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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.11 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2019

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2019v1p.30 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Freud leitor, Lacan leitor

 

Freud reader, Lacan reader

 

Freud lecteur, Lacan lecteur

 

 

Andréa Bastos TigreI; Maria Helena Carneiro da CunhaII

IMembra da Escola Letra Freudiana (RJ). Coordenadora do seminário Psicanálise e Literatura da Escola Letra Freudiana. Endereço: R. Barão de Jaguaripe, 231 - Ipanema, Rio de Janeiro - RJ, 22421-000. E-mail: a.bastostigre@gmail.com
IIMembra da Escola Letra Freudiana (RJ). Coordenadora do seminário Psicanálise e Literatura da Escola Letra Freudiana (RJ). E-mail: cunhamh@terra.com.br

 

 


RESUMO

Freud e Lacan, leitores atentos, marcaram para sempre o encontro entre a psicanálise e a literatura. Esse ensaio aborda o que os textos literários puderam trazer para construção de sua teoria e experiência.

Palavras-chave: SIGMUND FREUD; JACQUES LACAN; PSICANÁLISE; LITERATURA.


ABSTRACT

Freud and Lacan, attentive readers, have forever marked the crossover between psychoanalysis and literature. This essay discusses the contribution of literary texts to the building of their theory and experience.

Keywords: SIGMUND FREUD; JACQUES LACAN; PSYCHOANALYSIS; LITERATURE


RÉSUMÉ

Freud et Lacan, lecteurs attentifs, ont toujours marqué la rencontre entre psychanalyse et littérature. Cet essai discute de ce que les textes littéraires pourraient apporter pour construire leur théorie et leur expérience.

Palabras clave: SIGMUND FREUD; JACQUES LACAN; PSYCHANALYSE; LITTERATURE.


 

 

Há muitos modos de ler, e ora um, ora outro, renunciam à compreensão da leitura

(Freud, 'Estudos sobre Afasias', 1891)

Os poetas são aliados valiosíssimos e seu testemunho deve ser altamente estimado, pois eles costumam saber uma infinidade de coisas, 'entre o céu e a terra' que nossa sabedoria acadêmica ainda não nos deixou sonhar

(Freud, 'Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen', 1907)

 

 

A Literatura toca o obscuro, a complexidade da alma humana, seu conflito, seu desassossego. A Psicanálise, no momento de definir seu próprio campo, seu objeto e seu método, encontra a Literatura ou, mais precisamente, a criação literária.

O Dichter, criador literário, é para Freud uma personalidade singular, o poeta capaz de emocionar intensamente por sua obra. Ele reconhece no Dichter um acesso privilegiado à verdade psíquica e vai mostrar como este, em sua criação, produz efeitos sobre o outro sujeito, seu leitor. É, portanto, no plano da criação que é preciso tomar a questão do literário na Psicanálise. Cada ato interpretativo de um texto põe em jogo todo o saber do inconsciente e o põe à prova.

O Dichtung, a criação, não representa somente a poesia do "poema", no sentido estrito de um escrito em verso, mas a versão criativa da arte de escrever. Para Freud, o Ditchtung é o destino artístico de um "sintoma" - não patológico - do criador, e, de certa maneira, como as outras formações do inconsciente, o sonho, o chiste e o ato falho. Espelho de seu espaço psíquico, a obra do criador, do Dichter, especialmente aquela de Shakespeare, diante de todas as outras, habita o lugar de um enigma, sempre vivo ao leitor.

Numa carta à Fliess, em 31 de maio de 1897, Freud apresenta ideias sobre o fantasma e fala da criação de Goethe e de Shakespeare, como uma defesa, uma maneira de interpor a escritura ao fantasma inconsciente:

O mecanismo da ficção é idêntico ao das fantasias histéricas. Para criar seu jovem Werther, Goethe combinou o que havia experimentado - o seu amor por Lotte Kastner - com o que ouvira: o destino do jovem Jerusalém, que morreu cometendo suicídio. É provável que estivesse brincando com a ideia de se matar e encontrou um ponto de contato nisso, identificando-se com Jerusalém, a quem emprestou uma motivação retirada de sua própria história de amor. Por meio dessa fantasia protegeu-se das consequências de sua experiência. Portanto, Shakespeare estava certo ao justapor ficção e loucura. (Masson, 1986, p. 252)

A importante referência aqui de Freud ao termo fine frenzy vem de Os sonhos de uma noite de verão, tal como aparece no Ato V, cena I, através da fala de Teseu: The poet's eye, in a fine frenzy rolling....

O olhar do ardente poeta no seu perfeito delírio (fine frenzy)
vai do céu à terra e da terra ao céu.
E quando a imaginação produz formas de objetos desconhecidos,
a pena do poeta desenha os contornos
e dá àquele, moradia precisa e um nome (Shakespeare, 2001, pp. 101-102)

O poeta é então aquele que traça os contornos em torno de formas desconhecidas, dando existência ao l'Unbewusst, o insabido, Inconsciente. O recalque cede ao poeta como ele cede ao louco e ao amoroso. "Lunáticos, amantes e poetas são iguais em sua imaginação" (Shakespeare, 2004, pp.101-102) - diz-nos ainda Teseu.

"Somos poetas, e só com o último homem morrerá o ultimo poeta", escreve Freud em seu texto Escritores criativos e devaneio (1908[1907], p. 149). Se o pensamento freudiano permanece como obra é pela força de sua descoberta intelectual e porque ele habita poeticamente a língua. Com seus casos clínicos e ao escrever sobre as neuroses, vemos em Freud um escritor e um leitor atento de textos literários. Sabemos que não se contentou em escutar seus pacientes, em interpretar seus sonhos e decifrar seus sintomas, mas também escreveu livros, artigos e inúmeras cartas para escritores de quem era amigo, tendo vencido o Prêmio Goethe em 1930.

Numa de suas cartas ao escritor suíço Schnitzler, Freud escreve: "Eu penso que eu o evitei por medo de encontrar meu duplo, eu tenho a impressão que o senhor sabe intuitivamente tudo o que eu descobri depois de um trabalho laborioso" (Assoum, 1966, p. 129). E, numa bela carta a Martha, sua mulher, 1° de abril de 1884, citada por Ernest Jones, confessa sua relação com a literatura.

Tenho uma surpresa para você. Repetidas vezes - não sei quantas histórias me vieram à mente e uma delas - um conto oriental - tomou recentemente uma forma bastante precisa. Você se surpreenderá ao ouvir que estou ficando consciente dos estímulos literários em mim, ao passo que inicialmente nada poderia estar mais longe de meu pensamento. Devo escrever a história ou você ficaria constrangida em ter de lê-la? Se eu o fizer, será apenas para você, mas não será muito bela. E depois tenho também muito pouco tempo nesse momento. Ainda acredito que se essa inspiração retornar, a história se escreverá sozinha. Nesse caso, eu me empenharei nisso e você rirá sozinha, sem dizer palavra a ninguém. (Jones, 1989, p. 409)

Lemos, na "Interpretação dos Sonhos" (1900), o autor dizer-nos que era 'um rato de biblioteca', afirmando depois que, quando estudante, tinha uma predileção de possuir livros. Desde muito jovem, as obras de arte exerciam nele um efeito potente, em particular a literatura e as artes plásticas.

Falar de Freud leitor e Lacan leitor, no entanto, levou-nos primeiro a atravessar os textos de Ricardo Piglia. Em O que é um leitor, Piglia, começa dizendo-nos que existe uma fotografia em que se vê Borges tentando decifrar as letras de um livro que segura grudado em seu rosto. Apesar de cego, ele persiste e diz: "agora sou um leitor de páginas que meus olhos já não veem" (Piglia, 2006, p. 19).

Na clínica da arte de ler, nem sempre quem tem a melhor visão lê melhor. Existe sempre algo de inquietante, estranho e familiar na imagem concentrada de alguém que lê. O sujeito isola-se, parece separado da realidade. A leitura individualiza e faz com que aquele que lê seja nomeado, e é nesse espaço entre a letra e a vida que Borges inventa o leitor como herói.

Em um de seus outros textos, Piglia diz-nos que a relação entre a psicanálise e a literatura sempre é conflitiva e tensa. Tanto a literatura quanto a psicanálise convocam o sujeito a um lugar extraordinário que o arranca de sua experiência cotidiana.

No texto freudiano 'Unheimlich' (1919), lemos:

É verdade que o escritor cria uma espécie de incerteza em nós, a princípio não nos deixando saber, sem dúvida propositalmente, se nos está conduzindo pelo mundo real ou por um mundo puramente fantástico, de sua própria criação. Ele tem, decerto, o direito de fazer ambas as coisas; e se escolhe como palco da sua ação um mundo povoado de espíritos, demônios e fantasmas, como Shakespeare em Hamlet, em Macbeth, e, em sentido diferente, em A Tempestade e Sonho de uma Noite de Verão, devemos nos curvar à sua decisão e considerar o cenário como sendo real, pelo tempo em que nos colocamos em suas mãos. (Freud, 1919/1976, p.288)

Ricardo Piglia traz-nos também uma interessante comparação da Psicanálise com a natação, afirmando ser essa certa arte de se manter à tona no mar da linguagem. O escritor é também aquele que nunca sabe se, mesmo sem saber nadar vai atravessar o mar da linguagem e não se afogar, inscreve 'coisas desconhecidas' nas malhas da linguagem. Será por isso que eles nunca foram indiferentes ao tema mar, significando mistério, solidão, travessia, autoconhecimento ou morte?

Extrair o saber do poeta para avançar na sua própria teoria permitiu tanto a Freud como a Lacan fazer uma leitura completamente nova de obras literárias. A leitura freudiana de Édipo, por exemplo, transformou para sempre o texto de Sófocles. Lacan, em sua leitura de Hamlet de Shakespeare e O Banquete de Platão, trabalha a estrutura daquilo que se trata quanto ao desejo em Hamlet e o amor de transferência no Banquete. Os escritores ofereceram a eles a possibilidade de confirmar sua própria invenção de saber.

No coração de Freud leitor encontramo-nos com Goethe e Shakespeare, mestres maiores em sua formação. Mais, entretanto, do que ler Shakespeare, mais do que referir-se a ele inúmeras vezes ao longo de toda a sua vida, Freud literalmente alimentou-se dele e incorporou-o. Leitor atento que era, portanto, Freud funda suas teorias sobre a 'clínica shakespeariana' do inconsciente, poderíamos dizer, onde Hamlet é o herói e fine frenzy seu emblema.

Em 15 de outubro do 1897, numa carta a Fliess (Masson, 1986 p. 273), a similaridade do destino de Édipo e Hamlet impõe-se à Freud. Os dois heróis trágicos, um 'clássico' e um 'moderno', apresentam-se para ele como dois rostos de uma mesma realidade humana, interpretados como representação da culpabilidade inconsciente nascida de desejos incestuosos. Essas duas tragédias vão-se perpetuar ao longo de toda a obra de Freud e as citações de Hamlet, esse seu herói predileto, vai ocupar páginas e páginas de seu laboratório. Para elucidar a delicada questão do incesto, da morte do pai e da culpabilidade inconsciente, que ele descobre em seus pacientes e nele mesmo, Hamlet é convocado como testemunha e ator.

Um pouco mais tarde, em 1905, ao formular sua teoria sobre o chiste em seu texto O chiste e sua relação com o Inconsciente, Freud dá indicações de como ele acontece, quais as suas regras, e para isso se vale também dos textos de Shakespeare como exemplo. Os chistes apresentam alguma coisa de escondida, provocando desconcerto e esclarecimento, o sentido e o nonsense, e têm como uma das características a brevidade.

Lemos em Trabalhos de Amor Perdidos: "A brevidade é a alma do chiste", "O sucesso dos chistes está nos ouvidos de quem escuta e nunca na língua de quem os contas" (Shakespeare, 2010, p. 135). Portanto, também no domínio dos chistes, Freud lendo Shakespeare, sabia que este reinava como um mestre.

Freud apoia-se também em diversos lapsos literários para demonstrar a validade da formação do Inconsciente e apresenta como um dos exemplos o famoso ato falho de Pórcia no Mercador de Veneza: "Ah, esses olhos que me perturbam se dividem em duas partes: um que vos pertence, outro que é seu.... quero dizer, que é meu!" (Shakespeare, 2009,p.77)

É no coração das intrigas e do cômico que se veem desfilar os mal-entendidos sobre diversas formas, que através de seus diálogos, se oferecem à cena do teatro o duplo sentido, o equívoco, os atos falhos que se equivalem a confissões involuntárias.

Mas Freud leitor tinha também uma questão que o acompanhou durante toda a vida: Quem escreveu a obra de Shakespeare? Quem é esse?

Possuindo mais de 50 livros sobre o assunto, o problema Shakespeare pode ser resumido assim: o autor, o mais célebre do mundo, é talvez um ilustre desconhecido que se esconde por trás do pseudônimo de Shakespeare. Ora ele é 'strattforniano', ora Freud acredita que ali se esconde um conde de Oxford, Edward de Vere, o que leva a mil leituras e inúmeras cartas sobre o assunto.

Mas o golpe de gênio de Freud, é ter elevado seu 'problema' (Quem é esse?) à altura de um enigma, e de pensar os caminhos, as vias da psicanálise graças a esse objeto privilegiado - o enigma. Shakespeare não é Shakespeare? To be or not to be?

Freud manteve durante muito tempo uma rica e longa correspondência com os irmãos Zweig, mas principalmente com Arnold Zweig, que havia emigrado para Israel em 1927. Nessa rica troca de cartas, são discutidos os méritos de duas grandes figuras da literatura e da história mundial: Shakespeare e Moisés.

 

 

Arnold havia enviado para Freud seu esboço de um primeiro romance chamado Caliban, tirado de uma peça de Shakespeare, A Tempestade, e Freud estava às voltas com seu texto O homem Moisés e o monoteísmo (1939[1934-38]/2014). Freud então instiga Arnold sobre o enigma de Shakespeare e após muitas leituras e cartas, Arnold Zweig vai-se tornando mais strattforniano, o que decepciona e irrita a Freud. Arnold diz inclusive que quer escrever uma biografia romanceada sobre um 'velho Shakespeare' que combate com a sombra de Oxford. E é então num movimento transferencial perceptível, que esse 'querido filho', Arnold, coloca Freud na posição de um duplo de Shakespeare, coloca Freud também torturado pela questão da autenticidade de sua obra. No combate com a sombra, é William diante de Edward de Vere, mas também é Freud diante de seu duplo.

Mas Freud tem um outro duplo, Moisés, que nos anos 30, faz certa aliança no pensamento freudiano. Quando já se encontrava em Londres ele escreve a Jones:

Fiquei muito feliz de te encontrar na Victoria Station. Se trata de ter paciência, e de esperar longas semanas ou talvez meses. Eu sofro de falta de ocupação, ajudado um pouco na arrumação da biblioteca e da coleção, e encontro também uma hora para continuar a trabalhar no Moisés que me atormenta como um 'ghost not laid', um fantasma insepulto. Conseguirei apesar de tudo chegar a essa terceira parte a despeito das dificuldades interiores e exteriores? Por agora não creio, mas 'quien sabe'. (Michaud, 2011, p.174)

Moisés o atormenta como um fantasma insepulto, errando na noite sem encontrar repouso. "Ler o Homem Moisés de Freud é sempre uma passagem por um desfiladeiro enigmático, uma interpelação do Estranho que obriga o leitor a acompanhar a errância das letras e do branco do texto..." (Fuks, 2012, p.87).

Em 1938, escreve a Arnold Zweig outra carta, mas num tom totalmente diferente das cartas desesperadas de 34, quando Moisés o perseguia sem descanso:

Deixe-me em paz com Moisés. Que eu tenha fracassado nessa tentativa de criar alguma coisa - a última provavelmente - me deprime bastante. Não que não me tenha afastado. O homem, e o que eu gostaria de fazer dele, me persegue continuamente.... mas fui obrigado a erigir uma estátua de grandeza sobre um solo de argila, se bem que não importa qual louco poderá jogá-la para o chão. (Michaud, 2011, p. 176)

É somente um tempo depois que Freud consegue se libertar enfim desse eterno 'companheiro da noite escura' de que, de certa forma, estava possuído, Moisés. A obra testamentária termina e é publicada primeiro em alemão em 1939. Freud debruçou-se sobre esse enigma com o mais singular de sua experiência, o mais próximo de sua fundação, da elaboração e da transmissão da psicanálise. O solo no qual ele constrói a psicanálise necessitou do lado obscuro, de uma verdade velada, inapreensível, de palavras que se aplicam justamente ao génio tanto de Moisés como de Shakespeare.

Mas, e Lacan leitor? Lacan abre seus "Escritos" com a leitura de A Carta Roubada de Edgar Allan Poe e diz "Qual seja, a mensagem decifrada e dele, leitor, retornando para que, ao lê-la, ele diga a si mesmo não ser ela mais fingida do que a verdade quando habita a ficção" (Lacan, 1966/2002, p.10).

Tanto Freud como Lacan diziam que o analista deveria ser um letrado, pois só assim poderia escutar o texto de seu paciente. Para Lacan, o campo de uma análise é o campo de uma escrita. Uma análise funda-se na suposição de que o sujeito do inconsciente lê o que ali se escreve, e isso caracteriza a transferência.

Na Proposição de 9 de outubro de 1967, escutamos de Lacan: "A psicanálise tem consistência pelos textos de Freud, esse é um fato irrefutável. Sabemos em que, de Shakespeare a Lewis Carroll, os textos contribuem para seu espírito e seus praticantes" (Lacan, [1967/2001/2003a p. 256). Anos mais tarde, na Conferência datada em 16 de junho de 1975, proferida na abertura do V Simpósio Internacional James Joyce, encontramos a frase "arrastei sempre na minha existência errante uma quantidade enorme de livros", e aí ele continua: (...) "entre os quais os de Joyce - os outros são sobre Joyce" (Lacan, 1975-1976/2007). Lacan, leitor atento e fiel de Joyce, viu que este fizera a travessia no mar da linguagem e nela não só boiara, mas nadara de peito e de costas.

Lacan utiliza-se também da leitura das comédias e faz com ela a pergunta: 'do que rimos?' E responde: 'da perda'. Com Molière (1622-1675), em O Doente Imaginário (1673) e O Avaro (1688), evoca o gozo do corpo e a luta para preservá-lo. Em O Anfitrião (1665), também de Molière, assinala o deslocamento do eu e sua fragilidade perante o significante. Através da comédia, Lacan vai desenvolver uma questão sobre o amor. "O amor é um sentimento cômico. O apogeu da comédia é perfeitamente localizável, como por exemplo em Escola de Mulheres." Nessa comédia, Moliére coloca o problema esquematicamente, uma vez que se trata do amor que se faz presente como instrumento de satisfação" (Lacan, 1989/1999 pp.141-42). Mesmo que a palavra seja dada levianamente, tem um peso, um peso simbólico.

Como não podia deixar de ser, Lacan foi também um leitor fiel e atento de Shakespeare, e dedicou um seminário inteiro para falar de Hamlet, denominando-o a tragédia do desejo humano como surge na análise. Salienta que nunca esteve tão perto da clínica do que com essa peça, e a enaltece dizendo que "essa peça genial nunca tenha sido substituída por outra mais bem feita" (Lacan, 2013/2016, p. 270). Percorrer passo a passo suas sete lições de 1959 faz-nos entrar também, passo a passo, nesse grande 'enigma literário'. Logo depois, Lacan nos diz: "Afirmo e afirmarei sem ambiguidades - e, assim fazendo, penso estar na linha de Freud - que as criações poéticas geram, mais do que refletem, as criações psicológicas" (Lacan, 2013/2016, p. 270).

Extraindo o saber do poeta, Lacan - em seu seminário O Ato Analítico (1967-1968) - diz que deveríamos aprender com o poema sobre o ato, chegando mesmo a afirmar que o poema é o ato. A poesia é a via de habitar o vazio com a linguagem, o que é oculto manifesta-se, um encontro com o Real. Embora diga não ser poeta, mas sim poema, faz poesia - objeu/objeux/objouir. Devemos enxugar o poema de tal forma que ele se torne pura poesia, desprovida de sentido.

Mas não é com ideias que se fazem versos, mas com palavras. O Ditchter, o criador literário, precisa da solidão, diferente de estar sozinho. Tem que haver um desaparecimento do autor, uma passagem do eu ao ele. Nas palavras de Rimbaud (1854-1891), "Je est unautre".

Mas, como nos ensina Lacan em seu texto sobre Marguerite Duras, "Leiam, é o melhor" (Lacan, ([1965/2001]/2003b, p.199). Observar Freud leitor, Lacan leitor, faz-nos ser leitores, ser atravessados por uma letra.

 

Referências

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Recebido em: 31/10/2018
Aprovado em: 31/10/2019

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