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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo June 2014

 

ARTIGOS

 

Arthur Bispo – memórias de uma salvação1

 

Arthur Bispo – memories of a salvation

 

 

Solange de Oliveira*

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em sua passagem pela Terra, Arthur Bispo do Rosario atendeu a diversas categorias de exclusão: raça, origem, quadro clínico e posição social, todas devidamente transmutadas pela força de verdade de seu trabalho artístico, que instiga e mobiliza a percepção solicitando diferentes aspectos do universo das expressões humanas. A linha condutora deste trabalho aborda a obra secundarizando e relativizando a patologia. Adota, como perspectiva, a voz da exclusão. Prioriza a reflexão sobre o fazer artístico e o querer dizer em seu sentido mais íntimo e profundo, articulando a memória pessoal e social com os conceitos de arte ressignificados e imbricados sob o prisma de um interno em uma instituição psiquiátrica alienado do mundo. A obra têxtil de Bispo do Rosario é o retrato de um Brasil abolicionista, do catolicismo rústico e das tradições artesanais e folclóricas. Interpõe-se, por sua riqueza de expressão, como instrumento potencial para a reflexão sobre questões sociais, humanitárias e, evidentemente, estéticas.

Palavras-chave: Arthur Bispo do Rosario, Arte, Memória, Trabalho artístico, Sociologia.


ABSTRACT

During his passage through the earth, Arthur Bispo do Rosario participated in several categories of exclusion: race, social origin, clinical condition, social status, all of them properly transmuted by the force of the truth of his work, that encourages and mobilizes the perception, requesting different aspects of the universe of human expressions. The conducting line of this work addresses the artwork giving a secondary role to the pathology and relativizing it. This way, it adopts as perspective the voice of the exclusion. This work priorizes the reflection over the art making and the "bedeuten" (meaning) in its most intimate and profound sense, articulating personal and social memory with the concepts of art resignified and imbricated through the point of view of an inmate of a psychiatric institution and, in consequence, alienated from the world. The textile artwork of Bispo do Rosario is the portrait of the Brazil shortly after the abolition of slavery, a country in which is present a rustic form of Catholicism, craft traditions and folklore. His work is interpose imposed, for its richness of expression, as a potential instrument for reflection on social, humanitarian and of course aesthetic questions.

Keywords: Arthur Bispo do Rosario, Art, Memory, Artwork, Sociology.


 

 

Olha quantos estão comigo
Estão sozinhos
Estão fingindo que estão sozinhos
Para poder estar comigo

Stela do Patrocínio

Arthur Bispo do Rosario2, sergipano de Japaratuba, nasceu no despontar do século XX, em data imprecisa e controversa. Nos conflituosos registros da Companhia de Energia Elétrica Light e nos da Marinha de Guerra – instituições onde trabalhou – constam, respectivamente, 1911 e 1909. Apenas 21 anos apartam seu nascimento da marca escravagista, avizinhando-se da Abolição da Escravatura (1888). Portanto, um passado ainda recente insinua-se no trato para com os novos cidadãos: negros, pobres, nordestinos e recém-libertos da promissora modernidade industrial.

A pequena Japaratuba formou-se com vários engenhos no entorno da Missão, delineada pela tradição religiosa e quilombola (hoje, povoado de Patioba). Sua emancipação se deu em meados de junho de 1859, mas só se tornou uma cidade em agosto de 19343. Um intenso fluxo de escravos, em determinado período, somou a maioria da população. Foi nesse panorama de quilombolas, festas religiosas e tradições artesanais, em data incerta, que nasceu Arthur Bispo.

Jovem ainda, em 1925, transfere-se para o Rio de Janeiro onde trabalha como grumete na Marinha de Guerra e também na Companhia de Energia Elétrica Light, além de desenvolver outras atividades, como pugilista e guarda-costas. Pouco tempo depois, às vésperas do Natal, Bispo é encontrado vagando pelas ruas do Rio em um surto psicótico, anunciando-se Mensageiro da Passagem.

Pouco se sabe sobre o passado de Bispo antes do surto e o que o levou a esse quadro e à retenção na Colônia onde, por 50 anos, produziu abundantemente sua arte. O evento marcou profundamente sua trajetória, não obstante Bispo nunca ter se pretendido nem ter se considerado artista. Era um prisioneiro de sua missão.

 

1. Desconstrução e ressignificação

Bispo destecia pacientemente os tecidos dos uniformes da Colônia Juliano Moreira onde vivia, colecionava os fios para posteriormente utilizá-los bordando profusamente seus artefatos com acabamento exemplar. Mais precisamente: o destecimento dos uniformes e lençóis azuis da Colônia Juliano Moreira e o retrabalho sobre o material, que resulta nos uniformes com talhe aos moldes daqueles da Marinha de Guerra; além de estandartes, faixas e outras peças têxteis.

Talvez tenha sido o intrigante ato de desconstrução e (re)construção4 do seu fazer o que instigou a curiosidade e a pesquisa que desenvolvi por dois anos, cujo recorte encerra somente os artefatos têxteis do acervo. Segundo o curador do Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro, o acervo conta com 806 peças catalogadas. As amostras que têm como suporte artístico tecidos e vestuários bordados somam cerca de 85% do total.

Esse estudo traçou uma reflexão a partir dos significados e sentidos sociais desses trajes e artefatos bordados e de seu fazer, condicionados às várias experiências e situações de exclusão vividas tanto em Sergipe quanto no Rio de Janeiro, então capital da República. Esses elementos me proporcionaram olhar para a obra de Bispo do Rosario sob um ângulo que preteriu a patologia e enfatizou o vivido e a memória como ressonância no que tange às questões da arte. No entanto, considero relevante o fato de o artista sustentar o quadro diagnosticado de esquizofrenia paranoide. Não obstante ter sido secundarizado, tratei-o como decisivo, por se configurar como forte contingência de vida.

Sua condição emocional e psicológica é paradoxal: os mesmos punhos de pugilista destecem os fios dos uniformes e lençóis da Colônia e, com eles, rebordam delicadamente os uniformes (re)construídos aos moldes dos da Marinha, reminiscências da tradição artesanal sergipana. Restos e sobras do mundo são transformados e colocados em obra, a serviço do divino.

O contexto histórico-geográfico em que está inserido, suas tradições religiosa, folclórica e artesanal, são reiteradamente referenciados na arte de Bispo. Os quilombos, engenhos e missões de Japaratuba formam o panorama que traçou os primeiros contornos da memória do artista negro, reminiscente de uma população de escravos libertos.

A religiosidade norteou a forma como são articulados seus artefatos, guiou seu trabalho. Tal contexto, relacionado aos quadros de exclusão e de reclusão do artista, aponta para os significados dos insumos por ele adotados. A obra é expressão de uma mitologia pessoal e de um rito catártico.

Curiosa e original, é a maneira como destece os fios azuis dos uniformes da Colônia Juliano Moreira e reserva-os, para posteriormente utilizá-los na modelagem de talhe daqueles da Marinha de Guerra, incluindo insígnias bordadas e (re)bordados ornamentais extras, tornando-os ainda mais exuberantes e revelando certa superioridade na estrutura hierárquica da corporação.

Os uniformes, ora desconstruídos, ora reconstruídos, têm um peculiar emprego de materiais, aliás inusual e prematuro àquela altura. Como poderia ele supor que o procedimento viesse a ser exaustivamente utilizado em obras contemporâneas? E mais: antecipando, talvez, as atuais discussões sobre o significado e o ônus dos manufaturados, seu reaproveitamento e impacto sobre o meio ambiente – ainda que Bispo opere na ressignificação desses objetos de modo não exatamente fundado no contexto ideológico exposto, mas, em tese, em função da precariedade da oferta.

 

2. Paradigmas de visualidade

Não obstante sua obra apresentar semelhanças formais com outras da vanguarda artística do período, Bispo constrói seu legado (alienado, talvez?) às guerras na Europa, ao existencialismo e às poéticas dadaístas, por outro lado preserva uma desconcertante familiaridade – exclusivamente formal, importante salientar – entre a Roda da Fortuna e o Vaso Sanitário, de Bispo com certos ready-mades, como a Roda de Bicicleta, e "La Fontaine" de Duchamp.

Além da formalidade plástica que os aproxima, há uma mesma direção, porém de sentidos opostos: na eleição de objetos manufaturados dos dadá para se tornarem ready-mades está subentendido o desafio e a negatividade dos objetos técnicos que distanciaram-se da natureza e da divindade primitivas; em Bispo, o processo é um retorno à natureza e à divinização, é recuperação de uma tradição religiosa ou replicação de um rito catártico. Como explica Octavio Paz (1977), para os antigos a natureza era uma deusa ou abrigava deuses. Sua energia manifestava-se em três tempos: nascimento, cópula e morte. Os objetos não nascem, não morrem. São fabricados e, quando gastos, tornam-se inúteis. O lixo é seu túmulo. A técnica é a natureza do homem moderno. Ela se interpõe como uma muralha entre nós e a natureza, desalojando-a e destituindo-a. A técnica é a mais efetiva vontade do poder. O ready-made é dupla negação: o gesto e o próprio objeto são negativos. Tudo nele nega a técnica, e o artefato em si se converte em coisa inútil. O sentido de Bispo é o da recuperação dos objetos que tornaram-se dejetos, e sua reevocação, à serviço do divino.

As tentativas de aproximação desses artistas e obras são, provavelmente, lícitas. Mas deixam uma inelutável provocação: relacionar a poética de Bispo do Rosario à de um artista pertencente a um mundo tão diverso – igualmente genial, obviamente – não seria olhar para obras de artistas outsiders sob um referencial hegemônico, intelectualizado, europeizado e que obedece à demanda de uma "arte culta"?

Por outro lado, seria possível que tivéssemos "vistas" para obras tão inquietantes como a de Bispo do Rosario e Judith Scott, por exemplo, senão sob novos paradigmas de visualidade proporcionados pela estarrecedora passagem desse artista-pensador que foi Marcel Duchamp, que abalou o status quo definitivamente? Em todo caso, sejam os artistas outsiders ou nós, apreciadores perceptivos, todos somos perpassados por uma dada cultura ou tradição. Estamos constantemente nos relacionando com ela. Não precisamos recorrer a ela para regular campos a que escapam, mas tampouco precisamos dar-lhe as costas. Talvez uma maneira justa seja aproximá-las, deixando-as "respirar", mas adicionadas, multiplicando sentidos.

Portanto, Bispo cumpre o mesmo percurso, refaz os passos de Duchamp, porém na contramão. Seu "querer-dizer" (Derrida, 1994) é outro. Procura recuperar a divindade natural, resgatada dos objetos técnicos que se tornaram dejetos. Devolve esses objetos à sua natureza divina. Transporta-os da lixeira-túmulo ao realojamento, retorno e superação das barreiras entre humanidade e divindade. E o faz absolutamente comprometido com seu caminho pelo mundo, o mundo duro das exclusões, mas também do encanto das tradições.

A vida tende à morte, mas o não vivo precede o vivo. É o dualismo das pulsões de Freud (1974): as de vida e as de morte. Essa avaliação aponta para a expectativa de transcendência do artista e da obra em si, como talismânica ou votiva, flagrantemente expressa em cada fio dos seus pontos bordados.

A escolha de materiais não é mero acaso no fazer de Bispo e nem tampouco e somente contingencial. Não é simples e passiva aceitação. Há algo que demanda experiência do artista, solicita a memória. É justamente no ato da escolha e eleição de tais dejetos que reside o processo de reinvenção, de reconstrução e de ressignificação de seu mundo: memorial de possibilidades inusitadas.

 

3. Entre exclusão e transcendência

Bispo, negro proveniente de uma população de escravos recém-libertos, sem família, um excluído social que tem como agravante o quadro de esquizofrenia paranoide diagnosticado, em condição de retido manicomial, só encontrou uma saída para a reorganização de um mundo mais justo. As leis dos homens não foram suficientes para salvá-lo. Recorreu às divinas, e escolheu trilhar esse percurso e embelezá-lo com seu talento e sua dedicação. Cada um desses objetos escolhidos é ressignificado pelas mãos de Bispo. É um bordado minucioso em que coisas aparentemente insignificantes convivem adquirindo novas cores, nova vida. Dividem harmoniosamente o espaço num outro mundo, melhor e perfeito. Assim como ele próprio, seus objetos abandonam a posição à qual tinham sido originalmente vocacionados e assumem um posto nobre e digno.

Há inúmeras ocasiões em que a obra escapa do autor, como ocorre com Bispo e seu acervo. Na leitura delas cabe perfeitamente o abandono de todas as hipóteses normativas e o estabelecimento de reconsiderações e desconstruções idênticas aos processos de Bispo, as quais elevam a arte à categoria do instável. O procedimento proposto pelos desconstrucionistas – como Jacques Derrida (1930-2004) – de questionamento de conteúdos, construções e interpretações, aqui é bastante apropriado tanto para o processo artístico em si quanto para sua interpretação.

Essas construções falam coisas diferentes, em diferentes momentos histórico-sociais para diferentes indivíduos. Os significados são desconstruídos e reconstruídos com base nessas diferenças. Bispo reinterpreta os objetos (e essa reinterpretação não é ocasional), e nós reinterpretamos esses artefatos agora como culturais. O fato de assim os categorizarmos já demonstra um processo de ressignificação, tal qual a escolha de uniformes como suporte artístico, por exemplo. Portanto, que sentido há no fato de ele promover justamente seus antigos uniformes da Marinha e da própria Colônia de internação elevando-os à categoria de obras de expressão pessoal reunidos num rito catártico? Por que uniformes?

Segundo Bakhtin (2002), a consciência se forma com os signos compartilhados e relações sociais. O uso dos uniformes está ligado a um sentido social mais amplo – e para Bispo ao mesmo tempo íntimo –, pontuado por uma consciência inconstante. Apresenta elementos comuns nas relações do artista com o ambiente em que viveu antes de sua reclusão (uniformes da Marinha), e nas relações com o ambiente da Colônia (uniformes dos internos), reiterando a escolha como eleitos.

 

4. Memórias de Japaratuba

Quando pensamos em lembranças, nos perguntamos de que se lembra, e de quem é a memória. O lado egológico da experiência mnemônica, supõe-se como o mais preponderante: lembrar é antes lembrar de si mesmo. As recordações também solicitam tempo e espaço e, ainda, a corporeidade representativa do espaço e do tempo vividos, como um processo de relacionamento de si com o outro: o meu aqui, delimitado pelo corpo de outrem. A lembrança confronta o "mundo da experiência" com o "mundo da fantasia" (Ricoeur, 2010, p. 66). O primeiro é comum, subjetivo, enquanto o segundo é completamente livre, indeterminado.

Ricoeur separa memória de imaginação, em um procedimento quase didático, preservando, dessa forma, seu caráter veraz e fidedigno. No entanto, a memória não existe sem a imaginação. Todo lembrar é um exercício de recriação que traz, para o presente, uma presença passada ou quase presença. As lacunas são preenchidas por informações às vezes interpretadas de modo bastante subjetivo.

Existe uma distinção importante entre a reflexividade e a mundanidade da memória (Ricoeur, 2010). Não nos lembramos somente de nós. Lembramo-nos do que vimos, percebemos ou aprendemos. São experiências que implicam nossos corpos e o dos outros, o espaço em que se viveu no qual coisas ocorreram. Esse traço irrecusável que todos portamos, a memória da interioridade, é a reflexividade ou a fonte de si mesmo, impregnada de subjetividade e possibilidade de interpretação próprias, que se chocam com a mundanidade.

A construção dessa polarização baseia-se nas vidas íntima e coletiva. A mundanidade da vida coletiva é explicitada na corporeidade dos indivíduos e na espacialidade dos rituais e seus ritmos de celebração. O tempo e o espaço onde se desenvolve a cena memorial e onde os celebrantes se encontram, propiciam o cumprimento ritual do calendário de festas; articulam a reunião comunitária na intersecção dos espaços e tempos fenomenológico e cosmológico: "[...] a espécie de perenização, operada pela série das reefetuações rituais para além da morte um por um dos cocelebrantes, não faz de nossas comemorações o ato mais loucamente desesperado para fazer frente ao esquecimento em sua mais sorrateira forma de apagamento dos rastros, de devastação?" (Ricoeur, 2010, p. 60).

O processo criativo do artista é ritual. A religiosidade vivida nas festividades de Japaratuba, reminiscente na memória do homem, está representada na experiência do artista. Em tempo: o próprio Bispo chamava suas obras de representações. Nas obras, figuram coisas: objetos coletados que compõem uma narrativa histórica e ainda personagens, cujos nomes ilustram os bordados nas bainhas do Manto ou acontecimentos e fatos, como os nomes das misses.

A exemplo de Frances Yates (2007), Ricoeur defende que a memória artificial busca efiiência nas correspondências entre fatos, com lugares e tempo vividos, objetivando o uso intencional e sistemático da memória. Associar imagens a lugares dispostos em um determinado sistema de organização, como um cenário, por exemplo, é uma maneira de fazer uso desse artifício de armazenamento e evocação. Informações são ordenadas, relacionadas e obedecem a uma ordem preestabelecida (Ricoeur, 2010, p. 76). A organização espacial por trás das lembranças que transbordam das imagens não é apenas a reprodução de um vivido passado. Reproduzir não é necessariamente – diz Ricoeur – "dar em pessoa". Ser "mais uma vez dado" não é apenas dado. As situações e condições em que ocorrem a reprodução do passado estão na dimensão posicional da relembrança.

 

 

O reproduzido recobre um agora passado (Derrida, 1994). O fenômeno do reconhecimento nos transporta para a lembrança de algo que está ausente, mas que mantém marcada sua presença pela evocação de sua lembrança, como os bordados nos uniformes. É pela emanação de um outro passado que a presença é reconhecida como ela mesma. "E a 'coisa' reconhecida é duas vezes outra: como ausente (diferente da presença) e como anterior (diferente do presente)." (Ricoeur, 2010, p. 56) São as re(a)presentações, percebidas como o "re" em duplo sentido: para trás e de novo.

Os uniformes bordados são duplamente reconhecidos: a quase presença de um passado militar (de seu protagonista), pelo reconhecimento de seu talhe. Mas também, de maneira mais sutil, mas igualmente explícita, como objetos rituais que evocam a memória das Missões de Japaratuba. A mnemotécnica enaltece a imaginação e a memória é apenas um anexo. O processo de organização espacial embaça, pouco a pouco, a temporalidade. As imagens físicas (Bild6) oferecem melhor suporte por servirem como lembrança posicional, mais próxima da percepção.

 

5. Memoração, tradição e salvação

Memória e religiosidade – representadas na concretude da obra sob a forma de elementos profanos e sacros – dividem o espaço plástico em um convívio harmonioso.

O olhar do espectador contemporâneo transporta esses artefatos para outra dimensão diferente daquela que, sob paradigmas religiosos, foi originalmente construída, revocacionando os objetos, assim como fez o artista recuperando objetos técnicos. Bispo cumpre um roteiro semelhante ao do olhar de um espectador contemporâneo, que atesta a laicidade do estatuto atual de suas peças, como artísticas e não como fora proposto pelo artista: um estigma sacro. A religiosidade, inegavelmente impregnada na memória de Bispo, é reminiscência das festas religiosas e das missões de Japaratuba integrada à obra. São as condições do psiquismo indissociáveis das condições sociais.

Bispo desafia a finitude e o tempo. Seu trabalho é uma recusa ao espaço-tempo, já que a memória é conformada em um tempo suspenso, reconstruído e imaginário, flagrado na concretude dos objetos, dejetos e materiais eleitos.

Em tempos remotos, a natureza era uma deusa responsável pela origem, nascimento e morte das divindades antigas. Os objetos não nascem nem morrem, são fabricados, usados, tornam-se inúteis e são descartados. A técnica transforma a natureza desumanizando-a, desalojando-a. A técnica é o afastamento e a negação da natureza e também do divino. Bispo recupera a divindade natural, transformando dejetos em rito religioso, devolvendo-os à sua natureza primeira: divina.

Em seu ritual, objetos são transportados para uma dimensão de infinitude, talvez até de si mesmo, como um rito de transcendência. Em contrapartida, por se tratar de um artista com quadro clínico de esquizofrenia, a realidade das coisas materiais, sua estabilidade e sua inércia são formas de construção de um ponto referencial cuja concretude lhe dá estabilidade e pertencimento. Por meio da arte seria possível o transbordamento dos conteúdos traumáticos expressos em artefatos imagéticos. Bispo, por exemplo, se vale da visualidade, mas preserva o descritivo e textual incorporado como elemento formal. Essas escrituras são, também e ao mesmo tempo, elementos plásticos. A obra estabelece um rito, e os objetos são a presentificação divina, talismânicos.

Os espaços que surgem a partir de cada objeto artístico constroem estrias entre representação e percepção, que estabelecem um "ver segundo" ou um "ver com", como uma fronteira simbólica entre duas realidades vividas (Escoubas, 2005). Não é mera reprodução do real, mas das condições de visibilidade em dado contexto. Bispo perverte a ordem lógica tradicional das coisas, apropriando-se de dejetos e outros utensílios e materiais desprezados, de maneira inusual.

Esses trabalhos transpõem barreiras de tempo e de espaço e nos desafiam à reflexão e ao esforço intelecto-sensorial. Dizem coisas diferentes, para pessoas diferentes, em diferentes momentos histórico-sociais. Esses significados são desconstruídos e reconstruídos com base nessas diferenças. Bispo reinterpreta objetos, e nós, os seus artefatos, que tornaram-se arte. O fato de categorizarmos esses objetos como culturais aponta para a infinitude da obra de arte e de suas ressignificações.

Desenhando o entorno sociocultural em que o homem atuou, procurei, a partir dele, "ouvir" o que a obra dizia. E o que dizia fazia sentido por si. Esse foi um dos motivos que me levou a relativizar a esquizofrenia e a considerá-la contingente, em profundo respeito pelo sofrimento do artista genial.

De tempos em tempos surge um tipo de personalidade que, como uma planta que não sobrevive sem água e sol, igualmente não dispersa sua passagem pela vida sem expressar-se convulsivamente – e o faz com inigualável profundidade –, destacando-se pela força de verdade de sua narrativa.

 

Referências

Bakhtin, M. (2002). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Derrida, J. (1994). A voz e o fenômeno. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Escoubas, E. (2005). Investigações fenomenológicas sobre a pintura. Kriterion, 46 (112), 163-173.         [ Links ]

Freud, S. (1974). Mal-estar na civilização. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 21, pp. 81-279). Rio de Janeiro: Imago        [ Links ]

Hidalgo, L. (1996). Arthur Bispo do Rosario, o senhor do labirinto. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Keller, A. J. (1994). Michaelis: pequeno dicionário alemão-português, português-alemão. São Paulo: Melhoramentos.         [ Links ]

Paz, O. (1977). Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Ricoeur, P. (2010). A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Unicamp.         [ Links ]

Yates, F. (2007). A arte da memória. Campinas: Unicamp.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
SOLANGE DE OLIVEIRA
Rua Apinagés, 930/88
05017-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3868-3886 / 11 98404-7225

Recebido: 05/09/2013
Aceito: 22/11/2013

 

 

* Doutoranda pesquisadora do programa de Psicologia Social. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IP/USP.
1 Esse artigo é parte de minha pesquisa para a dissertação de mestrado Uniformes e re-bordados de Bispo do Rosario, mundo desconstruído e ressignificado, realizada no Programa de Mestrado em Têxtil e Moda da Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, em 2012, sob orientação do Prof. Dr. Waldenyr Caldas, titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
2 Como procedimento metodológico, assumo a data de nascimento imprecisa e o nome do artista Arthur Bispo do Rosario sem acento, conforme estabelecidos por Hidalgo (1996).
3 Dados disponíveis em: http://www.japaratuba.se.gov.br/. Acesso em: 15 mar. 2011.
4 Há dois tipos de projeto de vestuário no acervo. O primeiro compõe-se por apenas um dos uniformes e pelo Manto da Apresentação. São modelados a partir de uma amostra de tecido ou, no caso do Manto, de um cobertor. No segundo tipo, o conjunto dos demais uniformes, foram utilizados jaquetões – provavelmente agasalhos de inverno da própria instituição, ou alguma outra peça que lhe caísse à mão – e sobre eles Bispo customizou uniformes assemelhando-os aos da Marinha de Guerra, onde trabalhou como grumete. Disso decorre que temos uma produção em fases. A etapa inicial é uma modelagem e insígnias bordadas de talhe militar, em seguida as peças ganham ornamentos extras insinuando superioridade hierárquica, ainda que obedeça à padronização imposta por um corporação bastante estratificada como é o caso da militar. Não se trata, portanto, de construção e posterior reconstrução. Não julgo tratar-se de uma primeira fase de projeto a ser superada ou aprimorada pela que se segue. São imbricadas, somam-se. Assim, utilizo (re)construção: uma construção e outra construção. A concepção não é dialética ou por oposição, é orgânica.
6 "Bild Sn, -er imagem, figura; ilustração, estampa; quadro, pintura, tela; foto, retrato; aparência, visual; metáfora, símbolo; impressão". (Keller, 1994, p. 59)