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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.58 São Paulo July 2014

 

RESENHAS

 

O dinheiro dos psicanalistas

 

 

Suzanne Robell Gallo*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Berger, B. e Newman, S. (Orgs.). Money Talks: in therapy, society, and life. Nova York/Londres: Routledge, 2012. 191 p.

 

Este livro foi escrito na esteira da grande crise financeira de 2008 nos Estados Unidos. Foi o escândalo do mercado hipotecário de alto risco ("subprime"), o qual deixou milhares de pessoas desempregadas e sem ter como pagar as prestações de suas casas. Evidentemente, a crise fez parte do dia a dia dos consultórios de psicanalistas e, em decorrência disso, este oportuno conjunto de artigos foi publicado em 2012, por um grupo de psicanalistas de Nova York. Os analistas tiveram que renegociar seus honorários e viram sua quantidade de horas de trabalho declinar. Na América Latina, talvez estejamos mais familiarizados com instabilidades econômicas, porém, sempre é oportuno pensar sobre como os analistas lidam com dinheiro. Quanto estamos cobrando de nossos pacientes? Quanto deveríamos (ou não deveríamos) cobrar? O que o dinheiro significa na história pessoal de cada analista e como isso se reflete no trabalho com cada analisando? E os aspectos socioculturais do dinheiro? Vide, a respeito disso, por exemplo, o filme O Lobo de Wall Street. Estas questões podem parecer simples, porém, o livro Money Talks: in therapy, society, and life nos oferece a oportunidade de revisá-las e, literalmente, fazer um exame de consciência. Os artigos privilegiam os conflitos dos analistas. Apesar de um certo pragmatismo, característico da literatura psicanalítica norte-americana, há um importante alerta para ficarmos atentos a um assunto que pode ser, segundo o livro, o último tabu.

Fala-se do segredo que cerca a questão dos honorários – parece que há algo que nos envergonha no que diz respeito ao interesse pelo dinheiro. Muitos analistas sentem algum desconforto, seja por cobrar honorários muito altos, ou honorários considerados baixos pelo mercado, nos diz Theodore Jacobs, um dos autores. Outros comentam que, para muitos analistas, falar de dinheiro é mais difícil que falar de sexo, especialmente entre colegas. Cito Muriel Dimen: "A forma como os analistas falam, se comportam, e sentem em relação ao dinheiro, está repleta de desconforto, o qual é a manifestação superficial de uma profunda contradição psicocultural entre dinheiro e amor, contradição esta que não pode ser nem pensada, nem desejada, nem eliminada" (p. 99). Assim, entre psicanalistas, a maior parte das conversas sobre dinheiro ocorre de maneira informal.

Encontramos também a questão do enorme custo financeiro para a formação de um psicanalista e como esse custo pode facilitar atuações por parte dos candidatos. Um dos autores (Jacobs) sugere que as questões financeiras sejam cuidadosamente tratadas pelos analistas seniores com os candidatos: como o dinheiro pode afetar a escolha do paciente que será objeto da supervisão didática? Quais as implicações, especificamente durante os anos da formação, do analista depender financeiramente de seus pacientes? Será que analistas interrompem, ao fim dos anos de formação, as análises de pacientes que pagam pouco? As análises que duram muitos anos estariam relacionadas ao fato do analista depender financeiramente de seus pacientes? São questões aparentemente banais, mas que sabemos que são mal debatidas, aos cochichos, pelos corredores das sociedades de psicanálise ao redor do mundo.

Alguns analistas já ouviram, também muitas vezes em situações informais, a pergunta do amigo leigo que quer saber como os psicanalistas "dão alta" para os pacientes se deles é que vem seu sustento. A essa pergunta de um leigo, a respeito da qual encontramos uma anedota no livro (p. 13), corremos o risco de oferecer uma resposta um tanto pernóstica, dando a entender que seria muito complicado explicar, nessa ocasião informal, a complexidade teórica, que faria aquele indivíduo entender que de maneira alguma abusamos dele; que o dinheiro é parte indissociável da análise (Freud, 1913/2010). Porém, que o nosso seja um comércio como outro qualquer? Isso nós não conseguimos engolir com tanta tranquilidade, nos diz um dos artigos. Somos profissionais, artistas, artesãos das transferências – tudo menos comerciantes. Profissional liberal é o termo correto.

Quanto ainda precisamos refletir para evitar atuações contratransferenciais (incluindo aquelas que nos fazem cobrar, por vezes, preços excessivamente baixos de alguns analisandos)? No livro, Dimen se pergunta o que ocorre quando essa coisa das mais comuns, o dinheiro, paga pela mais pessoal das experiências, a jornada psicanalítica (p. 117). O momento do pagamento, nos diz ela, raspa desconfortavelmente nos anseios de amor que florescem no contato psicanalítico, ameaça destruí-los, e transformá-los em excremento. A tese central desse artigo de Dimen (o melhor do livro) é que: "no contato psicanalítico, a contradição entre amor e dinheiro, relação entre contrários, passível de ser transformada, encontra resolução reparadora e temporária, somente se transformada no paradoxo entre amor e ódio" (p. 124). Essa é a questão que todo analista deve ter em mente: cobramos honorários para restaurar a dimensão amorosa do desejo. Na situação analítica, vislumbra-se tanto a totalidade do amor original quanto o terror da ausência absoluta deste. Por algum motivo histórico, o dinheiro tende a ser associado, em seus aspectos positivos, ao bem-estar, e nos negativos, à ausência absoluta deste. Um dos autores comenta que alguns analistas se envergonham secretamente de depender financeiramente de seus analisandos. Lembremos que desejo é desejo do momento que nunca verdadeiramente alcançamos. O nosso ofício é o de construir memórias, tanto as boas quanto as terríveis. Para isso somos pagos. Disso depende o nosso sustento. Por isso, temos que estar em dia com o dinheiro, nos dizem os autores do livro, e pensar de que forma estamos inseridos nesta era do direito à ganância desmedida.

Retomando o segredo que ronda a questão dos honorários, um dos autores, Irwin Hirsch, comenta que sempre que viaja a trabalho, assim que os colegas tomam um ou dois copos de álcool, começam a trocar informações a respeito do valor dos honorários em seus respectivos países. E o leitor será tomado pelo tipo de "deleitevergonha" que experimenta em situações em que é apanhado de surpresa por algo que já quase sabia de si próprio.

Há também, em um dos artigos, a questão da análise dos muito ricos. Este tipo de situação nos obrigaria a pensar em que representações de riqueza estão em jogo na transferência. Qual o poder dessas representações no inconsciente da dupla analítica? O analista corre risco de, mesmo sendo eticamente inimputável, deixar-se tomar por um desejo de reconhecimento e gratidão por parte dos muito ricos, o desejo de ser especial, de fazer parte, ainda que secretamente, da vida do analisando? Em momentos em que o analista é desvalorizado na transferência, pode surgir a inveja e, por isso, o analista buscará refúgio em ilusões de superioridade moral? A inveja do analista pode provocar nele um prazer privado quanto ao sofrimento em, por exemplo, alguma crise de valores do analisando muito rico. É duro elaborar que fazemos parte do staff, parte importante do staff, nos diz um dos autores, porém staff: descartáveis e substituíveis (este parágrafo contém tradução livre de alguns trechos da p. 31).

Encontramos no livro bons artigos sobre o dinheiro na análise de crianças, adolescentes e adultos jovens, assim como de casais e família. São também abordadas questões de gênero e o dinheiro.

Vale terminar com uma citação do livro: "Que amor e ódio caminhem juntos, é um lugar-comum analítico. Porém, que no calor do amar e do odiar nós nunca lembremos disso, é isso que, talvez, seja sabedoria" (p. 124). E então surge o dinheiro que nos servirá de lembrete para que não esqueçamos de que somos feitos de carne e osso, de que ganhamos o pão com nosso ofício diário e de que a prática psicanalítica nem sempre é sublime.

 

Referências

Freud, S. (2010). O início do tratamento, novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I. In S. Freud,. Obras Completas (P. C. de Souza, trad., vol. 10, pp. 374). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
SUZANNE ROBELL GALLO
Rua Afonso Braz, 473/101 – Vila Nova Conceição
04511-011 – São Paulo – SP
tel.: 11 3842-4138
E-mail: suzannergallo@gmail.com

Recebido em: 28/04/2014
Aceito em: 09/05/2014

 

 

* Membro filiado da SBPSP (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo), Mestre em psicologia Clínica pela PUC-SP.