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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.30 no.44 São Paulo June 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM I

 

A escuta da palavra*

 

The word’s listening

 

 

Dominique Clerc**

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A escuta do analista não é solicitada apenas pela sonoridade das palavras, também o é pelo visual que elas mostram e pelo desconhecido que elas designam. O espaço da transferência é para o analista um lugar intermediário onde se formam imagens e construções, prévias a toda interpretação.

Palavras-chave: Contato. Imagens de palavra. Representação de coisa. Representação de palavra. Transferência.


ABSTRACT

The analyst’s listening is solicited not only by the sonorous quality of words, but also by the visual quality they display, as well as by the unknown they designate. The space of transference is an intermediate place for the analyst, where images and constructions are formed which precede any interpretation.

Keywords: Contact.Word imaging.Representation of thing.Representation of word. Transference.


 

 

Se, como afirmava Freud, a psicanálise como ciência tem menos a ver com a teoria que ela enuncia que com a matéria com que se defronta, é sem dúvida porque a teoria nasceu da prática, com a prática. O “tratamento pela fala” é também “tratamento pela escuta”.Meu propósito será observar essa escuta. A começar por aquela que anima o próprio Freud, feita de rupturas e descompassos, desde o encontro com a fala das histéricas até o que, no fim da vida, ele designa como a “ação do analista”. Nesse longo percurso, a análise do Homem dos Ratos representa uma virada significativa, em que passar a considerar a transferência como fonte da fala no presente da sessão se inscreve no estabelecimento do método e dá ensejo à escuta da língua infantil do paciente pelo analista. Escutar o que se diz em voz alta, o que se fala de um tempo em que não se falava, o que se fala do que não é possível conhecer, mas que se sabe “assim mesmo”.

 

1) Condições da escuta

Ao seu interlocutor, imaginário, leigo e curioso por saber como age o analista, Freud responde: “Entre eles não acontece nada além disto: eles se falam” (Freud, 1926/1994, p. 9). E quando seu indagador exprime seu espanto – e sua ofensa levemente condescendente – pelo fato de tal prática se assemelhar à magia e se servir tão-somente de palavras, Freud retruca: de fato, a palavra contém um poder mágico decorrente de sua própria origem... Pois a palavra nada mais é que o substituto do ato. Tese fundadora, desenvolvida desde 1890, em “Tratamento psíquico” (Freud, 1890/1984a), tese que Freud não questionará jamais. Logo, ação mágica no tocante ao tratamento pela palavra, que, no entanto, perdeu o caráter do “maravilhoso” devido aos longos desvios que a fala, e sua escuta, se vêem forçadas a tomar. Desvios que se inscrevem no longo tempo necessário para vencer a resistência, para deixar que se desenrole o trabalho da perlaboração, desvios esses que passam pela desmontagem da linguagem, que ocorre conjuntamente com o uso da língua do paciente pelo analista: “A experiência do “desvio” implica o trabalho subjacente de um “tempo-para- pensar”” (Lacoste, 1986; 1992).

A renúncia1 do analista

A situação de fala particular à análise faz dessa conversação a dois uma conversação que decididamente não é comum. Todos sabemos hoje que o que faz a análise, o que funda a situação que lhe é particular, não depende apenas do estabelecimento do dispositivo “divã-poltrona” e que, em certas ocasiões, o tratamento analítico só pode se desenvolver face a face. Embora a análise, no sentido puro do termo, se veja “complicada” por isso, o tratamento continua sendo um tratamento pela fala e a decisão sobre as modalidades técnicas do encontro não deveria modificar em nada a intensidade de comprometimento pulsional pressuposta na decisão que ambas as partes tomam de ter de arriscar essa fala e sua escuta.

Sejam quais forem as modalidades técnicas que a análise adote, a condição essencial de sua manutenção e sua eficácia passarão a se apoiar no que a retração de fala do analista cria. O objetivo dessa retração não se limita a facilitar o exercício do que se chama a “atenção flutuante” – termo que hoje já não se sabe bem o que abarca, pois o que a expressão ganhou em popularidade ela perdeu em força –, ela mira além. De fato, a retração de fala do analista, significando a retração de sua “pessoa em presença”, participa da configuração de um lugar virtual, representante do que Pierre Fédida designa como “ponto de fuga da origem” (Fédida, 1995). Entenda-se que essa retração institui a virtualidade de um ponto de emergência, se não sempre diretamente do real ou do desconhecido, ao menos do inesperado. A retração de fala que o analista de certa maneira se autoprescreve é a condição imperiosa e necessária que possibilita o desenrolar da fala na análise. Porque a fala do paciente é verdadeiramente sustentada pela transferência: ela nasce da expectativa de uma palavra outra, expectativa que é demanda de reconhecimento, demanda de amor, expectativa que Freud caracterizava em 1890 como “expectativa crente” (Freud, 1890/1984a, p.8), que, como se sabe, pode a todo momento dar lugar à angústia ou se transformar em hostilidade manifesta. Essa palavra do paciente não poderia se dizer nem, sobretudo, nomear o que vive quando a diz, sem essa retração de presença do analista, que, para Pierre Fédida, coloca “a condição tópica da regressão” (Fédida, 1995, p. 14). De fato, para dizê-lo de modo simples, é a não-resposta do analista à demanda transferencial manifesta – o fato de ela ser explícita ou implícita não faz nenhuma diferença – que qualifica a presença retraída do analista: essa não-resposta, na medida em que é a não-resposta da “pessoa em presença”, exige que a fala do paciente se coloque em palavras e lhe concede “a ausência como suporte do figurável” (Fédida, p. 14).

Lugares psíquicos

Acrescentemos que, do lado do analista, é também essa mesma retração que lhe permite permanecer na sua própria cena e não irromper na de seu paciente: assim, a renúncia que ele impõe à sua própria fala concorre, de modo extremamente firme e exigente, para estabelecer “duas cenas separadas”, aquelas que, no fim da vida, Freud designa, em “Construções na análise”, como lugares em que se exerce o trabalho analítico. A idéia de duas cenas separadas subentende a criação e a sólida manutenção do intervalo entre dois lugares psíquicos em presença para que se realize a atividade imaginária e “imaginante” do analista e para que sua ação possa se exercer. “Nós todos sabemos”, escreve Freud em 1937, “que o analisando deve ser levado a rememorar algo que ele viveu e recalcou, e as condições dinâmicas desse processo são tão interessantes que a outra parte do trabalho, a ação do analista, fica em contrapartida relegada a segundo plano. O analista não viveu nem recalcou nada do que interessa; sua tarefa não pode ser rememorar algo. Qual é, então, sua tarefa? Em função dos indícios que escaparam ao esquecimento, ele tem de adivinhar, ou, mais exatamente, construir o que foi esquecido”.

Diz ele um pouco antes:

O que desejamos obter é uma imagem fiel dos anos esquecidos pelo paciente, imagem completa em todas as suas partes essenciais. Aqui devemos lembrar que o trabalho analítico consiste em duas peças inteiramente distintas, encenadas em dois cenários separados e que envolvem dois personagens, cada qual encarregado de um papel diferente (Freud, 1937/1992, pp. 270-271).

François Gantheret (1996)2 faz uma tradução comentada dessa passagem de “Construções em análise”, que levanta a ambigüidade suscitada pela conotação dramática associada ao termo “cenário” e que, na literalidade e no rigor que ela propõe, tende antes a reinstaurar a noção de aparelho psíquico como lugar do aparelho para pensar. A tradução em questão é a seguinte: “Aqui devemos lembrar que o trabalho analítico se compõe de dois pedaços, duas partes (Stücken), inteiramente diferentes, que ele é executado, efetuado, celebrado em dois espaços cênicos separados (Schauplätzen), se desenrola no âmbito de duas pessoas, cada qual encarregada de uma tarefa (Aufgabe) diferente”. Há, pois, retoma Gantheret, “um objeto único”, o “trabalho analítico”, que ocupa duas pessoas encarregadas de uma tarefa diferente (Aufgabe é tarefa no sentido escolar), que se apresenta a elas em duas partes diferentes em dois espaços cênicos separados”. Ele esclarece que o termo Schauplatz se torna – pela ligação com schauen, olhar – o lugar, o espaço de onde o olhar é solicitado. Ele convoca então a metáfora freudiana da “Roma eterna”, onde todos os tempos estão simultaneamente presentes: bastaria “o observador mudar a direção do seu olhar, ou seu ponto de vista, para fazer surgir um ou outro de seus aspectos arquitetônicos” (Freud, 1929, p. 13). Portanto, o inatual como um todo se encontra “(a)presentado” e, por isso mesmo, colocado no presente, tanto no que se oferece ao olhar como no que dele se dissimula. Contudo, para que seja desvelado, o observador terá de dar um passo para o lado, desorganizando assim o encadeamento dos planos e superfícies. O olhar, que até então não podia ir além da opacidade do que via, acha-se então deportado, e esse simples intervalo, desconjuntando a perspectiva, acarreta o esgarçamento das imagens que ela aí mostra. O tempo, necessário para o descompasso e para o intervalo, participa assim da construção do lugar da escuta. Porque “Olhar e escuta não solicitam a linguagem se estiverem impacientes por saber: nesse caso, apenas agitam questões já prontas, cuja algazarra ensurdece a linguagem” (Fédida, 1985). O lugar da escuta é o da superfície de recepção do aparelho psíquico do analista, o sistema Percepção- Consciência torna-se superfície excitada pela própria escuta: o que aí se percebe, mas também o que aí se mostra, o que então a própria superfície faz ver, o que ela deixa imaginar,“adivinhar” e construir. Esse tempo da apreensão da palavra do outro – em suas formas, mas também nas formas de seu endereçamento –, esse tempo da colocação em perspectiva, é o tempo da palpação das superfícies e de seu tratamento: a cada instante, ao longo de todo o desenrolar da análise, “a atenção excitada” (Kahn, 2001)3 do analista encontra na construção de um lugar psíquico da escuta, em descompasso, os meios de sua temperança. Na análise, as palavras é que são “portadoras” do efeito de excitação, na medida em que são, fundamentalmente, substitutas do ato, mas é a colocação em palavras que “lentifica” a magia, é ela “que restitui à consciência um tempo de captura, um fragmento de tempo arrancado à onipotência dos pensamentos” (Lacoste, 1999).

A fenda da consciência

Como nota Jean Imbeault (1997, pp. 16-17): “Em nenhum outro lugar da vida, falamos como falamos numa análise”. Em análise, a palavra é “objeto de um manejo” e sofre um determinado tratamento, que ele descreve como uma esparramação (étalement). Propõe a imagem de uma bola de papel amassada que seria necessário abrir para que se pudessem ler todos os seus detalhes, mas também todos os seus artefatos e, assim, após esse aplainamento, chegar à percepção de um discurso proferido à revelia de seu locutor: apenas por meio desse procedimento de esparramação é que a fala, desfilando pela “fenda” da consciência, se torna perceptível. Pois o acesso à consciência é árduo, penoso, e o interlocutor da Análise leiga, ao descobrir toda a extensão do material inconsciente, ainda teria motivos para se surpreender pela forma como “um camelo desses pode passar por tal buraco de agulha” (Freud, 1895/1973a, p. 235). A idéia de “desamarrotar” assim a palavra tem qualquer coisa de atraente se for aplicada a cada um dos dois protagonistas do jogo. Pois o analista, tal como seu paciente, também não escapa ao lado amarrotado do seu próprio entendimento. Para se desfazer dele e, assim, tentar atingir o desconhecido, terá de recorrer à linguagem por imagens (Bildersprache) do sonho.

A “fenda” estreita da consciência é uma expressão figurada que Freud utiliza no capítulo IV dos Estudos sobre a histeria ao tentar expor suas hipóteses sobre a existência e a ação daquilo que ainda não se chama inconsciente, mas sim “conteúdo mental” ou “material” ou ainda “elemento patogênico”, e que a prática de um novo método de tratamento lhe permite trazer à luz. As considerações teóricas são expostas de forma figurada naquele capítulo e tentam dar conta daquilo que Freud designa como uma “dinâmica da representação”. Essa dinâmica da representação desenha como que uma cartografia, uma primeiríssima topologia, por assim dizer, do aparelho psíquico. Na sua tentativa de descrever a organização do material patogênico, Freud segue, de início, um modelo que é o modelo temporal da sedimentação das camadas geológicas: descreve o material das lembranças patogênicas esquecidas como tendo sido depositado segundo dois tipos de estratificações em torno de um núcleo central. Logo em seguida é obrigado, pelo que descobre na prática, pelo que se revela no que ele escuta, a considerar a existência de uma terceira ordem de arranjo desse mesmo material. Desse arranjo, não se poderia pretender tirar nenhuma regra geral, nota ele, pela simples razão de que somos obrigados a referi-lo exclusivamente à lógica que rege os movimentos do “conteúdo mental”. Assim, a esse terceiro tipo de organização, não das lembranças rememoradas, mas sim, já aí, do que se apresenta como esboço de um sistema de “representações” móveis, Freud concederá o caráter de “dinâmica representacional”, opondo- a aos dois tipos de organização descritos anteriormente como simples depósitos de arquivos. O encadeamento lógico desses conteúdos mentais, precisa ele, apresenta-se segundo “um sistema de linhas ramificadas e, sobretudo, convergentes. Esse sistema apresenta “nós” onde se encontram duas ou mais linhas. Uma vez reunidas, essas linhas prosseguem juntas o seu caminho. Via de regra, várias linhas, independentes umas das outras ou, por vezes, ligadas, desembocam juntas no núcleo central” (Freud, 1895/1973a, p. 234). Vê-se aí que essas considerações teóricas sobre as conexões que ligam os ditos “conteúdos mentais” uns aos outros não deixam de evocar o esquema do aparelho de linguagem que Freud havia concebido alguns anos antes. Tampouco deixam de prefigurar aquilo que constituirá, num futuro próximo, a essência dos processos primários que regem a lógica inconsciente. Naquela época, contudo, tais considerações, por mais especulativas que possam parecer, estavam, uma vez mais, intrinsecamente articuladas à prática. Como nota Imbeault, elas não decorrem da invenção da noção teórica de inconsciente, pelo contrário, precedem-na. Escreve ele:

A esparramação da palavra não é uma aplicação a posteriori dos corolários ou dos derivados da idéia de inconsciente. A invenção do procedimento analítico, a sua pré-história, não decorre desse conceito. [...] Ele se estabelece na prática de Freud antes de a teoria propriamente dita do inconsciente ter sido elaborada e antes também de terem sido reunidos todos os ingredientes daquilo que virá a ser o “método” psicanalítico clássico (associações livres, escuta flutuante, sessões regulares etc.) (Imbeault, 1997, pp. 17-18).

Assim, em nenhum momento de sua história a psicanálise será a aplicação de uma teoria na prática.

Deslocamento na prática, abertura na teoria

É certo que ainda não é “aquilo”, mas já se podem detectar as premissas do que será exposto em 1915 nos escritos metapsicológicos. Isso ocorre particularmente quando Freud descreve a rede associativa que os conteúdos mentais desenham através dos movimentos que os animam, o que ele teoriza como “dinâmica da representação”. Ou então, quando explica por que, na prática, não devemos nos assustar ante o aspecto descosturado das narrativas e das lembranças que os pacientes trazem: eles “não deixam de fornecer os materiais que, posteriormente, desempenharão o seu papel graças à descoberta de uma ligação” (Freud, 1895/1973a, p. 236).4 Ou ainda quando escreve que a própria narrativa pode se pôr a serviço da resistência:

Não se deve esperar que as palavras livremente emitidas pelo paciente facilitem ao analista o reconhecimento dos materiais contidos nas camadas mais superficiais, a avaliação da profundidade em que se encontram ou a determinação dos pontos em que as associações de idéias buscadas se ligam entre si. [...] A narrativa do doente parece acabada, sólida. De início, estamos diante dela como diante de um muro que obstrui toda visão e não deixa adivinhar o que se esconde por trás e nem mesmo se existe algo escondido (Freud, 1895/1973a, p. 237).

Mas isso não desanima Freud, que insiste em se valer do conselho de Charcot de se precaver contra as tendências demasiado especulativas e examinar as mesmas coisas o tempo que for necessário, até que elas comecem a falar por si mesmas. Às vezes, contudo, para poder prosseguir a observação, é preciso saber mudar de ponto de vista… e de técnica. Assim, nesse período inicial, assiste-se a uma evolução do método em que, para o médico, o interesse dedicado à fala do paciente vai pouco a pouco ganhando primazia sobre o interesse suscitado até então pela compreensão do processo mórbido em si. Durante esse período, Freud abandona o exercício da hipnose num primeiro tempo e, depois, num segundo tempo, o da “pressão” sobre o crânio, que se destinava, mais ou menos na mesma perspectiva, a “forçar” os doentes a revelarem todo elemento patogênico.

Assim, a busca de “indícios” constitui, já nessa época, uma tarefa particular, específica do trabalho do analista: é o ponto de partida da própria escuta analítica.Mas terá de contar também com a renúncia ativa por parte do “médico” quanto à realização imediata do seu desejo de curar. E a mudança de técnica operada por Freud não mereceria nossa atenção mais prolongada, se já não prefigurasse a retração da pessoa do médico. Se já não fosse anunciadora da instauração de uma situação particular que, pelo viés da ausentificação da pessoa em presença, por meio da renúncia que o analista se impõe, levará ao descompasso da escuta e abrirá, ao mesmo tempo, as perspectivas da teoria: doravante, o descompasso na prática instaura uma ruptura no olhar posto sobre a teoria, instituindo assim os próprios fundamentos da teorização da prática. Pois o dispositivo da sessão não tem somente efeito sobre a palavra do paciente, também regula a escuta do analista…assim como regula o curso da sua excitação intelectual: “a ameaça que pesa sobre aquele que procede por construção é o circuito curto do pensamento” (Khan, 2000). Abandonando o circuito curto, será necessário, portanto, submeter-se ao longo desvio que implica deixar as representações em suspenso; será necessário renunciar à satisfação imediata proporcionada pela descoberta e seguir o caminho complexo que a palavra traça nos meandros da transferência. “Toda vez que se consegue englobar desde cedo a transferência na análise, esta se desenrola mais lentamente e torna-se menos clara, mas fica mais bem assegurada contra súbitas e invencíveis resistências” (Freud, 1905/1967, p. 89). Foi o que Freud entendeu com Dora.

 

2) Palavras, coisas, contatos

Para Freud, a mudança de ponto de vista está ligada muito diretamente à sua auto-análise:“ela constitui no meu trabalho”, escreve ele a Fliess em 14 de agosto de 1897,“uma peça intermediária indispensável” (Jones, 1953/1976, p. 358). E sabemos o importante lugar que a noção de intermediário ocupará na seqüência do movimento da teorização, quanto mais não seja a propósito da fantasia, ou ainda da transferência, qualificada de domínio intermediário “entre a realidade e a doença” (Freud, 1914/1072, p. 113). Assim, “A outra cena” não é somente a cena do sonho, é também a cena psíquica que o trabalho de Freud sobre o sonho vem investir, trabalho de interpretação dos seus próprios sonhos e trabalho sobre o próprio trabalho do sonho. E ela é a figuração de um lugar outro, lugar intermediário, lugar terceiro, donde o olhar, colocando-se sobre as coisas, dá às imagens delas a força de exporem aquilo que mantinham encerrado até então. Palavras serão como imagens…

Freud teve muito cedo a intuição do fato de se poder deslocar o olhar sobre as coisas para fazê-las dizer o que é inacessível ou desconhecido e que, no entanto, está lá: ele supõe que os pacientes não sabem que sabem o que assim mesmo sabem. É com Elisabeth von R, em 1892, que ele abandonará a hipnose, pouco a pouco, embora definitivamente, guardando do seu dispositivo apenas a posição deitada, enquanto ele próprio fica ligeiramente afastado, com uma mão pousada na testa da jovem, o que lhe possibilita, por vezes, exercer uma pressão constante a fim de ajudá-la a ver, literalmente, as idéias ou as imagens que lhe vêm à mente. “Então, que viu ou pensou?”, indaga ele, pondo no mesmo plano imagens e pensamentos, ao mesmo tempo em que constata que “o retorno das imagens nos dá geralmente menos trabalho que o das idéias” (Freud & Breuer, p. 226): isso porque a imagem, que provém do visível, aparece para o sujeito como vinda do exterior e não fazendo verdadeiramente parte do mundo dos seus pensamentos. Por isso, consegue descrevê-la como tal, mais facilmente do que o faria com uma idéia. Ora, à medida que o paciente a descreve, a imagem se pulveriza: “Quando ele transpõe a visão em palavras, é como se procedesse a um desentulhamento” (Freud & Breuer, p. 227). No hiato criado, então, entre um visível (que ainda está próximo daquele que a imagem alucinada produzida pela sugestão hipnótica fornecia) e um visual, cujos efeitos, doravante, se devem apenas ao poder sugestivo das palavras, a imagem tanto figura quanto desfigura. Tratar-se-á, pois, de esgotar o visível por meio do visual das palavras para atingir a reminiscência que reside no âmago do núcleo patogênico. De certo modo, sem esse hiato entre o visível das imagens e o visual das palavras, aquele que escuta, bem como aquele que fala, não poderia encontrar uma “ponte” entre a linguagem e o sintoma. Por isso é que a narrativa deverá ser feita “em detalhes”, perseguindo as ligações que unem as lembranças entre si, tal como unem as cenas e os acontecimentos da vida.

Depois do tratamento de Cecilie M., Freud já não pode ignorar que as histéricas têm a arte, para fabricar sintomas, de se servir do tesouro inesgotável constituído pela capacidade de figuração da linguagem. Pois Cecilie, mais que qualquer outra, possuía um verdadeiro dom para converter a menor locução em sintoma. Nela, “ora era a sensação que sugeria a idéia, ora a idéia que, por simbolização, tinha criado a sensação” (Freud & Breuer, p. 144). Essa faculdade, a de usar a linguagem para fins pessoais, Freud a encontrou em Elisabeth, que se queixa amargamente da solidão que o destino lhe reserva, ao mesmo tempo em que não se agüenta em pé devido às dores lancinantes que sente nas pernas. E aquilo que ele ouve então, aquilo que verdadeiramente descobre, é a conexão íntima que se estabelece como que instantaneamente entre o afeto de solidão e a imagemde si em pé sozinha. Conexão contida na própria palavra Alleinstehen – que, naquela altura, ainda não tinha adquirido o estatuto teórico de representação de palavra. Pois, embora Alleinstehen signifique efetivamente “solidão”, enuncia-se literalmente como “estar de pé sozinha”. Oportunista, a palavra forneceu aqui a ocasião de converter o sofrimento psíquico em dor física.

Do abstrato ao concreto…

Mas o que Freud e Elisabeth vão descobrir juntos sobre o poder das palavras é ainda de outra natureza. É a propósito da lembrança muitas vezes evocada, e de aparência anódina, de muitas vezes ter tido de pular “da cama descalça” para responder ao apelo noturno do pai doente, que Freud detecta aquilo a que chama então de lacuna na rede das cenas e na sua disposição temporal. Por isso, o que passa a orientar a consideração das lacunas é, de agora em diante, o que poderíamos chamar de “intervalos” na lógica e não os “brancos” na memória: a jovem se queixa de uma sensação de frio que costuma acompanhar a dor; no entanto, o aparecimento de seus sintomas não poderia estar diretamente ligado ao trauma da doença do pai na medida em que eles só apareceram pela primeira vez muito tempo depois da morte dele. É a própria Elisabeth que dará a resposta: “a doente me surpreendeu ao me anunciar que agora sabia por que razão as dores partiam sempre de um determinado ponto na coxa direita e aí eram sempre mais violentas. Era justamente o local onde, cada manhã, seu pai pousava a sua perna muito inchada, quando ela lhe trocava os curativos” (Freud & Breuer, p. 117). A origem do mal revelava-se agora na sua natureza profunda, infantil, puramente sexual, e isso graças à perspectiva que as imagens de palavras tinham permitido abrir.

Pois saltar da cama descalça [pieds-nus-hors-du-lit (pés-nus-fora-da-cama)] é uma expressão saída de uma linguagem imagética. Uma expressão em que a linguagem se serve da língua para animar a si mesma. A imagem produzida aqui é imagem em movimento, tanto físico, como psíquico. A expressão linguageira, no caso, põe em cena os efeitos sensíveis do apelo paterno: vem figurar, aqui e agora, a angústia desse apelo, em que se disfarça o intenso desejo da sua expectativa. Pois o frio e o nu, juntos, já são a figuração de um contato que, sem ser nomeado como tal, se recorta, no entanto, como ponto de fuga no enunciado de uma frase feita. Devido ao deslumbramento, à ultraclaridade (Überdeutlich) que emana da expressão linguageira, esta deixa de ser apenas uma simples representação, tal como não o são o amarelo das flores ou o miolo do pão, representações encobridoras na lembrança de mesmo nome que Freud expõe: uma cor, em si, não representa nada, só vale pela sua intensidade. Com o nu e o frio juntos, aqui, agora, no próprio seio da linguagem, é a intensidade brutal do frio, pura sensação, que recobre, literalmente, o fogo da paixão desejante que fez pular com os pés nus – e porque não nua? – para fora da cama. Aquele ou aquela, médico ou paciente, que ouve então as palavras na atualidade da cena produzida, descobre “os vestígios na sua presença atual” (Gantheret, 1996); não pode senão sentir, por sua vez, de novo, como da primeira vez, o efeito dessa intensidade e procurar insistentemente sua origem. É assim que o contato entre o frio e o nu faz um corte na perspectiva e leva ao contato da perna do pai sobre a coxa da filha, fonte da contaminação, fonte também da inscrição do que constitui acontecimento psíquico. Os contatos de palavras são os contatos dos corpos: o contato sexual dos corpos. São as palavras que abrem o desfiladeiro no qual se engolfa o desejo, e é a concretude que elas oferecem que possibilita que as emoções, as sensações a elas ligadas seja ditas ou confessadas. Assim, movida pela força pulsional, a fala, por sua vez, produz imagens, engendra figuras. A fala, submetida à regra da associação livre, ganha impulso e, ludibriando a censura, apresenta o desejo como realmente realizado.A fala comporta-se então como no sonho, onde, pela impossibilidade de figuração característica dos meios linguageiros capazes de exprimir relações de pensamento sutis, “somente o material bruto do pensamento é expresso, o abstrato é devolvido ao concreto que está na sua base” (Freud, 1932/1984c, p. 30).

E do concreto ao abstrato

Portanto, o que faz do sonho a “via régia” para o conhecimento dos processos inconscientes não é tanto o sonho em si, cuja experiência por parte de quem sonha permanece inefável, mas sua colocação em palavras. A narrativa do sonho – particularmente através do destino transferencial com que ele cruza na situação de análise – é uma tentativa de lutar contra o esquecimento. O fato de “reter” um sonho já é uma tentativa de manter sensível a realização do desejo que nele se produziu durante o sono. Para se subtrair ao autismo do sonho, ou para não ter de suportar seu insuportável esquecimento, não há outra forma senão procurar comunicar o seu conteúdo a outrem… ainda que, em seguida, se possa esquecê-lo. Nesse sentido, a elaboração secundária, no trabalho que ela exerce sobre o material bruto, concreto, das imagens produzidas já é um colocar em palavras, no local mesmo da experiência. A narrativa que se segue apóia-se nesse colocar em palavras dos restos perceptivos. Ela é trabalho do pensamento e da memória, que lutam contra a opacidade das imagens e possibilitam sua desfiguração e seu desdobramento, que, por sua vez, levarão à associatividade e à “inteligência” do contato entre as coisas. Assim, a elaboração secundária já é um lugar psíquico descompassado, uma outra perspectiva, a partir da qual as palavras construirão tanto a cena do sonhador como a do intérprete. O trabalho da interpretação está intimamente ligado à existência desse lugar psíquico e ao “trabalho” que aí se efetua. Sem esse lugar, “sonhar o outro”, retomando a bela expressão de René Major, seria letra morta. Mas, se “sonhar o outro” implica, da parte do analista que escuta, uma abertura própria para induzir um modo regressivo de leitura do texto do sonho, um modo em que as palavras sejam tratadas como coisas, requer também que o movimento inverso seja aplicado, no mesmo sentido e ao mesmo tempo, para que “as coisas cedam passo às suas representações” (Freud, 1912-1913/1993, p. 203). A tradução exigida por Freud na carta 52 a Fliess está condicionada a esse duplo movimento (Freud, 1887- 1902/1973b, p. 156).

A que visa o contato

Contatos de palavras, contatos de coisas, todos eles contatos que, por conseguinte, já se inscrevem numa visão antecipadora do contato com “a coisa” inconsciente, impossível de conhecer por natureza. Com o que chama de “unidade superior do contato”, Freud, a partir dessa época, dá mostras de uma verdadeira intuição do que é o funcionamento primário da lógica inconsciente e da sua transformação pelos processos de pensamento: “A associação por contigüidade é um contato em sentido próprio” escreve ele, “a associação por similitude o é no sentido figurado” (Freud, 1887-1902/1973b, p. 204). Ora, a escuta da fala passa necessariamente tanto pela via da contigüidade como pela da similitude: ela passa necessariamente pelo desfiladeiro do contato. Portanto, levar em consideração, em qualquer discurso proferido pelo paciente, a força alucinógena das palavras, com o lastro que têm de carga pulsional, leva a abandonar um modo de tradução que se apoiaria tão-somente na ordem puramente simbólica da linguagem e a conferir seu devido lugar à impressão que as palavras deixam. O encontro de Freud com as palavras da linguagem é uma experiência, no sentido pleno do termo: as palavras deixam marcas, na carne da histérica em primeiro lugar, mas também na superfície do aparelho psíquico do analista.Marcas que não são nem simples grafites nem hieróglifos complexos de imagens congeladas. São marcas animadas de um perpétuo movimento, que segue a pista deixada pelo primeiro investimento, aquele que possibilitou a inscrição do que Laurence Kahn designa como “a primeira forma” (Kahn, 2006). Que segue também a multiplicidade de percursos percorridos desde então, permanentemente remanejados pela ação da condensação ou do deslocamento. Só assim, considerando a plasticidade da palavra em relação à multiplicidade dos trajetos que ela traçou, considerando os contatos e as rupturas que se produziram com as coisas e com suas imagens, poderemos nos servir da moeda usada no país atravessado: “no nosso caso, a moeda neurótica” (Freud, 1911/1984b, p. 142), escreve Freud. Pois “Os neuróticos vivem num mundo à parte (onde) só o que foi pensado intensamente, representado com afeto, produz neles algum efeito” (Freud, 1912-1913/1993, p. 205). Seria difícil definir melhor o dialeto próprio do infantil...

 

3) As palavras do Homem dos Ratos

Na exposição do caso de Dora, nota-se que esse dialeto ainda não foi realmente considerado como sendo a língua do infantil: os “indícios” que a linguagem fornece aparecem tratados antes como elementos pertencentes ao fundo simbólico da língua do que como criação original proveniente da atividade fantasmática propriamente dita. Assim, a fumaça entra diretamente em relação com a pessoa de Freud, o fumante, através de uma tradução quase automática na qual aquilo que poderíamos chamar – tal como dizemos trabalho do sonho – o trabalho da transferência não consegue ser detalhado. A preferência é dada aqui ao caminho curto da equivalência simbólica e não àquele, mais longo e mais lento, do livre desvio da associação livre. Como se o autor, o analista, tivesse estado ocupado demais aplicando a teoria à prática e tivesse querido, tanto no tratamento como em seu texto, demonstrar a fundamentação de ambas. E, enquanto Freud se alegra da participação ativa de sua paciente e de sua docilidade, Dora, que se mostra tão pronta a aceitar as construções do seu analista, usa em silêncio a resistência transferencial e mantém secretas as verdadeiras fontes do seu mal. Será somente muitos anos depois que Freud não se deixará mais pegar por esse estratagema do inconsciente e que qualificará de mentirosos os sonhos da jovem homossexual. Por enquanto, o infantil ainda está obscurecido por um excesso de presença. Excesso de presença da pessoa do analista, mas também da teoria nascente, a do sonho: uma teoria sexual de sonho, poder- se-ia dizer, de onde a sexualidade viria a ocultar o sexual. Por isso Freud, escutando Dora, acaba pondo de lado o que tinha acabado de descobrir graças às histéricas. A saber, que as palavras na análise se comportam como coisas autônomas e que essas coisas extraem seu poder dos contatos que elas operam e dos efeitos que exercem.

Não vai ser assim com o Homem dos Ratos. Com ele, somos obrigados a constatar que as manifestações sintomáticas, no caso, as obsessões, são formações cuja origem podemos situar em um período muito recuado da infância. É por isso, frisa Freud, que a neurose obsessiva pode ensinar mais sobre o inconsciente que a histeria ou os fenômenos hipnóticos (Freud, 1909/1967b, p. 247).

Uma língua falada

A neurose obsessiva nos ensinaria mais sobre o contato? A neurose obsessiva, na qual as produções inconscientes irrompem na consciência em estado bruto, sem ter sofrido nenhuma deformação, pratica igualmente, com exímia arte, a ligação dos pensamentos entre si, a fim de assegurar sua realização de um modo mágico, ou... depende... a fim de exercer sua anulação, sempre desse mesmo modo. É por esse procedimento de contato que a onipotência dos pensamentos opera. O histérico consegue tratar os contatos entre as palavras como equivalentes do contato entre as coisas graças ao deslocamento, ao passo que o obsessivo, por sua vez, é “bem sucedido” – no sentido do sucesso proporcionado pela neurose – no tratamento dos próprios conteúdos do pensamento, embora já secundarizados, como coisas a serem colocadas ou não em contato... depende... Agindo assim, no modo da lógica primária, o pensamento obsessivo se efetua, de maneira característica, conforme o procedimento da condensação e tende, no sentido próprio do termo, a amalgamar o pensamento com os objetos que ele designa, e isso sem que possa aí se introduzir o mínimo intervalo. É desse modo, sobredeterminado, que se instaura a regressão típica que investe a sede da palavra: regressão do ato ao pensamento, regressão que torna a própria fala opaca e coloca o sujeito na impossibilidade radical de ter acesso, como observa Freud, ao conteúdo das suas próprias obsessões. Uma vez que já não se trata simplesmente de contatos de palavras, e sim de pensamentos estruturados segundo o modo de uma verdadeira linguagem, constrói-se o discurso que Freud assimila a um dialeto da histeria, discurso que ele não está longe de reconhecer como dialeto do próprio inconsciente. É a estranha familiaridade que esse dialeto mantém, no plano da forma, com os processos de pensamento em geral que levará Freud a modificar a técnica do seu método. Pois terá de deixar esse dialeto se desenvolver, a fim de decifrá-lo e fazê-lo seu. Modificação técnica que abre o espaço da escuta instaurando a “colocação à distância das intenções do analista” (Lacoste, 1992, p. 129) e leva em conta os meandros pelos quais a palavra mágica, que pretende recuperar a força do ato, se torna assim o representante da transferência. Porque, na sessão, é então a palavra mesma, não somente no endereçamento que ela contém, mas na efetividade que ela visa, que se torna ao mesmo tempo a fonte e o objeto da transferência. Não basta simplesmente utilizar a moeda corrente do país que atravessamos, se não usarmos o dialeto que ali se fala!

Um pensamento delirante

É certo que o reconhecimento do alvo transferencial da fala do obsessivo ainda não está totalmente explicitado na época, mas o exame do jogo das substituições e das recombinações que se dá por ocasião dessa regressão, além de descrever perfeitamente a “coação”5 que a neurose impõe, revela a vivacidade e o poder do animismo no exercício do pensamento. O inconsciente, enquanto “primitivo conservado”, aflora na superfície das palavras: é ele que torna o pensamento “delirante”, é ele que leva Freud a escutar o que ele não esperava, mas que nem por isso deixa de escutar.

Logo, escutar não passa somente pela via das relações que se poderiam estabelecer a partir apenas da cadeia significante: relações estas que têm na imbricação de Ratten (rato) em Heiraten (casar) seu exemplo mais luminoso, mas em que a via da substituição simbólica ainda é um tanto pressurosa (dos “ratos” aos “filhos” e depois ao “casamento”, é um passo só). E isso, justo quando que o eco da assonância repercute com toda a sua força e está no centro do que já permite a Freud imaginar que o que favoreceu a via da substituição foi, na verdade, como ele vai afirmar mais tarde q propósito da esquizofrenia, “a identidade da expressão verbal, e não a similitude das coisas designadas” (Freud, 1915/1986, p. 116). De fato, acaso a identidade da expressão verbal não se beneficia quase sempre de um reforço devido, sobretudo, à assonância que pode ressoar nas palavras, assonância esta que fornece o ponto de contato sensorial entre as palavras? É assim que a identidade de percepção vai ao encontro da identidade de pensamento e vem lhe dar uma mão. Nada nos impede imaginar que a assonância, através do rompimento que sua ressonância provoca, propõe matéria à imagem e lhe dá corpo, literalmente. Fenômeno que encontra sua confirmação por ocasião de uma atividade dita “delirante” do Homem dos Ratos, termo empregado por Freud a propósito de um acontecimento que aquele lhe relatou durante uma sessão: enciumado de seu primo Dick, que fazia a corte à dama de seus pensamentos de forma ardente demais para seu gosto, ele inicia uma cura de emagrecimento num estilo particularmente impulsivo e “quase suicida”, a fim, segundo a expressão imagética que lhe dá Octave Mannoni, “de destruir o dick nele mesmo, quer dizer sua gordura” (Mannoni, 1969, p. 141).6

Se Freud pode falar aqui de atividade delirante é, num primeiro momento, na medida em que a via da motricidade “representa” e atua a tentativa de assassinato perpetrada contra o primo, e é também, num segundo momento, na medida em que a atividade de pensamento, delirante ela também, se apossou do nome do primo para constituí-lo em coisa que deve desaparecer, dick desempenhando o papel de ponte verbal entre pensamento e ato. Tal atividade de pensamento, delirante, portanto, sobrepuja a do pensamento mágico, apesar de se apoiar sobre o mesmo fato: o fato de que as palavras podem aparecer no lugar das coisas. Eis, pois, o que pode desencadear a força de uma crença delirante insuspeitada! Pequeno delírio passageiro, é verdade. Pequeno delírio obsessivo, que coloca em prática o que a teoria afirma a propósito do sonho, também uma pequena psicose passageira, durante a qual o pensamento do dormente tomará o desejo por realizado simplesmente porque ele é (a)presentado como tal no fulgor do instante, e isso graças ao fato de as palavras aí serem tratadas como coisas. O que caracteriza a neurose obsessiva, escreve Freud a Fliess, é o fato de o recalcado irromper na consciência através da representação verbal e não pelo conceito ligado a ele: “é por isso que no caso de idéias obsessivas as coisas mais disparatadas se encontram unidas sob um vocábulo de significações múltiplas” (Freud, 1887-1902/1973b, p. 212). O processo de condensação é aquele mesmo de que se serve o sonho.

“Mas são apenas palavras!”, poderia ter dito o indagador da Análise leiga. O Homem dos Ratos diz o mesmo, obstinando-se em negar que o inconsciente possa surgir assim de sua própria linguagem e esquecendo, anulando até, o fato de que, se ele veio consultar Freud, foi depois de ter lido a Psicopatologia da vida cotidiana. Terá de admitir, no entanto, não sem mau humor, a interpretação de Freud sobre a fórmula de proteção que ele inventou para se proteger de sua tendência à masturbação. A fórmula ocupa o lugar de uma prece conjuratória e a análise vai revelar que ela é uma representação condensada. Glejisamen é o resultado da colocação em contato da “palavra” Gleji e da palavra Amen, o que confere à formula um ar de prece. Pode ser, mas entre as duas palavras, aparecendo aí para mantê-las juntas, introduziu-se um pequeno “s”, cuja função o paciente esqueceu, mas que Freud liga sem hesitar à palavra Amen, por ouvir então o Samen como Semen (esperma): Freud adivinha então, por meio de gleji(sa), que o nome da dama amada não é outro senão Gisela, nome que, por outro lado, podemos supor não lhe ser totalmente indiferente. A cena então se aclara bruscamente no instante em que o enigma da palavra se encontra resolvido: o homem, ao proferir sua “prece”, une seu esperma ao corpo de sua bemamada, “ou seja”, conclui Freud, “ele se masturba ao imaginá- la” (Freud, 1909/1974, p. 149).

Portanto, quando a consciência moral recusa a via da motricidade, o ato encontra realização sob a forma de um pensamento, ou de uma palavra, por mais abstratos que sejam. Porém, se a escuta do analista conseguiu desmontar o subterfúgio, foi por ter levado as palavras da linguagem de volta para as coisas concretas que lhes servem de fundamento. Com efeito, é ao visualizar o contato das representações de palavra (Wortvorstellungen) com as representações de coisa (Sachvorstellungen) a elas ligadas que Freud “vê”, retroativamente, como as coisas estão conectadas entre si, e pode então formular a tradução. Graças à aglutinação de que são objeto, as representações de palavra terão feito algo mais além de representar as coisas concretas que estão na sua base: a compulsão à representação (para retomar o termo criado por Jean-Claude Rolland), que também se exerce no analista, força a criação de imagens, que, se insinuando pela fenda da consciência, engendram por sua vez outras imagens.

“Pela brecha da retina”, escreve Freud na carta dirigida a Arnold Zweig em 10 de setembro de 1930, “poderíamos ver profundamente no inconsciente” (Freud & Zweig, 1973, p. 48): a imprecisão das impressões sensoriais, devida a uma deficiência – o que era o caso de A. Zweig – “excita a tendência central a ilusões, cuja construção é então assumida pela imaginação inconsciente” (Freud & Zweig, 1973, p. 47): O analista, deficiente ele também, porque nada viveu nem recalcou daquilo de que seu paciente lhe fala, encontra-se de certa forma obrigado a ver na penumbra. E, portanto, a produzir imagens. Estamos longe da descrição da paisagem que o viajante da estrada de ferro faz ao seu vizinho menos bem localizado que ele! Porque nem o paciente nem o analista produzem palavras somente a partir das imagens da realidade: se produzem palavras, fazemno também a partir das imagens de palavras, e das coisas que essas imagens procuram dar a conhecer do inconsciente. Por isso é que Freud vai escutar o discurso do Homem dos Ratos “como se fosse um grande sonho” (Mannoni, 1969, p. 158).

O que a fabricação do anagrama Gleji(sa) revela

Detenhamo-nos por um instante na fabricação do próprio anagrama, tal como Freud a detalha no Registro original do caso. Freud acompanha a fabricação da palavra do mesmo modo como recortaria um sonho e segue o rasto do trabalho dessa composição no mesmo plano que o do trabalho do sonho.

A palavra se constrói, portanto, a partir das associações fornecidas pelo paciente: se amen é claramente tomado do mundo da linguagem própria da prece, gleji, por outro lado, pede para ser traduzido, e o Homem dos Ratos o faz de bom grado. Assim, o gl é a contração da expressão “torna feliz” e o j, a contração de “hoje e sempre”. Quanto ao resto, ou seja, o e e o s, suas correspondências foram esquecidas. Fica “claro agora que essa palavra nasceu de Gisela/(s)amen, e que ele une seu sêmen ao corpo de sua bem-amada” (Freud, 1909/1974, p. 149). Freud convence com facilidade o paciente de sua descoberta, este confirmando de bom grado sua adequação por que, às vezes, a fórmula se apresentou a ele como Giselamen.No dia seguinte, contudo, Freud notou que ele veio à sessão muito mal humorado.

Suponhamos que o mau humor do Homem dos Ratos se deve a uma interpretação não totalmente precisa, ou melhor, cuja insuficiência não o satisfaz. Precisamente. Em primeiro lugar, não o satisfaz porque para além dessa palavra – além do fato de ela revelar o nome de sua bem-amada, nome que até então ele tinha guardado em segredo – vem se figurar a imagem mesma da satisfação. Não a satisfação do próprio sujeito, mas aquela que satisfaz a economia libidinal, em nome do princípio do prazer. É a necessária diminuição da tensão – tensão que a compulsão denuncia –, é sua regulação que consegue se exercer graças ao enunciado da fórmula, sob a forma daquilo que tem uma função de prece, é certo, mas cujo caráter de eficácia se deve mais seguramente aos materiais que a compõem do que à mágica esperada pelo fato de sua enunciação. Essa palavra “é um gesto”, propõe Claude Barazer (2005),7 indicando assim que a motricidade consegue se introduzir na palavra, e, talvez sua eficácia se deva realmente ao fato de ser tanto palavra agida quanto palavra ato. Embora esse “gesto”, de natureza sonambúlica, certamente sirva à fantasia ao realizar a satisfação pulsional que está na sua origem, ele também está, no plano econômico, segundo um modo perfeitamente alucinatório, a serviço do princípio do prazer: os dois processos estão ligados.

Em segundo lugar, a interpretação tampouco satisfaz o paciente porque é incompleta, na medida em que também o desvendamento do segredo fica incompleto: como um segredo freqüentemente oculta outro, freqüentemente recobre outro, podemos também supor que todo o esforço do paciente para não revelar o nome de Gisela (sua prima) mascara o desejo infantil recalcado, e que é a figura materna que deve, no caso, ser mantida em segredo: “torna feliz!” diz o gl, “hoje e sempre”, acrescenta o j. O mau humor dirigido a Freud é humor de transferência, que atualiza ao mesmo tempo a provocação homossexual e o apelo à punição, ambos ligados à excitação sexual infantil, o que será confirmado pelo conteúdo das sessões seguintes.

 

4) A coisa e o objeto

Avancemos um pouco mais e demos um passo para o lado, para o lado do objeto perdido da satisfação alucinatória. Pergunto-me, contudo, se esse objeto foi alguma vez perdido. Que deva ser procurado para nunca ser encontrado, me parece algo mais certo, no princípio do que fundamenta a ação das pulsões de vida. Mais certo ainda é que estarão sempre presentes a ilusão de reencontrá-lo ou a decepção de não encontrá-lo (a frente e o verso) nos diversos objetos que a pulsão encontra em seu caminho: objetos de amor, ou, com a ajuda da sublimação, objetos de pensamento, do ponto de vista da moção inconsciente, o estatuto deles continuará sendo apesar de tudo aleatório e contingente. Pois, na busca de satisfação que anima o desejo, o que sempre está em questão é o encadeamento de substituições incessantes, que tentam em vão preencher a falta da coisa. O objeto perdido não é um objeto da realidade, logo, não poderia ser reencontrado nela. Ele nada mais é que o mito que tenta figurar o resto incompreensível do que, na aurora do conhecimento, não pôde ser identificado nem como outro nem como semelhante, mas que nem por isso deixa de continuar produzindo seus efeitos, dentro.

Uma questão de indícios

Muito além do corpo materno e de seu devir erotizado, proibido, mantido secreto, delineia-se a silhueta daquele que Freud chamava de Nebenmensch: o humano próximo do Projeto, figura positiva do semelhante, confiável e transmissora de confiança, embora ameaçadora pelo que mobiliza e pelo que perturba. O Nebenmensch, base da identificação primária, é, no fundo do homem, “aquilo”, ao mesmo tempo o que há de mais próximo e de mais estranho. Pois o Nebenmensch é, de início, um estrangeiro.Um estrangeiro porque sua ação, por mais satisfatória e apaziguadora que seja, é excitante ao mesmo tempo. É excitante porque se faz esperar, mas também porque vem rápido demais, ou cedo demais ou então os dois ao mesmo tempo. Por isso, a falta não é simplesmente o que resulta da passividade devida ao estado de desamparo em que se encontra o infans. É também, devido à estrangeirice dessa excitação, o resultado da intensa atividade que ele exerce para estabelecer e conservar a integridade de um eu que vai se estruturando à medida que vai se desenvolvendo o ser corporal e psíquico que o abriga.

Da intrincação desses movimentos de passividade e atividade, de identificação e expulsão, nasce um conflito que marcará o psíquico para sempre. Além da representação das coisas do mundo perceptível, além da opacidade delas, que pede para ser desfeita para que possa se pronunciar o juízo de que elas serão objeto, juízo que decidirá sobre seu caráter bom ou ruim, além, isto é, no fundo delas, estão as representações de coisa (Dingvorstellungen) inconscientes, oriundas da imperfeita identificação de a coisa primitiva (Freud, 1895/1973, p. 336-352).8 Assim, o objeto perdido deve sua existência ao fato de ter sido o objeto da alucinação da satisfação: isto é, de ter sido o objeto alucinado sempre visado pela meta pulsional... É dessa forma que tudo o que tem aparência de objeto pode pretender resolver o assunto. E é aqui que intervém o teste fundamental de realidade, experiência essencial de discriminação entre o alucinado e o percebido. Pois, a realidade em si é ilusória e enganadora. De fato, não pára de apresentar ao desejo indícios da presença do objeto, mas esses indícios não valerão nada se o juízo de existência não os validar.

“Via da função da linguagem”9

O modo como o recalcamento se exerce a posteriori é, num certo aspecto, idêntico ao do recalcamento originário, com as forças pulsionais perseguindo seu objetivo, às vezes em silêncio e às vezes em meio ao som e à fúria. Porque são as mesmas forças que agem hoje e que agiram outrora. O inconsciente, que nasceu do primeiríssimo recalcamento, continuará a se desenvolver atraindo para si outros elementos, outros conteúdos, considerados indesejáveis pelo Eu. “Originalmente, tudo era Isso”. Depois, sob a influência do mundo externo, o Eu foi lentamente se diferenciando dessa massa pulsional, destacando-se de certa forma da matéria primeira embora se servisse, para sua própria construção, dos materiais que dela podia extrair.

Foi assim que “alguns conteúdos do Isso passaram para o estado pré-consciente”, ocupando a partir daí um lugar no eu, ligando às representações de coisa as representações de palavra.Mas o Eu, durante sua construção e apesar da fragilidade característica de um edifício que nunca está realmente terminado, não pára de reenviar, para o inconsciente, certos materiais. Esses materiais são de dois tipos: de um lado, certos conteúdos do Isso, que tinham sido previamente aceitos, e, de outro, algumas “impressões novas”, evidentemente coletadas a partir da confrontação com o mundo externo, mas também provenientes dos conflitos que inevitavelmente se produzem a partir do próprio mundo interno, que continua sendo, permanentemente, uma terra estrangeira interna.

Portanto, o Eu, que “apalpa” o mundo, rejeita as “impressões” julgadas inaceitáveis, que a partir daí “já não podem deixar vestígio senão no Isso” (Freud, 1938/1985, p. 26). Por isso, ainda que rejeitado, o “estrangeiro” continua por perto. Pouco importa se ele foi expulso da antecâmara ou do salão: os vestígios depositados no Isso sempre podem voltar a encontrar o caminho para a consciência; a linguagem abrirá as portas dela contanto que eles as empurrem com força suficiente. Inconscientes em si mesmos, os processos de pensamento e tudo “o que pode ser análogo a eles no Isso ganham acesso à consciência vinculando-se aos restos mnêmicos de percepções visuais e auditivas pela via da função da linguagem” (Freud, 1939/1989, p. 192). Não se poderia expressar de forma mais clara a intimidade que a linguagem estabelece entre visual e sonoro.

O que Freud denomina “via da função da linguagem” pressupõe a existência de ferramentas que são as ferramentas da representação: a Vorstellung, literalmente “pôr diante de si”, é a perspectiva que a Wortvorstellung, a representação de palavra, se dá para dar corpo na linguagem à representação das coisas do mundo externo, as Sachvorstellungen. A Vorstellung é o ato e seu movimento ao mesmo tempo, e o “pôr diante de si” é de fato tentativa de “ver” essas outras representações de coisa que são as Dingvorstellungen, a fim de colocar fora, em face de si, essas coisas do mundo interno, definitivamente, no melhor dos casos, conseguindo, graças ao poder da nominação, desfazer-se do que causa tantos problemas dentro (no seu tempo, a abreação não tinha outro objetivo).

Acaso a função visual que a linguagem carrega não está intimamente ligada à da nominação: na impossibilidade de ver, sempre se pode nomear, ou tentar nomear, interrogando o que está além da ausência experimentada? Portanto, interrogar, sempre, o que está além da demanda, além da repetição, além da própria coisa. Como demonstra aquele homem a quem as alucinações auditivas não davam descanso e que utilizava dia e noite tampões de ouvido.Aos que lhe perguntavam o motivo daquilo, nunca respondia ser aquele um meio eficaz de reduzir o barulho que as vozes faziam, o que teria sido uma resposta sensata ao “por quê?” do interlocutor, mas respondia de modo perfeitamente deslocado, fornecendo uma resposta louca, de uma lógica implacável. Ele dizia: “O quê, você não conhece isso?” e, retirando o objeto para mostrá-lo melhor, acrescentava serenamente: “São bolas de ‘Quem é?’”. A objetivação que essa personificação visava parecia ser ao menos tão eficiente quanto o próprio objeto... As alucinações são como as sensações: elas passam diretamente do inconsciente para o consciente e não necessitam de nenhum reforço por parte das representações de palavra para serem percebidas. Por mais alucinado que você seja, as palavras dizem o que têm para dizer: estão sempre ali para tentar atingir o inatingível da própria coisa (das Ding). E a imperiosa necessidade imperiosa de dar corpo e nome ao desconhecido que pulsa dentro convoca imediatamente a linguagem e suas capacidades de designação, mesmo quando o nome desse desconhecido é “Ninguém”.

Entre visual e sonoro

Os restos mnêmicos óticos são os restos visuais das coisas, escreve Freud, e os processos de pensamento podem se tornar consciente por meio do retorno dos restos visuais. Para alguns, é até uma via privilegiada. Nesse caso, porém, o acesso à consciência só pareceria se dar no que concerne a coisas concretas – como ocorre na língua “sem gramática” do sonho – e não a processos de pensamento, que estão, por sua vez, ligados à via auditiva. Para ele, “os restos de palavras são essencialmente os descendentes de percepções acústicas” (Freud, 1923/1991, p. 265).

O fato de que o acesso à consciência deva inexoravelmente passar pelo retorno do perceptivo implica, inevitavelmente, que sejam levadas em conta tanto as sensações conscientes como as inconscientes e, muito particularmente, as minúcias das variações que as afetam e que se imprimem: as variações são os restos do trajeto da sensação, são vestígios ínfimos das idas e vindas e das hesitações para qualificar da maneira mais precisa possível o que sentimos. São o inexprimível da emoção, sua parte física, que terá de encontrar sua expressão verbal para poder ser comunicada ao outro. As sensações atestam a existência do movimento dos investimentos que acompanham o retorno das imagens mnêmicas. Quer estas sejam de natureza visual, ou auditivas, não são mais que restos mortos, que não encontrarão maneira de convocar de novo a lembrança se o vestígio motor a elas ligado na origem não conseguir se animar. “A percepção”, escreve Freud no Projeto, “corresponde a um objeto nuclear acrescido de uma imagem motora” (Freud, 1895/1973c, p. 350). Por isso é que a lembrança encobridora, além da deformação que compreende, procura sempre manter juntas representação de imagem e representação de movimento: restos de percepção externa (a imagem do objeto) e restos de percepção interna (sensação do movimento que leva para).

O artigo Sobre a concepção das afasias e o esquema que Freud propõe do funcionamento de um aparelho de linguagem precedem de pouco a concepção do aparelho psíquico e nele deixaram sua marca: ao contrário das representações de objeto que, no esquema proposto, estão ligadas a origens sensíveis, perfeitamente heterogêneas (visuais, táteis, cenestésicas ou acústicas) – o que faz Freud dizer que “a representação de palavra aparece como um complexo representativo fechado, a representação de objeto em contraposição como um complexo aberto”–, é somente pela extremidade visual que a representação de objeto entra em contato com a imagem sonora da palavra que ela representa. No esquema, é a única via de conexão indicada (Freud, 1891/1983, p. 127). Não me parece que Freud tenha alguma vez voltado a esse princípio. Patrick Lacoste cita o argumento de Freud, tomado de Grashey, segundo o qual uma imagem sonora suscitada por uma imagem de objeto tem de ser “acabada”, isto é, essa imagem tem de “perdurar até que todas as partes da imagem sonora tenham se formado sucessivamente”. Ele deduz daí que

é porque a imagem visual só precisa de um tempo mais curto para dar uma significação total – ao passo que a imagem sonora necessita de uma progressão mais longa – que Freud privilegia o “visual”. Ele o privilegia ao longo de todo o desenvolvimento da teoria, seja na referência aos traços e às inscrições inconscientes, até aparecer em 1925 como corolário da “representação do tempo” na “Nota sobre o bloco mágico” (Lacoste, 1984).10

 

5) As palavras da psicose

Escreve Freud:

Nossa atividade anímica se movimenta, de modo geral, em duas direções bem opostas, seja a partir das pulsões, através do sistema Ics, na direção do trabalho de pensamento consciente, seja, por incitação do exterior, através do sistema do Cs e do Pcs, até os investimentos ics do eu e dos objetos. Esse segundo caminho deve, apesar do recalque ocorrido, continuar praticável e permanece, até certo ponto, aberto aos esforços da neurose para recuperar seus objetos (Freud, 1915/1988, p. 242).

A hipótese, formulada por Freud a propósito da esquizofrenia, é a seguinte: o investimento da representação de palavra é independente da ação do recalque e constitui, em si, uma tentativa de autotratamento, no curso do qual a libido, para franquear para si um caminho na direção do objeto, se vê obrigada a passar pela “parte-palavra” do mesmo. É por isso que o esquizofrênico tem de “se contentar com as palavras no lugar das coisas (Ding)” (Freud, 1915/1988, p. 242). Os investimentos de objeto, assim solicitados desde o exterior, desde a “parte-palavra”, tentariam, inversamente, estabelecer contato com a “parte-coisa”.

Um santo é um seio,11 um buraco é um buraco

O que acontece então com a imagem quando a estrita “igualdade na expressão linguageira e não a semelhança das coisas (Ding) designadas” (Freud, 1915/1988, p. 239) já não oferece ao sujeito oportunidade de substituição? Porque, quando somente resta a “parte-palavra”, um buraco não representa outra coisa senão um buraco. Imagem fixada para sempre, que não deixa para o sujeito outra posição senão a da fascinação.

Às vezes, é a sonoridade que valerá pela imagem e se comportará como tal, como último recurso para alcançar o sentido, para forçar o fechamento da palavra, para tentar animar a coisa que ela encerra. E as imagens de palavra, por não poderem se substituir uma à outra, se superpõem então segundo um modo de estrita igualdade, onde somente a assonância do significante faz lei e de onde toda sensorialidade é banida. Um Santo [saint] equivalerá então a um seio [sein], como no caso da paciente que elaborou uma teoria sexual infantil segundo a qual as crianças nascem da operação dos seios, resto típico, poder-se-ia dizer, da enigmática impressão que provocava nela, quando criança, a expressão: “opération du Saint Esprit [operação do Espírito Santo]”.A superposição das palavras, sua exata congruência fazendo as vezes de busca de sentido, é de fato uma última tentativa para estabelecer conexões entre a palavra e a coisa. Porque, quando as palavras, despojadas de sua capacidade de se ligar às coisas, já não são mais que meros representantes delas mesmas, elas perdem por essa mesma razão seu poder de figuração: a exata equivalência entre “um buraco” e “um buraco” ganha o poder de sua fascinação quando a imagem perdeu seu poder de colocar em movimento o pensamento. Então a angústia, puro afeto, não pode encontrar outra forma de se expressar senão o pavor.

Para além da linguagem, através do rompimento que as palavras provocam, da sensorialidade que elas convocam, estão as coisas que um dia marcaram com sua impressão. A moção pulsional inconsciente, lembra André Green com insistência, ignora, primitivamente, qualquer distinção entre afeto e representação: ela é, como ele afirma,“movimento em busca de uma forma” (Green, 1985; 1995) que somente fará nascer o afeto qualificado na medida em que se realizar o encontro com a representação de objeto. É por isso, sem dúvida, que a percepção que temos do mundo que nos rodeia permanece em grande medida tributária de nossas percepções endopsíquicas, que inicialmente só sabemos traduzir em termos de prazer ou de dor. “Na origem”, escreve Freud em Totem e tabu, “a função da atenção não estava voltada para o mundo interior, mas sim para os estímulos vindos do mundo exterior, e só era informada, no que diz respeito aos processos endopsíquicos, pelos desenvolvimentos de prazer e desprazer. Somente à medida que uma linguagem de pensamento abstrato se formou pela conexão dos restos sensoriais das representações de palavra com processos internos é que estes últimos puderam pouco a pouco passar a serem percebidos. Até então, tinha sido projetando para o exterior percepções internas que os homens primitivos tinham desenvolvido uma imagem do mundo exterior, imagem aquela que temos de retraduzir na linguagem psicológica agora que a percepção de consciência se fortaleceu” (Freud, 1912-1913/1993, p. 170).

A expressão por meio da linguagem não contém sempre uma imagem de coisa, no sentido de que uma coisa faz imagem antes de se tornar pensamento? A imagem buscará a expressão linguageira que pode traduzi-la e torná-la consciente, conservá-la, ou ainda esquecê-la para fazê-la renascer. Embora a força das imagens resida no fato de poder representar o que já não está, só o consegue de maneira efetiva graças à capacidade de nominação que a linguagem possui: será que a imagem sozinha, convocada como percepção que volta do exterior – esse é o único meio de percorrer o caminho ao inverso –, ainda conservará o poder de sua força quando “um buraco é um buraco”, desesperadamente? Quando ela não encontra saída nas representações de palavra que, expondo sua série de substituições recíprocas, permitirão sua abertura? É de se temer então que a imagem, na fascinação que ela exerce, não provoque nada mais que o pavor.

Polissemia do vocábulo

A segunda tópica afirma que “as representações de palavra são restos mnêmicos”, que elas “foram um dia percepções e podem, como todos os restos mnêmicos, tornaremse novamente conscientes” e que “a efetiva diferença entre uma representação (um pensamento) ics e uma representação pcs consiste em que a primeira se realiza sobre um material qualquer, que permanece não-conhecido, ao passo que à segunda (a pcs) se acrescenta a ligação com representações de palavra” (Freud, 1923/1991, p. 264). Acaso esse resto “não conhecido”, constituído dos conteúdos indefiníveis do Isso, material qualquer, não está constituído de restos perceptivos, de restos sensoriais de toda ordem, a título de restos mnêmicos? É certo que os restos de palavras, enquanto restos “acústicos”, restos da “palavra ouvida” (Freud, 1923/1991, p. 265), isto é, que participa de um sistema que é o sistema da fala – e não somente da linguagem –, estabelecem caminhos com múltiplas passagens e se inscrevem de forma predominante tão logo o indivíduo tem acesso ao mundo dos objetos de que a linguagem faz parte: a linguagem em sua função simbólica não é sempre a língua do outro? E o que é então ouvido da fala, inscrito na cultura, constitui um fundo que vai além do que foi simplesmente ouvido e participa assim do destino. Todos se lembram de como a palavra “criminoso”, emitida por seu pai, ainda ressoa nos ouvidos de E. Lerhs, o pequeno mordedor, a ponto de fazê-lo percorrer quilômetros, à imagem de seu animal totêmico. O percurso da dívida que Freud tenta reproduzir, inclusive com a ajuda de croquis, é a réplica das conexões que se fazem e desfazem no inconsciente entre as representações de coisa, por condensação e deslocamento, seguindo traços que são verdadeiros traçados.

Assim também, se Ratten pode proliferar dessa maneira no discurso do Homem dos Ratos, é porque a assonância pura contida na expressão linguageira autoriza a substituição das coisas designadas. Mas também porque reúne “sob um mesmo vocábulo”a possibilidade de afetos múltiplos: repulsa, horror, fascinação, crueldade, são todos expressões da excitação sexual, são também todos trajetos para o movimento libidinal que consegue se reproduzir insinuando-se em cada brecha que a assonância das palavras lhe oferece. O pequeno mordedor, aproveitando a alternativa que lhe propõe o pai, escolherá ser um criminoso e não um grande homem, selando assim seu destino ao optar pela neurose: mais vale a identificação com o rato que o enfrentamento com um pai ideal. A transferência reproduz isso...

Plasticidade das palavras

Quando o Homem dos Ratos chega para sua análise com Freud, já deu mostra de uma inquestionável curiosidade pelos trabalhos deste. Leu a Psicopatologia da vida cotidiana e encontrou ali “a explicação para o encadeamento de palavras bizarras”, que lhe lembraram a tal ponto “suas ‘elucubrações cogitativas’ com suas próprias idéias” (Freud, 1909/1967b, p. 201) que decidiu confiar-se a ele: Freud será, portanto, aquele que o escutará falar.O analista, que supostamente sabe e, portanto, supostamente entende, verá, pois, o paciente, movido pela transferência, trazer-lhe o material de suas idéias inconscientes, as quais, sublinha Freud em suas notas, “como vozes interiores, têm valor de ditos reais que ele só ouve em sonho” (Freud, 1909/1974, p. 131). De fato, o material aparece essencialmente na forma dos enunciados, interdições ou ordens, às quais o paciente está submetido, proferidos como se fosse de fora, segundo um modo propriamente alucinatório. Aparece também na forma de lapsus, ou ainda na irrupção súbita de palavras estranhas à fala pronunciada, tal qual aquele nicht, “assoprado pelo maligno” que vem contradizer a intencionalidade primeira do discurso. Portanto, o material aparece assim em tudo aquilo que constitui o que Freud define como “dialeto”, isto é, como língua “falada”. E, na prática dessa língua, que é estrangeira tanto para ele quanto para aquele que a fala, é a assonância que o guia.

A assonância é um procedimento “técnico” comum aos processos do sonho, do lapsus ou do Witz que se utiliza da plasticidade das palavras. Ao revelar a matéria sonora, transformada em imagem, que as constitui, a assonância oferece às palavras os contatos e as rupturas que a histérica encontrava na complacência somática. Enquanto em Dora as palavras destacadas por Freud correspondiam de certa maneira mais ou menos exatamente ao objeto correspondente na realidade (a fumaça com o charuto etc.), no Homem dos Ratos, as palavras vão valer por sua plasticidade. Vão valer porque o visual aí se insinua e de certo modo força o que poderia ser um olhar da escuta. Considerar todo o discurso do paciente como um grande sonho passa então a levar em conta o que ressoa na escuta da imagem das palavras, no que ela convoca da coisa primeira e de suas transformações pelos processos primários. Embora a representação de palavra represente na realidade os objetos do mundo, e embora dê uma mão por um tempo suspenso e descontínuo à representação de coisa inconsciente para que esta se torne perceptível pela consciência, nem por isso deixa de transportar a pluralidade de significações do vocábulo. Se pudéssemos estar certos, de uma vez por todas, que “chamar um gato de um gato” não quer dizer nada mais além do que está presente no plano manifesto, o mundo decerto giraria diferentemente. Mas os movimentos do desejo que se infiltram no uso da língua decidem de outra forma.

É de fato porque as palavras soam por si próprias, fazendo ressoar o eco de sua carga afetiva, que experimentamos tanto prazer em manipulá-las: a assonância, pela economia de detalhes que possibilita, serve à alusão, ao mesmo tempo em que satisfaz a tendência, primeira em cada um, que é de brincar com ela e inventar palavras novas. E, às vezes, é o movimento contrário que se produz: quando a carga de desprazer se revela forte demais, ou a censura prevalece, a assonância fornecerá ao esquecimento a ocasião de se apossar das próprias palavras. Por meio da assonância, a palavra adota as funções da imagem, fazendo uso da semelhança e revelando a dessemelhança.

Na cena analítica, o procedimento da assonância está relacionado com a transferência. Devido à revivescência que esta desencadeia, já não são simplesmente as palavras enquanto representações que se apresentam no discurso. Moções pulsionais, afetos e sensações também encontram nele suas vias de libertação.

 

6) A transferência, lugar dos contatos

Na sessão, a fala seria vã se não estivesse solidamente apoiada na transferência. Porque a transferência faz da fala uma fala “dirigida”, no sentido de que essa fala, intensamente “afetada” pela demanda que nela se infiltra, visa o além da presença do analista, isto é, parafraseando Guy Rosolato, a coisa desconhecida “de que o objeto se furta” (Rosolato, 1970/1978). A fala em análise se pretende contato... Ela se pretende contato com a coisa.

Está estabelecido que a transferência é transferência de amor. Quer esse amor assuma a forma positiva ou negativa, ou então ganhe ares de indiferença, esse amor nem por isso deixa de adotar as características de um amor verdadeiro: esse amor merece ser considerado como tal, escrevia Freud nas “Observações sobre o amor transferencial” (Freud, 1915/1972b).Contudo, ao insistir no caráter de efetividade real do amor de transferência, ele não designa a realidade inconsciente no sentido de que esse amor não pode escapar às regras que lhe dita o princípio do prazer?

Embora o amor aí esteja, o objeto desse amor não está. A demanda do sujeito se torna extravagante e visa diretamente, como escreve Victor Smirnoff, “aquele que deveria lhe responder – e responder por – em nome e no lugar do objeto originário, presa imaginária que ele persegue” (Smirnoff, 1976/1998, p. 120). Denunciar o engodo ou então responder desde esse lugar antes mesmo de ter entendido sob que ângulo fomos convidados equivale a congelar in statu nascendi os movimentos do desejo, que, depois de terem se posto a serviço da transferência, constituem o que Freud chamava as “forças vivas” da análise. O desejo, sua mobilidade no tratamento, nasce na verdade da distância entre a alucinação da satisfação e o traço da satisfação originária, suposta ter realmente existido: é essa “crença” íntima de que a satisfação existiu no real que relança a moção pulsional sempre que o menor indício vem reatualizar essa crença. Por isso a transferência não é simplesmente transferência de amor, mas transferência de investimentos: são os investimentos que se produzem novamente e vêm “ocupar”, literalmente, as formas que as representações lhes oferecem. Porque a existência da representação é “uma garantia da realidade do representado”, e o pensamento possui a capacidade de “tornar novamente presente o que uma vez foi percebido, por reprodução na representação, sem que o objeto ainda precise estar presente no exterior” (Freud, 1925/1992b, p. 137).

A transferência: percepção, nominação

Assim, o desejo inconsciente que se beneficia do poder que lhe confere a atualização transferencial, está na origem do fato de que um “número considerável de estados psíquicos anteriores revivam, não como estados passados, mas como relações atuais com a pessoa do médico” (Freud, 1900/, pp. 86-87). Alguns desses estados serão reproduzidos identicamente e terão conservado todos os sinais do excesso pulsional que existiu na origem, ao passo que outros aparecerão mais atenuados, moderados pela ação civilizadora do processo da sublimação. Partindo dessas novas edições “revistas e corrigidas”, o analista tentará remontar até o manuscrito original. É aqui que a metáfora arqueológica se revela insuficiente, na medida em que o analista não lida somente com obras antigas, congeladas pela imutabilidade de um tempo histórico e para as quais bastaria reconstituir as partes ausentes apagadas pela censura ou pela usura do esquecimento para lhes devolver sua aparência original. A ação do analista não é um trabalho de restauração. Do ponto de vista da transferência e da neurose que ela produz na análise, o analista e o paciente enfrentam, ambos, uma matéria viva, em constante movimento, sujeita a transformações repetidas e a deslocamentos diversos. E, embora o analista não consiga rememorar aquilo que pertence à vida do seu paciente, embora deva, “a partir dos indícios que escaparam ao esquecimento”, adivinhar e construir o que o paciente viveu e recalcou, deve fazê-lo sabendo que está lidando não com o material inerte que o arqueólogo encontra, mas com o polimorfismo e com a flutuação de uma matéria viva e proteiforme criada pelo jogo de forças novamente em presença. Estas atestam a poderosa vitalidade da própria neurose. Desvelam também a pugnacidade de um eu, sempre pronto para defender suas fronteiras, por menos senhor do terreno que seja.

Pois foi assim que ele mesmo se construiu, durante o desenvolvimento do indivíduo: entre desejo e falta, entre desprazer e prazer. Da história dessa construção resta, no mais vivo do sujeito, o movimento de investimento primeiro e os vestígios, sempre renascentes, que ele deixou subsistir atrás de si. “O analista não é o objeto da transferência”, afirma Michel Neyraut, “ele é apenas o ponto limite de seu resultado fantasmático, objetal ou narcísico” (Neyraut, 1974, p. 219).Desde cedo, Freud fez da transferência um lugar psíquico: a “arena” da transferência (Freud, 1914/1972, p. 113), é certamente a praça onde se enfrentam as forças em presença, as do Eu e as do Isso, as do progresso em direção à consciência e as da resistência. Mas a transferência é, sobretudo, um “playground” (Tummelplatz), onde as moções pulsionais recuperam toda a liberdade para se desenvolver novamente. Nesse sentido, ele é uma das formas que a Schauplatz da cena analítica adota. A transferência é o lugar onde a regressão sob todas as suas formas se torna possível e também o lugar que possibilita o advento da interpretação. Não a interpretação direta da própria transferência enquanto fenômeno, cuja única finalidade seria reificá- la por meio de sua denúncia, mas a interpretação do dialeto de que a transferência faz uso na situação de análise. A interpretação intervém, então, fundamental e efetivamente, como aquilo que possibilita o desligamento entre afeto e representação. Pois a moção pulsional, no retorno que a transferência propicia, não distingue uma da outra (Green, 1999; 2002): só sua nominação, por dar precedência à representação de palavra e possibilitar seu superinvestimento e por abrir assim para a percepção dos restos sensoriais mnêmicos de coisas, tem condições de dar novo alento à ação do visual e esgotar assim o retorno das imagens. É dessa forma que ela poderá fazer cessar a repetição de maneira duradoura.

“Eu poderia ser sua mãe”: um exemplo clínico

Tive de esperar muito tempo antes de poder dizer a um paciente qualquer coisa que estivesse relacionada com uma posição transferencial dele. Eu não podia deixar de perceber aquele homem, de quase quarenta anos, como um homem muito jovem, quase um adolescente. Era, no entanto, um homem com a vida já bem organizada. Ele esperava que a análise lhe trouxesse mais liberdade nas suas relações com os outros, na sua vida afetiva, mas, sobretudo, na sua vida profissional: dizer “não” ou afirmar sua autoridade junto a seus colaboradores provocava-lhe a cada vez um sentimento de angústia, de mal-estar e de amargura que não conseguia explicar, mas que vivia como um entrave. Nem é preciso dizer que ele foi muito respeitoso do enquadre, como o foi da regra fundamental. Eu não me entediava: era um jovem inteligente, tinha humor, eu o achava honesto e corajoso, tanto na vida como na sua análise e, além disso, era culto.Muitas vezes eu me entregava ao prazer que me dava escutá-lo. Vezes demais. Minha resistência estava sem dúvida aí. Pensava, ao mesmo tempo, que o prazer que aquelas sessões nos proporcionavam era bem-comportado demais, a despeito do embalo que ele ia tomando ao falar, sinal da excitação que pouco a pouco ia se apossando dele na sessão. Pensava também que aquele homem que, por um lado era um “pequeno” sonhador que não revelava muita coisa sobre sua “pequena” infância, buscava, por outro, me seduzir para melhor me manter afastada. Insistia em afirmar que não tinha lembranças anteriores à morte do pai. Claro que eu não descartava a idéia de que aquela morte prematura tivesse constituído um trauma real: a lembrança daquela perda retornou com freqüência na sessão, às vezes numa atualidade brutal, e a análise tinha podido ajudá-lo a exprimir todo o rancor que aquele abandono lhe inspirava. Eu me indagava, no entanto, sobre os efeitos daquela perda e me perguntava que benefícios secundários tinham surgido dali. De fato, depois daquele falecimento, ele tinha se tornado para todos o “homenzinho” da casa, com quem todo o mundo contava para consolar a mãe e disciplinar os irmãos mais novos: naquela época, dizer-lhes “não” não parecia dar lugar a sintomas.

Às vezes, eu quase me resignava à idéia de que, naquela análise, as manifestações transferenciais se limitariam ao que ele me apresentava dele mesmo: o pré-adolescente sólido e constante que ele havia sido no passado, reconhecido e apreciado por todos. Achava aquilo pouco, o que frustrava minha expectativa de transferência; pouco tempo depois, comecei a me entediar. Tanto mais que ao lado daquele comportamento bem-comportado, “ao lado” quer dizer, fora do divã, persistia um sintoma tenaz, a propósito do qual eu me interrogava regularmente e que tinha se instalado logo de cara, desde a primeira sessão: depois de ter se levantado do divã, aquele homem não podia cruzar meu olhar, e literalmente fugia no momento de apertar minha mão. Eu havia construído várias hipóteses sobre esse comportamento, concernentes, entre outras coisas, à dificuldade de dizer “até logo” relacionada com o desaparecimento brutal do pai, hipóteses que poderiam servir para esclarecer o sintoma manifesto da dificuldade de opor uma recusa a alguém. Isso em nada atenuou o comportamento de fuga, que eu tampouco pretendia lhe atirar na cara, dada a pouca consciência que ele tinha desse pequeno jogo no vão da porta. De todas as hipóteses levantadas em relação a esse sintoma, eu fiquei finalmente com uma, inspirada pela expressão que um dia me veio subitamente à mente, como uma idéia solta.“ Não encosta!”, correspondia ao seu modo de manter firmemente uma posição estratégica defensiva de um: “primeira infância, não conheço!”. Fui pouco a pouco dizendo para mim mesma que a transferência trazia decididamente a marca de uma certa negatividade.

Chegou o dia em que ele mesmo começou a se entediar no divã: recriminou-se por falar demais e se perder em digressões, que qualificou de filosofia de botequim. Teria porventura sentido o tédio que nascia em mim? Teria tido medo de me afastar de uma vez por todas? O fato é que, com a ajuda de sua cultura analítica, ele começou a me falar da transferência, sob a forma... do que não sentia em relação a mim. “Eu me pergunto para o que será que você serve para mim”, disse ele. “Sempre ouvi falar que os pacientes deveriam se apaixonar pelos seus analistas. Mas é impossível. Provavelmente por causa da diferença de idade...”. “É verdade, eu poderia ser sua mãe”, disse-lhe eu então. “Ah, não!”, gritou ele, caindo na gargalhada, “isso é ruim! Além disso, é nojento!” E passou a falar sobre o fato de jamais ter experimentado qualquer atração pela mãe, acrescentando que ela não tinha pudor algum e que não tivera nenhuma consideração por seus filhos, não hesitando em trazer seus amantes para casa. Lembrei-me da réplica de Freud a um de seus amigos escritores, que lhe declarava não ter nenhuma lembrança de ter tido fantasias sexuais com a mãe:“Mas não é necessário que você soubesse!”, respondera-lhe Freud.

Na sessão seguinte o paciente trouxe um sonho. Um “pequeno” sonho, que ele achava engraçado e que realmente não lhe dizia nada, em suma, um sonho sem conseqüências; podia portanto contá-lo sem medo. O sonho era o seguinte: estava com uma mulher, uma desconhecida, esclarecia ele; bruscamente, ela o beijava. Ele lhe devolvia o beijo, com paixão. Depois a mulher dizia: “Fiquei com vontade de fazer isso”.“Eu também fiquei com vontade”, ele respondia. O sonho parava aí.

A palavra “antigamente” se impôs então a mim, a qual remetia à “pequena” infância de um “pequeno” menino abraçado pela mãe. À ternura materna corresponde a excitação infantil. Contentei-me com uma simples observação a respeito dos tempos de conjugação “no passado” dos verbos que figuravam nos enunciados daquelas vontades tão cheias de reciprocidade, observação sobre a qual ele diz não ver que interesse pode ter, e eu lhe pedi para descrever a desconhecida. O que ele fez de boa vontade... para logo se dar conta que o retrato que ele construía, na precisão dos traços que ele desenhava com palavras, poderia bem ser aquele “escarrado”, me disse ele, de sua mãe.

Doravante, com o insensato da transferência temperando o insensato dos desejos infantis, uma brecha se abriu na muralha da resistência e assim permaneceu: aos poucos o material das lembranças se fez menos perigoso e pôde tomar o caminho da rememoração.

Construção e articulação inconsciente

Hoje posso dizer que minha intervenção “Eu poderia ser sua mãe”, não foi provocada tanto pela vontade de fazer uma interpretação visando apontar para o meu paciente o que poderíamos chamar a transferência materna, e sim pelo que me reaparecera quando ele disse “diferença de idade”. Tratava-se de imagens, negativas em sua maioria, de uma mãe que não tinha hesitado em escolher como amantes os amigos de universidade de seus filhos. Várias vezes, quando ele havia mencionado esses fatos, eu tinha pensado: “poderia ter sido você”. Nunca tinha pronunciado essas palavras, não somente pela violência que elas veiculavam, mas porque achava, e ainda acho, que desse modo eu teria me embrenhado por um caminho curto e que a ocasião oferecida à descarga teria sido mais satisfatória para meu narcisismo do que proveitosa para o paciente. Portanto esperei, deixei essa fala em suspenso por um tempo, fala essa que, caso a tivesse proferido, teria sentido como imposta ao paciente de fora de seu pensamento. E eis que naquele dia o desejo voltava sob o ângulo, não do interdito, mas do impossível: não se pode desejar uma mulher que tenha em relação a você uma diferença de idade tão grande. “Impossível” foi a palavra que decidiu minha intervenção.

“Poderia ter sido você” não era falso em si, mas surgia fora de qualquer contexto transferencial. Provinha da dedução e envolvia processos pertencentes à lógica secundária, tanto da minha parte como da dele. Penso também, retroativamente, que, se o dissesse, teria me colocado numa posição igual à da mãe sedutora e invasiva, o que teria tido por resultado convocar todas as forças da resistência. Meu paciente teria podido, no melhor dos casos, se convencer do acerto de minha construção e da inteligência do meu raciocínio; teria podido até ficar seduzido e tomá-la para si por certo tempo, mas nada de tudo isso teria se articulado a uma inscrição inconsciente na sua história singular. O investimento – consciente na hora – de tal construção sempre se dá em detrimento do investimento da representação de coisa inconsciente. Não é de outro modo que se produz o reforço das defesas. “Poderia ter sido você” certamente não lhe teria possibilitado apreender a transferência que ele só perceberá “como tal”muito mais tarde. É por isso que certas técnicas de interpretação que utilizam construções explícitas, embora possam até ser corretas no plano teórico, no plano do tratamento ficam como construções abstratas que o paciente integra ao registro do saber consciente. Elas não só não reduzem nem um pouco o poder da resistência, como o amontoado de explicações acaba saturando o espaço da sessão e exercendo ali um efeito paradoxal: o laço transferencial se torna tão estreito que a fuga é muitas vezes a única saída.

Em compensação, “Eu poderia ser sua mãe” desmancha a negação ao mesmo tempo em que a revela, e apresenta ao representante pulsional inconsciente o próprio objeto que está na origem da recusa atual da transferência, assim como esteve na origem de um recalque no passado. “Negar algo no julgamento”, escreve Freud em “A negação”, “quer dizer no fundo: aí está uma coisa que eu seguramente preferia recalcar (...) Através do símbolo da negação, o pensamento se liberta das limitações do recalque e se enriquece com conteúdos de que não pode prescindir para seu funcionamento” (Freud, 1925/1992b, p. 137). No entanto, embora a negação já seja, no nível pré-consciente, uma maneira de entrar em contato com os conteúdos do recalcado, embora seja a marca de certo grau de levantamento do recalque, nem por isso é a prova de que esses conteúdos serão aceitos no nível consciente. Para isso é preciso que esses conteúdos, que foram no passado objeto de recalque e que, ao se reapresentarem, correm um grande risco de sofrer novamente a mesma sorte, é preciso que esses conteúdos passem pelo teste de realidade, ou seja, sejam objeto de percepções e possam, então, ser considerados verdadeiros. Para isso é necessário que o movimento pulsional aí encontre o que precisa. Vai encontrá-lo graças à interpretação e, mais precisamente, graças às representações de palavra que a interpretação lhe fornece: “Eu poderia ser sua mãe” volta como figura invertida de “impossível”. A expressão, enquanto representação de palavra, desempenha aí, de certo modo, o papel de um indício apresentado ao desejo. E funciona como critério. Prova disso é a confirmação dada sem querer pelo paciente, que diz: “Não! Isso eu quero escarrar!”.

A apreensão da transferência

Apreender a transferência, adivinhar os movimentos do desejo que a percorre, transita pela apreensão da economia do prazer. É o tempo da colocação em perspectiva da neurose de transferência, que compete propriamente ao trabalho do analista. Este, abandonando-se, como recomendava Freud em 1923, à sua atividade mental inconsciente, evita a formação de expectativas conscientes e não busca fixar nada de particular na sua memória. No pacto que se estabelece com o paciente, o paciente se compromete a colocar à disposição, pela via da associação livre, “tudo o que sua autopercepção lhe fornecer” (Freud, 1938/1985, p. 40). O analista, por sua vez, tende a estar na mesma disposição, o mais perto possível de seu próprio funcionamento psíquico e da autopercepção deste, estado próximo do adormecimento, propício ao aparecimento de fenômenos hipnagógicos.

Escreve Freud em “Recomendações aos médicos”:

Assim como o receptor (telefônico) transforma de novo em ondas sonoras as vibrações telefônicas que emanam das ondas sonoras, da mesma maneira o inconsciente do médico é capaz, com a ajuda dos derivados do inconsciente do paciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente do qual emanam as associações fornecidas (Freud, 1912/1972c, p. 66).

Ora, no começo do ano de 1925, L. Binswanger escreve a Freud: faz referência à metáfora do receptor de ondas telefônicas e questiona Freud sobre a natureza profunda da disposição à escuta, e sobre o que pode subitamente fazer aparecer uma interpretação. Ele conclui assim: “A questão de saber o que me coloca em estado de interpretar me interessa ainda mais do que a de fazer uma interpretação correta ou de aprender algo novo sobre o inconsciente do outro” (Freud & Binswanger, 1995, p. 255). Freud levou seis meses para responder. Terá encontrado dificuldades para fazê-lo? Ele não responde diretamente a questão colocada por Binswanger sobre o estado que produz a interpretação. Mas reconhece em sua carta que a proposição de comunicação “de inconsciente a inconsciente” não é óbvia e merece ser corrigida:

Queria apenas dizer que devíamos nos libertar da intensificação consciente de certas expectativas e, portanto, criar em nós o mesmo estado que exigimos do analisando. Toda obscuridade desaparece se você admitir que nessa frase (aquela que aparecia nas “Recomendações...”) trata-se do inconsciente tãosomente no sentido descritivo. Corretamente falando, deveríamos dizer pré-consciente em vez de inconsciente (Freud & Binswanger, p. 258).

Essa precisão faz pensar que Freud compreende a escuta do analista como uma regressão tópica em operação. Designa com isso um lugar do aparelho psíquico do analista. Assim, em se tratando da transferência, o lugar do Préconsciente se torna lugar de ressonância dos indícios provenientes do aparelho psíquico do paciente. “Dizemos”, escreverá ele em 1938, em Moisés e o monoteísmo,“que o que distingue uma representação consciente de uma representação pré-consciente e esta de uma representação inconsciente não pode ser nada mais que uma modificação da energia psíquica, ou mesmo uma outra divisão desta” (Freud, 1939/1989, p. 192). Do que é inconsciente, dos processos de pensamento no Isso, prossegue ele, nós só podemos ter um conhecimento indireto, por meio do trabalho que se realiza no sistema pré-consciente, ali onde a representação de palavra vai ao encontro da representação de coisa e se alia a ela. O que mantém juntas a primeira e a segunda tópica é, entre outras coisas, o que Freud chama nesse seu último grande texto, volto a dizer, de a função da linguagem, outra formulação do que ele chamou num momento anterior de tradução em palavras.

O pensamento – escreve ainda Freud no fim do artigo “A negação” – tem a “capacidade de tornar novamente presente algo outrora percebido, por reprodução dentro da representação, sem que o objeto ainda tenha de estar presente no exterior” (Freud, 1925/1992b, p. 137). As representações de palavra, diz ele ainda, são os restos de coisas outrora percebidas e que deixaram seus vestígios: restos visuais e, sobretudo, restos auditivos. O investimento pulsional conserva o poder, quando um indício da presença deles se apresenta a ele, de reinvestir os vestígios que até então tinham ficado mudos.Mas a percepção desse movimento, assim como a percepção do objeto, não corresponde necessariamente à percepção de uma realidade! Pois o desejo, em sua busca absoluta, procura somente a satisfação; ele não distingue entre alucinação e percepção. Além disso, a reprodução está longe de ser fiel. Na maioria das vezes, ela é o resultado de múltiplas deformações, devidas ao trabalho exercido pela censura, que tende a tornar o objeto irreconhecível. Isso não é empecilho: o desejo encontra, de qualquer modo, satisfação no modo alucinatório. Exatamente da maneira como o Homem dos Ratos busca a realização do prazer na repetição compulsiva da palavracoisa Glesijsamen. O que é mais ou menos certo é que Freud foi pego pela representação da cena, num modo propriamente alucinatório. Pois a palavra lhe foi dirigida na transferência: no Tummelplatz, Freud se encontra nada mais nada menos que no lugar do pai, aquele da fantasia, que abre a porta do quarto do Homem dos Ratos e o surpreende nu diante do espelho.

Idealmente, a atenção eqüiflutuante possibilita a criação de uma superfície sensível, propícia para a eventualidade de se produzir o processo da alucinação. Essa superfície sensível não entra simplesmente em ressonância com as palavras do discurso, a atenção da escuta também é solicitada pelas variações ou picos de intensidade que constituem sinais para ela. Nesse sentido, a atenção flutuante funciona como uma membrana que separa o sistema inconsciente do sistema pré-consciente. Serve de peneira: retém aquilo que, no transcurso do tempo, adquire um peso material.

 

7) Para concluir

“O real é o que volta sempre ao mesmo lugar”, afirmava Lacan. Acho que foi desde muito cedo que aquela precipitação de meu paciente para ir embora imediatamente após o término da sessão despertou minha atenção. A expressão de linguagem, o “Não encosta!” que me tinha vindo à consciência, certamente tampouco deixava de ser induzida, de meu lado, pelo prazer que me dava escutá-lo (e talvez esperá-lo? o analista não está à espera de transferência?). Por outro lado, porém, ou seja, do lado do paciente, tornava-se cada vez mais claro que todo prazer devia não encontrar seu fim, ou seja, sua realização, justamente devido ao excesso de excitação que o marcava. Quando a palavra “impossível” voltou, eu a escutei como vindo no lugar de “proibido”, claro, mas também a escutei como um apelo. Havia naquele momento, naquele homem, embora conhecedor da análise, uma real impossibilidade de admitir uma representação, sem dúvida inacessível devido a uma carga por demais excitante. Eu acredito ter então convocado para mim mesma, de novo, o que eu nunca lhe tinha dito: “Poderia ter sido você”. E, na seqüência lógica: “Poderia ter sido conosco”. Em suma, “Eu poderia ser sua mãe”.

O “Não!” dele, emitido no momento em que apareceu a interpretação, era de júbilo. Dirigido ao desejo da mãe sexual, dirigido a ele mesmo, voltando de fora como um imperativo categórico com o qual poderia doravante brincar. Aquele homem sem dúvida entendeu então algo essencial do ponto de vista da sua própria realidade: não é tão prazeroso ser o filho preferido-excitado da mãe, mesmo que você “só pense-só deseje” isso. Porém, para se convencer disso é necessário, a exemplo do Homem dos Ratos, passar pela “dolorosa experiência da transferência”, de sua apreensão até sua evidência.

Escreve Freud no Esboço:

Quando conseguimos esclarecer os pacientes sobre a verdadeira natureza dos fenômenos transferenciais, tiramos das resistências uma arma poderosa. (...) De fato, o que o paciente viveu na forma de uma transferência, ele nunca mais esquece e há nisso uma força mais convincente para ele do que tudo o que ele adquiriu por outros meios (Freud, 1938/1985, p. 45).

Dolorosa e não obstante prazerosa experiência, para o paciente, é aquela que consiste em apalpar a superfície da transferência, como fazia o Eu no passado ao descobrir o mundo exterior, proporcionado-se assim os meios de combatê- lo para depois melhor nele se divertir. E, para isso, fazer uso da sensorialidade das palavras, assim como de sua plasticidade, justamente aquela que permite ao pensamento agir a título de tentativa.

O analista, em sua própria cena, faz o mesmo, se deslocando ao sabor das palavras do paciente, vagueando entre contatos e rupturas, ajustando seu olhar sobre as imagens e as representações que se formam nele segundo os efeitos que a palavra produz em atos. É assim que ele pode escutar, para além da linguagem, a perturbação do desejo em busca de objeto. Pois o que há para ser reencontrado nas e pelas palavras, aqui e agora, é como diz com correção François Gantheret, “o tateio inicial”. “O verdadeiro reencontro não é tanto aquele da coisa, quanto o do movimento em direção à coisa; do que ele traça de esperanças e decepções” (Gantheret, 1996, p. 212).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Dominique Clerc
82 boulevard Beaumarchais
75011 – Paris – France
Tel.: 33 1 4355-0425
E-mail: do.clerc@wanadoo.fr

 

 

Tradução: Claudia Berliner

* Este texto refere-se a um dos dois relatórios do 67º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (CPLF), cujo tema foi “A cura pela palavra”, realizado em maio de 2007, em Paris. O segundo relatório foi “A força da linguagem”, de Laurent Darion-Boileau, da SPP. O CPLF, organizado pela Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) e pela Associação Psicanalítica da França (APF), acontece anualmente. Há dois anos, Luís Carlos Menezes, atual presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, tornou possível, por meio de sua ligação com os colegas franceses, oficializar a participação brasileira no CPLF. Este Congresso concentra a discussão de sua temática em torno de dois textos, considerados disparadores de reflexão, denominados “relatórios”, escritos por dois renomados psicanalistas de cada uma das instituições organizadoras. Esses relatórios são exaustivamente debatidos de antemão pelos grupos de estudos de diferentes países, entre eles agora o Brasil, ligados ao CPFL, os quais elaboram um texto-comentário, publicado previamente ao Congresso.
** Psicanalista pela Association Psychanalytique de France (APF).
1 Aqui, a autora diz le “refusement” de l’analyste, indicando com a escolha da palavra refusement e sua colocação entre aspas a referência indireta à discussão ainda corrente sobre a tradução do termo Versagung empregado por Freud e, por muitos anos, traduzido em várias línguas por frustração, tradução hoje contestada. Quem propôs a tradução por refusement foi Laplanche em seu Traduire Freud, Lacan propôs traduzir por renúncia em “Situação da psicanálise em 1956” (Escritos). Luiz Hanns, em seu Dicionário comentado do alemão de Freud, também discute a tradução desse termo, explicitando todo seu campo semântico e propondo como tradução privação ou impedimento. (N. T.)
2 F. Gantheret faz uma tradução palavra por palavra do texto de “Construções...”, apoiando-se no texto alemão; conservei aqui apenas as principais palavras do alemão. A passagem traduzida foi extraída de “Constructions dans l’analyse”, Freud (1937), p. 270.
3 Ver também Khan, L. (2000). L’excitation de l’analyste. In Le fantasme: une invention. Paris: APF.
4 Grifo da autora.
5 No original contrainte. As aspas indicam mais uma vez uma referência à opção de tradução de Laplanche para Zwang, costumeiramente traduzido por obsessão. (N. T.)
6 Em alemão, dick significa gordo.
7 Conferência pronunciada nos Entretiens de psychanalyse da APF [jornada aberta que ocorre a cada dois anos], cujo tema foi “Que devient la régression?”, junho de 2005. No prelo.
8 Ver o comentário dessa passagem feito por J. Lacan (1959). L’éthique de la psychanalyse (pp. 60-65). Paris: Seuil, 1986 (Le Séminaire VII).
9 Para fins de consulta, note-se que na edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. 23), esta frase consta como “o caminho da função da fala”. (N. T.)
10 Lacoste retoma a formulação da imagem em Freud em “L´échafaudage et le bâtiment” In Actualité des modèles freudiens. Paris: PUF. 1995. Artigo republicado em Brèches du regard. Paris: Circé, 1998.
11 No original: un saint est un sein. Em francês saint e sein são palavras homófonas. (N. T.)

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