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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo Dec. 2010

 

EM PAUTA - PSICANÁLISE E ESCULTURA - PER VIA DI LEVARE

 

Subjetividade e clínica psicanalítica: o urso, a menina e a flor

 

Subjectivity and clinical psychoanalytic: the bear, the girl and the flower

 

 

Fátima Cristina Monteiro de Oliveira*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho procuro pensar a metáfora freudiana de que a psicanálise se dá “per via di levare” articulando um texto de Saramago, uma experiência clínica e recursos da teoria psicanalítica. Partindo do princípio de que a arte é manifestação profunda do mundo interno do artista, penso o trabalho clínico como a escultura de uma subjetividade, cuja autoria é sempre do paciente que acompanhamos na singularidade psíquica.

Palavras-chave: Artesão, Matéria-prima, Conhecimento, Transformação, Anagogia.


ABSTRACT

In this work I try to think of the metaphor that Freudian psychoanalysis is given “per via di levare” linking a Saramago’s text, a clinical case, and features of psychoanalytic theory. On the assumption that art is a manifestation of the deep inner world of the artist, I think the clinical work as the sculpture of a subjectivity, whose authorship is the patient who follow in their singularity psychic.

Keywords: Art, Subjectivity, Psychoanalysis, Sculpture.


 

 

Posso asseverar que o método analítico de psicoterapia é o
mais penetrante, o que chega mais longe, aquele pelo qual se
consegue a transformação ampla do paciente.

Sigmund Freud (1905/1996c, p. 246)

Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas.
Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.

Clarice Lispector (1995, p. 33)

Ao receber a proposta do tema para esta edição da revista ide, veio-me à mente um texto dos Cadernos de Lanzarote II, de José Saramago. Nesse livro, escrito como um diário, no dia 1º de dezembro o autor relata:

É conhecido o caso daquele moço que, sem nunca ter tomado aulas de belas-artes ou aprendido de mestres particulares, e não dispondo de melhor ferramenta que um simples canivete, em pouco tempo transformava um toco de madeira bruta no mais acabado e perfeito urso de que rezariam estórias da escultura se fosse objetivo delas ocupar-se de talentos rústicos e paisanos. Aos que se maravilhavam com a rapidez e o jeito, o rapaz respondia invariavelmente: Não tem nenhuma dificuldade. Agarro na madeira e fico a olhar para ela até ver o urso. Depois é só tirar o que está demais. O nosso escultor ingênuo dava-nos assim duas lições: a lição da modéstia e a lição da generosidade. Revelava-nos o seu segredo de oficina e ensinava-nos como deveríamos proceder para ver o urso: olhar para onde ele não está, e apenas com o olhar, fazê-lo aparecer. (Saramago, 1999, p. 476)

Desde que li este relato pela primeira vez (pois outras tantas o reli), deixei-me encantar por sua força poética, que me levou a refletir sobre a experiência vivida por nós, analistas, no trabalho com a psicanálise. O texto me servirá de pano de fundo para pensar a nossa prática clínica a partir da afirmação de Freud (1905/1996c) de que a psicanálise, assim como a escultura, “funciona per via di levare, pois retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida” (p. 247).

Nesse artigo, em que se refere às opiniões de Leonardo da Vinci acerca da pintura e da escultura, Freud contrapõe a psicoterapia baseada na sugestão, que, tal qual a pintura, se dá pela via de porre, à psicanálise, cuja via régia seria, como a escultura, a via di levare.

Para ele, a sugestão não leva em conta as resistências, enquanto na técnica da análise “a inconsciência de certos processos anímicos são a causa imediata dos sintomas patológicos” (p. 252). Portanto, o desvendamento e a tradução do inconsciente fazem-se sob resistência contínua, em uma dureza da pedra. Seria o levare das resistências, a escultura delicada dos entramados psíquicos, que poderiam fazer aparecer o “urso”, ou a Pietà, ou a Vênus de Milo, se assim o preferirem.

Mais tarde, no trabalho sobre Leonardo da Vinci, Freud (1910/1996b) comenta a preferência do artista pela pintura, pois nesta se poderia trabalhar em muito melhores condições: ao som de música, sem sujeira, sem o barulho do cinzel e do martelo. Leonardo valorizava o uso das cores e a maior delicadeza do trabalho de pintura. Quanto à escultura, Da Vinci “descreve os reveses que aguardam o escultor”: este fica coberto de fragmentos de mármore, pó e lascas de pedra (p. 74).

Para Leonardo da Vinci, a escultura seria uma arte inferior à pintura. Martin Kemp, estudioso da vida do artista, esclarece:

Há sinais claros em seu menosprezo pelo desorganizado negócio da escultura, tanto que procurava manter uma aparência caprichada, e seus escritos sobre as funções corpóreas, inclusive a atividade sexual, sugerem um mal disfarçado desgosto pelos aspectos mais sujos do funcionamento do corpo humano. (Kemp, 2005, p. 45)

Kemp faz notar que a preferência de Leonardo da Vinci pela pintura e seu menosprezo pela escultura eram perpassados por toda a sua história de vida e seu próprio mundo psíquico. Penso que ambas as artes, pintura e escultura, são manifestação da subjetividade do artista, e que sua inclinação por uma ou outra é marcada exatamente pelas suas especificidades de sujeito.

Saramago (1994) escreveu em apresentação para o catálogo de uma exposição do pintor João Hogan:

A tela mostrará a imagem do que apenas noutro lugar é encontrável. É isso a pintura. A pintura não está no espelho branco e opaco que é a tela. A pintura não está sequer no mundo que, por todos os lados rodeia tela, cavalete e pintor. A pintura está inteira na cabeça do pintor. Ao pintar, o pintor não vê o mundo, vê a representação dele na memória que dele tem. A pintura é, em suma, a representação duma memória. (p. 508)

E, mais à frente, Saramago conclui: “A pintura, como Leonardo da Vinci disse um dia, é realmente coisa mental” (p. 508).

Temos então, do lado da arte, a subjetividade do artista; do lado da psicanálise, a subjetividade do outro a quem o analista acompanha.

Desse modo, permanece rica a analogia que Freud faz entre o trabalho de análise e a arte da escultura como emblemática da diferenciação defendida pelo autor entre a psicanálise e as demais terapias. Partindo da definição de Leonardo da Vinci sobre as diferenças entre a pintura e a escultura, Freud criou para a psicanálise uma bela metáfora, cuja imagem até hoje povoa a nossa prática clínica.

Passados mais de trinta anos, Freud (1937/1996a) continuará pensando a psicanálise como uma construção em que a argamassa é um substrato advindo do mundo interno de cada sujeito. No final da obra, ele pontua que o “trabalho de construção, ou, se preferir, de reconstrução, assemelha-se muito à escavação, feita por um arqueólogo, de alguma morada que foi destruída e soterrada, ou de algum tipo de edifício” (p. 277).

Além disso, para ele o trabalho é realizado a quatro mãos:

O analista completa um fragmento da construção e o comunica ao sujeito da análise, de maneira a que possa agir sobre ele; constrói então um outro fragmento a partir do novo material que sobre ele se derrama, lida com este da mesma maneira e prossegue, desse modo alternado, até o fim. (p. 279)

Freud manterá a convicção de que aquilo que norteia a análise são as associações e a verdade de um sujeito cuja arqueologia é única. Nessa analogia entre a psicanálise e o trabalho arqueológico, nós, analistas, somos aqueles que escavamos, buscamos os fragmentos e restauramos a obra de arte, mas definitivamente não somos seus autores. O artista é o outro a quem acompanhamos.

Convém ressaltar que, em nosso trabalho clínico, a arqueologia, segundo Bleichmar, é irredutível à história: não se visa encontrar a história primordial na fala de quem a conta, e, se tal fosse possível, este encontro não seria redutível ao desenlace do sintoma. “Mas o que não é possível de ser historizável, deverá encontrar modos de ligação e ressimbolização se pretendermos que o objeto não fique sempre entregue à compulsão à repetição, quer dizer, ao exercício da pulsão de morte” (Bleichmar, 1994, p. 61).

Eis aí toda a nossa arte. E não é pouco.

 

A arte, afinal de contas, não é fácil

Difícil é saber
se aquele homem já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício.

João Cabral de Melo Neto (1997, p. 67)

Proponho que acompanhem mais um pouco o texto do Saramago (1999), para vermos aonde vai dar sua experiência com a arte de esculpir:

Este amável moço, tão prestante em explicar como fez, não deixou que lhe saísse da boca uma única palavra de como se faz. O urso está ali, vemo-lo, mas entre ele e as nossas mãos, há uma muralha de madeira fechada, com nós duríssimos, veios intratáveis, traiçoeiras maciezas de fibra: é por demais evidente que será preciso muito engenho e arte para abrir caminho. A arte, afinal de contas, não é fácil, o rapaz dos ursos divertia-se às nossas custas. Contudo, bem descuidado seria quem se atrevesse a julgar que no interior de cada pedaço de madeira não há um urso à nossa espera. Há, e há sempre. Ainda que não consigamos vê-lo distintamente, ao menos deveremos ser capazes de adivinhá-lo, de intuí-lo, aparece-nos ao longe como uma luz instável e lenta, um vago luzeiro, tão vago que mal chega a iluminar-se a si mesmo. (p. 477)

Sim, a arte não é fácil, mas decerto Freud não se divertia às nossas custas como o moço que esculpia ursos. O método psicanalítico no atendimento a pacientes com funcionamento predominantemente neurótico continua sendo o da associação livre, o trabalho com as resistências, com a transferência, as interpretações e construções, em suma, a via di levare em oposição à sugestão. Entretanto, penso que, mesmo para fazer frente às patologias contemporâneas, são válidas as colocações feitas por Freud em 1905: o trabalho da psicanálise visto como a arte de escultura de uma subjetividade.

Nos casos mais graves, casos-limite, patologias narcísicas ou psicoses, precisamos continuar acreditando, como nos diz Saramago, que há um urso dentro do bloco de madeira. Temos de vê-lo ou ele ficará para sempre lá.

Nessa medida, as teorizações que procuram dar conta dos momentos constitutivos da relação mãe-criança tornam-se extremamente férteis para pensar a clínica. Assim, faço referência a um aporte da teoria de Winnicott, qual seja, a metáfora de que o rosto da mãe serve de espelho para a criança. Diz o autor: “O que a criança vê quando olha o rosto da mãe? A criança vê a si mesma” (1971, p. 154). Em outras palavras, é a mãe que vislumbra o ser humano na criança, tal como o urso é visto pelo escultor dentro da madeira. O autor conclui que a ideia da criança, vendo seu Eu no rosto da mãe, nos permite pensar a tarefa terapêutica:

Psicoterapia não é fazer interpretações argutas e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao paciente, a longo prazo, aquilo que o paciente traz. É um derivado complexo do rosto que reflete o que há para ser visto. Essa é a forma pela qual me apraz pensar em meu trabalho, tendo em mente que, se o fizer suficientemente bem, o paciente descobrirá seu próprio eu (self) e será capaz de existir e sentir-se real. (p. 161)

Dessa forma, o autor enfatiza a relevância do método psicanalítico que é oposto ao da sugestão, e conclui que se sentir real é mais do que existir, é existir como si mesmo.

No mesmo artigo, Winnicott faz uma referência às pinturas de Francis Bacon, pintor nascido na Irlanda em 1909 e tido como “um exasperador, perito e desafiador artista de nossa época que continua a pintar o rosto humano significativamente deformado” (p. 157).

Referindo-se à obra de Bacon como expressão de sua alma, Winnicott afirma que os rostos de Bacon parecem muito afastados da percepção do real, e esse “Francis Bacon moderno está se vendo no rosto da mãe, mas com uma peculiaridade nele, ou nela, que enlouquece tanto a ele quanto a nós” (p. 157).

Winnicott conclui o artigo dizendo que não quer “deixar a impressão de que essa tarefa, que consiste em refletir o que o paciente traz, é fácil. Não é; e, emocionalmente, é exaustiva. Mas temos nossas recompensas” (p. 161).

Também a psicanalista argentina Sílvia Bleichmar, em uma bonita frase, nos diz que a criança precisa ser pensável, fantasmatizável pela mãe:

Ser pensado pelo outro é condição da vida em sua persistência. Ser amado e ser pensado implicam um não apoderamento do corpo por parte do outro: o próprio corpo só chega a ser próprio porque alguém generosamente cedeu uma propriedade sobre uma parte de si mesmo que se torna alheia. (Bleichmar, 1994, p. 4)

A autora chama esse processo de narcisismo transvazante da mãe. É transvazante porque não acaba na própria mãe, e sim transvaza, se derrama sobre o outro ser, conferindo-lhe estatuto de existente como alteridade.

Na confluência das imagens que estou trazendo, da arte como reflexo da subjetividade do artista e do rosto da mãe como espelho para a subjetividade do outro humano, vislumbramos um paradigma para o próprio método psicanalítico: a arte de desvelar o que lá já está.

Não se trata, no entanto, do reducionismo de que vamos ao encontro de algo já dado: o urso dentro da madeira. Como já foi dito, a arte não é fácil. Nosso trabalho não se limita a descobrir o que está pronto, senão que, como na metáfora freudiana do arqueólogo, escavar e juntar os fragmentos acreditando que eles terão algum sentido por fazerem parte de um todo.

Precisaremos por vezes nos contentar com a já árdua tarefa de costurar os buracos de um tecido roto, criando um entramado em que o sujeito possa conter os excessos pulsionais. Os buracos psíquicos necessitam de cerzimento. Aqui, a metáfora de uma tessitura é, a meu ver, a mais ilustrativa do trabalho de análise com os pacientes mais difíceis, os quais, no entanto, permanecem sendo sempre uma alteridade. Nós os descobrimos, mas não os criamos. O que fazemos é da ordem de uma rearticulação e recomposição.

Acredito que vivemos, na clínica psicanalítica, o paradoxo de encontrar e ajudar a criar a partir do que já está lá. Bleichmar pergunta-se: “O que quer dizer tomar a história como elemento determinante na constituição subjetiva e abrir a partir disso uma possibilidade de neogênese?”. Para essa autora,

Quer dizer que, apesar de nem tudo estar dado desde o início e para sempre, a intervenção do analista não se reduz a encontrar o que já estava lá, e sim a produzir elementos novos de recomposição, de articulação que deem um produto diferente do preexistente. (Bleichmar, 2005, p. 40)

Se a singularidade é a essência do ser humano, não devemos saturar o outro com nossas teorias ou interpretações. Nesse sentido, somos auxiliares de uma produção simbólica, propiciando novas vias de articulação a partir daquilo que advém da singularidade de cada encontro.

Seguindo ainda Bleichmar (1993), se os destinos da pulsão são destinos da estruturação psíquica, é por meio dos processos simbolizantes que se pode permitir sua ligação e a derivação por vias colaterais, constituindo um entramado, suporte da pulsão de vida.

O setting analítico poderia, nesse contexto, propiciar novas ordenações. Movimentos de simbolização através do poder capturante da palavra que procura inserir a pulsão em uma trama simbólica, procurando dar-lhe um topos ou um destino. Lugar de reengendramento, pois o que insiste é aquilo que não conseguiu se ligar a um entramado simbólico e necessita todo um trabalho “artístico” de recomposição: tessitura, pintura ou escultura, qualquer que seja a imagem utilizada, há que trabalhar a base, o substrato, quando este se encontra frágil, roto ou esburacado: deixar amadurecer a madeira, cerzir a tela, acertar o ponto do gesso.

Para Herrmann, o analista é, assim, um therapon, substantivo de origem grega “derivado de therapein, o verbo. Este indica cuidar de, servir a, tratar de”. Herrmann ressalta que “therapon é um amigo que acompanha o herói em sua empresa arriscada. Ele não é um servidor, não é um lacaio. Também não é importante, não tão importante quanto o outro” (Herrmann, 1993, p. 142).

O autor adverte para o risco de o analista querer ser ele o herói, ao invés de ser o amigo do herói. Ao contrário, ele precisa ser aquele que acompanha o paciente em sua jornada, e, assim,

Ele não vai descobrir. Ele vai permitir que se descubra, permitir que se dê uma aletheia, um desesquecimento, já que as águas do rio Lethes eram as águas do esquecimento. Uma aletheia era uma espécie de desvelamento, de desesquecimento para os gregos. Algo que já está lá surge por sua força, numa reconstrução que compromete o therapon, quer dizer, compromete o companheiro dessa aventura de construção de um sentido humano. (p. 143)

Penso que o desvelamento e o desesquecimento são os correlatos do que até agora temos chamado de via di levare. Quando retiramos, ou permitimos que se retire, aquilo que encobre, então o outro humano ao nosso lado se faz presente, parodiando o oximoro de Drummond (1991, p. 13), como um “claro enigma”.

Sim, claro enigma, porque nele habita o que sabemos e o que não sabemos, e que nem ele mesmo sabe. Enigma de uma alteridade. E só o que podemos fazer é acompanhar esses caminhos, tudo é da ordem de uma construção, de uma tessitura, são fios que se tramam. E embora sem certezas nem garantias, tecemos. E continuamos trabalhando, feito a aranha, o bicho-da-seda, a abelha, sem nem sabermos ao certo que fios são estes com que vamos nos entrelaçando: são verdades ou fantasias? E afinal, surpresos, podemos ver que a aranha pode caminhar nos fios tão finos de sua teia, que a seda é um tecido delicado mas que pode ser colocado sobre a pele, e que os favos são, afinal, simétricos e abrigam mel.

 

A arte de segurar o cinzel e o martelo: criações de uma menina

Uma flor nasceu na rua.

Uma flor ainda desbotada ilude a polícia,
rompe o asfalto.

Façam completo silêncio,
paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu...

... é feia, mas é uma flor.

Furou o asfalto, o tédio,
o nojo e o ódio.

Carlos Drummond de Andrade (1993, p. 25)

Trago em seguida uma arte feita por uma menina e por mim. Mais correto seria afirmar que eu apenas carreguei os materiais: o cinzel e o martelo, ou, no caso, apenas lápis e papel. A paciente, de 12 anos, apresentava diversas fobias: de lugares fechados, lugares amplos, medo de avião, fobia de se submeter a procedimentos médicos. Como gostava de desenhar e o fazia com esmero, realizou diversas pinturas que permearam todo o seu atendimento.

Os desenhos por ela realizados mostram, de forma plástica, um grande esforço para sair de dentro do seu bloco de madeira. Exponho-os a seguir para ilustrar o método de “levare” o paciente a um maior conhecimento de si mesmo. A arte realizada pela jovem expressa como os conceitos psicanalíticos tomam vida e encarnadura na nossa clínica cotidiana.

No primeiro desenho ela esboça uma cabeça que explode em muitos estilhaços, pintados de vermelho. A menina descreve uma sensação de que seu cérebro vai arrebentar, explodir e se partir em mil pedacinhos. Diz que lhe dói a vida. Expressa com plasticidade o sofrimento de sentir-se pouco integrada e o receio de perder o controle de tudo.

Em um segundo desenho representa uma pessoa com venda nos olhos e o intitula “Olhos vendados”. Diz que assim “ela não está lá, e então não sofre”. Parece expressar, com beleza plástica, todo um mecanismo de negação da realidade psíquica.

No terceiro desenho, “Os olhos de Deus”, surge uma menina de costas, em um lugar idílico, que é observada por olhos enormes. Fala sobre a sensação de não poder ser ela mesma, possuindo “coisas boas e ruins”, de modo a aceitar a ambivalência de seus sentimentos, e sobre sentir-se sempre observada pelos olhos de Deus que ela desenhou.

No quarto desenho, a menina representa a si mesma dentro de uma caixa, apenas com a cabeça para fora. Ela fala de seu medo de emergir para o mundo e para a vida. Parece expressar, desse modo, os seus medos e defesas que a seguram dentro da caixa. (Seu bloco de mármore ou madeira.) Quem sabe, tinha receio de mostrar o urso dentro de si, pois este continha também aspectos ferozes e agressivos. No desenho, há setas que representam forças que a empurram para dentro e para fora da caixa. Demonstra plasticamente seu conflito. A pintura foi chamada de “A caixa”.

O desenho seguinte recebeu o nome de “Eu de frente”. Nessa pintura ela se representa de frente: aqui as cores são tão fraquinhas que necessitamos esforço para visualizar o desenho. De todo modo, já estava inteira fora da caixa.

Em um de seus últimos desenhos, ela pinta uma flor muito colorida. Contrapõe-se a uma fala anterior, da menina de olhos vendados, que “não estava lá’’, dizendo que “É uma flor. Ela perfuma tudo à sua volta. Ela está lá”.

A flor estava presa dentro do “bloco de madeira”, (a caixa) da menina. O trabalho analítico, per via di levare, ajudou no surgimento da Flor.

Os “quadros” demonstram, com beleza plástica, como a psicanálise é, por vezes, uma explosão de arte e de vida.

 

E assim concluo

Imenso trabalho nos custa a flor.

Carlos Drummond de Andrade(1993, p. 138)

O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que pela
primeira vez
se lança um olhar inteligente sobre si mesmo.

José Saramago (1983, p. 96)

No entanto, como já foi dito anteriormente, a arte não é fácil. Muitos anos atrás, tive a oportunidade de trabalhar com gesso. Eu precisava fazer moldes de gesso e por vezes esculpir sobre esses moldes com um pequeno bisturi. Se a proporção entre a água e o gesso, ou a mistura deles, não fosse correta, ele se quebrava quando se tentava desenformá-lo. E era impossível esculpir: ele se tornava quebradiço e se desfazia em pó.

Assim são alguns pacientes: gesso seco e friável, madeira verde que não permitirá o uso do canivete. Falta de possibilidades de simbolização, que por vezes exigirão preencher os rotos de uma trama psíquica esgarçada, e por outras marcarão um limite possível para o nosso trabalho.

De todo modo, acredito que, ainda nesses casos, permanece valendo a metáfora freudiana: o material com que podemos trabalhar é único daquele sujeito. Papel ou bloco de madeira, gesso, mármore ou tela: somos o therapon de que nos falou Herrmann. O outro é a alteridade, ou a “outridade”, para usar um termo de Octavio Paz (1982, p. 319).

Se os destinos da pulsão são destinos da estruturação psíquica, podemos, como analistas, ajudar na feitura de processos simbolizantes que permitam a ligação e a derivação por vias colaterais do que surge na clínica, por vezes com bela plasticidade, pedindo a constituição de um entramado, suporte do advir de um sujeito.

Desse modo, pintura ou escultura, desenho ou escrita, e de modo privilegiado a linguagem, são tentativas ou possibilidades de representação. O indivíduo que se representa é aquele que figura a si mesmo como sujeito de uma existência, sujeito de seu discurso.

E, como disse Guimarães Rosa (1988, p. 40), poder se “Representar é aprender a viver, além dos levianos sentimentos, na verdadeira dignidade”.

Neste chão trabalhamos, capturando a pulsão que vagueia, para ligá-la a uma palavra que a enlace, outorgando-lhe uma significação que é o próprio sujeito traz, acreditando na possibilidade de um psiquismo sempre aberto a novas recomposições.

A escrita de uma história própria exige indagar-se sobre seus próprios desejos, tropeçar em incertezas, debruçar-se sobre este papel-vida, traçar nele uma aventura singular, permanentemente sujeita a reformulações, retrocessos e novas aberturas, arte que precisa estar aberta à feitura de novos caminhos, de vias de derivação que desatem o sujeito de um texto único e repetitivo. Sinais e inscrições vividas em tempos e situações diversas seguem marcando o ser, às vezes com exigências de reconstrução e elaboração. Há que estar o psicanalista engajado nesse percurso que permite ao outro o encontro com sua própria expressão mais íntima, e que o reconhece como vário e diverso na alteridade de sua história. O analista é aquele que, possuindo certo conhecimento, como consentimento de sua própria vida pulsional, abre-se para a tolerância e para uma escuta não obturada, que poderá possibilitar ao sujeito iniciar sua própria obra de arte. Ou de vida.

E assim concluo a escultura de meu próprio texto, não sem antes deixá-los com o final do diário de Saramago:

E assim concluo. Manejando o meu canivete rombo, aparei e escavei o pedaço de madeira que aqui trouxe. Juro-vos que via o urso antes, via-o perfeitamente, juro-vos que continuo a vê-lo agora. Mas não tenho a certeza-culpa minha de que o vejais vós. Provavelmente saiu-me a estatueta de um ornitorrinco, esse mamífero desajeitado, com bico de pato, feito de peças soltas de outros animais, desconforme, bicho fantástico − ainda que não tanto quanto o homem. Este que somos quando escrevemos romances, ou os lemos. Interminavelmente. (Saramago, 1999, p. 482)

 

Referências

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Endereço para correspondência
Fátima Cristina Monteiro de Oliveira
Rua Girassol, 139/55
05434-020 – São Paulo − SP
tel.: 11 3871-2239
E-mail: fatima@gtp.com.br

Recebido: 10/09/2010
Aceito: 30/09/2010

 

 

* Psicanalista, membro filiado da SBPSP, mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo.

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