção e difusão cultural que muitas dessas mudanças aconteceram.

Hobsbawn ainda nos lembra que, na década de 1950, os jovens das classes alta e média, pelo menos no mundo anglo saxônico, começaram a aceitar a música, as roupas e até a linguagem das classes baixas urbanas e começaram a tomá-las como modelo. O rock, por exemplo, irrompeu das gravadoras americanas dirigidas aos negros pobres dos EUA para tornar-se o idioma universal dos jovens brancos. Houve uma guinada para o popular nos gostos dos jovens de classe média e alta no mundo ocidental sendo esta, provavelmente, uma das formas destes rejeitarem os valores das gerações paternas, assumindo padrões e linguagens em que as regras e os valores dos mais velhos já não pareciam relevantes. A cultura jovem, expressa nos meios de comunicação, tornou-se a matriz da revolução cultural dos modos, costumes e meios de gozar o lazer e formou a atmosfera respirada por homens e mulheres urbanos. Cultura essa, como bem lembra o historiador, não mais restrita a uma determinada classe social, mas a todos aqueles que eram jovens naquela época. Há uma mudança cultural que, como diz Hobsbawn (1995), rompe com os hábitos intelectuais e educativos seculares levando instituições como a família e a igreja a uma crise, já que tais mudanças desfazem elementos que as constituíam como comunidades unificadas.

Martin-Barbero (2004), estudioso dos processos de Comunicação na América Latina na perspectiva dos Estudos Culturais, aponta a importância crucial que esses processos de comunicação começaram a adquirir no final do século XX. É através deles que se percebe o quanto o campo da comunicação, com seus canais, meios e mensagens passa a integrar cada vez mais o campo da cultura. Atentando para isso estudiosos de diversas áreas se dispuseram a investigar a mídia no século XX, buscando nela respostas para as mudanças produzidas na cultura entendendo, sob a perspectiva de um modelo mecanicista tradicional de comunicação de que a cultura era reflexo imediato dos conteúdos difundidos pela mídia, seja ela impressa, televisiva ou radiofônica. Tornou-se cada vez mais evidente que algumas das contradições da sociedade contemporânea passam por esse novo eixo da comunicação. Divergindo dessa visão, Martin-Barbero (2004) vê essa revolução cultural como fruto da emergência do popular que começa a se configurar como o lugar desde o qual se pode historicamente abarcar e compreender o sentido adquirido pelos processos de comunicação nos diferentes grupos sociais.

Canclini (2003), outro estudioso na linha dos Estudos Culturais, diz que essa mudança no popular revela a transformação que foi se configurando no decorrer do século XX e designa por "hibridação" os processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que antes existiam de forma separada, combinam-se para gerar novas estruturas, objetos e práticas. A apropriação gera novos objetos e novas práticas diferentes das que lhes deram origem. A hibridação surge da criatividade individual e coletiva nas artes, na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico. As mídias são entendidas, então, como veículos de hibridação. Assim, quanto mais meios e tecnologias a sociedade dispõe mais complexificam-se os processos de comunicação e os processos culturais e sociais.

Isso explica porque hoje já não se justifica mais, do ponto de vista dos Estudos Culturais Latino-americanos, estudar a mídia pura e simplesmente, ou seja, as mídias ou tecnologias e suas mensagens em si, deslocadas dos grupos sociais e dos processos culturais que a elas dão sentido. Nessa perspectiva, como aponta Martin-Barbero, o problema de fundo agora não está mais nas mídias, mas nos mediadores e nos modelos culturais que influenciam os sentidos que são produzidos sobre elas.

O que os autores colocados aqui em diálogo mostram é que vivemos numa época de profundas e rápidas mudanças sociais e modelos culturais. Assim, a experiência da criança e do jovem de hoje é profundamente marcada pelo contato, cada vez mais frequente, com a imagem, principalmente a imagem em movimento da TV, do computador/internet/vídeo-game, provocando mudanças nos saberes que dificultam a troca entre as gerações. A preocupação com a relação entre as experiências cotidianas de crianças e jovens e sua formação/escolarização é a questão que me acompanha ao longo dessa reflexão. O que são valores para os jovens hoje? Que modelos culturais e que mediadores fazem parte de sua formação? De que processos de comunicação participam? Que sentidos produzem sobre estes? E qual seria o papel da escola hoje? O que mudou nesse cotidiano que nos obriga a repensar os lugares que ocupam crianças e jovens na atualidade? Essas e muitas outras questões são lícitas quando se trata de pensar na formação/escolarização desses sujeitos no contexto atual. São questões complexas que entendo como fundamentais para guiar o campo da educação em suas investigações que precisam procurar entender o cotidiano de crianças e jovens na atualidade para que, consequentemente, possa-se buscar alternativas educacionais mais condizentes com as culturas infantis e juvenis.

Como argumenta Martin-Barbero (2000: 86), o grande desafio hoje é entender que:

"Estamos diante de uma geração que mais que na escola é na televisão, captada por antena parabólica, onde tem aprendido a falar inglês, que experimenta uma forte empatia com o idioma das novas tecnologias e que crescentemente gosta mais de escrever no computador do que no papel. (...) Frente à distância com que grande parte dos adultos sente e resiste a essa nova cultura - que desvaloriza e torna obsoletos muitos de seus saberes e habilidades -, os jovens respondem com uma intimidade feita não só da facilidade para relacionar-se com as tecnologias audiovisuais e informáticas mas da cumplicidade cognitiva e expressiva: é nos relatos e imagens, nas suas sonoridades, fragmentações e velocidades que encontram seu ritmo, seu idioma."

 

A cultura na modernidade e na pós-modernidade: diferentes relações com o saber

Como essas mudanças na cultura, a que me referi até agora, relacionam-se com as mudanças no saber e no aprender? Como os diferentes modos de relação com a cultura presentes nas concepções de modernidade e de pós-modernidade se relacionam com os diferentes modos pelos quais as crianças e os jovens aprendem e produzem sentidos? Que conceito de cultura está implícito na modernidade e na chamada pós-modernidade?

Às concepções de modernidade e de pós-modernidade correspondem diferentes concepções de cultura. Tradicionalmente, e ainda para alguns, a cultura foi entendida como saber erudito, como desenvolvimento intelectual. Esse saber era restrito a poucos e somente era entendido como "culto", como aquele que tinha cultura aquele tinha um saber ilustrado. A própria definição já traz em si um preconceito, pois a visão de que alguém é culto, ou de que alguém tem cultura, traz implícita o entendimento de que há os que não são cultos ou não têm cultura. A essa acepção de cultura corresponde o conceito de modernidade. Segundo Castro (1998), a modernidade, período que inicia no Renascimento, trouxe a renovação dos paradigmas ético-estéticos. Foi marcada pelas grandes navegações portuguesas, espanholas e italianas e nesse momento o branco europeu se vê confrontado com o "diferente", o "estranho", o "selvagem" e a modernidade instaura-se pela definição desses limites que hierarquizam posições no contexto mundial como "selvagens" e "civilizados", centro e periferia, primeiro e terceiro mundo, desenvolvidos e sub-desenvolvidos... A autora lembra que a modernidade se refere, também, ao crescente processo de racionalização/industrialização das sociedades ocidentais ocorrido nos séculos XVIII e XIX junto com a expansão capitalista. A modernidade tem como marca a crença na razão como instrumento de controle sobre a natureza e prega a eficácia deste controle no uso das tecnologias possibilitadas pelo conhecimento científico, rumo ao progresso. Dessa forma, hierarquiza os conhecimentos e os divide dando a eles estatutos e valores sociais diferentes. A ideia de cultura a que está associada a concepção de modernidade subdivide o conhecimento, disponibilizando somente para alguns as informações e mantendo controle do acesso a elas. Isto porque o acesso ao conhecimento é realizado no espaço específico da instituição escolar que organiza os saberes em disciplinas, hierarquiza-as e as dispõe de maneira linear, selecionando em que ordem as aprendizagens devem acontecer. Nesse sentido, a essa ideia de cultura e de modernidade corresponde uma ideia de ensino e de aprendizagem sequencial e linear, organizado em etapas.

E a que se refere a pós-modernidade? Castro (1998) aponta que, para alguns estudiosos, a pós-modernidade tem um sentido de ruptura com a época precedente devido à emergência de novas formas de tecnologia e informação. Para Martin-Barbero e Rey (2001), a introdução da experiência audiovisual na sociedade pelo cinema e, hoje pela TV, atenta contra o tipo de representação e de saber no qual esteve baseada a autoridade - em que se fundava a ideia de modernidade - e assim provoca uma des-ordem cultural. Essa des-ordem de que fala Martin-Barbero remete a um desordenamento das lógicas e das formas de pensar na modernidade. O cinema, segundo ele, tornava visível para a modernidade certas experiências culturais que não se regiam sob os cânones da arte das elites. Assim, começa a ficar mais evidente a impossibilidade de definição dos limites culturais que hierarquizavam posições no contexto mundial, na hierarquização da cultura, na organização do saber e do aprender.

Vilmar do Valle Barbosa, prefaciando obra de Lyotard (2002), relembra que foi por volta dos anos 50 que todos assistiram a essas modificações substantivas no estatuto da ciência, provocadas pelo impacto dessas transformações tecnológicas sobre o saber. A grande quantidade de saberes veiculados pelos meios e tecnologías começa a colocar em questão os saberes legitimados na sociedade da época e começa-se a perceber a existência de uma crise dos conceitos do pensamento moderno como razão, sujeito, totalidade, verdade, progresso constatando-se a necessidade da busca de novos conceitos legitimadores do saber e da ciência, uma busca de novos paradigmas que dêem conta de responder às questões emergentes do nosso tempo.

Na mesma linha de reflexão, Castro (1998) aponta que assim como a modernidade fundava-se no real e tornava-se o objeto das certezas, definições; ignorando tudo o que se apresentava como incerto e imprevisível na realidade humana e social, tinha também a ilusão de poder dominar o mundo através do conhecimento científico. Mas são, segundo a autora, as transformações culturais da era pós-industrial que começam a pôr em cheque todas as distinções em que a modernidade se apoiava e o conhecimento científico perde parte de sua "aura" de único conhecimento válido e confiável para o acesso à realidade. A autora fala dos novos intermediários culturais, ou seja, dos profissionais da mídia, da publicidade e da moda, que concorrem para que muitos tipos de conhecimento sejam possíveis, o que produz uma crise da autoridade do conhecimento científico. A cultura, antes localizada em estruturas e espaços definidos, perde as bases de seu tecido: a língua e o terrítório.

Procurando entender essas mudanças, Martin-Barbero e Rey (2001) afirmam que a experiência audiovisual vivida atualmente repõe radicalmente a concepção de cultura pelos modos de relação com a realidade devido às transformações da nossa percepção do espaço e do tempo. Do espaço porque aprofunda o desancoramento em relação ao lugar, a desterritorialização dos modos de presença, nas formas de perceber o próximo e o distante., E do tempo, porque a percepção do tempo no qual se instaura o 'sensorium' audiovisual está marcada pelas experiências da simultaneidade e da instantaneidade corporificadas no 'culto ao presente' alimentado principalmente pela TV.

Essas transformações configurariam a entrada num mundo pós-moderno? Jameson (1994) refere-se a duas formas de entender o pós-moderno: como ruptura com o momento moderno ou como continuidade da modernidade. Assim, o pós-moderno pode ser entendido por alguns como uma posição anti-modernista, uma ruptura com o moderno, algo que se diferencia totalmente deste. Mas uma outra forma de entendê-lo é ver o pós-moderno como a forma autêntica do moderno se apresentar em nossa época, ou seja, como uma inovação do moderno. Nessa segunda visão, os dois, moderno e pós-moderno, seriam estágios do mesmo processo. Seriam estágios da modernidade, como propõe Martin- Barbero (2002) quando se refere à primeira e à segunda modernidades.

Lyotard (2002) defende a primeira posição que define o pós-moderno como ruptura, como o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura, das artes a partir do final do século XIX. Segundo ele, quando as sociedades entram na era pós-industrial da idade pós-moderna muda também o estatuto do saber. Para o filósofo moderno, a ciência era vista como auto-referente, pois existia e se renovava com base em si mesma e ela não tinha um "valor de uso". No entanto, no cenário pós-moderno descobriu-se que a fonte de todas as fontes é a informação e que a ciência, assim como qualquer outra modalidade de conhecimento, nada mais é que um certo modo de organizar, estocar e distribuir as informações. Trata-se de uma concepção operacional da ciência, aliada ao tratamento informático da mensagem. Acontece uma deslegitimação da ciência que é retirada de seu lugar anterior: as delimitações clássicas dos campos científicos se desordenam, desaparecem as disciplinas. Assim, Lyotard reitera que o saber científico é uma espécie de discurso e, assim, é razoável pensar que a crescente multiplicação de máquinas informacionais afeta e continuará afetando a circulação dos conhecimentos. E, é diante dessa transformação, que a natureza do saber muda. O saber deixa de ser para si mesmo, para seu próprio fim e passa a ser produzido para ser vendido, consumido. O poder na atualidade está aliado ao saber. O autor lembra que, da mesma forma como no passado as nações brigaram para dominar territórios, é concebível que no futuro briguem para dominar informações. Nesse sentido, as novas tecnologias causam uma instabilidade no saber ao tornarem os dados possíveis de serem manipulados por mais pessoas e ao dificultarem o controle no acesso ao saber.

Percebendo a época atual na ótica dos Estudos Culturais, Canclini (2003) tem uma outra forma de ver a pós-modernidade. Resiste a vê-la como uma época que substituiria a época moderna e prefere concebê-la como um modo de problematizar as articulações que a modernidade estabeleceu com as tradições que tentou excluir ou superar. Para ele, o pós-moderno não encerrou a modernidade, mas passou a conviver com ela. Hoje, segundo ele, existe uma visão mais complexa entre tradição e modernidade. O culto tradicional não é apagado pela industrialização dos bens simbólicos e é necessário demolir essa divisão, essa concepção do mundo da cultura em camadas. As mídias mostram, segundo ele, uma notável continuidade com as culturas populares tradicionais na medida em que ambas são teatralizações imaginárias do social. A idealização romântica dos contos de fadas se assemelha muito às telenovelas, às estruturas narrativas do melodrama. A construção de heróis ou anti-heróis não copiam mas transgridem a ordem natural das coisas e fazem da cultura massiva a grande concorrente do folclore. A mídia chega para incumbir-se do folhetim, da festa, do humor, do que é mal-visto pela cultura culta, encarregando-se de incorporá-lo à cultura hegemônica.

Não obstante as diferenças entre as posições dos autores a respeito do estatuto moderno ou pós-moderno do mundo atual, tudo indica que há entre eles concordância sobre a transformação da concepção de cultura em camadas que era própria de uma forma de pensar moderna e que não é mais dominante na atualidade. Hoje convive-se com diferentes modos de produção e difusão de saberes, tenham eles os suportes tradicionais do livro e da escrita ou estejam presentes nas imagens do cinema, da TV ou nos hipertextos da internet. Como pensar a formação de crianças e jovens diante desse contexto? É sobre isto que pretendemos pensar adiante.

 

A relação da criança e do jovem com o saber na atualidade

Como aponta Canclini (2004), os jovens atuais são a primeira geração que cresceu com a televisão a cor e o vídeo, o controle remoto e o zapping, e uma minoria com computador pessoal e Internet. De acordo com ele, entre os anos 70 e 80 se perguntava o que significava ser a primeira geração em que a televisão era um componente habitual da vida familiar. Hoje, além da TV, muitos outros meios já fazem parte do cotidiano da criança desde cedo, produzindo novas formas de aprender e refletindo na forma como crianças e jovens se relacionam com os saberes e produzem sentidos sobre eles.

Na modernidade, tinha-se um paradigma bem definido do que eram os saberes reconhecidos e havia consenso de que estes estavam dentro dos livros e eram aprendidos no espaço das instituições de ensino. E, hoje, como pensar a localização dos saberes a que têm acesso crianças e jovens?

Martín-Barbero (2002) remete a esse tempo em que o caminho da emancipação passava quase que exclusivamente pela escrita fonética. Mas e atualmente? Como entender, por exemplo, a alfabetização hoje quando muitas das informações que dão acesso ao saber passam pelas diversas redes e tramas da imagem e das sonoridades eletrônicas? Essa contradição traz à tona o debate em que o mundo adulto e acadêmico culpa os meios audiovisuais da crise da leitura e do empobrecimento cultural em geral. Sobre isso, o autor lembra o dogma proclamado como o mais radical dos dualismos: nos livros se encontra o último resquício e baluarte do pensar vivo, crítico e independente frente à avalanche de frivolidade, espetacularização e conformismo que seria a essência dos meios audiovisuais. Assim, o livro é declarado como espaço próprio da razão e do argumento, do cálculo e da reflexão - como base consolidada do ensino e da aprendizagem - e o mundo da imagem massiva e da tecnologia é reduzido a espaço das identificações primárias e das projeções irracionais e manipulações consumistas. Contradizendo o dualismo, Martin-Barbero (2002) argumenta que há hoje toda uma reestruturação das funções das práticas culturais da memória, do saber, do imaginário e da criação e, se hoje já não se escreve e nem se lê como antes, é também porque não se pode ver nem representar como antes. Margareth Mead (apud Martin-Barbero, 2002: 50) diz que a experiência dos jovens é "uma experiência que não cabe mais na linearidade da palavra impressa", pois "nascidos antes da revolução eletrônica a maioria de nós não entende o que esta significa. Os jovens da nova geração se assemelham aos membros de uma primeira geração nascida num país novo". Nesse mesmo sentido, o autor lembra que a tecnologia ocupa um novo lugar nas mutações de largo alcance sobre algumas das dimensões mais antropológicas da cultura e da sociedade - desde a linguagem ao modo de estar juntos - e traz mudanças nos modos de circulação e produção do saber.

Desde os monastérios até as escolas de hoje, o saber havia conservado o caráter de ser centralizado territorialmente e controlado através de dispositivos técnicos associado a figuras sociais especiais. Daí que as transformações nos modos como circula o saber constituam uma das mais profundas transformações que uma sociedade pode sofrer. Cada vez mais os estudantes testemunham uma frequente experiência: a dissonância entre as lógicas que estabilizam os conhecimentos transmitidos na escola, vistos somente pela ótica da cultura letrada e do livro, e as que mobilizam os saberes e linguagens que circulam fora da escola. Mudaram os modos de aprender e os espaços de aprendizagem. Hoje, reiterando o que Martin-Barbero (2002) diz, as idades de aprender são todas, o lugar pode ser qualquer um - uma fábrica, um hotel, uma empresa, um hospital - os grandes ou pequenos meios. Estamos passando de uma sociedade com sistema educativo para uma sociedade educativa, isto é, cuja rede educativa atravessa tudo: o trabalho e o ócio, a infância e a velhice... (p. 21)

 

Buscando uma breve conclusão

O contato que tenho estabelecido com crianças e jovens, tanto no âmbito da prática educativa como no da pesquisa, leva-me a concordar com Martin-Barbero (2002) quando ele diz que o livro continuará sendo a chave da primeira alfabetização - a que abre o mundo da escrita fonética - mas que, em vez de "encerrar-se" a alfabetização apenas sobre a cultura letrada, esta será a base para a segunda alfabetização, aquela que se abre às múltiplas escritas que hoje conformam o mundo do audiovisual e do texto eletrônico. A mudança nos protocolos e processos de leitura de que nos fala Sarlo (apud Martin-Barbero, 2002) não significa a substituição de um modo de ler por outro, mas sim a complexa articulação de uns e outros, da recíproca inserção de uns em outros, entre livros e quadrinhos e vídeos e hipertextos. Enfatizando minha afinidade com as ideias de Martin-Barbero (2002), reforço seu ponto de vista de que, somente a partir da assunção da tecnicidade mediática como dimensão estratégica da cultura, a escola poderá inserir-se nas novas figuras e campos de experiência em que se processam os intercâmbios entre as escrituras tipográficas, audiovisuais e digitais, entre identidades e fluxos, assim como entre movimentos cidadãos e comunidades virtuais.

Gostaria de terminar perguntando: o que esse contexto atual traz como desafios à escola? Talvez devamos seguir o conselho de Canclini (2004) ao nos dizer que em vez de repetirmos a tendência dos professores e escolas de sempre verem a cultura audiovisual e midiática como inimiga, deveriamos tratar de oferecer aos alunos uma educação conectada com o que aprendem nas telas da TV e dos videogames, oferecendo-lhes um horizonte teórico e estético mais amplo do que nos entretenimentos domésticos. Isto requer que nas escolas haja filmes (e outros materiais da cultura audiovisual) da mesma forma que se tem livros e discos. Requer, segundo ele, uma transformação cultural da educação. Porque as escolas continuam reduzindo o ensino sem incluir discussões de materiais como esses que hoje são parte da formação de nossas crianças e jovens? Porque insistem em falar às crianças que se informem e aprendam somente em livros e, não (também) no rádio, na TV e no cinema e internet?

 

Agradecimentos

Este estudo contou com o apoio da bolsa CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) no período de 2009, durante a finalização dos estudos de Doutoramento da autora.

 

Referências Bibliográficas

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Notas

Adriana Hoffmann Fernandes
E-mail para correspondência: hoffadri@yahoo.com.br.

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