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Pensando familias

Print version ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.24 no.2 Porto Alegre Jul./Dec. 2020

 

ARTIGOS

 

Solidão, solitude e a pandemia da COVID-19

 

Loneliness, solitude and the COVID-19 pandemic

 

 

Thiago de Almeida1, I

I Escola de Artes e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (EACH-USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Hoje vivemos mais. No entanto, aparentemente vivemos sozinhos mesmo em um mar de relacionamentos interpessoais. As relações interpessoais como amizades, amores, colegas de trabalho e familiares, são de grande importância na nossa vida. Contudo, a pandemia da COVID-19 reformulou relacionamentos pessoais de uma maneira sem precedentes. Medidas de distanciamento de contato físico isolaram pessoas, amigos e parceiros afetivossexuais. No entanto, ao ser imposto o isolamento de contato físico como regra única para prevenção e controle de uma pandemia planetária, a COVID-19, o coronavírus tornou-se inimigo número um dos relacionamentos interpessoais. Este estudo objetiva discorrer sobre o fenômeno da solidão no mundo contemporâneo afetados pelas consequências pandêmicas do novo coronavírus.

Palavras-chave: Solidão, Solitude, COVID-19, Pandemia, Quarentena.


ABSTRACT

Today we live longer. However, we seem to live alone even in a sea of interpersonal relationships. Interpersonal relationships such as friendships, loves, co-workers and family members are of great importance in our life. However, the COVID-19 pandemic has reshaped personal relationships in an unprecedented way. Distance measures from physical contact isolated people, friends and affective sexual partners. However, when physical contact isolation was imposed as the sole rule for preventing and controlling a planetary pandemic, COVID-19, the coronavirus became the number one enemy of interpersonal relationships. This study aims to discuss the phenomenon of loneliness in the contemporary world affected by the pandemic consequences of the new coronavirus.

Keywords: Loneliness, Solitude, COVID-19, Pandemic, Quarantine.


 

 

“A linguagem criou a palavra solidão para expressar a dor de estar
sozinho. E criou a palavra solitude para expressar a glória de estar
sozinho” (Tillich)

 

Considerações iniciais

Hoje vivemos mais. No entanto, aparentemente vivemos sozinhos mesmo em um mar de relacionamentos interpessoais. O que são relacionamentos interpessoais? Podemos conceituar os relacionamentos interpessoais como um meio através do qual criamos laços de afetividade mais íntimos e, ao mesmo tempo, criamos nossa identidade e nos definimos como ‘Ser em relação’ (Machado, 2009). Acerca da importância dos relacionamentos, o escritor e educador, Rubem Alves, declarou que, na velhice, a gente fica com medo de ficar só, de não ter ninguém para conversar. E qual é a importância dos relacionamentos interpessoais?

As relações interpessoais como amizades, amores, colegas de trabalho e familiares, são de grande importância na nossa vida, pois: oportunizam aprendizagens (e.g. Neiva & Mauro, 2011);  determinam grande parte de nosso comportamento (e.g., Rodrigues et al., 2016); seres humanos são criaturas altamente sociais (e.g., Myers, 2014). A simples presença de uma pessoa, pode servir para diminuir a nossa percepção de angústia e isolamento social (e.g., Ainsworth, 1989); a simples presença de outras pessoas, mesmo sem reduzir a angústia é reforçadora (Gagné, 2020). Relacionar-se com outras pessoas tem um impacto direto em nossa saúde, pois o isolamento social pode produzir doença física e mental (Cacioppo & Patrick, 2008; Copeland, 2017; Garrido, & Garrido, 2020; Haslam et al., 2015; Ho, Chee, & Ho, 2020; Hossain, Sultana, & Purohit, 2020; Pereira, et al., 2020; Ribeiro, Rocha, cunha et al. 2020; Wang et al, 2020), sintomas esses, principalmente, relacionados ao estresse, ansiedade e depressão, decorrentes da privação social e do confinamento . Sintomas psicopatológicos de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão podem acometer, principalmente, profissionais de saúde e pessoas de baixa renda (Brooks et al., 2020).

Coube a Psicologia, desvendar os mecanismos e as dinâmicas implícitas ao fenômeno da atração interpessoal. A atração refere-se a uma mudança de atitude ou emoção positiva em relação a outras pessoas e que nos leva a aproximar e a procurar a sua companhia. Naturalmente que há diferenças entre a atração existente entre a relação interpressoal entre pais e filhos, entre amantes apaixonados, entre colegas de trabalho ou de turma, ou entre amigos inseparáveis. No entanto, em todos os exemplos citados, podemos falar de atração, isto é, de uma “orientação avaliativa” (do indivíduo A em relação ao indivíduo B) e, portanto, de uma atitude de preferência relacional. Nesse sentido, o fenômeno da atração interpessoal expressa o desejo de estarmos com determinadas pessoas. Depende da avaliação cognitiva e afectiva que fazemos delas. É importante evidenciarmos que a atração interpessoal depende de fatores como a familiaridade, proximidade, semelhança, complementaridade, reciprocidade, qualidades dos outros e atratividade (Almeida & Lomonaco, 2018).

Para compreender a solidão, em tela para esse manuscrito, assim como para compreender o fenômeno da solitude, é necessário estabelecer alguns parâmetros que servirão de guia no objetivo de defini-la. Antes de qualquer outra coisa, é necessário diferenciá-la de ‘solteirice’ e de solitude.

A solteirice, ou em inglês, ‘singleness’ e ‘singlehood’, é um termo utilizado para falar da situação ou condição de quem é ou está solteira/o, e o termo ‘singlism’ se refere aos estereótipos ainda existentes no cotidiano e nas representações sobre este estado civil. The term singlism was coined by Bella DePaulo; it includes the stigmatizing and stereotyping of adults who are single (DePaulo, 2016). De acordo com Andrade e Tavares (2019): “A solidão, a solitude, e a ‘solteirice’ são consideradas como uma construção social, histórica e cultural, e assim, a importância de contextualizar desde onde as vivências do cotidiano e as representações partem” (p. 1).

Para muitos autores (Andrade, 2012; 2016; Andrade, Darlane & Tavares, 2019; Lima, 2018), ao passo que a solidão está associada aos sentimentos de abandono, de isolamento e melancolia, todos associados à ausência de conexões eficientes ligando um ser humano a outro ou outros, a solitude é a sensação de prazer justamente em razão da desconexão. Os indivíduos que vivem em estado de solitude, por escolha própria ou como reação ao abandono ou insuficiência dos laços sociais, encaram a condição com positividade e otimismo, encontrando, assim, prazer em suas próprias companhias. Complementarmente a essa conceituação, Lima (2013) afirma que a solitude pode ser uma escolha pessoal ou uma condição obrigatória, circunstancial ou definitiva. O autor ainda conjectura que escolher  viver sozinho é positivo para a reintegração de si mesmo e depois retomar a ligação com os outros.

Em janeiro do ano de 2018, uma iniciativa evidentemente inusitada, porém precisa, deu ao Reino Unido o pioneirismo do combate estatal da solidão. A BBC2 veiculou a histórica criação do Ministério da Solidão, resultado da luta incessante da parlamentar Jo Cox, do Partido Trabalhista. Ela enxergou à frente de seu tempo a epidemia de solidão no Reino Unido que, com uma população de 64,65 milhões de habitantes, conta com 9 milhões de pessoas que se dizem constante ou absolutamente sozinhas. Esse número representa 13,92/ dos constituintes, alcançando alarmante expressividade.

 

Solidão, Solitude e Pandemia da COVID-19

É impossível estar nesse mundo sem nos relacionarmos. Exatamente por estarmos isolados e mais fragilizados pelo medo da pandemia da COVID-19, que precisamos mais de contatos físicos, de abraços e de ouvir ‘eu te amo’, ‘conta comigo’ e suas variações. Nos relacionamos com tudo aquilo que é vivo e com o que não é também. Se estivermos nos referindo a pessoas, estamos nos referindo a relacionamentos sejam eles de natureza amorosa, somente para destacarmos uma das possibilidades das muitas outras formas de interação entre seres humanos como a laboral, a de amizade, a familiar e por aí vai. Todos estes, em maior ou em menor grau envolvem pessoas, interações e intimidade. Contudo, a pandemia da COVID-19 reformulou relacionamentos pessoais de uma maneira sem precedentes. Medidas de distanciamento de contato físico isolaram pessoas, amigos e parceiros afetivossexuais. Independentemente desse fator é sabido que: “A afetividade ocupa um lugar importante na relação conjugal, pois ela viabiliza momentos de trocas afetivas e emocionais na relação do casal, como o respeito, a amizade e o companheirismo que um sente pelo outro ”(Machado, 2009, p. 11). Logo, se não nos dermos o trabalho de refletir a respeito deste tema, talvez estejamos perdendo uma preciosa oportunidade para otimizar a qualidade dos nossos relacionamentos amorosos, os quais tanto valorizamos e queremos preservar (Almeida et al., 2008).

Além do rastro de mais de 110 milhões de infectados e mais de 2,5 milhões de mortos pelo mundo, até a presente data, esta pandemia da COVID-19 trouxe angústia, ansiedade, temor, medo e a necessidade de isolamento de contato físico radical como medida preventina para conter a dispersão da COVID-19. Em tempos de quarentena, o vírus Sars-Cov-2 e sua variante, cepa que recebeu o nome de B.1.1.7, isolou e continua a isolar fisicamente amigos, casais e familiares: cada um em sua casa. E é importante evidenciar aqui que o isolamento é uma medida sanitária que separa as pessoas umas das outras, mas não da sociedade, pois somos seres sociais, somos seres gregários. Veremos mais aprofundadamente em um dos tópicos desse manuscrito que evoluímos para sermos assim, gregários (e. g. Norman et al., 2011).

Por agora, cabemos assinalar que, de acordo com Vieira (2017/2020), o isolamento social é definido como pouco ou nenhum contato com outros indivíduos, enquanto a solidão, por sua vez, é definida pela falta de conexão emocional com os demais. Ainda de acordo com este autor, é possível se sentir sozinho, mesmo inserido em uma multidão de pessoas. De fato, o isolamento de contato físico foi uma medida sanitária valiosa no enfrentamento da pandemia de coronavírus pelo mundo e no Brasil e que teve como objetivo principal a redução na velocidade de contágio entre as pessoas para não sobrecarregar o sistema de saúde dos Estados e municípios. No entanto, ao ser imposto o isolamento de contato físico como regra única para prevenção e controle de uma pandemia planetária, a COVID-19, o coronavírus tornou-se inimigo número um dos relacionamentos interpessoais. Nesse sentido, alguns questionamentos se fazem presentes ao se tratar de um tema como esse: O que é solidão? Qual é a diferença entre solidão e solitude? Viver só é melhor do que mal acompanhado? Solidão é a experiência do vazio? Do isolamento ou é a experiência da plenitude? Atualmente vivemos uma epidemia de solidão? Como está o fenômeno da solidão em tempos de COVID-19? Como o distanciamento social necessário durante a pandemia pode afetar (ou reinventar) a rotina e a saúde mental de quem vive sozinho em quarentena?

De acordo com Lima (2018): “A palavra solidão talvez seja uma das mais conhecidas do século XXI. A despeito de ser utilizada principalmente em obras artísticas de expressão intelectual, sua presença nas mais diversas formas de arte, seja na música, películas cinematográficas, poesias ou artes plásticas/conceituais, além do o alto consumo e identificação do público com os materiais que abordam a temática são um claro indicador de que o homem atual está literal ou metaforicamente sozinho” (p. 21). A autora continua dizendo que, ao longo do tempo, a despeito da tendência hedonista do ser humano, foram escritas mais canções sobre isolamento e ausência de conexão que sobre estar feliz, satisfeito com a vida.

Por muito tempo a ciência psicológica focou seus estudos sobre a solidão e a questão da solitude, vulgarmente intitulada de ‘solteirice’, para os problemas individuais impeditivos para o engajamento e a manutenção de uma relação estável ou do casamento, buscando origens psíquicas ou na história relacional (problemática) das pessoas solteiras que justificassem o não casamento (Reynolds, 2008). Nesse sentido, a diretriz era contemplar o questionamento: “Como a Psicologia tem olhado para as pessoas adultas que não se casam e não têm filhas(os)?”. Antes, a solidão era confundida com solitude e, de acordo com a ciência psicológica da época era considerada uma falta de opção, um desvio da situação de paridade entre as parcerias em potencial. Hoje, direcionamos um olhar mais amplo que concebe a solidão, ou pelo menos a vivência da solitude, como tão normal como a primeira.

Solidão não é um sentimento simples, mas um misto de sensações como angústia, dor, medo e tristeza, que foi mudando ao longo do tempo, com dimensões sociais e políticas.  Porém, cabe destacar que tanto a solidão, bem como a solitude, têm más famas. Uma ilustração que evidencia o que está se comentando é que se pode observar que o pior castigo na penitenciária é a solitária.

Ao longo da história, porém, o fenômeno da solidão tornou-se um termo carregado de interpretações negativas, associadas à ausência de laços sociais, isolamento, vazio. Na Bíblia, em Gênesis 2:18 podemos perceber essa tendência: “Então o Senhor Deus declarou: ‘Não é bom que o homem esteja só; farei para ele alguém que o auxilie e lhe corresponda’.” Da Bíblia, escrita na Idade dos Metais, para o século 20, por exemplo, pouca coisa mudou acerca de tais entendimentos. Psiquiatras passaram a identificar personalidades "extrovertidas" (ligadas à sociabilidade e ao gregarismo, logo desejáveis) e "introvertidas" (vinculadas à neurose e à solidão, portanto indesejáveis). A história literária está cheia de exemplos de pessoas que quase enlouqueceram por ficarem imersas na experiência da solidão. Por exemplo, o jovem marinheiro  Robinson Crusoé (personagem criada por Daniel Defoe, publicado originalmente em 1719, no Reino Unido), que ficou náufrago e refugiado na ilha tentou sobreviver sozinho, ao longo das décadas, nessa condição. Assim, enquanto uma condição incompreendida e estigmatizada, a solidão é vista com desconfiança por uns e utilizada como punição por outros (Lim et al., 2016).

 

Solidão: Uma Patologia Contemporânea?

Apesar de não ser considerada doença, a solidão causa problemas psicológicos e físicos. E pode ser classificada como crônica ou aguda. Todos nós, em algum momento, estamos sujeitos a “picos de solidão”. Nos últimos anos, cientistas vêm esmiuçando os possíveis efeitos fisiológicos da solidão. Uma das descobertas atuais é que seu impacto é semelhante ao do estresse. Consequentemente, as correlações e consequências da solidão são incontáveis, sendo algumas mais conhecidas, como a depressão e o suicídio (Cacioppo et al., 2010; Venturini &  Goulart, 2016), diminuição na qualidade do sono (e. g., Cacioppo et al., 2002), aumenta a severidade dos enfartos, e inúmeras outras não descobertas (Abbott et al., 2018; Dahlberga & McKeeb, 2014; Holt-Lunstad, 2017, Lim, Eres, &  Vasan, 2020; Lim, Holt-Lunstad, & Badcock, 2020; Mihalopolous et al., 2020; Mushtaq et al., 2014; Ouakinin & Barreira, 2015; Santini, et al., 2020; Valtorta et al., 2016). Logo, é impossível esgotar todas as associações negativas ao tema. E, qual é a gênese dessa associação? Em suma, uma maior biodisponibilidade parte por milhão (p.p.m.) da associação de adrenalina e cortisol no plasma sanguíneo. Logo, em estado de tensão constante, você tende a relaxar menos e a dormir mal. E o que isso significa na prática? Ora, o aumento p.p.m. de cortisol/adrenalina está correlacionado extensamente na literatura acadêmica a problemas de saúde como problemas cardiovasculares. Num balanço geral, alguns pesquisadores chegam a estimar um aumento de 26/ na probabilidade de morte prematura entre quem vive sozinho demais (Valtorta et al., 2016). O mesmo estudo pode concluir uma diminuição das capacidades cognitivas, das funções executivam e descobriram um risco 40/ maior de demência em pessoas solitárias.

Várias pesquisas (e.g. Cornwell & Laumann, 2015) buscaram entender qual a relação entre saúde mental e conexão social. De acordo com Santini et al. (2020): “Desconexão social pode ser definida como escassez de contato com outros. Ela pode ser indicada por fatores como uma rede de contatos pequena, interação irregular com outras pessoas e falta de participação em atividades sociais e grupos. A solidão, por outro lado, é uma experiência completamente subjetiva e está mais relacionada à qualidade das relações que temos com o outro do que à quantidade. Tal experiência pode envolver sentir-se isolado, sem suporte ou sentir-se inadequado nas relações interpessoais. Contudo, a solidão pode se manifestar completamente desvinculada da quantidade de pessoas que se conhece ou do tempo que se passa só” (p. e63).

No entanto, por não se tratar de uma doença em si, não existe vacina ou remédio para a solidão. Independentemente dessa constatação: levantamento com dados de quase quatro milhões de pessoas aponta que viver (ou se sentir) sozinho é bem mais prejudicial do que parece. Uma análise apresentada na 125ª Convenção Anual da Associação Americana de Psicologia alerta para outro mal para lá de nocivo: a solidão. De acordo com Holt-Lunstad et al. (2015), uma das principais ameaças nesse sentido seria o aumento do risco de morte prematura. A pesquisa ocorreu em duas partes. Na primeira, 148 estudos foram avaliados, totalizando 300 mil pessoas. Cruzando as informações dessa turma, estes autores puderam concluir que quem cultiva bons relacionamentos interpessoais tem 50/ mais chances de não falecer antes da hora em comparação aos solitários.

Já a segunda etapa considerou os dados de aproximadamente 3,4 milhões de voluntários, divididos em 70 pesquisas. Como era de se esperar, também houve uma clara relação entre a solidão ou o isolamento de contato físico e o risco de morrer antes do tempo. Mas o que intrigou os experts é o fato de esses problemas, segundo o estudo, serem tão deletérios quanto a obesidade ou outras condições sérias de saúde. A condição do Isolamento de contato físico também já foi associada recentemente a maior risco de diabetes, Tipo 2. (Pouwer et al., 2020).

 

Solidão, Comportamento Gregário e Etologia

A solidão é temida em geral porque nós não evoluímos para sermos solitários (Cacioppo, Cacioppo, Cole et al.,  2015; Cacioppo, Cacioppo, Boomsma,  2014; Cacioppo, Capitanio, Cacioppo, 2014). Nós temos uma necessidade inata de criarmos vínculos (Cacioppo et al., 2014; Cacioppo, Cacioppo, Capitaneo et al., 2015). Nós seres humanos precisamos nos relacionar com outras pessoas de criar vínculos afetivos e manter esses vínculos ao longo da nossa vida e, se em algum momento nós percebemos que estamos isolados socialmente, isso pode nos trazer uma série de prejuízos tanto na esfera psicológica como na esfera biológica. O isolamento de contato físico, muitas vezes, constitui-se como um fator de risco para o desencadeamento de diversas doenças sérias e graves e até mesmo da morte. Somos uma espécie social, gregária que se desenvolveu a partir de comunidades de 100, 200 pessoas, em nossa ancestralidade (Lim et al., 2016). Enquanto Tom Jobim pensava que “Fundamental é mesmo o amor. É impossível ser feliz sozinho.”, de acordo com a música Wave, o psicólogo John T. Cacioppo, vai além e, em várias de suas pesquisas conclui: É impossível sobreviver sozinho. A dor física protege o indivíduo dos perigos físicos. A dor social, também conhecida como solidão, protegia o indivíduo de permanecer isolado (Cacioppo & Patrick, 2008). Em outras palavras: estar no seu canto, por livre e espontânea vontade, pode ser prazeroso e necessário. Já não ter com quem contar na vida costuma abalar mesmo o bem-estar. No entanto, estimativas apontam que uma em cada quatro pessoas no mundo não tem amigos pra valer, vive longe da família ou se sente desconectada socialmente (Holt-Lunstad, 2017, 2018 a e b). Um estudo revisou ao todo, 3,7 milhões de voluntários, e chegou a uma conclusão alarmante: sentir-se sozinho faz tão mal à saúde como estar acima do peso, ser sedentário ou fumar 15 cigarros por dia (Holt-Lunstad, Smith, & Layton, 2010).

Mas como se sentir isolado socialmente no mundo atual onde nós temos diversas ferramentas que nos conectam com as pessoas o tempo inteiro à internet e às redes sociais que nos fazem em um clique estar próximo de alguém? Será que dá pra se sentir sozinho mesmo diante de todo esse aparato tecnológico das redes sociais? A resposta é sim. Talvez, as redes sociais não garantam os mesmos imperativos biológicos que o contato face a face.

 

Mundo no Divã Versus a Solidão do Cotidiano

Segundo estudos recentes, solidão se faz presente em diversos países, com impactos psicológicos, socioeconômicos e, sobretudo, políticos. O Japão é um retrato do atual fenômeno da solidão (estima-se que 541 mil japoneses vivam inteiramente isolados, segundo dados oficiais), mas não é o único. Porém, em se tratando do Japão, podemos observar dois fenômenos que foram intitulados e descritos na literatura. O primeiro é o Hikikomori. Hikikomori é um fenômeno social recente na história do Japão. As autoridades do país definiram que pessoas em reclusão social a mais de seis meses são portadores da doença (Roza et al., 2020). O segundo fenômeno é o Kodokushi. Kodokushi, ou morte solitária, refere-se a um fenômeno no Japão em que pessoas morrem sozinhas, geralmente em apartamentos, e cujos corpos permanecem sem serem descobertos por um longo período de tempo (Dahl, 2020; Suzuki et al, 2020). O NLI Research Institute (2011) estimou que entre 8.604 e 26.821 idosos morrem por ‘kodokushi’ anualmente. O fenômeno foi descrito pela primeira vez na década de 1980 (Kato et al., 2017). De fato, segundo alguns autores (e.g. Lima, 2013), “Não  ter  com  quem  compartilhar  os momentos  bons  ou  ruins,  ou  se  ver obrigado/a  ficar  só  nas  datas  de  Natal, passagem  para  ano  novo,  aniversário, domingo,  pode  causar  um  efeito  de solidão  profunda  em  algumas  pessoas. Para  amenizar  a  solidão,  nestas  datas, alguns  cumprimentam  a  si  próprios, abraçam-se, etc. Geralmente as pessoas cuja personalidade é considerada difícil ou superego rígido, terminam sendo isoladas da convivência social” (p. 78).

Já em outro contexto cultural, de acordo com o noticiado pela mídia “foi no Reino Unido que surgiu o Ministério da Solidão, em fins de 2018. "A solidão é a triste realidade da vida moderna", justificou a primeira-ministra à época, Theresa May. Segundo o relatório da Jo Cox Comission on Loneliness, comitê instituído pela parlamentar Jo Cox (1974-2016) para investigar o assunto, 9 milhões de britânicos são solitários, mais de 30/ dos idosos se sentem isolados, 50/ dos portadores de deficiência se sentem abandonados e 58/ dos imigrantes e refugiados se sentem sozinhos. O governo destinou £ 1,8 milhão para financiar iniciativas e instituiu uma campanha de conscientização para tentar minimizar o estigma da solidão e encorajar interações sociais, a Loneliness Awareness Week. Na época, a agência de notícias BBC elaborou outro estudo junto a três universidades britânicas (Victor, & Qualter, & Barreto, 2019), o BBC Loneliness Experiment. Segundo a enquete, que contou com 55 mil participantes ao redor do mundo, a solidão atinge 25/ dos idosos com mais de 75 anos e 40/ dos jovens de até 24 anos. Diversos países vêm levantando dados sobre solidão nos últimos anos, a partir de metodologias diferentes, em universidades, revistas, institutos independentes e órgãos governamentais. Na Europa, 18/ da população se diz "socialmente isolada", e 7/, "solitária", segundo a análise do European Social Survey de 2019 feita pelo Centro Comum de Investigação, unidade científica da Comissão Europeia. Pode parecer pouco, mas 7/ corresponde a 30 milhões de europeus. Na Austrália, 27,6/ se sentem sozinhos; no Canadá, 23/; na China, 28/” (Sayuri, 2020).

 

Condiderações Finais

Como pudemos observar, solitude é o estado de privacidade de uma pessoa, não significando, propriamente, estado de solidão. Solitude se trata do ato voluntário de ficar a sós consigo mesmo sem se incomodar com qualquer sensação de vazio. Diferentemente da solitude, cujo significado define o prazer de ficar a sós consigo mesmo, a solidão representa o sentimento de exclusão forçada, de estar sozinho contra a própria vontade.

A solidão, a solitude, e a ‘solteirice’ é considerada como uma construção social, histórica e cultural, e assim, a importância de contextualizar desde onde as vivências do cotidiano e as representações partem. Cuidar de nossos vínculos afetivos é uma forma de cuidarmos de nós mesmos, mas não devemos desconsiderar os benefícios da solitude, assim, é  possível  ser  feliz  sozinho,  contradizendo música do Tom Tobim (Wave). Mais pesquisas sobre esse assunto estão e serão desenvolvidas para contemplar essa lacuna que existe na literatura científica, ainda incipiente de aportes sobre o tema.

 

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Endereço para correspondência
Thiago de Almeida
E-mail: thiagodealmeida@thiagodealmeida.com.br

Enviado em: 23/09/2020
Aceito em: 17/12/2020

 

 

1 Prof. Dr. Thiago de Almeida é Psicólogo pela Universidade de São Carlos (UFSCar). Mestre pelo Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Doutor pelo Departamento de Psicologia da Aprendizagem do Desenvolvimento da Personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorando pela Escola de Artes e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (EACH-USP). O autor também possui especializações em: “Psicologia e Saúde Mental”; “Neuropsicopedagogia Clínica e Institucional”; “Psicopedagogia Clínica e Institucional”; “Educação de Jovens e Adultos”e aperfeiçoamento em: “Psicologia, Educação e Desenvolvimento” pela Faculdade Metropolitana do Estado de São Paulo (FAMEESP).
2 HUFFPOST BRASIL. Por que os britânicos tiveram que criam um Ministério da Solidão? Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2018/01/18/por-que-os-britanicos-tiveram-que-criar-um-ministerioda-solidao_a_23337387/>. Último acesso em 23 ago 2018.

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