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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.32 no.49 São Paulo Dec. 2009

 

EM PAUTA - O SONHO E A PELE

 

Grete Stern: mulheres sonhadas

 

Grete Stern: dream women

 

 

Adriana Astutti*

Universidade Nacional de Rosario
Beatriz Viterbo Editora
Revista Nueve Perros

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto apresenta as fotomontagens de Grete Stern efetuadas por encomenda para a coluna “A psicanálise vai ajudá-la” da revista argentina Idilio. Ele procura situar a fotógrafa no momento de aceitar este trabalho “em colaboração” e propor a fotomontagen como forma de ilustração dessa coluna. Finalmente compara o uso da proporção nas fotomontagens de Stern com o modo em que esta se insere em uma das novelas que aparecem na biblioteca fotografada em “Sonhos de frutas”, Memórias de uma anã (1921), de Walter de la Mare.

Palavras-chave: Grete Strern, Fotomontagens, Fotografia, Arte, Exílio, Mulher, Trabalho, Poder, Proporções relativas.


ABSTRACT

This work attempts to make a presentation of Grete Stern’s photomontages, which were her collaborations in order to illustrate the column “The psychoanalysis will help you” for the Argentinean magazine Idilio. It attempts to catch Grete Stern in the very moment she accepts this kind of professional work “in collaboration” and proposes the mode of the photomontage in order to realize it. Finally it compares the use of relative proportions in Grete Stern pieces with its presence in Walter de la Mare’s roman: Memoirs of a Midget (1921), which appears in one of her photomontages: “Dreams with fruits”.

Keywords: Grete Stern, Photomontages, Photography, Art, Exile, Woman, Work, Power, Relative proportions.


 

 

Sonhos de frustração

Em Idilio, revista popular que introduziu a fotonovela na Argentina, lida por uma ampla faixa do público feminino que abrangia de operárias e domésticas até mulheres de classe média, existiu, entre 1948 a 1951, uma coluna intitulada “A psicanálise vai ajudá-la”. Publicavam-se ali as respostas a cartas nas quais as leitoras relatavam seus sonhos (não seus anseios ou fantasias, sonhos). As respostas desdobravam-se em duas interpretações. Na interpretação plástica, as fotomontagens propostas por Grete Stern para ilustrar a coluna mostravam mulheres de diferentes formas e tamanhos escalando os infinitos degraus da tábua de lavar roupa ou passando a ferro a figura bidimensional de um marido; ou jovens e entusiastas, de braços dados com um homem com cabeça de tartaruga; ou enfiadas em seus tailleurzinhos executivos; ou encarnando o cateto menor de um triângulo retângulo cuja hipotenusa é um trem com cabeça de lagarto diretamente orientado na direção de uma sombrinha do tipo usado pelas senhoras de classe média; ou dispostas sedutoramente no corpo de um abajur aceso por um dedo masculino gigante (mulher objeto); ou de cabelos curtos e espetados que fazem as vezes de cerdas de um pincel empunhado pela mão de um homem (mulher instrumento); ou com uma longa cabeleira formada por ramos de pessegueiro em flor, como se alguma mulher houvesse prometido entregar o fruto de suas ideias já pronto. Estes são apenas alguns exemplos1.

“Os sonhos com trens”
A imagem de Grete Stern, em seus melhores momentos, nos fala com voz seca, breve e sarcástica, que não explica nem incita, é completamente alheia a qualquer sentimentalismo e que, principalmente, dá relevo a uma crítica axiológica e de costumes. … A fotomontagem de Grete … opõe conforto e complacência à opressão quase abjeta, configurando uma visão muito crítica e inequívoca do ideal feminino pequeno-burguês e as consequências alienantes de seu abraço (Priamo, 1995, pp. 29, 32).

 

 

A outra interpretação, assinada por Richard Rest, pseudônimo que escondia as assinaturas do sociólogo Gino Germani e de um dos fundadores da Editora Paidós, Enrique Butelman, era uma espécie de vulgarização psicanalítica que resolvia de maneira unidirecional os conflitos apresentados, tendo o cuidado de substituir as palavras sexo e sexualidade por termos mais técnicos como libido, e, embora “afinal sempre interpretasse a favor do desejo”, como afirma María Moreno (2009), canalizavam o direito à satisfação amorosa &– e até à paixão &– para os trilhos do atual ou futuro matrimônio. Como assinala Hugo Vezzetti:

Há um limite moral rigoroso para a exposição do “amor verdadeiro” (ou seja, espiritual e físico): fala-se apenas dele no matrimônio, presente ou projetado. E os termos “sexo” e “sexualidade” estão cuidadosamente excluídos do vocabulário do “Professor Richard Rest”, que dá mostra de grande habilidade no uso de alusões e perífrases para se referir a essa dimensão da vida amorosa à qual, ao mesmo tempo, alude-se quase o tempo todo (Vezzetti, 2003, p. 156).

Essa interpretação, simbólica e de talhe junguiano, era assinada, como dissemos, com o pseudônimo de Richard Rest por Gino Germani (sociólogo) e Enrique Butelman, os quais, depois de perderem seus trabalhos durante o peronismo, haviam se ligado à coluna de Idilio para sobreviver. Para Luis Priamo,

a leitura de Germani é unívoca e taxativa. Os sinais têm representação simbólica precisa e detalhada, de modo que a interpretação sempre termina por atribuir ao sonho uma mensagem transparente e definida. … Conhecendo a chave, o sonho tornase diáfano, e qualquer alusão indireta ou elíptica da imagem fica obstruída e asfixiada. … o inconsciente assinala carências ou complexos que, uma vez esclarecidos, podem ser saudavelmente corrigidos pela pessoa advertida. Assim, a voz da montadora, sua opinião sobre o tema do sonho que ilustra, fica quase diminuída ou apagada por esse ditame …2

Como bem assinala Luis Priamo, a originalidade radical das fotomontagens de Grete Stern levaria décadas para ser reconhecida na Argentina:

A série das fotomontagens de Idilio &– ou pelo menos seu núcleo mais significativo &– constitui a primeira e mais importante obra gráfica argentina que aborda o tema da opressão e manipulação da mulher na sociedade da época, e as consequências alienantes da submissão consentida. Que estes trabalhos tenham sido publicados pela revista que tinha a índole mais popular da época acrescenta uma nuance irônica suplementar ao humor de Grete, mordaz e cortante (Priamo, 1996, p. 45).

Até mesmo os romancistas das vanguardas da década de 1960, que retomaram as contribuições das vanguardas dos anos 1920 e 1930, assim como as intercepções entre literaturas experimentais e literatura popular, parecem não perceber essa obra sobre a qual se ligariam anos mais tarde. Um exemplo disso é o escritor e posteriormente psicanalista Germán García. Idilio, diz ele em um artigo sobre Manuel Puig, diferentemente da revista Sur, dirigida por Victoria Ocampo, era uma revista “que as moças simples liam”, apesar, diz ainda, de as duas revistas estarem imbuídas das teorias de Jung. E, embora as cartas com os sonhos, a julgar por suas interpretações, pudessem certamente ter sido enviadas por qualquer uma das mulheres do romance de Germán García de 1968, Nanina &– e até por muitas das personagens de Manuel Puig, tanto de La traición de Rita Hayworth (1969) como de Boquitas pintadas (1972) &–, a revista Idilio não é citada nesses romances. Além disso, os modelos de atriz sempre glamorosas indicados por “Totó”, em La traición de Rita Hayworth, equivalem ao tipo de fotografia de estrelas que aparece em outras revistas da época e correspondem ao modo característico de fotografias hollywoodianas recriado nessas revistas, segundo Gonzalo Aguilar, por uma contemporânea de Grete Stern, também exilada, Annemarie Heinrich &– não “donas de casa desesperadas”, não mulheres de classe média em conflito, e sim brilho, sedas, peles e glamour, ou, de qualquer modo, melodramas folhetinescos e didáticos sobre a vida de “costureirinhas” que deram um mau passo. Essa era a receita mágica que tanto o Totó de Puig quanto as mulheres de Nanina pareciam querer consumir para evadir-se.

O que quero assinalar com isto é que, se de um lado um dos escritores das vanguardas argentinas de 1968 (García), acredita, em 2005, que essa revista é fundamental, de outro lado a revista não foi incluída entre as leituras das personagens de seu romance, mulheres de classe média que, como as de Idilio, aspiram à ascensão em 1968. Ao que parece, as vanguardas de 1968 não haviam ainda registrado a importância de Idilio ou acreditavam ser nesse momento os artífices dos intercruzamentos entre a vanguarda, a psicanálise, o feminismo e a cultura popular.

 

Toda mulher que se preze…

Mas quem era Grete Stern no período em que fazia as fotomontagens? Não vou traçar sua biografia. Gostaria apenas de ressaltar alguns fatos para nos situarmos: se o peronismo afastou Germani e Butelman, assim como Borges, de suas atividades, para Grete Stern a queda da República de Weimar e a ascensão do nazismo na Alemanha, em 1933, obrigaram-na a exilar-se primeiramente na Inglaterra e, depois, a seguir seu marido, o fotógrafo Horacio Coppola, até Buenos Aires. Aquela que antes fora, por conselho de Umbo &– cuja obra Dreamers de 1928, em que uma multidão de cabeças femininas de manequins de insinuante homoerotismo enche o quadro, talvez a tenha inspirado a propor fotomontagens para a coluna de sonhos de Idilio &–, discípula de Walter Peterhans, o mestre de fotografia de Bauhaus em Berlim e Dessau, cujas fotomontagens abstratas em texturas de madeira, rendas, flores e esquadros transparentes criam espaços de intimidade “femininos” (entre aspas, no sentido de uma nova mulher) ao reunir ovos, peixes e texturas de madeira com redes de filó, rendas e luvas, em composições de equilíbrio geométrico, e voltam nas primeiras obras de Stern, como “Composición, autorretrato” (Ramos Mejía, 1943), entre muitas outras, ou nas composições abstratas de naturezas-mortas e flores, nas quais o ponto de vista realça tanto a geometria quanto o desvanecimento dos materiais, como em “Dandelions” (Berlim, 1930) ou “Frasco de vidrio” (Ramos Mejía, 1960).

A jovem que desafiara nas primeiras décadas do século XX o preceito burguês para tornar-se independente economicamente e montar, com outra mulher, Ellen Auerbach, também aluna de Peterhans, um estúdio de fotografia e publicidade chamado ringl+pit &– conforme os apelidos de infância de ambas, livrandose dos sobrenomes paternos no momento de decidir a assinatura artística e profissional, para colher desde o começo elogios e prêmios &–, havia se casado em 1935, no mesmo ano em que sua mãe se suicidara na Alemanha diante do horror crescente do nazismo. Também no mesmo ano em que Grete expusera junto com Coppola suas fotografias nas dependências da revista Sur, durante sua primeira viagem à Argentina, exposição que constituiu, segundo as palavras de Jorge Romero Brest (1935) em Sur, a primeira mostra de fotografia moderna na Argentina. Agora, na Argentina de 1948, Grete é mãe de dois filhos (Silvia, nascida em 1936 em Londres, e Pablo, nascido em 1940 em Buenos Aires) e está separada de Horacio Coppola desde 1943. Etelvina Alaniz, “Cacho”, trabalha com ela de 1939 a 1974, como “colaboradora doméstica e familiar”, e junto com sua filha Silvia modelará as fotos de muitas das fotomontagens de Idilio.

Grete possui, desde 1940, seu próprio estúdio de fotografia e desenho gráfico na casa-ateliê nos arredores de Buenos Aires, desenhada para ela e para Coppola com base no sistema Helios e em sua visão de aproveitamento energético, pelo criador deste sistema: Wladimiro Acosta (exilado russo e iniciador da arquitetura moderna na Argentina). É nessa casa que Grete vive de 1940 até os anos 1960, e exerce, nas palavras de María Moreno, uma função de anfitriã:

Em Ramos Mejía, localidade nas redondezas de Buenos Aires, Grete pôs em prática simultaneamente duas das estratégias que os artistas modernistas utilizavam para integrar-se no campo cultural enquanto estavam envolvidos com sua singularidade: ao tirar fotos, concentrava o interesse da elite sobre sua condição de documentalista e personagem de momentos fecundos da arte, literatura e ciência da década de 1940, enquanto, ao utilizar sua casaateliê como espaço de reunião, substituía os bares como lugar da criação de um diálogo múltiplo. Os retratos de Antonio Berni, Jorge Luis Borges, Libero Baadi, Margarita Guerrero profetizavam o quem é quem do cânon futuro. Ramos Mejía era um Bloomsbury para o nosso uso, mais plebeu e descontraído que Villa Ocampo, já que Grete era uma anfitriã de poucas palavras e de sport, o que talvez favorecesse as expansões (Moreno, 2009).

Nessa casa, de fato, é realizada em 1946 a segunda exposição do “Movimiento de Arte Concreto Invención” &– MADI, da qual Grete participa com fotografias. Além de colaborar em projetos com Horacio Coppola (fotografia e desenho para a Diretoria de Maternidade e Infância do Departamento Nacional de Higiene; desenho da faixa bicolor da segunda edição de fotografias de Buenos Aires 1936, de Coppola, feita com fotomontagens de fotos do livro; fotografias para o livro Cómo se imprime un libro, Imprenta López, 1942), em 1943 Grete Stern havia apresentado sua primeira exposição individual de fotografias na Argentina e começara a trabalhar como desenhista para as editoras Losada, Emecé e outras; em 1947 suas fotos da casa de Amancio Williams, em Mar del Plata, aparecem no oitavo número da revista Nuestra Arquitectura e realiza uma série de fotografias do monumento de Sarmiento, de Auguste Rodin, e em 1948 inicia a série de fotos Patios de Buenos Aires, que se estenderá até 1966, na qual transpassa o espaço público da cidade para registrar não uma intimidade doméstica, mas os vestígios do século xix na série de pátios de casarões velhos e cortiços. Ainda não havia começado as séries Delta do Paraná e Índios do Gran Chaco, mas com um estilo maduro e próprio diferenciava-se dos fotógrafos homens que a rodeavam. Diz Gonzalo Aguilar:

A diferença entre Horacio Coppola e Grete Stern (1904-1999), apesar da relação que os une, não é pequena. Principalmente se considerarmos a série Sonhos que, embora não seja totalmente representativa da obra de Stern, marca uma das tendências mais fortes de sua obra: o gosto pela “fotomontagem” e a evocação onírica em estilo surrealista, ainda que com menor intervenção do acaso. Não há, como em Coppola, uma realidade captada (a da grande urbe), e sim uma realidade construída que avança até algo que está além do visual: o desejo e as pulsões. Um dos modos fotográficos de captar este “além”, além da superposição incomum de objetos, é o “gesto” que é apreendido em seu momento culminante, presa de um afeto e de uma situação-limite (Aguilar, 2008, p. 66).

De fato, como ela diz, suas fotos devem surgir de uma visão prévia, plasmada; no caso da fotomontagem, em esboços no papel.

Essa mulher exilada, mãe de dois filhos, separada, já estabelecida profissionalmente e anfitriã de uma vida cultural “mais plebeia e descontraída” que a que dirigia Victoria Ocampo, é, em grandes linhas, aquela Grete Stern no momento em que se propõe a fazer fotomontagens surrealistas para ilustrar a coluna de Germani na editora Abril, em uma Argentina pacata na qual, décadas mais tarde, ainda se ouviriam jingles publicitários destinados à mulher moderna do tipo “toda mulher que se preze deve possuir uma nova máquina de costura Singer”.

 

O que é a fotomontagem?

Para responder a esta pergunta, vou simplesmente apresentar algumas citações do texto da própria Grete Stern, “Apuntes sobre fotomontaje” [Notas sobre a fotomontagem], lido no Foto Club Argentino, em Buenos Aires, em setembro de 1967, e publicado mais tarde em diversas revistas e catálogos de sua obra.

Uma definição aproximada: a união de diferentes fotografias já existentes, ou usadas com essa finalidade, para criar com elas uma nova composição fotográfica. Desta maneira surgem inúmeras possibilidades de composição, entre elas a de juntar elementos inverossímeis. Por exemplo, uma mulher de maiô, em um salão de festas, conduzindo um elefante. Pode-se, além disso, distorcer as proporções dos elementos utilizados na montagem. Desse modo, não é nada difícil que apareça uma criança sentada em uma mosca que representa um avião, voando sobre um bosque de repolhos. Pode-se também distorcer a perspectiva: um homem fotografado de cima observa torres ou árvores fotografados de baixo. A perspectiva distorcida produzirá sempre um efeito de insegurança, de inverossimilhança. … o título da fotomontagem exerce sempre um papel muito importante. … Preparo primeiramente um esboço, um desenho a lápis que indica a diagramação e os elementos fotográficos que comporão a montagem. Por exemplo, um fundo de nuvens, uma praia de areia em primeiro plano, na qual se vê uma garrafa de vidro com uma menina dentro dela. Amplio os negativos com base nesse esboço. Obtenho as nuvens e a praia de negativos de meu arquivo. Pego uma fotografia da menina sentada na posição indicada no esboço. Reproduzo-a em um formato que permita colocá-la atrás da garrafa real, de modo que dê a impressão de que a menina está fechada dentro da garrafa. Fotografo o conjunto e recorto-o. Em seguida testo o tom do fundo &– o céu com as nuvens e a praia de areia &– para que dê relevo à garrafa. Testo também o tamanho da garrafa com relação ao fundo, estudando qual tonalidade e tamanho são mais adequados. Tenho uma inclinação por este sistema que me permite decidir visualmente e não intelectualmente, movendo e intercambiando os elementos fotográficos, até conseguir uma composição que me satisfaça. A seguir, pego as fotografias na ordem escolhida. Se achar necessário, acrescento elementos gráficos como sombras, bordas destacadas etc. É útil também retocar a montagem, acrescentando ou suprimindo o que se desejar; neste caso, estamos diante de uma combinação de elementos gráficos e fotográficos (Stern, 1996, pp. 52-53).

Quando descreve sua própria técnica para fazer as fotomontagens, Grete Stern enfatiza que sua decisão é visual e não intelectual (parece que tinha aversão pela palavra “intelectual”). De acordo com os pressupostos dadaístas e surrealistas &– ou talvez de acordo com sua profissão de desenhista gráfica e fotógrafa &–, trata-se de um exercício, de um ensaio ou, de qualquer modo, de uma ação, e não de uma “obra de arte”. Ou melhor, trata-se da arte do como fazer e não arte como instituição. Uma arte entendida como contribuição ou colaboração.

Essa dessacralização da criação artística e do intelectual3, essa função do artista como artesão e não como estrela de museu &– aporia que, como foi muito bem observado, marca todas as vanguardas &–, fica ainda mais acentuada quando narra como foi conduzida a experiência em Idilio. Diz ela:

Germani me entregava o texto do sonho. … Em geral, dava-me indicações sobre a diagramação: devia ser horizontal ou vertical, ou com um primeiro plano mais escuro no fundo, ou representando formas intranquilas. Em outras ocasiões, indicava que a figura devia aparecer fazendo isso ou aquilo; ou insistia para que aplicasse elementos florais ou animais (Stern, 1996, p. 51).

Embora a fotomontagem, entendida desse modo, não exija inspiração ou talento individual, e sim agudo senso estético e muito rigor geométrico no momento em que se intervém em um campo de imagens próprias ou alheias &– além de um vasto arquivo de imagens cuja reprodução deve ser autorizada &– e, embora sua autora possa atender sem reservas a pedidos e exigências externas, sem veleidades de criação pessoal, “sua aplicação, não obstante, exige um grande controle da perspectiva e da proporção”.

Em sua resenha sobre a fotomontagem e seus antecedentes históricos, Stern menciona alguns artistas. Quero destacar a menção a Kurt Schwitters &– “pintor, desenhista e poeta, não comprometido politicamente. … fez montagens utilizando fotografias, papeizinhos e botões ou qualquer outro objeto que encontrava em seus passeios” &– e ao fotógrafo Man Ray, que “apresentou os raiogramas, que eram fotografias sem câmera, ou seja, jogos de luzes e sombras de objetos sobre material negativo e positivo”. Essas menções são interessantes porque privilegiam posições mais “femininas”, mais próximas às de quem “se arranja com o que tem em casa ou com o que pode”, do mesmo modo que fez Stern: para levar adiante suas entregas semanais, sua filha Silvia e Cacho, além de vizinhos, posavam para as fotos, e tanto a cenografia como o vestuário eram feitos com material caseiro; ela contava também com seu próprio arquivo de revistas e fotos para as demais imagens de que precisava. As menções são interessantes porque aproximam a arte a uma forma de resíduo, de resto, que reúne ao mesmo tempo fugacidade e permanência, presença e acaso, e que torna redundante a necessidade de registrar. Não se poderia, acaso, pensar toda a parafernália de roupas, objetos e imagens registrada nas fotomontagens de Grete, em certo sentido, como um registro documental, um arquivo ou uma coleção &– uma Merzbau &– da pudica vida de classe média em ascensão durante a Argentina peronista, no mesmo sentido das três Merzbau de Kurt Schwitters, ou seja, os restos de um mundo em via de extinção? Por que não pensar também o trabalho semanal de montagem de cenas e de realização de fotos, a seleção de personagens e caracterização de amigos, colaboradores, filhos e agregados &– para responder à interpretação de sonhos de mulheres sonhadas por outros, a sonhos e pesadelos alheios &– como pequenos happenings caseiros? Essas posições (as de Schwitters, de Man Ray, fazendo fotos sem câmera, e as de Stern), embora menos diretamente politizadas que as de John Hartfield, ou menos provocativas que as de Hannah Höch ou as de Germaine Krull, contemporâneas e também fotógrafas da Bauhaus &– as quais curiosamente Stern não menciona em sua resenha sobre o gênero4 &–, não são por isso, creio, menos radicais: observando-as bem e desprendendose de tudo o que não seja imagem, as montagens de Stern dão, sim, rigorosamente conta, como assinala Priamo, do “gozo da humilhação” das mulheres que as habitam, quer quando são vítimas, quer quando são proprietárias e senhoras das vidas que as rodeiam e que manipulam como fantoches ou regam seus inúmeros vasos. Quem, porém, as acompanhar como pequenos exemplos de experiência, humorística, poderia nelas encontrar, no humor e nos sarcasmos que ali residem sobre os sonhos da “dona de casa moderna”, da mulher local &– não da nova mulher que anunciava a Bauhaus &–, um sinal que indica um caminho rigoroso, mas liberador, no qual a mulher saia do frasco ou da gaiola em que parece se regozijar e esteja, como se diz, à altura das circunstâncias.

 

E dormindo tive um sonho

E dormindo tive um sonho. … Sonhei enfim que estava em um jardim desconhecido, um horto. Parecia-me ter um tamanho humano normal ou então, naquele mundo, minha estatura era aquela habitual dos seres humanos. Era uma noite tranquila, como no quadro mais escuro, mas, em algum lugar, devia haver luz, pois eu enxergava à medida que caminhava. A grama era alta e áspera, mas não obstava meus pés e, no final, encontrei-me sob uma árvore cujos ramos pareciam de ferro de tão imponentes, sombrios e pesados. Aqui e ali, entre as folhas suspensas, pendiam frutas enormes: peras quietas e pesadas como blocos de chumbo ou pedra. Não sei dizer por que motivo a visão daquelas frutas, na obscura luminosidade do ar circundante, surtiu em mim tal efeito mágico. Estava ali, pisando a relva fria de orvalho, olhando para cima, para cima, até aqueles ramos monstruosos como enfeitiçada e, de repente, foi como se o solo sob meus pés tremesse levemente em razão de um golpe amortecido. Uma das frutas do sonho, já madura, havia caído do alto como uma pedra. E depois outra, bum! A consciência do tremendo perigo em que me encontrava invadiu-me. Quis fugir e acordei abalada, com um calor sufocante, para descobrir, à luz da lua que inundava o quarto, onde estava na realidade (De la Mare, 2002).

Este sonho não é um achado de nenhuma carta enviada à Idilio que não tenha sido conservada nem reproduzida na revista, e sim um fragmento de um dos livros que aparecem na cenografia de uma das fotomontagens: no sonho número 6, publicado na revista Idilio número 8, em 14 de dezembro de 1948, denominado por Rest “Sonho das frutas”, uma jovem de proporções liliputianas colhe ou distribui pequenas frutas sobre os livros de uma estante que se repete, aparentemente, até o infinito. Entre esses livros, todos em castelhano e todos eles traduções argentinas de textos estrangeiros publicados na década de 1940, figuram El gran dinero, de John Dos Passos (Santiago Rueda, 1946, traduzido por Max Dickmann), La novelas de lo grotesco, de Sherwood Anderson (Santiago Rueda, 1942, do mesmo tradutor), Los siete pilares de la sabiduría, de T. E. Lawrence (Sur, 1944, tradução de R. A. e prólogo de Victoria Ocampo), La importancia de vivir, de Lin Yutan (Sudamericana, 1949, tradução de Román A. Jiménez) e Memorias de una enana, de Walter de la Mare (Editorial Nova, 1946, traduzido por Julio Cortázar).

O sonho acima pertence a este último livro, embora a citação não seja a de Cortázar. Memorias de una enana [Memórias de uma anã], nas palavras de Angela Carter e contra os desígnios de seu autor,

é o único romance surrealista como os da literatura inglesa, ainda que De la Mare o tivesse redondamente negado. O fato de que não soubesse o que estava fazendo torna-o, é claro, mais surrealista e mais terrível. … De fato, o tamanho da senhorita M. não nos é informado com precisão. Parece variar conforme os caprichos do autor. [... Com vinte e um anos pode] viajar comodamente em uma gaiola de passarinhos abandonada. Mas nesse mesmo ano, quando de férias, disfarça-se de menina de dez anos para conduzir uma carroça puxada por uma cabra. … O tamanho real da senhorita M., portanto, não pertence ao âmbito da dimensão fisiológica; é a manifestação física de uma enorme diferença (Carter, in De la Mare, 2002, pp. 450-451).

Como as mulheres das fotomontagens de Stern &– às vezes pequenas demais, às vezes desproporcionalmente grandes &–, a senhorita M. não se enquadra. Como Stern,

De la Mare é um mestre da encenação teatral. É um dos grandes arquitetos e desenhistas de interiores da narrativa; constrói casas assombradas para seus personagens, mobilia-as com um instinto seguro para os detalhes de personalidade que se expressam nos objetos cotidianos. ... De la Mare sente um entusiasmo tremendo, como de autoproteção, pelo caseiro. … A atmosfera caseira não faz outra coisa senão acrescer os tormentos que se estão desenvolvendo, até que a própria louça [do chá] adquire um aspecto de dispositivo do desespero e range como as correntes de um prisioneiro (Carter, in De la Mare, 2002, pp. 447-448).

Como nas fotomontagens de Stern, a vida toda da senhorita M. é um problema de perspectiva e de proporção. Assim, compô-la não implica mexer no destino, nas interpretações simbólicas ou nos sentimentos, mas “exige um grande controle da perspectiva e da proporção”.

 

 

César Aira, escritor argentino em cuja obra também pululam anãs, deteve-se em Memorias de una enana e destacou ali o “caráter civilizador da proporção”:

A proporção apresenta-se à primeira vista como um caso particular da composição, como um de seus “detalhes”, exceto pelo fato de que não é possível isolá-la como se faz com os fragmentos dos quadros, pois ela se dissolveria. Embora na composição, por sua própria essência, tudo seja relativo e relacionado, a proporção é mais relativa que outros componentes como cor, forma ou disposição. É algo assim como a composição “em si”, é o detalhe que reflete totalmente o todo. ... Por esse mesmo excesso, a proporção escapa ao âmbito burguês da composição no qual entram elementos psicológicos individuais como o talento, a inspiração e a memória, e participa por direito da construção interpessoal. Os problemas da proporção resolvem-se em uma arte construtivista, ou seja, em uma arte revolucionária. … Atenho-me a este maravilhoso romance de Walter de la Mare, Memorias de una enana, para explorar rapidamente os elementos civilizadores da proporção … O livro não propõe sua protagonista como exemplo ou como um caso particular de uma generalidade (nem poderia fazê-lo, pois se trata de um monstro), mas como coisa em si, geral-particular de arte. O “romance não é um exemplo e sim a criação histórica de um novo dispositivo de proporcionalidade” (Aira, 1995, p. 75).

É desse modo, individualmente e compondo séries &– e desligada das interpretações de Rest &–, que gosto de ver essas composições de Stern. Não como exemplo de condições generalizáveis, mas cada uma delas como resposta, composição, arranjo que visa a um afeto singular. Como se, apesar da ironia e do humor, nesse trabalho de colaboração com os sociólogos e com as mulheres que enviavam seus sonhos por carta, e valendo-se apenas dos ajustes da perspectiva e da proporção, cada fotomontagem compusesse uma lente para recordar que “a natureza e a vida humana são tão diversas como o somos nós. Quem se atreveria a dizer quais perspectivas a vida oferece aos outros? Haveria milagre maior do que poder ver com olhos alheios por um instante?” (Thoreau, citado por Aira, 1995, p. 78).

“O que faltou que Walter Benjamin observasse”, diz Aira (1995, p. 78) referindo-se ao ensaio A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, “foi que a reprodução mecânica tem efeito sobre todo o tamanho e sobre os tamanhos relativos”. São esses tamanhos relativos que fazem a diferença. Sozinha, a liliputiana é normal tanto quanto o portão e a mulher da fotomontagem número 40, ou o telefone e a jovem da número 41, ou o barco de papel e a moça da número 25, ou a jovem e a garrafa da número 5, entre outras. Se isolados, são normais; juntos, graças à reprodução técnica, os sonhos da imaginação produzem monstros. A Grete Stern &– que não quis discutir nem teorizar sobre a possibilidade de a fotografia ser ou não uma obra de arte, mas que chegou até a exercê-la “em colaboração” &–, o detalhe das proporções, é óbvio, não escapou.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Adriana Astutti
2000 Rosario, Argentina
Tel.: 54 341 6117903 | 54 341 4487521
E-mail: aastutti@ciudad.com.ar

Recebido: 20/10/2009
Aceito: 28/10/2009

 

 

Tradução: Sonia Padalino
* Professora de literatura argentina na Universidade Nacional de Rosario. Fundou e dirige o editorial da Beatriz Viterbo Editora e da revista Nueve Perros. Autora de Andares clancos. Fábulas del menor en Osvaldo Lamborghini, J. C. Onetti, Rubén Darío, J. L. Borges, Silvina Ocampo y Manuel Puig (2001). Esteve encarregada da edição das Obras completas de Norah Lange, e traduziu textos de Edmund Wilson, Dominique Fabre e J. R. Ackerley.
1 “Os sonhos de Grete Stern”, livro-catálogo de Luis Priamo (2003), deu nome à mostra no Centro Cultural Recoleta em 2004, da qual foi também curador. As fotomontagens haviam sido apresentadas anteriormente em meados dos anos 1950, na Faculdade de Psicología da Universidad de La Plata, e em uma primeira exposição em Buenos Aires, em 1967, com a colaboração da poetisa Elva Lóizaga. Fizeram parte posteriormente de uma grande mostra de FotoFest, em Houston, Estados Unidos, a partir da qual adquiriram grande prestígio. Antes dessa exposição apenas o colecionador Nicolás Helft as havia notado. Em seguida foram mostradas em Valencia, no Institut Valencià d’Art Modern (1995), e no Museu Lasar Segall, São Paulo (2009). Algumas fotomontagens dos sonhos foram incluídas na exposição “Grete Stern, obra fotográfica na Argentina”, organizada em Buenos Aires pelo Museo de Arte Hispanoamericano Fernández Blanco (1995).
2 Essa coluna, “A psicanálise vai ajudála”, apareceu semanalmente na revista desde o primeiro número, em outubro de 1948, até o número 140, de 1951.
3 Na nota de Romero Brest em Sur, afirma-se que Coppola e Stern se recusam a discutir se a fotografia é ou não uma forma artística. Stern chega a dizer nesse texto que tal discussão não tem sentido.
4 “De fato, quando Germaine Krull (2000), que fotografava os bulevares parisienses para seu amigo Walter Benjamin e também era amiga de Eisenstein e companheira de Joris Ivens, olha para a Torre Eiffel ou as embarcações do porto de Marselha, não procura o documento, não faz fotos documentais. Deixa que a câmera revele a partir do real as novas formas, as redes cognitivas e de percepção que no mundo industrial produz e que para o objetivo fotográfico de então eram redes de significado e beleza” (Mercè Ibarz, “La herida y la curación. Fotografía, mirada documental y práctica artística”. Disponível em: http://www.iua.upf.es/formats/formats3/iba_e.htm. Acesso em: 30 out. 2009.

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