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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo Aug. 2011

 

EM PAUTA - AMORES

 

Mais azul que o veludo era a noite1

 

Bluer than velvet is the night

 

 

Silvana Rea*

Sociedade Brasileira de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho trata de aspectos de perversão presentes na dimensão erótico-amorosa e na arte, a partir do filme Veludo azul de David Lynch.

Palavras-chave: Cinema, Kitsch, Perversão, Psicanálise.


ABSTRACT

This work deals with some aspects of perversion in loving and erotic dimensions and in art, from David Lynch's film Blue velvet.

Keywords: Cinema, Kitsch, Perversion, Psychoanalysis.


 

 

O universo de David Lynch trata do humano situado entre o que é evidentemente visível e o que exige penetrar além da superfície aparente. Questão presente já em O homem elefante (1980), seu primeiro sucesso, mas que em Veludo azul (1986) surge com as primeiras marcas dos elementos que serão decisivos em sua poética, e que se radicalizam em Estrada perdida (1997) e em Cidade dos sonhos (2001).

Ou seja, ele entende a natureza humana como múltipla, complexa e descentrada. Para isso, recupera o cinema como experimentalismo, criando, pelo domínio da linguagem cinematográfica na construção de uma narrativa peculiar, uma experiência que não se restringe a assistir a um filme "sobre". Com ele, o cinema é uma experiência de perigo: tudo leva a querer olhar e temer ver.

Desse modo, Lynch enfrenta e propõe ao espectador o desafio de não se contentar com o que é evidente. Como na psicanálise, a exigência é a de correr o risco de viver a experiência para ver (ou escutar). Pois o analista é um ser simultaneamente corajoso e desconfiado; ele se orienta pela suspeita do que é manifesto e do que se apresenta como conhecido. E para poder ver, não pode se contentar com um olhar de sobrevoo, uma vez que ele é parte da estrutura que configura a situação analítica - somente a partir desse ponto de vista ele pode mirar. E o homem, visto do ponto de vista psicanalítico, também é múltiplo, complexo e descentrado.

Começamos o filme inseridos em uma das ilustrações de Norman Rockwell, retratista das cenas cotidianas das pequenas cidades americanas. Estamos nas capas do The Saturday Evening Post, seu trabalho por mais de quarenta anos. Aclamado como o mais querido ilustrador da América, Rockwell dedicou-se ao elogio publicitário do american way of life dos anos 1940 e 1950. Dizia ele: "Eu pinto a vida como eu gostaria que ela fosse. Se há uma tristeza, para mim é uma tristeza prazerosa. Se há problemas, são problemas humorísticos"2.

Do cenário dessa felicidade mediana, brota o desconforto. Um homem sofre uma hemorragia cerebral enquanto rega placidamente seu jardim. Ele cai na verdejante grama, em uma citação de O jardineiro regado (1896), primeiro filme cômico de Louis Lumière, que junto com A chegada do trem à estação La Ciotat (1895) marca o início da história do cinema. Elaboradas como crônicas dos prazeres da vida familiar, essas breves películas mostram situações cotidianas. Na gag de O jardineiro regado, um menino estrangula a mangueira com o seu pé e, no momento em que o jardineiro investiga pelo orifício da mangueira, recebe o jorro de água nos olhos. Mas, no gramado de Veludo azul, o homem jaz inconsciente enquanto o cachorro sorve a água que sai da mangueira em riste, sugerindo um falo, como as toras de madeira que caem no marcar as horas, e que são constantemente transportadas por caminhões. São elementos que encaminham o filme para as questões da sexualidade, a partir da falência de uma instância paterna. Em seguida, a câmera subjetiva adentra o gramado e revela besouros obscuros, em uma peculiar organização, sob sua bem cuidada aparência. Estamos no território das perversões.

O acidente é o que motiva o retorno do jovem Jeffrey Beaumont à sua cidade natal.

No hospital, visita seu pai que, sem potência de ação, mostra um esforço inútil de comunicação. Seria um aviso de perigo, como o horror de Simone Choule n'O inquilino (1976) de Polanski, uma face monstruosa anunciando o que está por vir? O mundo dourado de Rockwell pintado por Lynch em cores pré-rafaelitas3, onde a violência e o horror estão apenas na TV, é substituído pelas distorções da realidade de Francis Bacon, pintor irlandês que privilegia o pesadelo e o grito humano em sua iconografia4.

Ao retornar ao lugar de sua infância, o jovem Jeffrey brinca, inocentemente, de atirar pedras. Até que encontra uma orelha. Um travelling em subjetiva descobre o órgão em início de putrefação e segue o impulso imperioso em direção ao escuro interior do ser humano, levando-nos junto. Uma orelha cortada que inevitavelmente remete a Van Gogh e, portanto, às questões da visibilidade do homem, do mundo e do próprio cinema. Assim, a citação de O jardineiro regado sugere que o cinema ingressa, desde o seu início, na história do conhecimento que se constrói pela experiência do visível. A imagem é poderosa. Ou seja, Lynch avisa ao espectador que, como na psicanálise, ele está implicado na cena que imagina mirar à distância. Pois, quando no filme de Lumière o menino solta a torção da mangueira, o jato de água que irrompe cega o jardineiro que quer ver o que há. A orelha cortada também remete ao surrealista olho navalhado de Um cão andaluz (1928) de Buñuel. Olhar pode ser perigoso. O surgimento dessa orelha, enfim, começa a traçar um paralelo entre perversão e cinema: o que se vê, como se vê, o voyerismo do espectador. E que também refere ao que se ouve, pela utilização peculiar das canções de amor na trilha do filme.

Na narrativa de Lynch, a orelha está no lugar do refém sequestrado. E é a orelha que nos apresenta o Jeffrey curioso: ele quer ver. Afinal, ele habita o bairro Vista. A colega Sandy o avisa: ir ao fundo de uma fantasia é perigoso; é melhor ficar na superfície. Mas ele quer ver e entra nas águas profundas, no edifício "Deep River", onde mora Dorothy Vallens. "Estou vendo algo que estava escondido", diz ele a Sandy, excitado. E completa: "Gosto de mistérios".

Jeffrey não quer pertencer à ameaçadora região de Lincoln, bairro onde mora a cantora Dorothy Vallens. Pelo contrário, nela chega como exterminador de insetos. Nesse momento a narrativa intensifica o jogo, sempre marcado por elementos de filmes noir. Há um jogo sexual inocente com Sandy, brincadeira do "você me deve uma", e o flerte escondido do pai e do namorado, que culmina com um beijo e juras de amor. Jeffrey crê que pode penetrar ileso, pois sua normalidade garante um acesso ao dark side, sem suspeitas, mas quando participa do mundo que pretende observar como voyeur, atravessa um limiar: a brincadeira passa a ter outras regras. O jogo da blue lady, a dama triste envolta em veludo azul e submetida ao seu algoz, que ele entrevê de dentro do armário, agora se inverte. É ele quem está nu. "O que você quer?", pergunta ela. "Eu não sei" é a resposta. Quem se submete e quem é submetido e a quê. Ele se contamina com a doença dela, na equação sexo-violência-dor. E ela com a dele, aproximando sexo-gostar-cuidar. De fato, é um estranho mundo.

Jeffrey vê que no universo de Frank não se pode olhar nos olhos, pois quando você é olhado, pode se reconhecer e ser reconhecido. No olhar alheio eu também me vejo como outro, assim como reconheço o outro como alteridade. E isso é insuportável. Ali, a senha é "está escuro". Ou seja: eu não posso ver – em contraponto aos olhos cegos videntes de Double Ed. O que Frank não pode ver?

A sexualidade humana é inerentemente traumática (Mc Dougall, 2001). Na busca do amor e da satisfação, são inúmeros os conflitos psíquicos que surgem do embate entre o sujeito e o mundo, entre as pulsões e as forças do mundo externo. No fundo da sexualidade de todos nós coexistem impulsos eróticos e sádicos, amor e ódio, masculino e feminino. Gradualmente, dependendo do caminho percorrido, através de choques e lutos, conquistamos nossa configuração particular.

Nesse cenário, é de profunda importância a fantasia inconsciente que temos da cena primária, cena imaginada pela curiosidade da criança sobre a relação sexual dos pais. Em suma, a cena sexual de nossa própria concepção. Ela funciona como estruturante e provoca uma ferida narcísica: eu fui produzido por outros, que também precisaram um do outro para me conceber, pois a mãe, sem pênis, precisa do pênis paterno. Ou seja, um sexo é complementar e dependente do outro, e o lugar do filho é fora da relação sexual parental. É a realidade impondo a quebra da crença onipotente da autossuficiência. Em outras palavras, a realidade organizada pela castração, na triangulação edípica.

Quando isso é inaceitável, e é isso que Frank não pode ver, a solução perversa surge para evitar a dor. Assim, ele destrói a organização familiar de Dorothy sequestrando seu marido e seu filho e com ela recria a cena papai-mamãe-bebê; agora um jogo cujas regras ele controla, com a violência que seu ódio impõe. O ódio erotizado em uma encenação que, sob o seu comando, nega todos os limites, criando uma neorrealidade que ocupa o vazio deixado pela recusa da castração. Sob a proteção do veludo azul, a angústia vira excitação sexual.

Para que essa cena tenha sentido, é necessário que o script seja repetitivo. O parceiro sexual deve representar um papel determinado e rigidamente controlado, de maneira a ser reduzido a um anonimato que o nega como pessoa. "Mantenha-se viva", exige Frank, pois a vida de Dorothy vale apenas para a função de uso. Assim como é necessário captar um olhar anônimo, seja fantasiado, seja no do próprio espectador do filme. Um olhar que funcione como testemunha da legitimidade da encenação, dando suporte ao tênue equilíbrio psíquico que a organização perversa permite.

O objetivo é abalar e triunfar sobre a realidade dos limites, substituindo- a por um universo regido por uma lógica particular. Surge um novo gênero de realidade, da qual Frank é simultaneamente criador e refém. Ele próprio aprisionado por uma visão de mundo marcada por uma torção. Se o amor inclui limites, amor é morte. Assim, no filme, as canções têm seu sentido corrompido por essa inversão. "Love letters straight from your heart" é a carta de amor que é uma bala: "Você está morto", diz Frank. Blue velvet é o objeto que está no lugar da castração, substituindo-a pela excitação e pelo controle reassegurador da cena perversa. Em "Candy colored clown", Ben, uma máscara de palhaço dândi dos piores pesadelos infantis, é o Sandman5 que vela o sono de Donny e também permite o violento sonho lisérgico de Frank. É o momento em que o espectador, consternado, funde o encenado "mamãe ama você" de Dorothy para Frank e sua exclamação desesperada diante do filho.

Se Jeffrey circula na região que a pergunta desconfiada de Sandy revela, entre ser detetive ou perverso, sua resolução se dá pelo universo kitsch.

Ora, o kitsch se apoia no sistema de produção, que muda a relação do homem com a natureza ao introduzir o elemento artificial, valorizando a atividade de consumo. Caminho do original ao banal, o kitsch é uma deturpação da arte (Moles, 1972).

Para aquele que não tolera a intimidade com as obras de arte, já que provocam impacto e abertura de sentidos, o kitsch faz uma torção. A noção de obra é distorcida no objeto kitsch, que se define por referência ao homem consumidor da função decorativa e que tem como caráter a sua função adaptativa e de aceitação. Nesse sentido, apresenta uma comunicação pré-fabricada, cujo projeto é sujeitar o espectador, com violência, a determinado efeito. Ele é, assim, uma "espécie de mentira" artística, por estimular efeitos sentimentais determinados, assim como apresenta um clichê travestido de experiência estética (Eco, 1976).

O kitsch está à altura do homem comum, "por ter sido criado pelo e para o homem médio, o cidadão da prosperidade" (Moles, 1972, p. 27). Trata-se de um novo sistema estético ligado à emergência da classe média, da civilização de massa e da cultura consumível. Trata-se, portanto, de uma atitude que se define nos modos de relação da civilização burguesa, e que se afirma como seu modelo de felicidade: consumir é a enorme alegria das massas.

Assim, Veludo azul tece narrativas inter-relacionadas de perversão. Ao universo da perversão da dimensão erótico-amorosa, lado obscuro e distorcido da sexualidade humana, Lynch propõe, ironicamente, a solução apaziguadora da adaptação; o kitsch como perversão da arte.

É o que indica a outra face de Frank, o "bem-vestido" homem burguês. E o que sugere o simulacro de choro de Sandy, em reação pré-fabricada ao horror à traição de Jeffrey, assim como é pré-fabricado o perdão que seu amor puro pressupõe.

"There's no place like home", diz Dorothy, a de O mágico de Oz (1939). A orelha agora somente ouve o canto dos passarinhos na "luz brilhante que o amor traz". O pai está recuperado, em alegre ação na churrasqueira. O sonho de Sandy se realiza, desvanecendo a escuridão do pesadelo. Não há no mundo mais gente como Frank, que está morto: nem no meu, nem no seu. Mas, do conforto do universo médio, tão familiar e adequado, o mundo continua estranho, como Sandy conclui, ao observar o pássaro artificial com o besouro no bico. Ele está matando o besouro ou é o besouro, justamente, que o alimenta? Sob inquietante estranheza, concluímos: é um mundo muito estranho, realmente.

 

Referências

Eco, U. (1976). Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

McDougall, J. (2001). As múltiplas faces de Eros. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

McDougall, J. (1991). Em defesa de uma certa anormalidade. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Meltzer, D. (1994). Claustrum. Buenos Aires: Spatia.         [ Links ]

Moles, A. (1972). O kitsch. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Rose, A. (1992). The pre-Raphaelites. London: Phaidon Press.         [ Links ]

Sadoul, G. (1977). História del cine mundial. México: Siglo Veinteuno Editores.         [ Links ]

Sembach, K.-J. (2007). Arte nova. Lisboa: Taschen.         [ Links ]

Sylvester, D. (2007). Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Sylvester, D. (2006). Sobre arte moderna. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Silvana Rea
Av. São Gabriel, 149
01435-001 – São Paulo - SP
tel.: 11 2872-6214
E-mail: silvanamrea@gmail.com

Recebido: 19/04/2011
Aceito: 04/05/2011

 

 

* Graduação em Cinema pela FAAP e em Psicologia pela PUC-SP, mestre e doutora em Psicologia Social pela USPSP, membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise
1 Trabalho apresentado no evento Fábrica de Sonhos: 100 anos de Cinema e Psicanálise, em comemoração aos 100 anos da IPA, na Cinemateca Brasileira, São Paulo, em maio de 2010.
2 Disponível em: <rockwellsite@snip.net> (tradução da autora).
3 Movimento inglês fundado em 1848, o pré-rafaelismo traz como elementos imagens ornamentais de um realismo fotográfico perturbador, ou "uma fé vitoriana nos fatos". Marcado por um misto de erotismo e inocência e pelo uso de cores luminosas, almeja aproximar-se de uma Idade Média idealizada (Rose, 1992).
4 É marcante a influência de Bacon na filmografia de Lynch, mas é interessante pensar que o cinema também se faz presente no pensamento do pintor. Em entrevista ao crítico britânico David Sylvester (2007), ele conta que seu interesse pelas contorções da boca humana se deu a partir do estudo do fotograma do grito da enfermeira na sequência da escadaria de Odessa, n'O encouraçado Potemkin (1925), de Eisenstein, que tentou suplantar pela pintura, sem sucesso.
5 Utilizo aqui o termo original da letra da canção, por discordar de "fada madrinha", tradução da legenda do filme. O personagem de contos infantis Sandman joga areia nos olhos da criança que se recusa a dormir. Portanto, ele traz em si a dupla face ninar/aterrorizar, assim como novamente se põe a questão do olhar.