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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.40 no.73 São Paulo Dec. 2007
A INTERPRETAÇÃO EM JOGO
Existe vida após o casamento?
Is there life after marriage?
¿Existe vida después del casamiento?
Alexandre Horta e Silva*
Médico, Psiquiatra. Do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
RESUMO
O texto aborda aspectos de certos vínculos, nos quais a união, caracterizada por desgaste progressivo, deságua num simbólico duplo suicídio. Um filme de Takeshi Kitano é usado como ilustração dessa análise, num vôo sobre o teatro de marionetes e pela dramaturgia renascentista japoneses. Temos os consultórios como palcos dessas “encenações” e o desafio de colaborar para, quem sabe, evitarmos desenlaces tão trágicos.
Palavras-chave: Duplo suicídio, Cinema japonês, Teatro de bonecos, Renascimento.
ABSTRACT
This essay addresses aspects of certain bonds in which the union is characterized by a progressive wearing out, leading to a symbolic double suicide. A film directed by Takeshi Kitano is used to illustrate the analysis, in an overview of marionette theatre and Japanese Renaissance drama. We have our consulting rooms as a stage for these “performances” and the challenge to possibly avoid such tragic consequences.
Keywords: Double suicide, Japanese picture, Marionette theatre, Japanese Renaissance.
RESUMEN
El texto aborda aspectos de ciertos vínculos en los cuales la unión, caracterizada por el desgaste progresivo, desemboca en un símbolo de doble suicidio. Una película de Takeshi Kitano es usada como ilustración de ese análisis, en un vuelo sobre el teatro de títeres y por la dramaturgia renacentista japoneses. Tenemos los consultorios como palco de esas “escenificaciones” y el desafío de colaborar para, talvez, evitar desenlaces tan trágicos.
Palabras clave: Doble suicidio, Cine japonés, Teatro de muñecos, Renacimiento.
Certa vez, num encontro de família, um primo cuja espirituosidade é marcante propôs a seguinte questão aos convivas: “Existe vida após o casamento?”. Lançados numa torrente de comicidade, só nos restou a gargalhada farta, duradoura. Aliviados, refeitos eu diria, comecei a considerar instigante a pergunta. Passei então, numa atmosfera de bom humor, a pensar no assunto, e surgiram idéias e lembranças em que a união de certas pessoas tinha a ver com ligações mortíferas.
Um filme chamado Dolls, do cineasta japonês Takeshi Kitano, aflorou em minha memória. Nele há, como prelúdio, uma peça do teatro de marionetes do Renascimento japonês, seguido de três histórias marcadas pela paixão maldita.
A primeira, e mais marcante, fala de um jovem apaixonado pela namorada, que, pressionado pela ambição, pelo chefe, e até pela própria família, dela desiste para se casar com a filha de seu superior. No dia da cerimônia, a ex-namorada tenta suicídio, que, embora não consumado, a desintegra mentalmente. O rapaz, na hora de seu casamento, fica sabendo do ocorrido; deixa a noiva e os convidados e vai ao encontro da moça hospitalizada. Ao encontrá-la, vê o estado lastimável em que se encontra: já não é a mesma, restando apenas um ser autista, de olhar perdido, lançado em outro mundo. Impactado, tomado de grande emoção e como se não tivesse outra escolha, permanece ao lado dela, passando os dois, a partir desse momento, a errar pelo mundo atados por uma corda vermelha; assim vagueiam degradados até o final de seus dias.
A segunda história mostra um velho doente yakuza (componente da Máfia japonesa) que, intuindo a proximidade da morte, relembra um antigo amor por ele abandonado para tentar enriquecer e angariar poder. Ele comunicou à jovem namorada a decisão de deixá-la, muitos anos atrás, num belo parque onde se encontravam; esta em desespero prometeu esperá-lo para sempre e, todo sábado, sentou-se no mesmo banco, trazendo consigo almoço para ambos, como costumava fazer. Assim, durante toda uma vida ela cumpre este ritual. O antigo namorado, agora idoso e trôpego, resolve voltar ao parque e, surpreso, vê uma senhora sentada num banco com uma marmita na mão à espera do amado; reconhece-a e passa a encontrá-la; ela se mostra receptiva, mesmo não o reconhecendo; almoçam juntos outra vez. Enlevado por estar com o antigo amor em mais um encontro, ao voltar sozinho para o carro, descuida-se de sua segurança e é assassinado por um rival.
O último episódio narra a paixão platônica de um auxiliar de trânsito por uma pop star. Devoto, não perde as apresentações da estrela, seus olhos existem para admirá-la, tem todos os seus discos, álbuns e pôsteres. A cantora se envolve num acidente automobilístico, tendo seu belo rosto seriamente lesado. Arrasada, deixa o mundo artístico; não quer mais ser vista; refugia-se numa praia e se recusa terminantemente a qualquer encontro com fãs. Respeitando a determinação por ela imposta, não ser vista com o rosto mutilado, ele se cega; pôde assim estar ao lado dela. No caminho de volta, sozinho, tateando a estrada com a bengala, sua imagem desaparece, restando no lugar uma poça de sangue.
Essas estórias têm como prólogo um trecho de uma peça do dramaturgo Chikamatsu Monzaemon (1653-1725), do tradicional teatro profissional de marionetes japonês: o bunraku. Sofisticado, dirigido a adultos, cada títere é articulado por três pessoas, sendo que apenas o titereiro principal é visível; comanda a cabeça e o braço direito do boneco. Os restantes camuflados por panos negros acionam braço esquerdo um e pernas o outro. Três presenças, sendo duas encobertas. Cada boneco mede metade a dois terços de uma pessoa. Há um narrador (tayu) que recita os acontecimentos num estilo poético, chamado joruri, ao ritmo marcado por um instrumento de três cordas, o shamisen. Ambos ficam lado a lado num tablado à direita do palco e não se olham durante a apresentação. O narrador interpreta os personagens masculinos e femininos e ocupa a posição hierárquica mais elevada de todo o elenco.
O teatro bunraku se origina ao longo dos séculos XVII e XVIII; atinge seu apogeu com as obras de seu maior dramaturgo, Chikamatsu Monzaemon, que, como Shakespeare, quinhentista elizabetano, pode ser visto como representante quinhentista do período Genroku (1688-1704), o Renascimento japonês — que se inicia aproximadamente cem anos depois do período elizabetano, na Inglaterra. Chikamatsu inicialmente escreveu dramas históricos; numa evolução humanística, em seus dramas amorosos domésticos, passa a abordar circunstâncias dos cidadãos comuns da classe média, introduzindo o tema do duplo suicídio como decorrência do choque entre as severas obrigações sociais e as necessidades sentimentais individuais.
Duas de suas peças mais famosas seguem este tema: Os amantes suicidas de Sonezaki (1703), inspirada e escrita um mês depois do incidente em que um empregado de uma loja e uma cortesã se suicidam em decorrência da impossibilidade de sua união; e Os amantes suicidas de Amijima (1720) — ambas comparadas às peças de mesmo enredo de Shakespeare: Romeu e Julieta (1595-96) e Antônio e Cleópatra (1606).
O Japão de então se encontra no período histórico Edo (1600-1868), época de grande desenvolvimento mercantil e estabilidade, que marca o começo do período moderno japonês.
O cineasta insinua que as pessoas não têm o livre-arbítrio da escolha, são conduzidas e estão à mercê do destino e da inconsciência.
O prólogo do filme está ligado a sua própria história, pois a avó fazia parte de uma trupe de teatro bunraku e treinava em casa para as apresentações, introduzindo o neto nos meandros dos temas e dos dramaturgos mais expressivos.
Na infância presenciou um fato que muito o impressionou: um casal de mendigos, que amarrados andavam pela cidade. Nunca obteve uma explicação para tal circunstância, e isso o inspirou para uma das histórias de seu filme.
As passagens em Dolls nos mostram mortes em vida; indivíduos ligados uns aos outros mediante pactos, verdadeiros suicídios. Gente comum, nem boa nem má, impossibilitada de se desvencilhar dos elos doentios de uma existência sem opção. Por isso Kitano considera este o seu filme mais violento. As falas são curtas, servem apenas para localizar-nos no enredo; a comunicação é maciçamente não-verbal. Somos lançados num mar de emoções avassaladoras, ligadas a uma profusão de imagens belíssimas, intencionalmente fotografadas: junção do extremamente belo e da morte. A beleza extrema é conclusiva; nada precisa ser alterado; movimentações são desnecessárias: reside aí a ligação com a morte.
A cena das cerejeiras no auge do esplendor com suas flores exuberantes é imensamente significativa, já que na natureza elas caem pouco depois de desabrochar: beleza e morte anunciada. As estações do ano se sucedem, ficamos em dificuldade de escolher qual a mais linda imagem, e o casal amarrado por uma corda vermelha vaga, mas num vagar atemporal, sem sentido; já estão mortos; ações em vão; somente a morte concreta poderia libertá-los. Ficamos envoltos nesse clima de beleza e morte.
O casal de velhos, numa volta patética a um passado para viver algo que já se foi, e o auxiliar de trânsito para manter uma imagem perene de sua adorada estrela, optando pela cegueira, são marcos de desespero e desamparo, dispersos nas impossibilidades da escolha humana.
Ao tentarmos algum entendimento de culturas diferentes, no caso a japonesa, devemos levar em consideração que a possibilidade de uma pessoa reagir emocionalmente às demandas da vida está diretamente ligada ao depósito de lendas e mitologia que configuram a estrutura sociocultural na qual está inserida. Quero dizer com isso que mesmo as manifestações inconscientes limitam-se ao depósito lendário específico, responsável pelo alcance da expansão individual e coletiva.
O sentimento de vergonha do japonês é marcante, e inúmeras narrativas mostram isso claramente:
No mito da origem do Japão, a divindade paterna Izanagi e a divindade materna Izanami solidificaram, juntos, a Terra, criando as ilhas e dando à luz muitas divindades, entre elas o deus do fogo, que ao nascer queimou os genitais da deusa, levando-a à morte. No domínio dos mortos, a deusa deformada interdita a presença de seu companheiro; não queria ser vista naquele estado. Ele a desrespeita, desce ao mundo dos mortos e a vê queimada, sendo comida pelos vermes. Ao perceber ter sido vista, é tomada de extrema vergonha e raiva.
Há várias fábulas do folclore japonês com o mesmo tema: surge uma bela e irresistível mulher; o homem se apaixona; o casamento se consuma; vivem felizes; mas a esposa impõe ao marido, como condição para continuar a relação matrimonial, não ser vista ao dar à luz ou ao amamentar. Essa situação é imposta, pois a mulher na verdade é um animal, que volta ao seu real estado nessas circunstâncias. O homem desobedece e flagra um animal parindo ou alimentando o recém-nascido. Ao se perceber vista, tomada de vergonha, vai embora. Essas fábulas recebem o nome do animal que as inspiram: “Esposa Peixe”, “Esposa Marisco”, “Esposa Serpente”, entre outras.
A vergonha, sentimento muito desenvolvido no repertório afetivo japonês, apresenta nuances no tocante à sua discriminação comparáveis à possibilidade aumentada de um esquimó discernir tons de branco (pois vive nas geleiras) ou de um índio na sua capacidade para tons de verde (a cor predominante das matas). Assim, em quem nasce num contexto onde a vergonha é apurada por circunstâncias socioculturais, sua eclosão é mais intensa e freqüente. Já na cultura judaico-cristã, cuja estrutura lendária e mitológica hipertrofia as manifestações de culpa, os indivíduos assentam várias de suas experiências sobre este sentimento.
No filme há a situação explícita da vergonha no caso da pop star com o rosto deformado que não quer ser vista. Podemos inferir que a jovem abandonada e desprezada pelo namorado se sente extremamente envergonhada por ele e tenta o suicídio; e ele por ter desencadeado a reação da ex-namorada e também por deixar a noiva no altar é possuído pelo mesmo sentimento. Obviamente, essas manifestações afetivas não excluem outras, mas constituem elemento importante da dinâmica mental dos japoneses.
Os eventos contemporâneos ligados ao duplo suicídio diferem muito dos do Renascimento. Neste existe uma escolha, uma finalidade, um porquê: morrer a dois é a expressão da impossibilidade da separação e a morte é consumada concretamente como desfecho de um conflito. Nos atuais, o extermínio se faz sem ser percebido; a morte não é reconhecida, fica fora da consciência, mas está presente e ata de forma bastante potente os envolvidos, simulando vida onde só há escombros: um duplo suicídio simbólico.
Defrontamo-nos em nossos consultórios com situações dessa natureza, e o encaminhamento das análises passa pelo reconhecimento por parte dos pacientes da morte onde se acreditava haver vida. Obviamente, falar de algo tão abstrato, sub-reptício, requer um grande esforço, pois a interpretação ao mesmo tempo que desmascara a morte, desarticulando seus disfarces, tem que abrir perspectivas de vida real, saudável, num contexto onde os protagonistas, até então, só sabem viver uma vida sem vida.
Portanto, em situações claras da “inexistência de vida após o casamento”, a pretensão de transformar este estado de coisas em “vida após o casamento”, com todos os rearranjos necessários, passa por muitas provações; logo essa evolução só se fará presente após “imensas perdas”; mesmo em se tratando de perder a morte para ganhar a vida.
Referências
Bloom, H. (2001). Shakespeare: A invenção do humano (J. R. O’Shea, trad.). Rio de Janeiro: Objetiva.
Highwater, J. (1992). Mito e sexualidade. (1ª ed. J. A. dos Santos, trad.). São Paulo: Saraiva. [ Links ]
Japanese mythology (1972). In New Larousse encyclopedia of mythology (pp. 403-422). London: The Hamlym Publishing Group. [ Links ]
Kitayama, O. (1991). A receptividade do terapeuta, no Japão, frente às experiências do paciente envolvendo vergonha e sentir-se exposto. IDE, São Paulo, 20, 58-65. [ Links ]
Endereço para correspondência
Alexandre Horta e Silva
R. Sílvia, 227 — Bela Vista
01331-010 São Paulo, SP
Fone: (11) 3285-2420
E-mail: alexandrehortaesilva@terra.com.br
Recebido em: 28/11/2007
Aceito em: 11/12/2007
* Médico, Psiquiatra. Do Instituto de Psicanálise da SBPSP.