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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.32 Rio de Janeiro June 2016

 

RESENHAS

 

Os primeiros psicanalistas: Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908

 

Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908, from Marcelo Checchia, Ronaldo Torres, Waldo Hoffmann (org.)

 

 

Fernanda Zacharewicz*,I,II,III; Maria Claudia Formigoni**,III

I Pontifícia Universidade Católica/São Paulo
II Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
III Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

A psicanálise conta com uma história de mais de 100 anos e, ainda assim, há o que ser descoberto sobre esta ciência. A publicação do volume I da obra Os primeiros psicanalistas: Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908 – traduzido direto do alemão por Marcella Marino e recém-publicado no Brasil pela editora Scriptorium, inaugurando a Coleção atentado – permite um mergulho inédito nas origens da psicanálise e, assim, novas descobertas sobre essa teoria. Está, nesses registros, um dos caminhos percorridos por Freud na construção de seu arcabouço teórico.

A cena do pai da psicanálise atrás do divã, escutando seus pacientes ou escrevendo seus textos na solidão de sua escrivaninha, é comum. Costuma-se pensar em um Freud que, basicamente sozinho, teria criado a teoria psicanalítica. O único diálogo que geralmente é lembrado é o que se deu por escrito, via cartas trocadas entre Freud e alguns correspondentes, especialmente Fliess. Porém, para formular seu trabalho, fundamentá-lo e, até mesmo, transmiti-lo, outros diálogos, não escritos, estabeleceram-se.

A leitura das Atas, até então inéditas em português, lança luz exatamente sobre as outras interlocuções de Freud. Os minuciosos registros dos encontros semanais entre os primeiros interessados pela psicanálise evidenciam como foi o início da construção do conhecimento psicanalítico. Na leitura, é nítida a elaboração de hipóteses, o compartilhamento de opiniões e os debates. Percebe-se também o abandono de algumas conjecturas, o aparecimento de novas e a decantação de outras, evidenciando o quanto estudavam e se punham a pensar aqueles homens que se encontravam com Freud.

Mas, com quem dialogava o pai da psicanálise? Quem eram os primeiros psicanalistas? Trata-se de um grupo de homens que, a convite de Freud, se reunia todas as quartas-feiras à noite. O grupo pioneiro não era formado somente por médicos, mas também por educadores e intelectuais da época, contando com um músico e também com escritores. Participavam das "noites psicológicas de quarta-feira" Otto Rank, responsável pela redação das atas; Alfred Adler, Max Graf, pai do pequeno Hans; e outros. Depois de Fliess, esses homens passaram a ser a caixa de ressonância de Freud, como afirma Nunberg, na introdução que fez à publicação das Atas, em 1959.

A cada encontro, um dos membros da Sociedade era responsável por uma conferência, fosse a respeito de um caso clínico, um artigo a ser publicado, um livro, uma peça de teatro, um tema da filosofia ou, até mesmo, uma personalidade. Os temas variavam em torno de qualquer produção cultural ou científica, própria ou de outrem, que pudesse ser relacionada aos estudos psicanalíticos. Debatia-se sobre os direitos humanos, formulavam-se conceitos teóricos como o de sublimação, refletia-se sobre produções culturais como "O despertar da Primavera", de Wedekind. Depois de cada exposição, tinha início um debate, com o qual, até 1908, todos os presentes eram obrigados a contribuir. A leitura das Atas permite perceber o quão ricas e intensas eram tais discussões, e que alguns temas discutidos à época ainda hoje são debatidos pelos psicanalistas.

Cada um dos membros dessa Sociedade contribuiu, a seu modo, para a construção da teoria psicanalítica. Adler (1907/2015, p. 169), por exemplo, falou sobre aquilo que viria a ser o futuro conceito de sublimação: "Ele só vê uma maneira de conceber a substituição de um complexo por outro, a saber, criar uma outra solução para a configuração neurótica da vida pulsional (por exemplo: a pintura, a música, a psicologia)".

Freud, como já era de se esperar, fez inúmeras contribuições. Durante uma discussão sobre a neurose, falou da importância da transferência, mais um dos conceitos fundamentais da psicanálise nitidamente abordados nessas reuniões (1907/2015, p. 177).

Só haveria um poder capaz de eliminar as resistências: a transferência. Nós compelimos o paciente a abandonar as resistências por amor a nós. Nossas curas são curas de amor. […] Pode-se curar na justa medida em que há transferência […] O destino da transferência decide o êxito do tratamento (itálicos do autor).

Entre as tentativas de estruturação teórica e investigativa, descritas nas Atas, algumas foram posteriormente abandonadas por Freud. Nas reuniões dos dias 15 e 22 de abril de 1908, por exemplo, vê-se os participantes, com o conluio dele, elaborarem um "questionário para investigação da pulsão sexual", no qual fica evidente a importância que o aspecto orgânico tinha à época. Como se sabe, Freud, ao longo do tempo, minimiza o papel desse componente na formação psíquica.

Os debates que a leitura das Atas permite conhecer trazem à tona também a apropriação e o posicionamento que cada um dos membros tinha acerca dos assuntos discutidos. Muitas vezes não havia consenso e conflitos instalavam-se. Isso certamente não foi sem consequências para o movimento psicanalítico. Pode-se pensar, inclusive, que tenha levado, na última reunião antes do recesso de 1907, ao anúncio de Freud sobre a dissolução da Sociedade e sua imediata refundação, com aqueles que manifestassem interesse. No mesmo ano, Freud (1907/2015, p. 308) envia uma carta aos membros, anexada à ata de 9 de outubro, em que explica sua decisão:

Permita-me justificar esta medida aparentemente supérflua. Temos em vista levar em conta as mudanças naturais que se produzem nas relações humanas, quando supomos que para um ou outro membro de nosso grupo a participação em nossa Sociedade possa já não significar o mesmo que nos anos anteriores, seja porque se esgotou o interesse, ou porque seu tempo livre e forma de vida o impedem de participar de nossa sociedade, ou ainda por razões pessoais que o apartam de nós.

A leitura desses documentos também mostra que o corpo teórico psicanalítico constrói-se, principalmente, fora do âmbito universitário formal. As reuniões de pessoas interessadas na psicanálise marcam o estilo da transmissão freudiana desde os primeiros tempos. Freud não somente escrevia ao grande público, mas também punha-se a pensar e investigar junto com os colegas.

Alguns deles colocavam Freud no lugar de mestre. Porém, a partir da leitura das Atas, é perceptível o esforço dele para não ocupar esse posto. Continuamente, propunha e instigava o debate entre todos os participantes e considerava seriamente cada uma de suas contribuições, contrapondo-as ou corroborando-as quando julgava necessário. Essa postura de Freud evidencia sua preocupação não só com a construção da psicanálise, mas também com a formação dos psicanalistas.

Será plausível considerar que o funcionamento desses encontros semanais e a forma como Freud se posicionava teriam servido como inspiração para Lacan pensar sua proposta da prática de cartel? Teriam também essas discussões e debates com outros funcionado como base para que Lacan propusesse seus seminários abertos ao público? As características desses encontros propostos por Freud teriam influenciado a proposta lacaniana de formação e também de Escola?

Salta aos olhos, ao longo da leitura desses registros, outra relevante preocupação freudiana – e também lacaniana: a transmissão da psicanálise. A iniciativa de reunir diferentes interessados por sua incipiente teoria, pelo comportamento humano e pelas diversas manifestações culturais é, por si só, um reflexo de tal preocupação. A psicanálise já nasce, assim, marcada por sua vocação ao diálogo com a sociedade, pela preocupação com a psicanálise em extensão, extramuros.

Diversas pessoas de fora de Viena foram convidadas a participar das reuniões das quartas-feiras. Em 23 de janeiro de 1907, por exemplo, Eitingon, interno de Bleuler no hospital de Burghölzli – como também o era Jung – foi a primeira pessoa do exterior a vir debater com Freud. Já Jung participou pela primeira vez junto com Binswanger, na reunião de 6 de março de 1907. Assim, em pouco tempo, a Psicanálise difundiu-se para além do Império austro-húngaro.

É justamente no âmbito da preocupação com a transmissão que pode ser elencada a iniciativa de Marcelo Checchia, Ronaldo Torres e Waldo Hoffmann de publicar as Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena. Os próximos volumes certamente lançarão mais luzes sobre as origens da psicanálise, constituindo-se uma contribuição fundamental para a história e transmissão dessa teoria.

 

Referências

NUMBERG, H; FEDERN, E. Os primeiros psicanalistas: Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1096-1908. São Paulo: Scriptorium, 2015.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Fernanda Zacharewicz
Rua do Radium, 166 – Jd. Petrópolis
São Paulo – SP – CEP 04637-050
E-mail: fzacharewicz@yahoo.com
Maria Claudia Formigoni
Rua Urussuí, 92 – cj. 46 – Itaim Bibi
São Paulo – SP – CEP: 04542-050
E-mail: mclaudiaformigoni@gmail.com

 

 

* Psicóloga. Psicanalista. Doutoranda em Psicologia Social pela PUC/SP. Mestre em Gerontologia pela PUC/SP. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Membro do Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo.
** Psicóloga. Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano – SP. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Especialista em psicologia hospitalar pelo HCFMUSP.

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