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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo July/Dec. 2020
LITERÁRIAS
Vera L. C. Lamanno-Adamo
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEPcampinas)
Morreu Ivan Ilitch!
Num dia burocrático qualquer, como tantos outros no Ministério da Justiça, Piotr Ivânovitch anunciou: Ivan Ilitch morreu.
Ivan Ilitch era colega dos que estavam ali, no vasto edifício do foro, discutindo sobre o célebre caso Krassov.
Ao ouvirem a notícia, o primeiro pensamento de cada um dos que estavam reunidos no gabinete versou sobre a influência que essa morte poderia ter a respeito das transferências ou promoções tanto dos próprios juízes como dos seus conhecidos.
Mais tarde, durante o velório, a viúva de Ivan Ilitch, numa conversa particular com Piotr Ivânovitch, apesar do desgosto de ter perdido o marido em circunstância de tanto sofrimento, deseja saber como obter dinheiro do Tesouro, em consequência da morte do marido. A viúva conta a Piotr a dor de Ivan nos últimos dias de sua vida. Por um instante, Piotr considera que não estaria isento de sofrer o mesmo e "por um momento ficou apavorado" (p. 25).
No entanto, não dando mais chances àquela atmosfera deprimente, se retira lembrando-se de que logo mais à noite estaria reunido com os demais colegas, que também estavam no velório para um carteado. Assim, seus olhos se fecham para o universo real da morte, para o serviço fúnebre e para o odor de decomposição do corpo.
Outras figuras transitam pela casa do morto, onde ocorria o velório. A filha de Ivan Ilitch, semelhante à mãe, está ávida para que aquele momento macabro termine e a vida prossiga sem qualquer marca da existência da morte. Num contraponto, encontramos o filho mais novo, o único da família que parece estar comovido, e Guerássim, o camponês que cuidou de Ivan Ilitch durante seu adoecimento e que parece não recusar, como os demais, olhar a morte nos olhos: "é a vontade de Deus. Para lá iremos todos" (p. 28).
Assim começa a novela A morte de Ivan Ilitch, escrita por Tolstói em 1886.
Afinal, quem é esse Ivan que nos foi apresentado logo de início como um cadáver?
Segundo de três filhos, era um homem bem-dotado, alegre, gentil e sociável, mas severamente cumpridor daquilo que considerava seu dever.
No desempenho da função de juiz, Ivan Ilitch jamais abusou dessa autoridade e prontamente assimilou "os meios de afastar de si todas as circunstâncias estranhas, bem como os de enquadrar mesmo os casos mais complicados numa forma graças à qual se apresentassem no papel apenas externamente, excluído de todo o ponto de vista pessoal" (p. 22).
Com esse ditame, Ivan Ilitch construiu uma vida achatada, onde as aparências do mundo exterior eram plenamente acopladas ao seu mundo interior. Sua alma constituía-se no que ele exibia na vida exterior. Ivan tinha uma incrível habilidade para "separar o lado oficial, sem misturá-lo com a vida real" (p. 49).
Ivan não apresentava gradações, nuances, diferentes matizes em sua personalidade. Uma "radiografia"de sua interioridade não exibiria nenhuma diferença significativa de seu mundo exterior.
Depois de dois anos de serviço e numa nova cidade, conheceu sua futura esposa. Era a moça mais atraente, brilhante e inteligente do seu circuito social. Ivan não tinha uma intenção clara de se casar, "mas, quando a moça apaixonou-se, formulou para si mesmo a pergunta: Por que, realmente, não casar?" (p. 23). Ivan Ilitch se casou. "Casou-se e, mais uma vez, executou aquilo que as pessoas mais altamente qualificadas consideravam correto" (p. 23). No entanto:
Pouco depois, não mais do que um ano após o casamento, Ivan Ilitch compreendeu que a vida familiar, embora apresentasse algumas comodidades, constituía, na realidade, uma coisa muito complexa e penosa, perante a qual, para cumprir o seu dever, isto é, levar uma vida digna e aprovada pela sociedade, era preciso desenvolver certas relações, do mesmo modo como perante o próprio serviço público. (p. 25)
Passou então a exigir da vida conjugal apenas o conforto que o casamento podia oferecer: refeições caseiras, cuidados de casa e de cama e, principalmente, o decoro na aparência determinado pela opinião pública.
Após a vinda dos filhos, sua mulher passou a ficar cada vez mais zangada e resmungona, mas a forma como Ivan Ilitch elaborou sua vida familiar tornava-o "quase impenetrável aos resmungos dela" (p. 26).
O objetivo de Ivan Ilitch era livrar-se cada vez mais dessas contrariedades e tornar-se quase que totalmente inócuo a elas. Foi alcançando esse intento ao passar cada vez menos tempo com a família.
Assim se passaram dezessete anos de casado, quando ocorreu uma situação de intenso desagrado, ao não receber o cargo de juiz presidente numa cidade universitária. Foi um ano penoso na vida de Ivan Ilitch, prontamente solucionado. Viajou para Petersburgo a fim de pedir um cargo com ordenado de cinco mil, passar a um outro ministério e castigar aqueles que não o apreciavam.
Seu intento foi bem-sucedido. Conseguiu um cargo no Ministério da Justiça. Ficou dois graus acima de seus colegas, com um salário de cinco mil rublos e uma ajuda de custo de três mil e quinhentos. Então passou a se dedicar com entusiasmo à decoração e organização do novo lar:
Teve a sorte, principalmente de poder comprar barato certas antiguidades, que emprestavam à casa um ar pronunciadamente aristocrático. [...] Na verdade, havia ali o mesmo que se encontra nas casas de gente remediada, mas que pretende aparentar opulência e apenas consegue que se pareçam extraordinariamente umas com as outras [...] enfim, tudo aquilo que as pessoas de certa classe possuem para parecer com as pessoas da mesma classe. A casa de Ivan Ilitch era uma perfeita imitação, mas ele a achava absolutamente original. (p. 30).
Mobiliar a casa e adorná-la para causar estarrecimento nos colegas e na família consumia bastante de sua ocupação.
Ivan Ilitch construiu para si um mundo alucinado, uma realidade simulada desprovida de qualquer afeto, criatividade e imaginação. Criou um mundo feito de um emaranhado burocrático, exterminando todo e qualquer valor humano de seu campo sensível, transformando sua existência em uma "coisa" materialmente calculável, um produto com valor de mercadoria. Amizade, gratidão, verdade por não conterem valores calculáveis tornaram-se um insumo para produção a serem comercializadas como produto de troca.
O pilar de sustentação desse permanente processo de desumanização foi a negação mortífera da realidade da morte. Negou a morte e se enclausurou em um mundo restrito a valor de mercadoria, pois a constatação da finitude somente o limitaria e o oprimiría com ameaças de desamparo, desbancando sua onipotência e arrogância. No entanto, certa feita, Ivan Ilitch subiu em uma escada para mostrar a um serviçal como queria que o serviço fosse feito, tropeçou e caiu: "o machucado lhe doeu, mas a dor passou logo" (p. 31).
As dores foram se tornando cada vez mais fortes e insuportáveis, a princípio como um gosto esquisito na boca e uma sensação desagradável no estômago. Daí em diante vamos presenciando a "queda" de Ivan Ilitch.
A partir da "queda" não dava mais para negar a morte e todo o seu cortejo: fragilidade, vulnerabilidade, desamparo. Sua interioridade começou a jorrar. A sensação do lado esquerdo do estômago foi piorando, deixando Ivan com desânimo e irritabilidade. O agravamento da doença levou-o a consultar um médico, embora não tenha havido um diagnóstico específico da patologia.
A doença de Ivan evoluiu, e com o agravamento do quadro e a consciência de sua finitude, o desespero não o largava mais: "Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não a compreendia" (p. 49).
Sua existência, construída sob o crivo da negação da morte, não favorecia de modo algum compreendê-la. É certo que admitia que os homens são mortais, mas de modo algum em relação a si mesmo. Tentava negar a sua situação e a iminência do fim, buscando outros pensamentos para colocar no lugar desses:
Não conseguia compreender e procurava enxotar esse pensamento, como falso, incorreto, doentio, repeli-lo por outros pensamentos, corretos, sadios. Mas esse pensamento, e não só o pensamento, mas como que a própria realidade, voltava e estacava diante dele. E ele convocava, um após o outro, pensamentos que substituíssem aquele, na esperança de encontrar neles apoio. Tentava voltar aos velhos caminhos do pensamento, que ocultaram para ele anteriormente a ideia da morte. Mas, fato estranho, tudo o que antes ocultava, escondia, anulava a consciência da morte, não podia mais ter este efeito. (p. 50)
Ivan Ilitch passava agora a maior parte do seu tempo em tentativas de reencontrar a antiga proteção mental que mantinha a morte fora de sua visão. Oscilava entre o reconhecimento da morte e tentativas para eliminá-la de sua visão. A consciência do fim era luzidia e efêmera tal como as ruas belamente ordenadas para serem depois pisoteadas durante a comemoração da Semana Santa. No entanto a morte se apresentava de maneira incontestável:
Chorou por sua solidão, seu desamparo, pela crueldade do ser humano, a crueldade de Deus e a ausência de Deus. [...] Até que pensou e não só parou de chorar, como reteve a respiração e ficou atento: estava ouvindo, parecia, não uma voz externa, mas a voz de sua alma, ouvia as ondas de seus pensamentos que levantavam dentro dele. "O que é que você quer?" foi a primeira coisa possível de ser traduzida em palavras que ouviu. O que você quer? O que você quer?, repetia a voz. "O que eu quero? Parar de sofrer. Viver", respondeu. E novamente pôs-se a escutar com tamanha atenção que nem mesmo sua dor conseguiu distraí-lo. Viver. Viver como?, perguntava a voz. "Ora, viver como antes -viver bem, agradavelmente. Como vivia antes? Bem e agradavelmente?", indagou a voz. (p. 66)
Começou a repassar em sua imaginação os melhores momentos de sua agradável vida. No entanto, estranhamente, nenhum desses melhores momentos de sua vida tão agradável agora lhe pareciam o que pareceram na época - nenhum deles, exceto as primeiras lembranças de infância. Na infância, lembrava-se, havia alguma coisa realmente agradável com a qual seria possível viver, se pudesse recuperá-la. No entanto a pessoa que conhecera essa felicidade já não existia; era como a lembrança de outra pessoa.
Quanto maior a dor, o sofrimento e o medo da morte, mais sua consciência era ampliada. Tudo agora parecia trivial e até repugnante. As alegrias frugais pareciam-lhe agora duvidosas e sem sentido. Lembrou-se de momentos verdadeiramente bons, da época em que era estudante de direito, onde havia alegria, amizades e esperanças. Nos primeiros anos de sua carreira oficial, os bons momentos foram desaparecendo. O desencanto de um casamento infeliz, a preocupação com o dinheiro. Daí a sua fatídica reflexão:
É como se eu tivesse descendo uma montanha, pensando que a galgava. Exatamente isto. Perante a opinião pública, eu subia, mas na verdade, afundava. E agora cheguei ao fim - a sepultura me espera - o casamento, um mero acidente e, com ele, a desilusão, o mau hálito da esposa, a sensualidade e a hipocrisia. E a monótona vida burocrática, as aperturas de dinheiro, e assim um ano, dois, dez, vinte, perfeitamente idênticos. E, à medida que a existência corria, tornava-se mais oca, mais tola. É como se eu tivesse descendo uma montanha, pensando que a galgava. Exatamente isto. Perante a opinião pública, eu subia, mas na verdade, afundava. E agora cheguei ao fim - a sepultura me espera. (p. 67)
Com a presença da morte se intensificando, Ivan Ilitch constatou que: "há um ponto de luz lá longe, no início da vida, mas, depois disso, tudo foi ficando cada vez mais negro e afastando-se cada vez mais, em proporção inversa à distância que me separa da morte" (p. 70).
A Morte de Ivan Ilitch retrata com aguda profundidade a relação entre a negação da finitude e a criação de um simulacro de vida. Ivan Ilitch nos é apresentado no início como um cadáver. Com o desenrolar da história vamos percebendo que os que estavam vivos no velório estavam tão mortos como aquele que já havia morrido.
Impossibilitado de existir em um mundo onde a morte existe, Ivan Ilitch criou uma simulação de existência que o fez perder a própria sombra, que o condenou "a uma atividade branca, a uma socialidade branca, ao embranquecimento do corpo, do cérebro, da memória, a uma assepsia total" (Baudrillard, 2003, p. 51).
Ivan Ilitch construiu uma gigantesca manobra cirúrgica de negação da morte que obliterou seus mecanismos de sonho, seu desejo, sua paixão, criando lugar para a intensificação dos processos que geraram uma existência calcada na produção. Compaixão, solidariedade, verdade perderam o valor de partilha e passaram a funcionar de forma calculada em uma órbita sobre si mesmo. O que não era calculável e "lucrativo" foi expurgado.
Com Galy Gay, protagonista de Um homem é um homem, na peça de Bertold Brecht (1924-25/2007), a morte aparece no fim do processo de uma vida fictícia. Num rito avassalador e impiedoso, Galy Gay celebrou o próprio funeral, sem ter meios para retroceder.
Tolstói, por sua vez, oferece um antídoto para a criação de um simulacro de vida ao conceder a Ivan Ilitch a oportunidade de reumanizar-se mediante a proximidade do fim. Com apenas algumas semanas de vida, reconheceu que teve uma existência exteriormente respeitável mas interiormente estéril. Avaliou seu passado, sua vida em família, sua educação e sua ascensão profissional. Por fim, descobriu que tudo o que fez foi motivado pelo desejo de parecer importante aos olhos dos outros.
O processo de reumanização de Ivan implicou em permanente sondagem da morte. O reconhecimento da existência da morte agudizou sua mente, tornando possível emergir a lastimável e dolorosa perda de uma vida que pudesse ter se alimentado de amizade, gratidão, beleza, verdade.
Guerássin, o camponês e enfermeiro, era o único que lhe confortava nesse doloroso processo. Era o único a compreendê-lo e a compadecer-se dele:
Guerássim era o único a não mentir, tudo indicava que também o único a compreender do que se tratava, e que não considerava necessário escondê-lo, e simplesmente tinha pena do patrão fraco, em vias de se acabar. De uma feita, até disse francamente, quando Ivan Ilitch o mandava embora: Todos nós vamos morrer. Por que então não se esforçar um pouco? - expressando assim que o trabalho não lhe pesava justamente por ser feito para um moribundo, e que tinha esperança de que também para ele alguém faria aquele trabalho, quando chegasse o seu dia. (p. 57)
A presença prestativa e gentil de Guerássim acalmava e comovia profundamente Ivan Ilitch. Foram três meses de intensa agonia, dependente de auxílio para tudo, inclusive para as constrangedoras necessidades fisiológicas. Sem que ninguém visse, "chorava a sua impotência, a sua terrível solidão, a crueldade de Deus, que o abandonava" (p. 57).
Vulnerável, clamava por piedade e, em silêncio, nutria um desejo inconfessável para um homem de respeito: queria ser cuidado, beijado, que o acarinhassem e o consolassem como se fosse uma criança.
Na sua relação com Guerássim havia algo próximo disso e Ivan Ilitch se acalmava. Na companhia desse camponês arraigado no implacável ciclo natural da vida - nascimento, evolução, involução e morte -, Ivan conseguia suportar a "queda".
Finalizando a escrita deste ensaio, vem-me subitamente a lembrança de um fim de tarde quando iniciava uma supervisão com Judith Andreucci. Logo no início ela me perguntou: "Você está ouvindo esta cantoria que está vindo de fora? Ontem morreu o líder da Igreja, logo ali (apontando uma construção que poderia ser vista de sua janela), desde então estão ritualizando sua passagem com vários coros".
Após um breve silêncio, ela me perguntou: "O que você pensa sobre a morte, Vera?".
Imediatamente comecei a relatar sem parar a sessão que havia escrito para ser supervisionada por ela. Semelhante a Ivan Ilitch, naquele momento, escapei para o protocolar, para a superfície do que nos trazia ali naquele exato momento: conversarmos sobre o relato de uma sessão de análise.
Judith delicadamente não insistiu e prosseguimos com o que estava ali para ser feito: a supervisão.
Era evidente que eu não estava preparada para falar sobre a morte. Nem sobre a morte do outro e muito menos sobre a minha própria.
Agora, muito, muito tempo depois, lembro-me desse momento com pesar. Como seria bom travar uma considerável conversa com a Judith sobre a morte!
E me pergunto: somos todos nós, em certa medida, Ivan Ilitchs?
Referências
Baudrillard, J. (2003). Transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. São Paulo: Papirus. [ Links ]
Brecht, B. (2007). Um homem é um homem. Belo Horizonte: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1924-25). [ Links ]
Tolstói, L. (2009). A morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Editora 34. (Trabalho original publicado em 1886). [ Links ]
Correspondência:
VERA L. C. LAMANNO-ADAMO
Av. João Mendes Jr., 180/17
13024-141 - Campinas/SP
Tel.: 19 3254.0824
vlamannoadamo@gmail.com
Recebido 07.05.2020
Aceito 01.06.2020