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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo June 2017
A ESCRITA PSICANALÍTICA E A PSICANÁLISE DA ESCRITA
Narciso sob a tinta
Narcissus under the ink
Narciso bajo la tinta
Narcisse sous la plume
Vera L. C. Lamanno-Adamo
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, e do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas, GEP Campinas, São Paulo. vlamannoadamo@gmail.com
RESUMO
Partindo da fala de uma paciente sobre a distinção entre crônica e poesia, e baseada em A vida que ninguém vê, de Eliane Brum, a autora considera uma escrita da clínica psicanalítica com menos erudição e mais crônica.
Palavras-chave: escrita da clínica psicanalítica, crônica, poesia
ABSTRACT
The author thinks of clinical psychoanalytic writing in a less erudite way, and more as a chronicle. This paper starts from a patient's distinction between poetry and chronicle, and it is also based on the book "The life that nobody sees", written by Eliane Brum.
Keywords: clinical psychoanalytic writing, poetry, chronic
RESUMEN
Partiendo del comentario de una paciente sobre la distinción entre crónica y poesía, y basada en La vida que nadie ve, de Eliane Brum, la autora considera una escritura de la clínica psicoanalítica con menos erudición y más crónica.
Palabras clave: escritura clínica psicoanalítica, crónica, poesía
RÉSUMÉ
Prenant comme point de départ les paroles d'une patiente à propos de la distinction entre la chronique et la poésie, et basée sur "La Vie que personne ne voit", d'Eliane Brum, l'auteur considère une écriture de la clinique psychanalytique présentant davantage de chronique et moins d'érudition.
Mots-clés: écriture de la clinique psychanalytique, chronique, poésie
Por que apresentamos, publicamos, divulgamos experiências vividas na clínica? Escrevemos porque aquele algo da experiência vivida pode ser útil para pensarmos o que falta, o que ainda não foi dito? Escrevemos por conta do espanto? Para exaltar o próprio ato de escrever? Para "provar" um ponto de vista? Para alcançar reconhecimento entre os colegas? Para legitimar a experiência vivida? Para abrir um espaço em que se está sempre a desaparecer? Para modificar a própria experiência vivida? O suporte necessário à transmissão da experiência? Escrevemos porque nada mais poderia ser dito senão por meio do ato de escrever.
Uma paciente frequentemente dizia que a grande preocupação de um poeta era saber se aquilo que havia escrito era poesia. Na poesia, salientava, o autor está praticamente imperceptível. Por isso, insistia em afirmar que "a crônica, uma espécie de diário, é considerada uma escrita de segunda categoria; na crônica, o escritor está todo lá, sem nenhuma invisibilidade". Para ela, poesia era fruto de um processo intelectivo altamente planejado e consciente, completamente desligado da pessoa do autor. O autor estaria completamente desaparecido por trás de sua obra.
Esse argumento sobre o que considerava ser poesia era condizente com seu ideal de eu fundamentado numa espécie de assepsia do ser. Obstinada a rejeitar qualquer alteração em si, nunca ou muito raramente perdia a paciência. Jamais uma palavra áspera para alguém. Não se queixava, não reclamava, não criticava ninguém, não se zangava com ninguém de maneira evidente. Não mostrava qualquer desapontamento em relação a mim ou em relação às pessoas de sua convivência.
Um dia ela me trouxe uma de suas poesias e ficou absolutamente inquieta ao perceber a totalidade de sua presença naquilo que escrevera. Desejo, conflito e fantasia estavam todos lá. É certo que estavam lá sob a tinta e meio de canto, nas entrelinhas, enviesados.
A escrita centrada no sujeito é antiga. Falar de si, ser o protagonista de sua narrativa é tão antigo quanto a humanidade, porém, como categoria literária, adquire seu estatuto a partir do Iluminismo. Somente na esteira desse período as chamadas narrativas confessionais, intimistas ou escritas do eu (autobiografias, memórias, diários, cartas) passam a ser consideradas escritas literárias. O mito de Narciso tem sido utilizado como metáfora dessas escritas, por serem modalidades discursivas centradas na expressão de um eu que se desnuda diante da página em branco (Bezerra, 2011).
Cada vez que pomos no papel uma experiência clínica, a questão da inclusão ou exclusão do narrador naquilo que é escrito se apresenta.Tomado por um ideal de assepsia, envolto numa espécie de armadura, escreve-se um texto inteligente, erudito, controlado. Quase nada se transmite de si para si, de si para o outro. Uma escrita imóvel, estática, uma narrativa que não abre para o desconhecido, aquele desconhecido que entra e envolve, inquieta e atrapalha.
Se eu tivesse de advogar sobre os escritos da clínica psicanalítica, eu defenderia a ideia de que fossem menos erudição e mais crônica.
A palavra "crônica" origina-se do latim chronica e do grego khrónos (tempo). O significado principal neste tipo de texto é precisamente o conceito de tempo, ou seja, é o relato de um ou mais acontecimentos em um determinado período. É a narração do cotidiano das pessoas, fazendo com que se veja de uma forma diferente aquilo que parece óbvio demais para ser observado. Uma boa crônica é rica nos detalhes, descritos pelo cronista de forma bem particular, com originalidade (Wikipedia, 2017).
Assim como o repórter, o cronista inspira-se nos acontecimentos diários, que constituem a base da crônica. Há, entretanto, elementos que distinguem um texto do outro. Após cercar-se desses acontecimentos diários, o cronista dá-lhes um toque próprio, incluindo em seu texto elementos como ficção, fantasia e criticismo, elementos que o texto essencialmente informativo não contém.
Com base nisso, o cronista pode ser considerado o poeta dos acontecimentos do dia a dia. A crônica, na maioria dos casos, é um texto curto e narrado em primeira pessoa, ou seja, o próprio escritor está "dialogando" com o leitor, não está falando do "alto", está sentado ao lado do leitor num meio-fio.
Isso faz com que a crônica apresente uma visão totalmente pessoal de um determinado assunto: a visão do cronista. Ao desenvolver seu estilo e ao selecionar as palavras que utiliza em seu texto, o cronista está transmitindo ao leitor a sua visão de mundo. Ele está, na verdade, expondo sua forma pessoal de compreender os acontecimentos que o cercam (Wikipedia, 2017).
Geralmente, as crônicas apresentam linguagem simples, espontânea, situada entre a linguagem oral e a literária. Isso contribui também para que o leitor identifique-se com o cronista, que acaba tornando-se o porta-voz daquele que lê.
O cronista Humberto Werneck (2011), na abertura de seu livro Esse inferno vai acabar, afirma que em Minas Gerais não acontece nada, mas o pessoal se lembra de tudo. Nesta frase, está contida uma das mais instigantes definições do gênero: a matéria-prima da crônica é o não acontecimento, o comezinho, a miudeza.
A repórter Eliane Brum, anos atrás, foi escolhida por Marcelo Rech (2006), um diretor de redação que buscava inovação para o jornalismo brasileiro, para um desafio: extrair crônicas reais de pessoas comuns e situações corriqueiras. Ela capturou a ideia e escreveu uma série de reportagens sobre personagens e cenas cotidianas em forma de crônicas da vida real, transformando-as numa coletânea de 46 colunas por quase onze meses.
As reportagens/crônicas foram posteriormente publicadas em A vida que ninguém vê (Brum, 2006). Aí encontramos uma repórter que não está à procura do espetacular, mas de histórias escondidas na vida anônima de cada um. A vida que ninguém vê, mas que Eliane viu, é um mergulho no cotidiano para provar que não existem vidas banais.
Com olhos e ouvidos abertos e aguçados diante da informação em estado bruto, Brum conta sobre Adail José da Silva, na crônica Adail quer voar; sobre o sr. Oscar Kulemkamp, em O colecionador de almas sobradas; sobre Tierri, em O chorador da cidade; sobre Vanderlei Ferreira, em Ogaúcho de cavalo de pau; sobre Jorge Luiz, em O homem que come vidro, e assim por diante.
Não consigo deixar de trazer com mais detalhes algumas de suas crônicas, não só pelas histórias propriamente ditas, mas, em especial, pela narrativa cortante e densa de retalhos de vida que, talvez, para muitos repórteres não passariam de algo comum demais para ser retratado e relatado.
A linguagem poética, essa linguagem que se cumpre sem um total planejamento intelectual/consciente, inspira continuar falando de uma voz que não quer se apagar. Quanto mais se vê, mais se quer enxergar.
Adail quer voar. Ele chegou ao Rio Grande do Sul apavorado num ônibus de molas cansadas, emerso da Serra Gaúcha, onde tinha as mãos manchadas pelo sangue dos pinheirais. Chegou apavorado porque o único avião que vira na vida estava estraçalhado nas encostas de Canela:
chegou com a mala vermelha, de couro, meia dúzia de tarecos dentro, grudada no corpo. Estaqueou na porta do aeroporto, naquele tempo metade do que é hoje, mas já enorme para ele. E se recusou a entrar. Os colegas o empurraram. E Adail entrou aos tropeços. Com a sua mala desajeitada, sem um bilhete de viagem. Iniciou ali, naquele alvorecer de outubro de 1963, uma jornada sem sair do chão que dura até hoje. E tornou-se o que seria para o resto de sua vida. Adail tornou-se "o negão" das bagagens. (Brum, 2006, p. 13)
O colecionador de almas sobradas dia após dia peregrina pelas ruas de Porto Alegre, recolhendo pedaços da cidade. Vai de lixeira em lixeira, até onde alcança, recolhendo pedaços de pau e de canos, ventiladores estragados, vasos quebrados, brinquedos abandonados:
o número 81 da rua Bagé é o castelo de um homem que inventou um mundo sem sobras. Dando valor ao que não tinha, Oscar Kulemkamp deu valor a si mesmo. Colecionando vidas jogadas fora, Oscar Kulemkamp salvou a sua. Talvez seja esse o mistério do número 81. E talvez por isso seja tão assustador. (Brum, 2006, p. 27)
Em O chorador, a cronista nos leva a conhecer um pouco de Tierri, um mestiço nascido no pampa. Tierri é o chorador da cidade:
Tierri chora os mortos não porque alguém tenha pedido nem porque algum parente tenha pago. Não por contrato, mas por gosto. Tierri o faz porque não chorar os mortos é ofender os vivos. Porque chorar a morte é sua missão na vida... é essa a missão de Tierri, de quem às vezes o povo ri ou judia. Esse Tierri humilde, que muita gente arrelia, entendeu que não havia nada mais nobre do que dar importância na morte mesmo a quem não a teve na vida. Ele, que conhece na pele e na herança a desigualdade da sina, inventou um jeito de igualar a todos pelo menos no último dia. (Brum, 2006, pp. 43-44)
O homem que come vidro é como foi batizado Jorge Luiz Santos de Oliveira, Eliane conheceu-o em frente ao Mercado Público de Porto Alegre. Tinha o sonho de ganhar a vida comendo vidro. Comer vidro o tornaria um ser único no mundo. Passou a deglutir garrafas de cerveja, de conhaque e até de champanha. Transformou-se, como diz seu desajeitado cartaz de papelão, no Homem de Aço, mas ele não teve público, todos estavam ao redor de um índio que mostrava um lagarto vivíssimo dentro de uma caixa e vendia umas pomadas milagrosas vindas, garantia ele, diretamente da Amazônia. Jorge Luiz não entendia
por que as pessoas preferiam ver um lagarto sem graça fazer coisa nenhuma a assistir a um homem comer vidro, deitar-se sobre vidro, caminhar sobre vidro. Não compreendia um mundo em que um homem comendo vidro não causa espanto. Ficamos os dois ali, olhando feio para o lagarto. Depois fui embora, sem responder à sua pergunta de abismo. O homem de aço não estava preparado para a maior de todas as dores: a da invisibilidade. (Brum, 2006, pp. 83-84)
Encantou-me, sobretudo, a primeira história do livro de Brum, História de um olhar. Começa assim:
O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva. Esta é a história de um olhar. Um olhar que enxerga. E por enxergar, reconhece. E por reconhecer, salva. Esta é a história do olhar de uma professora chamada Eliane Vanti e de um andarilho chamado Israel Pires. Um olhar que nasceu na Vila Kephas. Dizem que, em grego, kephas significa pedra. Por isso um nome tão singular para uma vila de Novo Hamburgo. Kephas foi inventada mais de uma década atrás pedra sobre pedra. (Brum, 2006, p. 10)
As histórias de Brum não são mostradas de forma completa, inquestionável, fechadas, estáticas. Pelo contrário, com o olhar inspirado no cotidiano e uma escrita poética, suas histórias nos inquietam, envolvem e nos despertam para outras histórias, ideias e pensamentos. Lê-se uma história e já se quer uma outra e outra mais. Sua arte foi transformar sensivelmente a realidade em crônicas poéticas. O resultado é uma conversa que revela a humanidade dos personagens e a sua própria.
E me lembro, agora, do texto de Judith Andreucci "Aquele olhar: vivências psicanalíticas com alguém que não podia ver". Começa assim:
Aquele olhar foi o que me intrigou ao fitar a paciente pela primeira vez. Moça de feições bonitas, ou melhor, lindas, mas que se diluíam com o impacto que causavam seus olhos, azuis, opacos, fechados, parados, olhos cegos sem expressão, olhos mortos... Pareciam implantados no rosto, quais olhos de vidro. Não me viam, não viam nada, não deixavam ver. Os cegos não veem, mas expressam-se pelo corpo inteiro. Têm mil olhos. A jovem, a quem me refiro, não era fisicamente cega, mas seu olhar parecia conter todas as cegueiras. À medida que a ia observando, parecia-me que toda ela era velada, pétrea, impassível. A voz, sem timbre, dava-me a impressão de um crepitar de folhas secas num chão ressequido. Não havia entonação, era igual, no mesmo diapasão, voz sem vida... Um arremedo de sorriso, ou antes, uma fissura estranha, por vezes, entreabria-lhe os lábios finos, sem expressão. Toda ela tinha o ar imóvel, hirto, de uma estátua de granito fincada num mausoléu. Apenas um movimento: sentava-se no divã (somente se deitou no último período da análise), na posição de um buda, mascando chicletes, com os quais fazia bolas com a boca e as estourava num crepitar monótono, incessante. Havia saído há pouco de um sanatório ou não havia saído? Não fazia, aparentemente, diferença... (Andreucci, 1979, p. 345)
A situação cotidiana, miúda, quase corriqueira que se instala no processo analítico é também a matéria-prima da escrita psicanalítica. Um trabalho com o miúdo, com "resíduos", com "restos" de sessões, uma espécie de resto diurno atuando no trabalho do sonho do narrador.
Numa linguagem poética, Judith comunica ao leitor, numa profunda e íntima relação com a experiência vivida, os diversos e estranhos estados de mente expressos, sobretudo, pelo olhar da paciente. Por meio dessa experiência apresenta e discute a situação dramática de uma jovem impedida de movimento mental criador. A experiência clínica, diz Judith, consegue modificar até certo ponto a visão deformada da paciente, auxiliando-a a caminhar até onde seus olhos suportaram ver.
Trata-se de uma clínica e de uma escrita móvel, transitiva, inquietante. Uma escrita, como diria Giovannetti (2012), que "estimula a um êxodo sem um Deus e sem uma terra prometida" (p. 246).
Quando li pela primeira vez esse texto de Judith, pensei: um texto psicanalítico em forma de poesia. Anos depois, numa releitura, considerei ser a construção poética de uma psicanálise e de uma escrita analítica. Hoje, considero esse texto um híbrido, um misto de ciência, poesia e crônica. Fundamentada em Freud, Klein e Bion, Judith, em linguagem poética e como uma boa cronista, descreve no calor de cada sessão analítica, entre outras preciosidades, o confronto e o manejo com uma paciente que evidencia estar sofrendo grave desastre mental, em estado de choque traumático. Por meio de uma escrita literária, mostra a fragilidade humana da analista, a renúncia ao desejo de cura e às ilusões onipotentes e oniscientes, constantemente em cena.
Um dia disse a Judith o quanto havia gostado daquele seu texto "Aquele olhar", e ela me contou que não o queriam publicar, pois aquilo não era um texto psicanalítico, aquilo era poesia. Mas publicaram.
Referências
Andreucci, J. T. C. (1979). Aquele olhar: vivências psicanalíticas com alguém que não podia ver. Revista Brasileira de Psicanálise, 13(3),345-354. [ Links ]
Bezerra, L. S. (2011). A escrita itinerante de Maria Ondina Braga: autobiografia, Ficção e memória. Tese de Doutorado em Literatura Portuguesa. Faculdade de Letras da Universidade do Rio de Janeiro. [ Links ]
Brum, E. (2006). A vida que ninguém vê. Porto Alegre: Arquipélago. [ Links ]
Giovannetti, M. F. (2012). Considerações sobre a escrita psicanalítica. Ide, 53,243-250. [ Links ]
Rech, M. (2006). Prefácio. In E. Brum, A vida que ninguém vê. Porto Alegre: Arquipélago. [ Links ]
Werneck, H. (2011). Esse inferno vai acabar. Porto Alegre: Arquipélago. [ Links ]
Wikipedia (2017). Crônica (gênero). Recuperado em 7/4/2017 de https://pt.wikipedia.org/wiki/Crônica_(gênero). [ Links ]
Recebido em: 1/4/2017
Aceito em: 17/4/2017