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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo July/Dec. 2020
EM PAUTA | A VIDA COMO OBRA DE ARTE
Todo presente é um sacrifício1
Every gift involves a sacrifice
Solange de Oliveira
Docente do Departamento de Artes Visuais e Design da Universidade Federal de Sergipe (UFS), pesquisadora em nível de pós-doutoramento em estética e filosofia contemporânea junto do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e doutora em psicologia social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP)
RESUMO
A partir do acervo do criador sergipano José Roberto Freitas, o Beto Pezão, propõe-se uma reflexão sobre a relação entre arte e amizade, nos âmbitos ético e estético. O artista arranca personagens e dramas regionais do barro escuro proveniente das margens do Baixo Rio São Francisco, na altura de sua cidade natal, Santana do São Francisco, em Sergipe. Dentre as peças, o protagonista Sertanejo Pezão é a mais festejada de seu acervo, aliás, sua predileta. A abordagem empregada neste trabalho articula a noção aristotélica de amizade no livro Ética a Nicômaco, confluência entre benevolência, mutualidade e persistência no hábito da virtude, como exigências para a mais preenchida e perene amizade. O campo amical, como valor da vida, é paradigma ético que ressoa no Político, promove relações benevolentes e é um afago em meio à crueza e à solidão na contemporaneidade.
Palavras-chave: Beto Pezão. Arte Ínsita. Amizade. Ética. Política.
SUMMARY
Based on the collection of Sergipe creator José Roberto Freitas, Beto Pezão, we propose a reflection on the relationship between art and friendship, in the ethical and aesthetic spheres. The artist pulls out characters and regional dramas from the dark clay from the banks of the Lower São Francisco River, at the height of his hometown, Santana do São Francisco, in Sergipe state. Among the pieces, the protagonist Sertanejo Pezão is the most celebrated in his collection, in fact, his favorite. The approach used in this work articulates the Aristotelian notion of friendship in the book Ethics to Nicomachus, the confluence of benevolence, mutuality and persistence in the habit of virtue, as requirements for the most fulfilled and everlasting friendship. The amical field, as a value of life, it is an ethical paradigm that resonates in the Political and promotes benevolent relationships, it is a cuddle in the midst of crudeness and loneliness in contemporary times.
keywords: Beto Pezão. Inherent art. Friendship. Ethics. Politics.
Dedico este trabalho a um bom amigo, Rogério T., que, por sinal, é também artista.
O que dá ao amigo a certeza de contar com o amigo
é o conhecimento que tem da sua integridade,
a forma como corresponde à sua amizade,
o seu bom feitio, a fé e a constância.
Não cabe amizade onde há crueldade,
onde há deslealdade, onde há injustiça.
Quando os maus se reúnem, fazem-no
para conspirar, não para travarem amizade.
Apoiam-se uns aos outros,
mas temem-se reciprocamente.
Não são amigos, são cúmplices.
(Étienne de La Boétie, 1576/1999)
O carteiro se aproxima com um presente de aniversário. É um raro e valioso mapa do século VII. Diante da recusa de Alexander em receber o pacote, apela o portador: "Todo presente é um sacrifício". A passagem insinua um dilema ético no filme O sacrifício, cujo compromisso poético conta com a assinatura de Andrei Tarkovsky (Tarkovsky & Wibom, 1986). A réplica do portador reputa deferência - no limite, sacrifício - como potência e condição para que se realize em ato no presente recebido. E é ainda mais radicalizada na atitude do ateu Alexander, que barganha com Deus, pedindo pelos seus. No contexto de iminência de uma guerra nuclear, em um último gesto de viés claramente humanitário, Alexander realiza simbólica imolação.
Um criador impõe emoções ao barro, figuras de olhos doces apelam misericórdia. Pés e mãos grosseiros, desproporcionais, surgem sob mãos delicadas e ágeis. À primeira vista, a forma do criador parece não pactuar com a de suas criaturas; o que os une é a memória de uma origem humilde. Tudo o que relaciona o sergipano José Roberto Freitas é simplicidade: o ateliê, a casa, o modo como inspira um fazer aparentemente trivial - mas não é. Essa aparência frugal oculta uma sofisticação que seduz e fisga. O trato amável, quase familiar, com que recebe desconhecidos é de um nível de desprendimento e confiança no humano, que escapa aos valores e às relações atuais, contrasta francamente com a ordem em curso; nesse sentido, Beto Pezão, como é conhecido, é exceção.
O quanto estamos dispostos a fazer pelo outro, em especial por aqueles alheios aos laços de sangue? Vivemos uma ética contemporânea difusa, e as relações humanas, parece, almejam o crepúsculo. O amor e o provimento do bem mútuo têm definhado e, em grande escala, vêm promovendo o esgarçamento do tecido social. As condições do Político2 alcançaram o limite do insuportável. Considerada a crise humanitária que nos abandona a contemporaneidade, laços de afinidade e afeto podem ser bálsamos, em meio à rudeza dos tempos.
Dentre as relações que cultivamos durante a vida, a amizade, em um sentido pleno, se sobressai: conserva-se íntegra, vencendo o tempo com fôlego para perdurar conquistando longevidade. Mas não só, promove e renova o compromisso ético, na medida em que refina e regula pensamentos e atitudes; essas relações nos mantêm entre resilientes e atentos.
Amizade como paradigma ético
Em geral, o senso leigo atribui à amizade eventos de compartilhamento de afinidades e afetos positivos entre duas ou mais pessoas que se reúnem em torno de um campo de concordância. Há muito a amizade é tematizada de modo mais profundo. Entre os antigos, os estudos de Aristóteles sobre o campo amical são particularmente inspirados e, por sua grandeza, são revisitados, conservando seu vigor até hoje.
A amizade amplia e potencializa nossa capacidade de (bem) agir e pensar, diz Aristóteles. Ao modular ideias e atos, o campo amical leva-nos ao aprimoramento. De modo natural e de início, por força do amor somos atraídos pelo que nos parece assemelhado: amor de pais por filhos e destes pelos seus, amor pelos animais e por outros homens, devido à similaridade de espécie e raça. Seria então a amizade um vínculo estabelecido por afinidades, a saber, pela semelhança? A percepção de que a similitude está infiltrada na relação amical frequenta o popular; diz-se de amigos: "são farinha do mesmo saco", "cada qual com seu igual", "diga-me com quem andas e te direi quem és". Mas quem, senão um amigo, porta a senha para, sem desgaste ou prejuízo, diante de uma perspectiva de mundo compartilhada -no limite, semelhante - apontar-nos a discordância - portanto dessemelhança? Nesse caso, supomos, a amizade é um acordo de iguais no bojo do qual a desigualdade pode vir a se instalar sem ruídos, surgir calmamente e promover um salto qualitativo e ético, afinal, são as diferentes notas que, por contraste, tornam a melodia ainda mais bela, dizia Heráclito - ou, voltando para o popular, "quem avisa amigo é".
Enquanto o amor é um sentimento, a amizade é uma disposição de caráter: é possível amar coisas e situações, mas o amor mútuo envolve liberdade, implica escolha. O modo como se partilha a amizade - ou um certo sentimento de amor - está relacionado com o desejo pelo que é bom, agradável e útil; as pessoas amam por essas três razões. Em todos os casos, a mutualidade é condição para que ocorra, porque se deseja o bem ao outro na medida de seus anseios e, se assim não for, trata-se de outro tipo de sentimento: "aos que desejam bem dessa forma só atribuímos benevolência, se o desejo não é recíproco; a benevolência, quando recíproca, torna-se amizade" (EN VIII, 2, 1155b, 34-38).
A cada razão de amar, corresponde um tipo de amizade; portanto há três tipos: os que amam em função do prazer que lhes possa ser proporcionado - o propulsor é a autossatisfação e não o suprimento do outro. Analogamente são os que amam de acordo com a utilidade, por óbvio, o ônus recai mais uma vez sobre si mesmo, já que o objeto é a medida do que lhe é propriamente útil. Ambos são tipos de amizades acidentais, não se ama pelo que o outro é de fato, mas na proporção de suas necessidades mesmas. É inelutável admitir perecíveis os vínculos circunstanciais: são longevos o quanto demandarem as expectativas, na medida da reciprocidade do prazer e da utilidade empenhadas na aquisição de um bem futuro. Contudo a ética aristotélica campeia o último e privilegiado tipo: é apenas na equidade que nasce a amizade perfeita, um encontro de homens bons e virtuosos - "os que desejam igualmente bem aos seus amigos por eles mesmos são os mais verdadeiramente amigos, porque o fazem em razão de sua própria natureza e não acidentalmente" (EN VIII, 3, 1156b, 7-10). É perene e pouco frequente, como é a bondade, mas é também agradável e útil. Esse tipo de amizade é mais preenchido, porque atende concomitantemente a todos os modelos de razão para o amor. Além disso, é impermeável à calúnia, devido ao inquebrantável laço de confiança, e promove para que realizem um no outro qualidades que amigos devem possuir.
Mas a virtude e a função de cada um na relação amical podem deflagrar outras espécies de amizade, como ocorre de pai para filho ou deste para seu pai; de governante para súdito e vice-versa. Trata-se de desigualdade de função ou de virtude, cada um desempenha seu papel e tem sua própria razão para amar, que pode não se assemelhar à do outro. Nesses casos, não se recebe o mesmo que se promove, nem se pode esperar receber, mas, ainda assim, a amizade pode ser tão duradoura quanto excelente e, em meio à desigualdade, o amor deve ser proporcional ao mérito, que asseguraria a igualdade subentendida nas relações de amizade.
Há, contudo, um sentido que nos interessa particularmente neste ensaio: o âmbito do Político - ou do compartilhamento e da convivência. E, nesse sentido, a igualdade assume outros modos, no que reputa as relações entre justiça e amizade, por causa da distância entre partes e também por suas respectivas aptidões para a virtude, para o vício e para a riqueza, entre outras inclinações. Aqui, não se trata de amigos, nem eles próprios esperam vir a ser. É uma situação de desnível e de inferioridade que se instala, como a que se estabelece entre governante e governado, entre sábio e aquele que não aprecia nem cultiva essa qualidade. Quando a distância entre eles se torna invencível, as possibilidades de amizade se dissolvem.
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Em geral, os homens ambicionam a lisonja; preferem ser amados a amar. O lisonjeiro é, ou simula ser, um amigo em situação de inferioridade: finge amar mais que ser amado porque acredita que ser mais amado equivale a ser mais honrado. Em todo caso, o afeto que o move é o amor próprio, ainda que a amizade dependa mais de amar que o contrário. Em todo caso, se a constância que a confiança propicia é o que mantém a amizade perene, não há por que reivindicar prestação de serviços baixos. Por outro lado, os maus, inconstantes, são amigos com data marcada, deleitam-se na maldade um do outro, como ocorre também nas relações de utilidade, quando a ambição dos que têm pouco os aproxima dos mais abastados, na expectativa de obter o que lhes falta. Nesse sentido, a amizade depende também da comunhão de bens e, assim, amizade e justiça podem expressar-se conjuntamente:
em toda a comunidade pensa-se que existe alguma forma de justiça, e igualmente de amizade; pelo menos, os homens dirigem-se como amigos aos seus companheiros de viagem ou camaradas de armas, e da mesma forma aos que se lhe associam em qualquer outra espécie de comunidade. E até onde vai sua associação vai a sua amizade, como também a justiça que entre eles existe. (EN VIII, 9, 1159a, 29-40)
Há certas coisas que são comuns, em maior ou menor incidência, que distinguem amizades verdadeiras e acidentais. Semelhantemente ao que ocorre no domínio da justiça: não há como negar, o dever de um pai para o filho não é simétrico, nem tampouco entre camaradas ou concidadãos. A exigência de justiça é mais intensa entre amigos verdadeiros e entre irmãos do que entre concidadãos; em outras palavras, é muito mais grave desonrar um pai que um estranho: "a amizade e a justiça existem entre as mesmas pessoas e são coextensivas" (EN VIII, 9, 1160a, 11-13). No que refere à comunidade política, ela perdura às custas de vantagens que lhe assegurem a subsistência: "esse é o objetivo que os legisladores se propõem, e chamam justo o que concorre para a vantagem comum" (EN VIII, 9, 1160a, 12-16). No interior da comunidade expandida, convivem pequenas outras, reunidas em torno de vantagens menores. A coesão dá fôlego à luta por pautas pontuais. Mas cada um desses microcosmos compõe o macro - espécies particulares de comunidade correspondem a espécies particulares de amizade.
A amizade está presente, pois, na atitude de legisladores, e, talvez motivados pelo desejo (utópico) de unanimidade, tendem mais para esta que para a justiça. Em todo caso, se unidos pelos laços de amizade, a justiça perde o brilho: "quando os homens são amigos não necessitam de justiça, ao passo que os justos necessitam também da amizade; e considera-se que a mais genuína forma de justiça é uma espécie de amizade" (EN VIII, 1, 1155a, 28-33).
Corruptelas dos regimes podem decair em formas de governo nos quais os interesses pessoais se sobrepõem ao bem comum. Assim, a monarquia degenera em tirania; a aristocracia, em oligarquia e a timocracia - governo do povo, da maioria -, se pervertida, decai em democracia, aliás, diz Aristóteles, a menos pior delas.
Étienne de La Boétie, em 1544,3 escreveu Discurso sobre a servidão voluntária aprofundando o viés político da amizade que, no entanto, julga ser da ordem do sagrado e, o bem, uma prerrogativa:
o tirano nunca ama nem é amado. A amizade é um nome sagrado, uma coisa santa: só pode existir entre pessoas de bem, nasce da mútua estima e se mantém não tanto através de benefícios como através de vida boa e costumes. [...] Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma sociedade. [...] Não são amigos, mas cúmplices. (1576/1999, p. 107)
Aristóteles corresponde laços familiares a formas de governo. Enquanto a monarquia reputa o zelo do pai com seus filhos, a aristocracia mimetiza a relação entre marido e mulher, e o poder de decisão é partilhado de acordo com os papéis assumidos. O último tipo, a timocracia, assemelha-se ao vínculo entre irmãos, pois, não havendo ascendência, se dá entre iguais. Em todos os casos, o assentamento desses laços políticos comporta amizade, tanto quanto justiça, e tende ao fracasso quanto mais severas forem as formas desviantes. Dentre os tipos de amizades mencionados, apenas uma contempla a igualdade de condições entre partes; nas demais, a queixa por justiça acaba por se instalar e ser frequente, pois a paga não supre o que uma das partes precisa ou merece. A discussão sobre retribuição traspassa o mencionado filme de Tarkovsky e, claramente, está presente na atitude das personagens de Beto Pezão. É preciso responder o que recebemos com equidade - um grande pedido demanda um grande sacrifício.
A equiparação do benefício deve responder a um alto nível de ganho de cada parte, não propriamente em quantidade, mas em vantagem. Cada um dos envolvidos na relação de amizade empenha suas prendas e, o que se espera, é que obtenham muito um do outro. Se um é superior em honra e o outro inferior em ganho, a honra é prêmio de virtude, e o ganho é auxílio de que o inferior necessita, explica Aristóteles. E assim deveria ser também nas disposições constitucionais, pois honraria empenha contribuição: "o homem que não contribui com nada para o bem comum não é honrado, pois o que pertence ao público é dado a quem o beneficia, e a honra pertence ao público" (EN VIII, 14, 1163b, 6-10). Desse modo, a reunião entre desiguais é um corolário, homens fazem o que podem, de acordo com suas condições, o homem que serve na medida da própria capacidade é um homem bom.
De qualquer ângulo que se observe em perspectiva, o amor da amizade corresponde ponto a ponto o amor para consigo mesmo: desejar e fazer o bem na medida do interesse do amigo; desejar que o outro exista e seja por si mesmo; viver na companhia um do outro; dores, alegrias e gostos comuns compartilhados. A amizade é extrema, se comparada ao amor por si, e a benevolência é uma espécie de amizade mútua e evidente, mas inativa; caso atinja um certo grau de intimidade, torna-se amizade no sentido forte.
A partir das condições de surgimento e parâmetros para o mantimento de amizades verdadeiras e longevas, podemos considerar que as mesmas características do campo amical são extensíveis aos nossos semelhantes. O inverso do homem que tem a honra como conduta, que é bom e age sacrificando interesses pessoais, é o ególatra, que ama a si mais que a qualquer outra coisa; aliás, um traço que nos é familiar em tempos de desamor e solidão. A concorrência e os ganhos pessoais exacerbados têm levado as relações humanas às últimas consequências, e a autorrealização a qualquer preço é cultuada como um valor, mas, nesse caso, como a troca é, em geral, mercantilismo ou vaidade, resta apenas o vazio existencial.
Por outro lado, a atribuição de um valor da troca tácito e consensual é erário e difícil de mensurar, pois o benefício é a medida da honradez proporcionada, e a grandeza da paga está no apreço pelo trabalho realizado com as próprias mãos, como é, por exemplo, a devoção que o artista tem por sua obra, quase como uma idolatria:
a existência é para todos os homens uma coisa digna de ser escolhida e amada; ora, nós existimos em virtude da atividade (isto é, vivendo e agindo), e a obra é, em certo sentido, uma produtora de atividade; portanto, o artífice ama a sua obra porque ama a existência. E isso tem raízes profundas na natureza das coisas, pois o que ele é em potência, sua obra o manifesta em ato. (EN IX, 7, 1168a, 6-9)
O homem bom precisa de outros a quem possa realizar a benevolência; o artista precisa de outros que percorram4 a obra a fim de que se complete. Se, para o benevolente, aquele a quem devota seu altruísmo é sua obra, no caso do artista essa relação pode parecer mais direta, à primeira vista, contudo é ainda mais sutil e também depende de mutualidade - o acordo silencioso entre a feitura e a leitura. Como se trata de um gesto de bondade, o que é em potência, como obra, se realiza em ato, como arte - se tomada em um sentido abstrato, como resultado ou devir - e é, assim, duradoura, como é a amizade. Em tempo, a obra é um meio material de passagem, é possibilidade. Se fluir o essencial, ela se realiza em sua inesgotabilidade.
Mas se o valor da solidariedade e da compaixão na pós-modernidade é na proporção de um hedonismo neurótico, teria sido a arte vitoriosa, na tarefa de preservar esse locus privilegiado?
Arte como paradigma (est-)ético
José Roberto Freitas, o Beto Pezão, tem 67 anos e nasceu em Santana do São Francisco, um município à beira do rio, na região do Baixo São Francisco.5 Lá o ofício da cerâmica é regra, e muitos dos artesãos empregam o barro ribeirinho de boa qualidade. Carinhosamente apelidada de Carrapicho, como é popularmente conhecida, a cidade é um expressivo polo de objetos utilitários e decorativos de Sergipe. O fazer herdado de índios6 é a base para o suprimento de muitas famílias, e o comércio prolífico ultrapassa as fronteiras do estado: "O que interessa é o produto e não quem produz, pelo menos aqui é assim", queixa-se do descaso que sofrem os criadores populares em Sergipe.
O pai de Beto Pezão ganhava a vida e sustentava a família com a fábrica e a colaboração de alguns dos filhos, mas as peças mais difíceis ficavam com ele. Boa parte da produção era inspirada nas figuras do Mestre Vitalino, conta. A família é numerosa, são 11 irmãos, entre os quais cinco são mulheres, mas apenas os homens se dedicaram ao barro. Além de José Roberto, os ceramistas Francisco e José Antônio continuam ativos no ofício, fiéis ao estilo de outrora, enquanto que ele foi inovando - e já se vão 45 anos. Desde cedo, ainda crianças, eles enfrentavam as dificuldades com a lida do barro e tiveram de aprender por si mesmos, sob a pressão da responsabilidade pela qualidade das peças sem que ninguém os tivesse orientado; dizia o pai: "Quero isso!", e prometia-lhe uma moto no fim do ano, se ele fizesse direitinho o trabalho, mas, ano após ano e... nada!
Começou a esculpir em meados dos anos 1960, ainda com 11 anos. Apesar de admitir que sempre fez santos, não começou como santeiro. Dedicava-se a eles quando havia encomendas ou por gosto. Àquela altura, eles usavam o torno, pois a modelagem em monobloco garantia maior integridade para as esculturas. Todavia, como tinham pés pequenos, pernas compridas e eram assentados sobre uma pequena base redonda, muitas não resistiam à queima. Então aos sábados dedicava-se à tarefa interminável: via-se sempre às voltas com um grande número de peças para reparo; eram frágeis, principalmente na área entre o alicerce e os pés.
Um dia, o pai teve de se ausentar e, olhando a demanda para reforma que se acumulava, Beto Pezão pensou que poderia mudar o modo como eram construídas, para que ganhassem mais consistência estrutural, evitando o problema recorrente. Foi então que resolveu eliminar a base, agigantar os pés, encurtar as pernas e alongar os braços das figuras de modo a sustentar o peso do corpo sem ruir. E assim fez. O pai reagiu: "Meu filho, isso aí é uma doença". À revelia, sob a reprovação do pai - de quem nunca obteve aceitação, mesmo depois de adulto e renomado -, insistiu na linguagem autoral, que o fez ser reconhecido no Brasil e internacionalmente. No fim da vida, o pai lhe disse: "Sim, é bom". E só.
Confessa o artista que procurar solidez na estrutura das esculturas não foi o único motivo que o levou a ter modelado dessa maneira. Sente-se seduzido pelo traço rude, diz que pés e mãos grandes são bonitos, contrariando a memória do pai. Demonstra se sentir orgulhoso pela forma como resolveu expressivamente um problema técnico: "São minha marca pessoal", afirma. A experiência e a observação demonstram que as pessoas vêm ao seu ateliê e preferem o traço rústico e deformado. Ninguém se interessa pela perfectibilidade, explica. E, assim, procura sempre imputar um elemento de humanidade nas personagens, um olhar triste que nos penetra.
A peça mais antiga que guarda consigo tem cerca de 45 anos: é o Sertanejo Pezão, que lhe emprestou o apelido, deu origem à série de personagens de que mais gosta e são os mais procurados. A relíquia é bem mais leve que as atuais, porque antes o corpo era feito no torno. Ele costumava envelhecer com tinta acrílica e betume, depois desistiu de pintar e resolveu deixá-las nos tons da queima. As esculturas são articuladas, nas mãos é possível encaixar sacolas, cajados, eventualmente um amarrado de caranguejos etc.
Beto Pezão tem mãos finas, ágeis e delicadas que em nada coadunam com as das suas figuras. Modela personagens absolutamente expressivas, com acabamento e técnica impecáveis, de forma quase banal, procurando sempre inovar a cada identidade que surge da massa disforme e cinzenta em cima da bancada.
O artista ainda se ressente pela dureza com que os funcionários da cerâmica, gente humilde - e mesmo ele -, eram tratados por alguns membros de sua família. Dessa experiência, Beto Pezão guarda certa tristeza, que procura compensar com sua peculiar sensibilidade e doçura, flagrantes logo à primeira vista, por conta da fala mansa e pelo modo de tratar desconhecidos, como se lhes fossem familiares. Pode-se dizer que ele se ocupa da benevolência, essa é sua tarefa: homens velhos, talhados na crueza do calor e das duras condições de trabalho, mulheres que carregam filhos e o fardo do sustento escasso, crianças pobres com ar ingênuo, santos, enfim, gente sertaneja. De um canto da prateleira lotada, o olhar de um São Francisco de traços rudes nos lembra de compaixão por toda a sorte de seres.
Guarda cumplicidade pela origem e o testemunho de um sertão de precariedade com seus homenageados, ainda que sua condição de vida atual seja confortável. Por admiração e amizade, chegou a ganhar uma casa e o convite para se mudar para o Chile. Foi lá ver e voltou para Aracaju, que lhe oferece a vantagem do acesso à sua Carrapicho. Testemunhou ao longo da vida pessoas migrando em busca de oportunidades sempre mais ao sul do estado, como seu pai, que a certa altura foi trabalhar em Belo Horizonte. No barro, mora uma mulher que, junto a seus filhos, espera o pai voltar com o sustento.
De algum modo, a experiência compartilhada converge opiniões e, assim, a homogeneidade estreita vínculos. A unanimidade é uma espécie de relação amigável; ocorre até mesmo entre desconhecidos, quando homens comungam interesses sobre questões públicas. De certo modo, a unanimidade pode ser considerada amizade política, pois impacta a vida dos concidadãos na expectativa de serem governados por homens honrados, que proporcionem para que todos, de diferentes estirpes, alcancem o pretendido: "uma tal unanimidade é encontrada entre homens bons, pois estes são unânimes tanto consigo mesmos como uns com os outros e têm, por assim dizer, um só pensamento" (EN IX, 6, 1167b, 5-9).
Convive no espaço plástico de suas esculturas a regularidade queixosa de uma justiça que demora a vir. Até lá, só se pode contar com a benevolência.
Certa vez, uma mulher encomendou-lhe uma santa. Conta Beto Pezão, que sempre procura fazer o seu melhor em cada escultura, mas tem algumas que superam em expressividade; foi o que ocorreu. Quando terminou, parecia que ela olhava para ele. Ficou satisfeito com a obra, estava pronta e era muito bonita. A cliente voltou com o dinheiro na mão e entregou-lhe. Enquanto preparava a embalagem, a mulher desabafou: "Finalmente vou poder pagar minha promessa". Ele calmamente entregou-lhe o pacote e devolveu o dinheiro. É promessa, questão de honra e, então, colaborou como pode, doou seu trabalho. A obra agora está perfeita.
Amizade e resistência (est-)ética
Há pelo menos três fundamentos para que o campo amical aristotélico se constitua íntegro e ético: primeiro, a participação solidária entre os que confluem atitudes, valores e bens determinados; em segundo lugar, deve haver uma conexão amorosa no espectro amical, cuja forma lhe é semelhante, mas não coincidente; em outras palavras, o alinhamento com a benevolência o vincula a afetos positivos como solicitude, cuidado, piedade entre outros, mas para que a amizade se caracterize, subentende-se mutualidade. E, por fim, segundo Aristóteles, é preciso cultivar o hábito de persistir na virtude, uma disposição ativa que envolve um compromisso tácito entre as partes. Mas o conceito aristotélico de amizade como fenômeno humano perde fôlego quando o ideal cristão ganha protagonismo no despontar da Idade Média (Abbagnano, 1901-1990/2007, p. 38), expandindo o amor ao próximo ao nível do incondicional, assumindo a centralidade das relações que, agora, prescindem dos princípios aristotélicos como condições seletivas e, nesse sentido, desenhavam nuanças.
Desse modo, a ética subjacente ao campo amical aristotélico sofre perdas, senão em qualidade, no mínimo em quantidade, se considerarmos que, dentre três fundamentos, apenas um é elevado ao grau máximo no cristianismo - amar o amigo como a si mesmo -, sob o custo de desoneração das exigências éticas de partida. Nesse sentido, é lícito assumir que o caráter político da amizade foi progressivamente esmaecido no decurso da história. Sem a mutualidade e a tenacidade no hábito da virtude, restando da tríade, apenas a benevolência, já não mais se sustenta o jogo político que Aristóteles imputa ao campo amical. E, se o esforço e a persistência na ética não são prerrogativas para esse exercício, a benevolência, como um dogma cristão impõe sua dicotomia: ser ou não ser solidário - no limite, ser ou não ser cristão - decorrendo no abandono da laicidade e no despejo de boa parcela dos homens do campo ético. O que nos leva de volta para a questão inicial sobre o locus da arte: teria resistido e estaria apta a nos devolver o valor da solidariedade e da compaixão como princípios políticos e, portanto, laicos?
Entre as mais fundamentais formas de se expressar publicamente, talvez as mais contundentes sejam a arte e a política - esta tomada como encontro ou embate. Mas o que teriam em comum, se a política sobrevém a arte, e não lhe é necessária? Porque esta é íntegra - valor apreciável em tempos de crise de confiabilidade do Político -, goza de um prestígio quase absoluto, que mesmo sua reprodutibilidade técnica não lhe roubou e, justamente devido a tão peculiar dignidade, sua reputação atravessa o tempo. Muitas vezes catapulta a um nível visceral os fatos públicos e nos faz acordar afetos escondidos nos harmônicos de seus acordes, cores, versos, formas, sentidos e, quem sabe, no barro...
A arte é grandiosa na medida de sua capacidade de se abandonar no tempo, perfurando-o. Por outro lado, a política é intermitência, estranha combinação de contrastes, pois alternamos público e privado, vontade e voluntariedade; a maior parte do tempo, sem muito equilíbrio. A política participa do campo artístico de forma incidental, como possibilidade ou vir a ser. Mas o índice regulador e liame desses domínios são, certamente, a ética, que se manifesta muito distintamente e com linguagem própria em cada um deles. A arte de nosso tempo parece tender mais para o ético que para o estético,7 tomou para si bordões do embate político quase no limite da indissociabilidade dos campos, como ocorre em manifestações nas quais a militância e a experiência estética estão imiscuídas, tematizando feminismo, meio ambiente, exclusão, organizados em coletivos, Street Art, Outsider Art e, entre outras expressões, desde sempre a arte popular resiste.
Mas a modernidade transcendeu o belo "olfativo retiniano", como disse Marcel Duchamp, foi suplantado pela beleza expressiva que, certamente, só se perfaz com o custo do engajamento de ambos, do criador e do leitor, e, justamente por isso, sem implicação restam apenas opiniões e o olhar douto, para quem a obra é objeto de investigação - glosando Walter Benjamin, valioso indício social: "ligação direta e interna entre o prazer de ver e sentir, por um lado, e a atitude do especialista, por outro" (Benjamin, 1936[1955]/1987, p. 187). O gosto é assunto de especialistas e de provadores, se recusa ao exame: "Oscila entre o instinto e a moda, o estilo e a receita. É uma noção epidérmica da arte, no sentido sensual e no social: um prurido e um signo de distinção. Pelo primeiro se reduz a arte à sensação; pelo segundo introduz uma hierarquia social fundada em uma realidade tão misteriosa e arbitrária como a pureza do sangue e a cor da pele" (Paz, 1977, p. 23). A implicação é tomada de atitude, é o sepultamento do reinado do gosto especializado.
E não há como evitar, é preciso admitir que a reciprocidade é inerente ao vínculo entre a feitura e a leitura de uma obra de arte, especialmente se for um artista popular. A mutualidade no caso da relação entre o sujeito e a obra é a responsabilização pelo bem do outro; dos outros. Se o artista é bom, altruísta e, além disso, o fruto de sua ação no mundo também é agradável e útil, a gama de possibilidades que desperta, as discussões inesgotáveis desse objeto estético é, em devir, a própria arte, que instaura um olhar inédito sobre o mundo e, assim, faz o mundo. A relação entre arte e amizade que decorre dessa paleta de devires é um exercício de virtude - prazer, utilidade e bondade.
Disse La Boétie, amizade é nome sagrado, não no sentido místico, uma vez que alçou a amizade à laicidade do domínio político, mas porque a alegoria apela para o plano sacro, a amizade não frequenta senão pessoas de bem, que cultivam mútua estima. E, para lançar mão de outra alegoria sacra, nesse ponto abandonamos o leitor na presença de Tarkovsky: "Todo presente é um sacrifício". Se não implicar deferência, não tem valor ético. Não é presente, é utilitarismo ou deleite: assunto de provadores, noção epidérmica de arte.
Referências
Abbagnano, N. (2007). Dicionário de filosofia Nicola Abbagnano (A. Bosi, trad., 1ª ed. brasileira, coord. e revista; I. C. Benedetti, rev. trad. e trad. dos novos textos). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1901-1990) [ Links ]
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Benjamin, W. (1987). A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1a versão). In Magia e técnica, arte e política: obras escolhidas (v. 1, 3a ed.). São Paulo: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1936[1955] [ Links ]).
Falcón, M. L. de O. (org.) (2010). Sergipe: cultura e diversidade. Salvador: Solisluna Design Editora. [ Links ]
La Boétie, E. (1999). Discurso da servidão voluntária (L. G. dos Santos, trad.) (C. Lefort, P. Clastres e M. Chaui, comentários). São Paulo: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1576) Paz, O. (1977). Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Editora Perspectiva. [ Links ]
Tarkóvsky, A. (dir.) & Wibom, A. (prod.) (1986). O sacrifício [filme]. Suécia I França I Reino Unido: Svenka Filminstitutet I Argos Films I Film Four International I Josephson & Nykvist HB I Sveriges Television I Sandrews Film & Teater AB. [ Links ]
Correspondência:
SOLANGE DE OLIVEIRA
Universidade Federal de Sergipe - Centro de Educação de Ciências Humanas, Departamento de Artes Visuais e Design
Av. Marechal Rondon, S/N, Rosa Elze
49100-000 - São Cristóvão/SE
Tel.: 79 3194.6925
https://www.sigaa.ufs.br/sigaa/public/departamento/portal
Recebido 25.05.2020
Aceito 0i.06.2020
1 Emprestado de Andrei Tarkovsky, em O sacrifício, que, com um ato de amor, festeja a vida dos verdadeiros amigos. In: Tarkovsky, A. (dir.); Wibom, A. (prod.) (1986). O sacrifício (Offret). Intérpretes: Erland Josephson, Susan Fleetwood, Allan Edwall, Filippa Franzén e outros. França, Reino Unido, Irlanda, Suécia. Filme (148 minutos).
2 O Político, substantivo, referindo o terreno do compartilhamento no encontro com o outro.
3 "Montaigne afirmou que fora escrito em 1544, quando La Boétie, ainda estudante de direito, contava dezoito anos e se exercitava 'em favor da liberdade e contra a tirania'." In La Boétie, E. (1999). Discurso da servidão voluntária (L. G. dos Santos, trad.; C. Lefort, P. Clastres e M. Chaui, comentários; p. 176). São Paulo: Brasiliense.
4 Recorremos aqui à noção de perficere de Luigi Pareyson, uma exigência a ser cumprida para que a obra conceda seu segredo, um exercício de equilíbrio entre a liberdade da leitura com implicação e inventividade do intérprete e a reevocação respeitosa e impessoal, em outras palavras, a fidelidade ao núcleo significante de cada obra, da qual não se escapa, já que não é lícito atribuirmos a ela uma vida que lhe seja alheia. A completude da obra só se (per-)faz com o empenho do leitor e, assim, está (per-)feita. In Pareyson, L. (1984). Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes.
5 Entrevista concedida em 12 de maio de 2020, às 10h, no ateliê do artista em Aracaju, Sergipe.
6 Dados disponíveis em: Falcón, M. L. de O. (org). (2010). Sergipe: cultura e diversidade. Salvador: Solisluna Design Editora.
7 Não vamos aprofundar a discussão porque nosso objetivo é outro, mas vários são os estetas e filósofos contemporâneos que insistem nesse caminho; entre os que têm explorado o aspecto eminentemente político no campo artístico, mencionamos Andreas Huyssen, Jean Baudrillard, Fredric Jameson, Giorgio Agamben, entre outros.