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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.30 no.45 São Paulo Dec. 2007
EM PAUTA - LINGUAGEM II
A ingenuidade de um perverso: linguagem e erotismo em Nabokov
The ingenuity of a perverse: language and eroticism in Nabokov
Eliane Robert Moraes*
PUC-SP
Centro Universitário Senac-SP
RESUMO
Embora o romance Lolita, de Vladimir Nabokov, tenha se celebrizado por colocar em evidência a figura da ninfeta, é notável a complexidade com que elabora a imagem do perverso. Humbert Humbert é um personagem construído sobre paradoxos: se, de um lado, ele se define como “pervertido”, de outro, jamais corresponde à caricatura do “tarado”, sendo que tais estereótipos são colocados em xeque ao longo de todo o livro. A começar pela identificação do perverso com a criança, que ganha sentido maior quando se recorda que o romance foi escrito na mesma época em que o autor redigia sua autobiografia, com ênfase nas memórias de infância. Com efeito, os dois livros expõem um intrincado jogo entre passado e presente, no qual adulto e criança se aproximam para intercambiar seus papéis. Aproximação que se realiza por meio de instigantes jogos de linguagem que permitem a Nabokov a criação de uma língua própria à perversão.
Palavras-chave: Erotismo literário, Lolita, Nabokov, Ninfeta, Perversão, Speak, memory.
ABSTRACT
Although the novel Lolita, by Vladimir Nabokov, owes its reputation to the nymphet, the way it presents the pervert’s profile is also remarkable. Humbert Humbert is a character built up on paradoxes. If, on one hand, he is briefly defined as a pervert, on the other, he never corresponds to the caricatures of a sex maniac; in fact, these steriotypes are deeply discussed along the whole narrative. First, by the identification of the pervert to a child, which gains a special meaning when we remember that the novel was written while the author was composing an autobiography, with emphasis on his childhood. In fact, both books play with past and present in particular ways that allow child and adult to interchange their roles. To accomplish this approach, Nabokov’s witty plays on words end to create a peculiar language for perversion.
Keywords: Literary eroticism, Lolita, Nabokov, Nymphet, Pervertion, Speak memory.
Em abril de 1947, Vladimir Nabokov envia uma carta ao amigo Edmund Wilson, em que confidencia:
Estou escrevendo dois textos agora: 1. um pequeno romance sobre um homem que gostava de menininhas – que vai se chamar The kingdom by the shore –, e 2. um novo tipo de autobiografia – um esforço científico de desenredar e reorganizar os fios emaranhados de uma personalidade – cujo possível título é The person in question (Nabokov, 1999, p. IX).
Lado a lado, o romance que viria a celebrizar o autor e sua igualmente famosa autobiografia – ambos publicados em meados da década de 1950 sob novos títulos1 –, pareciam ser fruto de algum pacto secreto na mente de seu criador.
Entre Lolita e Speak, memory a primeira convergência a saltar aos olhos está no fato de que os protagonistas dos livros realizam, ambos, um intenso acerto de contas com o passado. Em que pesem todas as diferenças entre os dois personagens – acrescidas do fato de apenas um deles ser declaradamente ficcional –, tanto num caso como no outro o texto se organiza a partir de reminiscências, nas quais a infância tem um papel central, ainda que de formas bem distintas. Entre a singela criança que o escritor russo foi e a lasciva ninfeta por ele concebida, porém, há mais afinidades do que se pode perceber à primeira vista.
Uma possível chave para se abordar essa relação é sugerida pelo próprio autor, não por acaso precisamente naquele capítulo de Speak, memory em que relata uma paixão adolescente, vivida aos dezesseis anos de idade, ainda na mítica São Petersburgo. Transcorridas mais de três décadas de seus encontros fugidios com a menina Tamara, o escritor evoca os momentos mágicos partilhados pelo casal de namorados, com grande ternura e sem qualquer tom de lamento. A nostalgia inaugura, portanto, um tempo forte na sua existência, como ele testemunha: “A ruptura em meu destino me propicia, em retrospecto, um prazer sincopado que eu não trocaria por nada desse mundo. Desde aquela troca de cartas com Tamara, a saudade é, para mim, uma atividade sensual e particular” (Nabokov, 1999b, p. 195).
Assim concebidas, as reminiscências parecem resistir àquele peso que, próprio de tudo que se perde de forma irremediável, costuma permanecer como um fantasma grave e intimidante. Com efeito, Nabokov não se deixa assombrar pelo passado: no caso da autobiografia, o olhar retrospectivo vale-se “das lentes cuidadosamente limpas do tempo” para conjurar a dor das perdas, que o exílio por certo só fez ampliar. Sem deixar de registrar essa dor, nem tampouco o sentimento de tristeza suscitado pelas lembranças, o escritor consegue perceber também algum ganho, pessoal e literário, decorrente das sucessivas separações que lhe foram impostas. Ao revisitar aqueles “tempos distantes cuja luz alongada teima em encontrar maneiras surpreendentes de chegar até onde me encontro” (Nabokov, 1999b, p. 89), há sempre o esforço de presentificar a intensidade do passado, de tal forma que o presente ganha uma densidade insuspeitada, a matizar sua vocação para o efêmero.
A luz do pretérito nunca cede, nessas reminiscências, às imagens das trevas, nem tampouco às demais metáforas da morte com que se costuma “enterrar o passado”. Ao contrário, ela teima em manter seu brilho nas recordações do escritor, conduzindo-o assim para aquela formação da imagem duradoura sem a qual, segundo Luiz Costa Lima (1986), nenhuma autobiografia consegue estabelecer um elo sensível entre passado e presente. Ora, importa aqui ressaltar que esse poder mental de dispor da experiência vivida para além dela mesma não distingue apenas as memórias de Nabokov, cabendo para singularizar também as tocantes confissões de Humbert Humbert.
Dizendo de outro modo: o que parece haver em comum entre a autobiografia e o romance é um intrincado jogo entre passado e presente, no qual adulto e criança podem, de diversas maneiras, intercambiar seus respectivos papéis. Aliás, é justamente esse jogo que permite aproximar a infância e o sexo, seja na delicada conjugação entre a sensualidade e a saudade tal como exposta em Speak, memory, ou no escandaloso casal que se forma diante do leitor de Lolita. Aproximação que só se realiza, como veremos adiante, por meio de igualmente intrincados jogos de linguagem.
De momento vale assinalar que a matriz de uma linguagem a um só tempo infantil e sensual já se impõe desde as primeiras linhas do romance, na apaixonada evocação de Humbert Humbert que constitui uma das passagens mais delicadas do erotismo literário: “Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-lita: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.” (Nabokov, 1994, p. 13). Passagem notável, sem dúvida, uma vez que apela para o ato pueril de soletrar um nome ao mesmo tempo em que desvela seu erotismo latente.
Sabemos que quem soletra aqui, saboreando a palavra na ponta da língua, não é uma criança e sim um homem maduro que, ao confessar sua perversão, representa mais que qualquer outro a antítese da infância. Porém, como Nabokov sempre nos convida a suspeitar das aparências, cum-pre olhar também o perverso sob novas lentes.
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Embora o romance Lolita tenha se celebrizado por colocar em evidência a figura da ninfeta, não deixa de ser notável a complexidade com que elabora a imagem do perverso. Humbert Humbert é um personagem construído sobre paradoxos: se, de um lado, ele insiste em se definir como um pervertido, de outro, ele jamais corresponde à caricatura do tarado – ou, se preferirmos seu equivalente contemporâneo, do pedófilo –, sendo que tais estereótipos são colocados em xeque ao longo de todo o livro.
Tome-se, por exemplo, a escassez de referências corporais sobre o melancólico protagonista. Se a figura do pervertido costuma, no mais das vezes, ser reduzida aos irrefreáveis impulsos eróticos de seu corpo, no caso de Lolita o que ocorre é bem diverso. O texto chega a surpreender pela economia com que descreve as sensações físicas do personagem: o corpo aqui resta sempre como um fantasma que, vez por outra, emerge de seu silêncio para fazer uma aparição fugidia e, quase sempre, em situações pouco erotizadas. A rigor, nesse romance de forte apelo erótico, o corpo do pervertido é raramente sexualizado.
Prova disso encontra-se no final da primeira parte do livro, quando Humbert Humbert está prestes a entrar no quarto de hotel em que, pela primeira vez, dormirá lado a lado com Lolita. Ou, como ele prefere sintetizar, valendo-se de uma prosaica expressão francesa: “So this was le grand moment”. Minutos antes de abrir a porta do aposento, e tomado por forte angústia, o personagem descreve suas sensações: “a tensão começava a se tornar mais intensa. Se uma corda de violino é capaz de sentir dor, então eu era essa corda”. Uma vez lá dentro, preparando-se para deitar ao lado de sua ninfeta, ele alude ao
“corpo tenso à beira do abismo, como aquele alfaiate que há quarenta anos, com seu pára-quedas de fabricação caseira, pulou do alto da torre Eiffel”. Por fim, já na beirada da cama, paralisado diante de sua bela adormecida, Humbert é assaltado por uma forte azia: “um ataque de azia (grand Dieu, eles dizem por aqui que essas batatas são fritas à francesa!) vinha somar-se a meu desconforto (Nabokov, 1994, p. 146-147).
Seria redundante citar as outras passagens em que nosso herói alude a tais incômodos, sem dúvida bem mais freqüentes que qualquer imagem de prazer corporal – estas quase sempre ocultas nas entrelinhas do romance. Contudo, talvez valha a pena remeter ainda a um outro momento em que ele se refere a sensações físicas desagradáveis, o qual permite estabelecer um paralelo entre sua condição de “pervertido” e sua situação de prisioneiro. Trata-se do menor capítulo do livro, que se reduz a um só parágrafo de sete linhas:
Preocupa-me a dor de cabeça diária no ar opaco dessa prisão tumular, mas tenho de perseverar. Escrevi mais de cem páginas e não cheguei ainda a lugar nenhum. As datas se confundem em minha memória. Isso deve ter acontecido por volta de 15 de agosto de 1947. Acho que não posso continuar. Coração, cabeça...tudo. Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita. Tipógrafo, repita, por favor, até preencher toda página (Nabokov, 1994b, p. 125).
De fato, o breve capítulo parece sintetizar a atmosfera de opressão em que vive Humbert Humbert, clima que se expande do corpo para todas as outras dimensões de sua pessoa, para consumi-lo de uma forma absoluta – “coração, cabeça,...tudo”. Passagem notável que demanda um pouco mais da nossa atenção.
“Escrevi mais de cem páginas e não cheguei a lugar nenhum” – vale dizer que nesse momento o leitor já está quase no meio do romance, o que sugere uma circularidade narrativa à qual corresponde também um sujeito parado, deslizando no mesmo lugar. Ou seja, embora se possa narrar a história de Lolita no tempo – o livro não deixa de ter um começo, meio e fim –, a perspectiva cronológica pouco interessa. No fundo, trata-se de uma história sem progressão: não se chega a lugar nenhum.
Daí que a referência temporal precisa (“15 de agosto de 1947”) pareça existir unicamente para ser contrastada – e até mesmo desmentida – por esse tempo circular em que tudo se repete. Daí também a insistência de Humbert no mote da repetição: “Lolita, Lolita, Lolita, Lolita...”, até o ponto de implorar a ajuda do tipógrafo: “por favor: repita até preencher a página inteira”. Percebe-se aí a mesma exigência de repisar um motivo, que de certa forma demanda exaustão, embora nunca se complete. Preenchida uma página inteira, sempre restarão as seguintes.
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Dessa forma, a prisão onde o narrador está recluso – a cadeia – oferece uma imagem potente da sua prisão interior, a perversão. Nela, como sabemos, tudo se repete; nela, o personagem está igualmente parado, paralisado.Vale lembrar que o pervertido de Lolita, longe de ser a pessoa que se abandona livremente à transgressão, é um sujeito preso por definição.Diferentemente dos libertinos de Sade, por exemplo, que gozam de toda liberdade nos seus corpos ostensivamente sexualizados, Humbert Humbert é um homem confinado, de corpo e alma, “cabeça, coração... tudo”.
Convém perguntar, portanto: que prisão é essa que retém o personagem de Nabokov no mesmo lugar físico e mental?
Uma possível resposta seria: é a infância. Com efeito, como já observou Silviano Santiago (1999), o pedófilo se caracteriza por ser aquele que jamais esquece a própria infância – que dela não se liberta – e nesse sentido o protagonista do livro é exemplar. Aliás, em uma das suas diversas digressões sobre o passado,Humbert confessa que “talvez jamais teria existido uma Lolita se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial”. Fixado nos jogos amorosos infantis, ele segue vida afora em busca do objeto de amor perdido na infância: sua adorada Annabel Leigh, que morre ainda criança. Já adulto, ele procura obstinadamente as reproduções desse “original” que ficou no passado – quer dizer, quando conhece Lolita, na verdade ele a reconhece. Ou, como ele testemunha: “Era a mesma criança – os mesmos ombros frágeis cor de mel, as mesmas costas flexíveis, nuas e sedosas, os mesmos cabelos castanhos”, para concluir que “os vinte e cinco anos que vivi desde então reduziram-se a um ponto latejante, e se desvaneceram” (Nabokov, 1994b, p. 47).
Fixação na infância que, por certo, se evidencia na própria concepção de ninfeta – e mais ainda na ninfeta que morre, uma vez que a garota morta não envelhece, permanecendo eternamente criança.2 Trata-se, pois, de um sujeito que não supera o estado primeiro e primitivo de inocência e torna-se, enfim, prisioneiro de seu imaginário infantil. É, portanto, a partir dessa chave que podemos compreender melhor a inesperada frase com que Humbert Humbert se define, ainda no início do livro: “de minha parte, eu era tão ingênuo como só um pervertido pode ser” (Nabokov, 1994b, p. 31).
Inesperada porque a associação do perverso ao ingênuo vem aproximá-lo novamente da criança. Afinal, por ser um o sujeito que não pôde atualizar o tempo, ele permanece fixado a um tempo original que, tal qual uma prisão, o retém de corpo e alma. Por tal razão, ao criar um personagem com tais características, Nabokov realiza uma notável torção de sentidos, invertendo os significados convencionais: a rigor, a criança da história não é mais a ninfeta, mas sim o perverso.
Desnecessário recordar que, para reforçar tal hipótese, é Lolita quem seduz o frágil Humbert que no grand moment aparece abatido pelo temor, pelas dores e pela azia.Desnecessário lembrar ainda o espanto do perverso ao tomar conhecimento das atividades nada castas levadas a termo no rancho de seu concorrente Clare Quilty – como revelam suas próprias palavras: “Eu simplesmente não podia imaginar (eu, Humbert, não podia imaginar!) as coisas que eles faziam no Duk Duk ranch” (Nabokov, 1994b, p. 312). Ele, Humbert, o ingênuo, a criança da história...
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O confinamento na infância faz de Humbert um prisioneiro antes mesmo de sua reclusão na cadeia. Mais que simples hipótese, essa idéia ganha um sentido profundo e particular quando evocamos a desconcertante imagem que, segundo Nabokov, está na origem de seu romance:
Senti a primeira palpitação de Lolita em Paris, em fins de 1939 ou começo de 1940, quando estava acamado com uma séria crise de nevralgia intercostal. Tanto quanto me recordo, o frêmito inicial de inspiração foi de alguma forma provocado por certo artigo de imprensa sobre um macaco no Jardin des Plantes, o qual, após ser persuadido durante meses por um cientista, enfim produziu o primeiro desenho feito por um animal: nele só apareciam as grades da jaula da pobre criatura. Esse impulso não tinha nenhuma conexão textual com a linha de pensamento por ele suscitada, da qual resultou, entretanto, o protótipo de Lolita (Nabokov, 1994b, p. 349).
Curioso notar que, ao confinamento do próprio autor – retido na cama por conta de uma forte nevralgia –, acrescenta-se o confinamento radical do macaco na jaula, ambos reclusos num mesmo lugar. No caso do animal, a situação é radicalizada, configurando a imagem mais categórica de uma prisão: na jaula, onde quer que ele olhe, vê sempre a mesma coisa: as grades que o confinam. Reclusão absoluta do corpo que limita sua percepção, levando-o a desenhar tão somente a gaiola que o encerra.
Assim, o testemunho de Nabokov aproxima em definitivo o personagem Humbert Humbert do macaco do Jardin des Plantes, tenha ele existido ou não, corroborando a hipótese de que o homem preso é um duplo do homem aprisionado por suas fantasias infantis.3 De fato, não é difícil associar o sujeito que escreve suas memórias no cárcere ao animal que desenha as grades da sua própria jaula.
Porém, como a prisão do perverso não se reduz a um espaço exterior, tal como acontece com o macaco, para explorar suas dimensões interiores o autor é obrigado a lançar mão de recursos menos previsíveis e pouco convencionais. Com efeito, para traduzir o estado físico e mental de seu personagem,Nabokov se vale de uma liberdade lingüística impar, como se não bastasse uma só língua para realizar tal tarefa. A começar pelo fato de ser esse um livro escrito em inglês por autor russo, e publicado originalmente na França. Ou então pelo abundante número de citações francesas do texto. Ou, mais ainda, pela capacidade do autor em expandir tais possibilidades. Leia-se, por exemplo, esta curiosa passagem do romance: “Apertei a campainha, que fez vibrar cada um de meus nervos. Personne. Je resonne. Repersonne. De que profundezas brotavam aquela rebobagem?” (Nabokov, 1994b, p. 304).
Jogando o tempo todo com o duplo da língua, o escritor expande seus limites e amplia suas fronteiras para enfim revelar suas dimensões mais fantasmáticas. O fato de seu herói chamar-se Humbert Humbert só vem corroborar essa idéia, já que o próprio nome é passível de desdobramentos fonéticos, evocando tanto o hombre espanhol quanto a ombre francesa – para compor um personagem que é a um só tempo o homem e sua sombra. Valendo-se desse claroescuro, Nabokov consegue criar uma língua erótica que deixa o sexo em suspenso, bem de acordo com as convicções de seu pervertido, que afirma “não estar nem um pouco preocupado com o que se possa chamar de ‘sexo’”.
Trata-se, pois, de uma língua outra que já não é mais o inglês.Vale notar, nesse sentido, que os estudiosos da obra são unânimes em observar que o inglês americano do autor não deixa de denunciar sua condição de estrangeiro, não obstante todos se surpreenderem com seu domínio do idioma. Para Nabokov, porém, trata-se de
um inglês de segunda categoria, desprovido de todos os acessórios – o espelho de truques, o pano de fundo de veludo preto, as tradições e associações implícitas – de que o ilusionista local, com as abas do fraque a voar, pode valer-se magicamente a fim de transcender tudo o que lhe chega como herança (Nabokov, 1994b, 356).
A verdade é que Lolita nos coloca diante de uma língua sincrética, artificial, imaginária. Uma vez desobrigado das convenções que o “ilusionista local” deve obedecer, o escritor se serve dessa língua como se tivesse em mãos um brinquedo e, tal qual uma criança, ele a explora à vontade para traduzir vivências eróticas arcaicas, descobertas quando as primeiras palavras perfuraram o silêncio da infância.4
***
Infância, sexo, linguagem – é tão difícil associar a saga do perverso Humbert Humbert à vida do menino Vladimir Nabokov quanto desconhecer os paralelos que se desenham nas entrelinhas de Lolita e de Speak, memory. À diferença ostensiva que separa os dois personagens se contrapõe um certo pano de fundo que, embora longínquo e obscuro, permite uma aproximação entre os dois textos.
Assim é que alguns intérpretes relacionam a obsessão do protagonista do romance pelas ninfetas a um breve episódio narrado no sétimo capítulo da autobiografia, dedicado às férias da aristocrática família russa em Biarritz.5 Não por acaso, a passagem se inicia aludindo à “parte mais escura e mais úmida da plage, a parte onde na maré baixa se encontra a areia molhada que mais se presta à construção de castelos” (Nabokov, 1999b, p. 113). É nesse cenário opaco, movediço e predisposto à fantasia que o escritor conhece, aos dez anos de idade, uma menina chamada Colette.
Essa foi, ao que tudo indica, a sua “menina primordial”, uma vez que o encontro ocorreu em 1909, antes mesmo da paixão adolescente por Tamara, em 1915. Chama atenção, no episódio, a declarada opacidade das lembranças – efeito raro num autor cuja memória sempre “cintila de nitidez” –, em contraposição com as precisas descrições de sensações físicas e detalhes corporais. Os olhos esverdeados, as sardas, os cachos castanhos, o pulso fino, o machucado no antebraço, o pescoço frágil, as pernas compridas, a pele tensa, as cócegas no ouvido, o beijo no rosto – um detalhamento típico de Nabokov, é verdade, mas aqui envolto na espessa névoa do passado, enfatizada quando a garota “desaparece em meio às sombras” da paisagem, deixando-o “preso àquela mecha de iridescência, sem saber direito onde encaixá-la” (Nabokov, 1999b, p. 116).
Ora, não é digno de nota que o primeiro título imaginado para Lolita tenha sido justamente The kingdom by the shore? E também que o episódio de Humbert Humbert com Annabel Leigh tenha ocorrido igualmente numa praia – a mítica Riviera onde as duas crianças descobrem as primeiras sensações do amor? E ainda que a expressão “um reino na orla do mar” seja recorrente no romance? Enfim: não seria então plausível supor que a ficção oferece ao escritor um lugar onde essa memória difusa, e essencialmente corporal, pode enfim encontrar seu “encaixe”?
Menos que apontar um fundo autobiográfico no romance – o que teria pouco interesse num autor para quem “a imaginação é uma forma de memória” –, importa aqui reafirmar que a escrita de Nabokov opera com uma linguagem própria cuja matriz é a um só tempo infantil e sensual. Ora, justamente por essa linguagem ter origem no limbo da infância, mas estar sempre condenada à tradução de um adulto – seja o perverso ou o escritor –, sua forma não pode ser outra senão a de um tecido de reminiscências. Trabalho de texto sobre o tempo, como se lê tanto em Lolita quanto em Speak, memory.
Apelo da escrita a Mnemósine, deusa da memória que gera as nove Musas da mitologia grega, ela também presente em ambos os livros.Assim como Nabokov planejava dar o título de Speak, Mnemosyne à edição inglesa de sua autobiografia, Humbert igualmente faz sua homenagem à deusa ao evocá-la como “a mais doce, a mais brincalhona das musas!”. Aliás, é num forte tom de brincadeira que o personagem conclui essa evocação com a lembrança de um antigo ensaio seu cuja tese central, sobre a origem da memória, é bastante curiosa. Trata-se, segundo suas palavras cheias de ironia, de um “audacioso vôo intelectual” no qual esboçava uma “teoria sobre a percepção do tempo que se baseava na circulação do sangue e dependia conceitualmente (para resumir o troço) de que a mente tivesse consciência não apenas da matéria, mas da sua própria existência” (Nabokov, 1994, p. 294).
Brincadeira significativa, a confirmar a hipótese de que corpo e linguagem podem se tornar elementos indissociáveis, e mais ainda quando o texto trabalha com a matéria-prima da infância. Mas é precisamente aí, onde se percebe a maior afinidade entre os dois narradores, que se impõe também sua distinção definitiva: enquanto um se esforça para “desenredar e reorganizar os fios emaranhados de uma personalidade”, o outro se enreda cada vez mais na trama desses espessos fios que, tal como as grades de uma jaula, fazem dele um prisioneiro.
Assim, fiel à teoria da percepção do tempo por meio da matéria, o escritor adulto pode registrar as sensações do corpo como derradeira evidência de sua infância, valendo-se desse expediente quando as lembranças se perdem na opacidade. Para Humbert Humbert, porém, a rememoração da experiência física infantil só se torna possível por meio de um ardiloso e artificioso trabalho de linguagem. Daí o notável engenho de Nabokov: se o corpo do pervertido fica oculto nas entrelinhas de Lolita, cabe ao texto a tarefa de realizar a perversão no corpo da própria língua.
Referências
Benjamin,W. (1984). Elogio da boneca. In W. Benjamin, Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação (M. V.Mazzari, trad., pp. 97-101). São Paulo: Summus. Speak, memory. [ Links ]
Benjamin,W. (1985). “História cultural do brinquedo” e “Brinquedo e brincadeira”. In Obras escolhidas. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
Couturier, M. (1998). Lolita. Paris: Autrement. [ Links ]
Lima, L. C. (1986). Júbilos e misérias do pequeno eu. In L. C. Lima, Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara. [ Links ]
Moraes, E. R. (1994, 27 de agosto). Nabokov une a sensualidade à saudade. O Estado de S.Paulo, Caderno Cultura. [ Links ]
Nabokov, V. (1994). Lolita (J. Dauster, trad.). São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Nabokov, V. (1991). The annotated Lolita. New York: Vintage Books. [ Links ]
Nabokov, V. (1999b). Speak, memory: An autobiography revisited. New York: Alfred A. Knopf. [ Links ]
Santiago, S. (1999, 18 de abril). O pequeno demônio de Nabokov. Folha de S. Paulo, Caderno Mais. [ Links ] Wood, M. (1995). The magician’s doubts: Nabokov and the risks of fiction. Princeton: Princeton University Press. [ Links ]
Endereço para correspondência
Eliane Robert Moraes
Rua Pedro Ortiz, 178 – Vila Madalena
05440-010 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3816-6468
E-mail: elianermoraes@uol.com.br
Recebido: 23/03/2007
Aceito: 26/03/2007
* Professora de Estética e Literatura na PUC-SP e no Centro Universitário Senac-SP. Atua como crítica literária e publicou, dentre outros, os livros Sade: A felicidade Libertina (Imago, 1994), O corpo impossível (Iluminuras/Fapesp, 2002) e Lições de Sade: Ensaios sobre a imaginação libertina (Iluminuras, 2006).
1 Embora The person in question tenha sido originalmente cogitado por Nabokov, a primeira edição americana, de 1951, saiu sob o título Conclusive evidence. Já para a edição inglesa, o autor cogitou inicialmente Speak, Mnemosine, declinando da idéia por acreditar que “as velhas senhorinhas não desejariam encomendar um volume cujo título não conseguiam pronunciar”. Substituiu-o por Speak, memory, que passou a vigorar nas publicações posteriores do livro em inglês. Na edição brasileira, Sergio Flaksman (1994) optou pela tradução do primeiro título A pessoa em questão.
2 Figura recorrente no romance, a menina morta é evocada na Annabel Leigh de Humbert Humbert, que, por sua vez, faz menção à Annabel Lee do poema de Edgar Alan Poe e também à sua jovem esposa Virginia Clem. Mortas em tenra idade, todas elas oferecem o paradigma de Lolita, que desaparece tão nova quanto suas inspiradoras.
3 O tema do duplo é central em Nabokov, como fica evidente já no nome do protagonista de Lolita, Humbert Humbert, e também na figura de seu concorrente Clare Quilty – nome que joga com os termos “claro” e “culpado” (guilty, em inglês), embora refira-se a um personagem muitas vezes identificado à penumbra e à sombra, outra derivação do duplo. Remeto, nesse sentido aos livros de Michael Wood (1995) e Jean Coutourier (1998) que abordam o tema de forma rigorosa.
4 Walter Benjamin (1984, pp. 252-253) associa o brinquedo à atividade sonhadora que possibilita às crianças “recuperar o contato com um mundo primitivo”. Segundo ele, o ato de brincar comporta uma “obscura compulsão da repetição” que “não é menos violenta nem menos astuta na brincadeira que no sexo”. Da mesma forma, Benjamin (1984, p. 98) reconhece que o “fetichismo da boneca” pode animar tanto os devaneios da criança quanto as fantasias do fetichista. Percebe-se, nessa relação entre a brincadeira infantil e a erótica, um princípio semelhante ao que orienta o perverso de Nabokov.
5 Vejam-se nesse caso, entre outros, a excelente introdução de Brian Boyd a Speak, memory (1999) e também aquela de Alfred Appel, do mesmo quilate, a The annotated Lolita (1991).