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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo July./Dec. 2017

 

EM PAUTA | INTERPRETAÇÕES DA CULTURA

 

Entre a criança e o adulto, entre a floresta e a cidade

 

Between the child and the adult, between the forest and the town

 

 

Raya Angel Zonana

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Uma pequena cidade da Dinamarca é o cenário de A caça (Vinterberg, 2012). Dentre as muitas vertentes que o filme sugere, o foco da autora, com um olhar psicanalítico, singular, recai sobre um objeto fundamental da psicanálise: a sexualidade infantil, que nasce nas delicadas trocas entre o adulto e a criança e perdura no inconsciente do adulto. O entorno sociocultural em que ocorrem essas trocas marca a estrutura psíquica do sujeito e, assim, da comunidade. A partir disso, a autora observa que o que existe de mais íntimo em cada ser, contém em si o estranho - Das Unheimliche (Freud, 1919).

Palavras-chave: Sedução. Fantasia. Sexualidade infantil. Inconsciente. Estranho.


SUMMARY

A little Danish town is the set for The Hunt (Vinterberg, 2012). Among the many themes that the film suggests, the author focuses her particular psychoanalytical regard on a fundamental object of psychoanalysis: child sexuality, which emerges from the delicate exchanges between the adult and the child and persists in the adult's unconscious. The sociocultural environment in which these exchanges take place defines the psychological structure of the subject and, thus, of the community. With this in mind, the author observes that what exists of most intimate in each person contains in itself the uncanny - Das Unheimliche (Freud, 1919).

Keywords: Seduction. Fantasy. Child sexuality. Unconscious. Uncanny.


 

 

 

Uma maneira cômoda de se travar conhecimento com uma cidade

é descobrir como lá se trabalha, como se ama e como se morre.

(Albert Camus - A peste)

Por que tomar um filme como tema para um texto cujo foco é a psicanálise?

A lente através da qual o mundo é filtrado ao olhar cria nossa singularidade. Como psicanalista, o que invade os meus sentidos me envolve, me impregna e inevitavelmente é matizado pelas tintas de meu ofício. O cinema, a literatura e as artes em geral, são elementos pulsantes, propulsores de vida, de palavras, de sentimentos que, por vezes, impõem a escrita, forma de elaborar o pensamento clínico. É por meio dos "escritores criativos" (Freud, 1908/2016) que nos habitam que, muitas vezes, a vida acontece em nós. Dessa forma, encontro nessas fontes material que me fecunda e me instrumenta para, a partir da cultura, pensar a clínica e as questões teóricas por ela suscitadas.

E por que A caça (Vinterberg, 2012)?

O difícil trânsito na comunicação entre os personagens, em que diferenças levam à incompreensão, certezas levam à dificuldade de escuta, impedindo uma possível reflexão, e o ambiente peculiar em que a trama ocorre, foram pontos que se impuseram a mim e me comoveram. Em especial, fui tocada por um momento do filme que moveu minha escrita: o encontro/desencontro entre a fantasia de Klara e a rigidez das interpretações engessadas pelo caldo cultural que a cerca, centrada em Lucas, seu professor.

A diferença de línguas entre a criança e o adulto - tema fundamental do pensar psicanalítico - e a delicadeza com que, a todo momento, construímos a cultura, me fez tomar esse filme como matéria para um pensar psicanalítico.

Incitada por tantas vertentes, inicio este texto com uma das cenas de A caça.

 

Cena 1: sutis diferenças

"Qual é seu prato favorito?", pergunta Klara.

"Carne de caça. É do que mais gosto", é a resposta pronta e rápida de Lucas.

"E eu gosto de nuggets de peixe", diz Klara.

Esse diálogo ocorre enquanto Lucas, professor do jardim de infância de uma pequena cidade no interior da Dinamarca, acompanha Klara, sua aluna de cinco anos, até a casa dela, caminhando por verdes alamedas em que a natureza invade as pedras do calçamento. As diferenças entre a criança e o adulto e a floresta e a cidade já se explicitam na conversa sobre as aparentemente banais preferências alimentares, nessa que é uma das cenas iniciais do filme A caça, de Thomas Vinterberg.

Thomas Vinterberg e Lars Von Trier criam, em 1995, um estilo de cinema denominado Dogma 95. Com a ideia de abolir o que era artificial na feitura de um filme, fazer um cinema mais realista e menos comercial, suas produções seguiam determinações explícitas. Assim, a câmera deveria estar na mão, seguindo os personagens e seus movimentos com intimidade; o som e a luz teriam de ser diretos e naturais do local da filmagem e não se usariam filtros ou elementos que alterassem a verdade da cena. O objetivo era forçar a verdade existente nos personagens e libertar a fantasia do espectador.

Dito dessa maneira, poderíamos pensar que o cinema proposto por Vinterberg e Trier se assemelha a um setting psicanalítico, no qual se espera que o analisando possa dar vazão a suas fantasias, liberando os vários personagens dos quais se compõe, sem filtros ou elementos que alterem a sua verdade mais íntima, enquanto é sutilmente acompanhado em seus movimentos pela escuta livre do analista, para que possam, os dois, viver sua história íntima.

Entro em A caça como espectadora psicanalista, como em um sonho. O que experimento com o filme me propõe ideias e interrogações que procuro elaborar pela singular relação que a película constitui com meu olhar, em "uma silenciosa abertura ao que não é nós e que em nós se faz dizer" (Frayze-Pereira, 2006, p. 24). Crio, assim, uma trama psicanalítica, e o filme tor-na-se para mim interpretante e não um objeto de interpretação, uma forma de pensar questões da psicanálise a partir de outros elementos que perfazem a cultura. Num trabalho elaborativo, como psicanalista, sobreponho meu olhar à visão do cineasta. Por meio dele, entro na repentina transformação que acontece em uma pequena cidade dinamarquesa. É quase uma aldeia, pequena e peculiar, híbrida, mesmo que fique nítida a separação entre o traçado das ruas - a geometrização que caracteriza o urbano - e a natural desordem e densidade da floresta. Nessa pequena cidade situada na Dinamarca, passa-se o filme A caça.

Se as cidades são feitas das vidas que as povoam, habitadas por sujeitos com várias vozes, vários olhares, são esses sujeitos e suas histórias que determinam a história e a subjetividade dos espaços em que vivem, amam e morrem. É a relação entre o espaço e os homens que o ocupam que cria a cidade, e como toda estrutura criada pelo humano, a cidade também tem uma história. Nesse caso, para sabermos um pouco mais do solo em que pisamos, descobrimos que a Dinamarca é o país com menor índice de desigualdade social do mundo e que, nos últimos anos, pesquisas têm classificado-a Dinamarca como "o país mais feliz do mundo", com base em cálculos complexos que consideram fatores como renda per capita, expectativa de vida saudável, liberdade para se fazer escolhas de vida, assistência social, educação, generosidade e bem-estar. Pelo Índice Global da Paz (2016), que analisa os esforços de paz e a forma de administrar conflitos tanto no interior do país como no exterior, de 2011 a 2015, a Dinamarca manteve-se como o segundo país mais pacífico do mundo, e o menos corrupto.

É nessa Dinamarca que Thomas Vinterberg inaugura o estilo Dogma 95, com o filme Festa de família. Durante a celebração que dá título ao filme, os filhos revelam que o pai os assediava sexualmente na infância e adolescência, algo conhecido pela mãe, que nunca efetivou oposição. Tal revelação expõe uma estrutura interna familiar perversa sustentada por uma frágil aparência. Ao ser filmado com base nos preceitos do Dogma 95, a película se mostra borrada, escura, pouco nítida e, como a câmera segue os movimentos dos atores, uma sensação de vertigem e náusea aumenta o mal-estar criado pelo tema do filme.

Em A caça, já distanciado do estilo Dogma 95, o diretor nos leva a cenas mais claras, iluminadas, o que nos convida a entrar nesta cidade dinamarquesa, quase um subúrbio, alimentada por um rio límpido, circundada por uma densa floresta em que passeiam pacíficos cervos que alimentam uma das tradições locais: a caça. O contraste na apresentação dos dois filmes marca também a diferença na maneira como o diretor retoma a questão do incesto e da pedofilia. Curiosamente, Vinterberg faz, por meio do foco sob o qual ilumina o tema, um caminho semelhante ao de Freud em sua teoria da sedução. Em Festa de família, o diretor explicita um pai sedutor, perverso, que executa o ato incestuoso em sua realidade, assim como as histéricas fizeram o criador da psicanálise acreditar em seus estudos iniciais. Já em A caça, aproximamo-nos do poder da fantasia incestuosa que também a escuta de Freud capta na fala de suas pacientes, e que o faz escrever a Fliess em 21 de setembro de 1897: "Não acredito mais em minha Neurótica" (Masson, 1986, p. 265).

Ainda que esse filme se passe mais de um século após as descobertas de Freud, e ainda que tratado de uma maneira diversa, o tema se mantém atual. Vinterberg mostra, por meio da fala fantasiosa de uma menina de cinco anos, como toda a comunidade se transtorna e deixa aflorar seus paradoxos.

 

Cena 2: entrando na história

A caça, em sua primeira cena, apresenta-nos o paraíso: homens nus brincam e se divertem à beira de um rio. Quando um dos homens mergulha e reclama de câimbras, teme congelar, é Lucas quem pula na água para "salvá-lo". Tudo se passa entre risos e brincadeiras. Lucas é amado pelos amigos e também pelas crianças, seus pequenos alunos que em brincadeiras o aguardam escondidos no jardim da escola, como caçadores silenciosos esperando pela presa. Ao entrar, Lucas é "atacado" pelo pequeno exército de crianças que se penduram em seu corpo forte e paternal. Para as crianças, Lucas é efetivamente um grande brinquedo, assim como para os homens da comunidade o grande brinquedo, o jogo favorito, é a caça ao cervo.

Após a caçada, o grupo de amigos se reúne em uma casa que me remete à caverna onde, imagino, a horda de irmãos se reuniu após o assassinato do pai, como sugere Freud em Totem e tabu (1913/2012). Ali, os amigos bebem e se alimentam da carne da caça ou, do Totem. Após o banquete totêmico, Lucas leva seu amigo Téo, embriagado, para casa com o mesmo cuidado com que às vezes leva Klara, filha de Téo. Lucas é "o pai", e talvez esteja aí traçado seu destino nessa comunidade de caçadores (Freud, 1913/2012).

Trazer a caça como tema dá o tom da história, uma vez que identifica o caldo cultural que banha o ideário dessa comunidade e desenha seu corpo. A caça ao cervo é tomada por Rousseau (1712-1778) em seu Discurso sobre a origem da desigualdade (1754/2001, pp. 95-96) em contrapartida à caça ao coelho. Para caçar um cervo, há de haver cooperação entre os caçadores para cercar o animal, alimento para muitos, e para isso todos devem se unir. Mas se um coelho, alimento para um só, passa e atrai o caçador, este pode caçá-lo sozinho e abandonar o grupo1. Entre os habitantes dessa aldeia dinamarquesa, caçadores de cervos, supõe-se que exista união, amizade e persistência.

Esses elementos compõem essa pequena cidade, que, como todas as cidades, se constrói pela maneira como acontece a comunicação entre os seres que a habitam. Os seres vivos emitem sons de dor ou prazer, mas a linguagem é própria do homem e, assim, somente ele tem o sentimento do justo e do injusto, do bem e do mal, [...] e a comunidade dessas coisas faz a habitação e a cidade (Aristóteles, citado por Matos, 2008).

Essa cidadela é cercada por uma grande floresta e o ambiente, "conjunto de relações e interações entre realidade psíquica e realidade física" (Argan, 2010, p. 216), tem certa especificidade evidenciada pela relação do território cidade/floresta com a comunidade. Os espaços físicos, como tudo para o humano, também ganham significado. "As estruturas do espaço não estão na realidade objetiva, mas no pensamento que as pensa" (Argan, 2010, p. 213), e a cidade, como construção do homem, é a expressão da diversidade, do distinto, do relativo. Em contrapartida, a floresta tem seu significado ligado ao inabitável, ao inacessível, ao espaço tomado pelas feras, pelos gênios do bem e do mal.

O espaço e aquele que o ocupa formam uma unidade.

O amor à caça e a vida entre cidade e floresta temperam o cenário no qual Lucas se destaca como um homem tímido, recém-divorciado, solitário e solidário com os amigos, principalmente com seu melhor amigo, Téo, pai de Klara. Dócil, cuidadoso com seus alunos, tímido com as mulheres, silencioso; quase um cervo, tão leve e manso se apresenta. Evita demonstrar a dor que sente pela falta do filho adolescente, impedido de vê-lo pela ex-mulher. É Fanny, sua também mansa cachorra, que expressa a raiva que seu dono evita declarar: late toda vez que Lucas pronuncia o nome da ex-esposa.

Por sua vez, Klara, com seu olhar pensativo, é uma menina sonhadora que se entretém sozinha, convive com as constantes discussões de seus pais e com o irmão adolescente que a atropela em sua infância, como quando, entre risos, assusta-a com a imagem de um "pinto duro como uma vara", que lhe mostra no tablet. Afinal, Ferenczi (1932/1992) tinha toda razão quando falava da confusão de línguas entre adulto e criança e do trauma que isso constitui para a criança. A essa imagem que a invade, Klara dará uma significação em outro momento.

Klara frequentemente sai de casa sozinha e caminha pelas ruas olhando para o chão, tomando cuidado para não pisar nas linhas do calçamento. Assim, por vezes se perde.

A noção de linhas que devem ser evitadas é outro tema do filme - as linhas de natureza física, social e moral, que são porventura cruzadas, podem tomar rumos imprevistos.

 

Cena 3: a cena e a outra cena

Ao se perder pelas ruas, essa criança pensativa, um pouco solitária, é encontrada por Lucas, que a leva para a casa dela, ou para a escola, com um cuidado que em certos momentos falta a seus pais, envolvidos que estão no cotidiano apressado da vida.

Como não se encantar por esse cuidadoso e atento professor? Klara o observa em uma brincadeira de luta com os meninos que fingem matá-lo. "Quem acorda os mortos?", pergunta Lucas, pedindo socorro em sua brincadeira. Como não socorrê-lo? Klara, como num conto de fadas, corre para beijá-lo nos lábios, como faria um príncipe para salvar sua princesa. Pouco antes, ela havia deixado no bolso de Lucas um presente: um coração colorido no qual a inscrição "Klara", em sua letra infantil, carrega o que Roland Barthes descobre no presente amoroso: "O presente amoroso é solene; [...] me transporto nele por inteiro. Através desse objeto, te dou meu Todo [...]" (1991, p. 66).

Ainda que Lucas, delicado, com leveza, evite esse contato, afastando-a cuidadosamente, não pode impedir a dor de Klara em seu amor não aceito. O imenso cuidado nas palavras de Lucas não o resguarda da reação de ódio que sua rejeição provoca. O que para Klara era um terno beijo que acordaria seu belo adormecido, foi lido por Lucas como um contato sexual indevido entre um adulto e uma criança. Preso às regras, cuidando para não pisar nas linhas, suavemente, diz à Klara que esse "tipo" de beijo só se dá na mamãe e no papai, e um presente assim deveria ser dado a um menino de sua idade ou à sua mãe. Novamente a confusão entre a ternura do infantil e a sexualidade do adulto. Klara nega ter deixado o coração no bolso de Lucas - deve ter sido brincadeira de algum dos meninos -, diz. Pega em sua fragilidade, a menina mente. O coração de Klara tinge-se de tons de tristeza e raiva. Naquele dia, como acontece algumas vezes, Klara é a última a ser buscada na escola. Sentada em um canto escuro da escola, quase escondida, com um olhar grave, a menina mostra em toda a plenitude a ambivalência à qual o amor expõe. Vinga-se por amor: diz à diretora que detesta Lucas porque ele é "idiota, feio e tem um pinto que é levantado como uma vara". Repete o que ouviu de seu irmão, colado ao que bruscamente lhe foi mostrado no tablet. Logo a seguir, num tom ameno, sorrindo, pergunta se Papai Noel virá este ano. Estamos no mundo da fantasia.

No olhar da diretora, porém, o que transparece é o fantasma do abuso sexual e a dúvida. Isso ganha força ao se deparar com Lucas conversando com a jovem e bonita ajudante da escola, e notar falas e gestos de intimidade e sedução entre os dois. A sexualidade desliza entre Lucas e uma outra mulher. Já no dia seguinte, ajudada por um psicólogo, a diretora busca descobrir a verdade, por meio de perguntas que a criança pouco compreende. A partir da premissa que norteia o imaginário desse meio - de que crianças não mentem -, deduzem das respostas titubeantes de Klara que o fato, um possível assédio sexual por parte de Lucas, teria acontecido.

Se a dúvida angustia e interroga, a certeza apazigua. A certeza também impede que se pense na possibilidade de crianças fantasiarem.

Freud, ao fazer essa consideração, encontrou nas fantasias sexuais de suas pacientes a fonte da neurose e o caminho da sexualidade infantil constitutiva do humano. De que matéria são feitas as mentiras/fantasias de uma criança? Quais os possíveis caminhos que se fizeram na mente de Klara ao ligar Lucas à frase que havia ouvido de seu irmão adolescente?

É difícil encontrarmos uma resposta. A vida mental carrega sempre mistérios, mas podemos seguir algumas pegadas nas fantasias que "servem, simultaneamente, à tendência a aperfeiçoar as lembranças e à tendência a sublimá-las. São fabricadas [...] combinando coisas experimentadas e ouvidas [...] e coisas que foram vistas pela própria pessoa" (Freud, citado por Masson, 1986, p. 241).

À teoria da sedução de Freud, Laplanche dá nova configuração.

Junto aos cuidados mais simples e triviais - e, no entanto, fundamentais para o ser desamparado que é a criança ao nascer -, o adulto introduz no corpo infantil a sexualidade, que revela à criança o mundo erógeno de seu próprio corpo. De natureza essencialmente fantasiada, a sexualidade implica o corpo infantil pelos gestos carregados do fantasmático sexual do adulto. Não só os gestos de cuidado são excitantes, mas tudo que vem do adulto banhado por suas fantasias sexuais inconscientes, que desabrocham provocadas pelo contato com o corpo da criança, e das quais ele próprio, adulto, não tem conhecimento. Esse não sabido excita o infante e constitui-se em uma mensagem comprometida pelo sexual inconsciente do adulto com poder de excitação e de captura em relação à criança. O adulto, sempre um sedutor em relação à criança seduzida. Situação de todo ser humano. Para Laplanche (2015), situação antropológica fundamental.

A comunicação extremamente desigual entre o infante passivo e o adulto atuante, portador de uma mensagem incompreensível para a criança, leva-a a entrar na dimensão fantasmática da sexualidade. Este aporte de excitação intenso e enigmático exige da criança um trabalho de tradução que ela faz a partir de seu próprio funcionamento psíquico. Tradução imperfeita e incompleta, sempre, da qual sobram resíduos não traduzidos que conformam o inconsciente sexual do infante. Há um adulto que inicia o processo, e agora a fonte de excitação é interna à criança, inconsciente e estrangeira. A marca de um outro, a alteridade como dissimetria radical, insere-se no âmago do indivíduo.

Este trabalho de tradução, imposto pela implantação da mensagem do adulto, sempre traumática, Klara faz da cena vista no tablet do irmão; decodifica-a com sua própria bagagem de fantasias sexuais inconscientes. Sinais percebidos, imagens vistas que se ligam a cenas e permanecem ligadas aos afetos e fantasias vividas, reatualizam-se em novas vivências.

O que de mais íntimo existe, o inconsciente, é, na verdade, criado a partir do estranho - da rede das relações e interações que desde cedo criam uma "polifonia de fantasias". Tomo essa expressão apoiada na ideia de polifonia do sonho de René Käes2(2004), que sugere que o sonho - e eu entendo que o mesmo se passe com a fantasia - seria construído pelos vários sonhos de uma rede de sonhadores que atravessam a formação da vida mental e que constituem o inconsciente. Isso se daria não só em cada indivíduo, mas no tecido social que forma um grupo, uma comunidade. Também Anzieu propõe que o corpo da criança e seu psiquismo se apoiam, inevitavelmente, num adulto que lhe serve de suporte e nas "estimulações, nas crenças, nas normas, nos investimentos, nas representações que emanam dos grupos dos quais a criança faz parte (começando pela família e indo até o meio cultural)" (1989, p. 18). Dessa forma, Anzieu entende que o psiquismo individual se sustenta num corpo biológico e ainda no corpo de um grupo social, com o qual o indivíduo cria uma interação e para o qual esse indivíduo é também um suporte.

Em A caça, fantasias passam a ser verdades. Induzidas por perguntas dos pais e de professores que tentam verificar sintomas de um possível abuso sexual, muitas crianças confirmam que teriam sido levadas pelo professor para a casa dele, e lá, a um porão que todas descrevem da mesma maneira e com os mesmos detalhes. Ainda que as investigações cheguem à conclusão de que tal local não existe, e que Lucas seja inocentado, para a comunidade ele torna-se um pária. Um porão, local fantasmático para o qual toda a comunidade parece ter sido remetida, pode ser pensado como o espaço do inconsciente, espaço sem tempo, na intimidade do qual as fantasias sexuais infantis perduram na mente dos adultos.

Thomas Vinterberg pensou seu filme a partir do impacto que situações semelhantes ocorridas na Europa e nos Estados Unidos produziram nele e nas comunidades em que ocorreram. Em muitas delas, após um grande número de pessoas ter sido acusado e ter sua vida destruída, constatou-se que os fatos não eram verídicos. Assim como no filme, várias crianças haviam descrito porões nunca existentes fora de sua imaginação (The wrap, 2014).

Martens (2007), antropólogo e psicanalista belga, observa que a ideia de pedofilia como fato corrente é um fantasma que tem assolado algumas cidades europeias, surgindo com extrema frequência em diferentes roupagens, alcançando, claro, a clínica psicanalítica. Como um fenômeno da cultura, é a leitura que a cada época se faz de determinadas questões que estrutura uma sociedade.

 

Cena 4: olhos nos olhos: amizade

Nos anos 1970, durante sua infância e adolescência, Thomas Vinterberg viveu em uma comunidade na qual a nudez era algo usual, que não criava constrangimento: "eu era um bebê nu em meio a uma horda de adultos nus" (Brooks, 2012). Aos 13 anos de idade, ele e seus colegas exigiram que um professor, "um cara boa praça", desse aula de iniciação sexual, e, ao mesmo tempo que clamavam por aulas de sexo, o agarravam e abaixavam suas calças. Pensa que se isso ocorresse hoje, esse homem seria preso e nunca mais voltaria a dar aula.

É o que ocorre com Lucas, que perde seu trabalho, seus amigos, é violentamente expulso de espaços públicos, impedido de comprar alimento, excluído dos ritos sagrados de Natal - festa de comunhão entre os homens de bem, condição que ele perdeu diante da comunidade. Sua cachorra, Fanny, é morta, talvez como um aviso de que animais que antes não eram caça passaram a ser. As cidades têm códigos próprios e o código de comunicação entre Lucas e seus amigos já não era o mesmo.

Klara, percebendo que algo acontecera, mesmo não sabendo bem o que, insiste em dizer que o professor nada havia feito, que ela havia falado "bobagens". A forma de ouvi-la se dá por meio de uma escuta impregnada pelo caldo cultural presente naquele momento entre aquelas pessoas. A palavra dita nunca é a mesma palavra ouvida pelo outro, que a recebe a partir de referências próprias. A resposta da mãe de Klara à sua fala é de que "sua mente prefere não se lembrar de coisas que possam ter sido desagradáveis". À Klara não resta alternativa a não ser assentir, novamente confusa diante da diferença de línguas entre adultos e crianças, sempre traumática.

Vinterberg fez o filme A caça como um outro lado de seu filme A festa. Talvez porque, ainda, "uma das ideias freudianas mais facilmente recusadas é a da sexualidade infantil: o fato de o adulto não querer vê-la... seria por que ela vem dele?" (Laplanche, 2015, p. 106).

O cultural, como um assistente de tradução, acrescenta-se ao processo tradutivo empreendido pela criança para decodificar a mensagem do adulto. Entendido como o conjunto de mensagens (não verbais, mais do que verbais), destilado pelo ambiente social que acompanha e faz contraponto ao processo de sedução precoce do infante, trata-se, particularmente, da forma pela qual a comunidade decodifica o cotidiano da diferença de sexos, das relações entre as gerações e do acesso ao corpo - especialmente à nudez. Martens (2007) nos lembra de que na vida mental não há processo de clonagem. O trabalho de tradução implica diferenças e, dessa forma, o sexual é um fator de desordem potencialmente criativo que rompe o estabelecido, determinando não só individualmente, mas no grupo, questões novas e conflitos.

Será Lucas quem irá estabelecer outra ordem nessa comunidade pela suspeita da perversão, do incesto, cuja proibição, questão civilizatória, é apontada por Freud em Totem e tabu (1913/2012)? Ou será Klara quem quebrará a ideia de felicidade e da inocência infantil com sua mentira/fantasia e irá trazer à tona o perverso polimorfo que perdura em cada adulto?

E se a Dinamarca tem tantos atributos como uma sociedade pacífica e desenvolvida socialmente, ela pode também ser, segundo Vinterberg, "bem pequena, provinciana e medíocre" (IMDB, 2016). Tão contraditória, portanto, como pode ser contraditório tudo que se relaciona ao humano.

A vida em uma sociedade é sustentada por um contrato narcísico que se "estabelece graças ao pré-investimento do infans pelo meio, como voz futura, que ocupará o lugar que lhe será designado, dotando-o antecipadamente e por projeção do papel de sujeito do grupo" (Aulagnier, 1975/1979, p. 151), e que determina as condições e preceitos que regem todas as sutis maneiras de relacionamento, conscientes e inconscientes, que ocorrem entre os indivíduos. A crença nesse preceito e a manutenção do código social permitem à criança nascer e tornar-se um adulto dentro do grupo, substituindo um membro que morre - o grupo, assim, mantém-se imortal. Pertencer implica fidelidade ao código da comunidade que, se ameaçada pelas diferenças que um transgressor expõe, o pune. O preço a pagar? A solidão, a psicose, o suicídio.

A passividade de Lucas, sem tentar defender-se, inquieta. Saber-se inocente parece dar-lhe a certeza de que seus amigos não duvidariam de sua palavra, quase como se, pela intimidade que tem com todos, seu pensamento ficasse visível. Aos poucos, no entanto, as ações violentas dos que eram seus amigos deixam claro que sua posição mudou. Numa contínua transformação, a cidade e o homem que a habita dão forma e sentido um ao outro (Nanzer, 2016).

Os paradoxos vividos nessa pequena cidade ficam à vista durante a missa de Natal. Lucas é hostilizado ao mesmo tempo que um coro de crianças, que inclui Klara, canta a comunhão e o amor entre todos os homens. Tomado pela raiva e pela dor, saindo de sua posição passiva, Lucas busca no olhar do outrora melhor amigo, o pai de Klara, a aceitação da sua verdade. No início do filme, Téo diz a Lucas que ele sabe ver no rosto do amigo quando este mente, pois seus olhos tremem. Sem nada dizer, durante a missa de Natal, Lucas se coloca bruscamente diante de Téo e, com violência, mostra a ele seu rosto, seus olhos. Ele, Lucas, não está mentindo, e salienta algo de que Olgária Matos nos recorda: "O caráter fundamental do rosto é sua nudez, sua exposição extrema e sem defesa, sua vulnerabilidade de ser mortal" (2010, p. 100). Talvez por se mostrar tão vulnerável e pela amizade com Téo, é que Lucas parece ser redimido. A ideia de que Klara possa ter mentido ou que crianças, assim como adultos, possam fantasiar, se faz presente.

 

Cena 5: cena final?

Há um rápido corte no filme e, numa ruptura, ele passa do clima de violência para uma bucólica bonança. Afinal, a Dinamarca é um país feliz e ordenado.

Um ano depois... num dia claro, os habitantes da cidade, incluindo Lucas, chegam para a festa da cerimônia em que Marcus, filho adolescente de Lucas, fará sua passagem para o status de homem adulto, num ritual que lhe permitirá a conquista da floresta pela posse do rifle pertencente à família, que passa a cada novo membro. Poderá, a partir dessa data, acompanhar os homens adultos na caça ao cervo. Nessa cidade, no dia de caçar, "os meninos se tornam homens e os homens meninos". No mundo de homens-meninos e meninos-homens, qual seria o lugar de Lucas agora?

Na última cena, explicita-se a ambiguidade da pertinência de Lucas à comunidade. O corte abrupto do cineasta, um pouco surpreendente para o espectador, entre uma situação de violência contra Lucas e a cena em que a comunidade volta a aceitá-lo, pacificamente, leva-nos a algumas reflexões. O corte é o silêncio necessário para não expor ainda mais as angústias que ferem a paz na comunidade. O que não é falado mantém-se na vida da cidade como um elemento estranho. A sexualidade e a violência se evidenciam, e o que não parecia fazer parte do ideário dessas pessoas abre espaço para a angústia, para a insegurança e, em seguida, para o ódio de todos a esse transgressor. Vinterberg mostra a fragilidade das relações humanas que sustentam a civilização, à qual já aludia Freud em Mal-estar na civilização (1930/2010), ao falar da dificuldade que é para o homem conviver com o outro, semelhante e diferente ao mesmo tempo, e em relação ao qual Freud nota que é mais fácil ter ódio do que amá-lo como a si mesmo. O Lucas transgressor vive em cada um dos habitantes dessa cidade. Ou da Dinamarca?

A violência que surge entre esses "bons homens" na Dinamarca feliz e pacífica é uma ameaça. Tudo deve voltar à norma dos indicadores de felicidade, tudo deve parecer estar bem. Mas o desvio que houve nas linhas mantém a ferida aberta, e Lucas, corpo estranho, é o sinal. Ao transgressor, como lemos em Aulagnier (1979), àquele que aponta "que há algo de podre no reino da Dinamarca" (Shakespeare, 1603/1995, p. 547), não é mais dada a condição de cidadão.

Na cena final, Lucas está só na floresta silenciosa, e acompanha com o olhar, à distância, Marcus, que sai à caça do cervo com outros homens. De súbito, ouve, muito próximo de si, o estampido de um tiro. Tão próximo que se sente atingido e cai. Assustado, demora a perceber que não foi atingido e procura ver quem é o atirador. Vê somente uma sombra que rapidamente se afasta sem que ele consiga distinguir de quem é o vulto. Aparentemente aceito de volta ao convívio da comunidade, Lucas percebe que em sua história haverá sempre uma dúvida e ele não terá jamais tranquilidade. Pertencendo à comunidade e ao mesmo tempo sujeito a ser morto, banido, viverá agora sem paz.

A lei oficial inocenta Lucas, mas o grupo social não. Em suspenso, delineia-se a situação do estranho/familiar (Freud, 1919). Com receio de que o estranho corrompa o familiar, exponha o que é, e deve permanecer estranho, Lucas deve ser excluído. Está num espaço de exceção, fora da lei como um morto-vivo ou uma alma penada. A cidade tem sua história e sua herança. No antigo direito escandinavo, ao ser excluído, um malfeitor tornava-se um "sem paz". Poderia ser morto por qualquer pessoa sem que esta sofresse punição (Agamben, 2012). Era nomeado homem-lobo ou lobisomem, um híbrido, entre o humano e o ferino. Passaria a viver assim num limiar sem definição, em uma posição ambígua, numa passagem entre o homem e o animal, entre a cidade e a floresta, entre a caça e o caçador.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
RAYA ANGEL ZONANA
Rua João Moura, 627/134
05412-911 – São Paulo – SP
tel.: 11 3064-7302
rayaz@uol.com.br

Recebido 31.08.2016
Aceito 15.09.2016

 

 

1 Sugiro ao leitor, como contraponto, outro filme também chamado A caça, do diretor espanhol Carlos Saura (1962), que trata da caça ao coelho em uma alegoria da guerra civil da Espanha (1936-1939).
2 O termo polifonia vem da música, como técnica compositiva de combinação de várias vozes com caráter melódico individualizado. O termo é usado por Bakhtin, filósofo russo e estudioso da linguagem, que fala da polifonia do texto e de quem Käes toma a ideia para a polifonia do sonho, propondo sonhos que são sonhados por uma trama de sonhadores.

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