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Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.25 no.76 São Paulo  2008

 

PONTO DE VISTA

 

Reflexões sobre as nossas disfuncionalidades, seu manejo e suas repercussões na convivência

 

 

Tania Almeida

Pós-graduada em Neuropsiquiatria e Sociologia. Terapeuta de crianças, adolescentes, casal e família. Coordena o Núcleo de Atendimento a Famílias em Situação de Litígio, no Multiversa do Rio de Janeiro e preside o MEDIARE - Diálogos e Processos Decisórios

Correspondência

 

 

EM QUE MOMENTO ENTENDEMOS QUE UM COMPORTAMENTO É DISFUNCIONAL?

É disfuncional o comportamento que foge ao entendido como padrão ou ao esperado. Disfuncionais estamos todos, em algum momento de nossas vidas, em relação a algum tema vigente. Ou seja, nossas disfunções aparecem à medida que uma demonstração de habilidade é exigida em um dado momento. Algumas inabilidades são permanentemente visíveis e outras somente quando precisamos demonstrar determinada capacidade. Algumas são transitórias e outras, permanentes. Em algumas estamos acompanhados por outros membros da família e/ou da comunidade em geral. Em outras estamos, aparentemente, desacompanhados.

 

EXISTEM DISFUNCIONALIDADES QUE SÃO EVOLUTIVAS

Este tem sido um tema de reflexão na prática clínica, especialmente na que envolve crianças e adolescentes. Sabemos que crianças não se desenvolvem sem sintomas. Os sintomas são um sinal positivo de alerta ao demonstrarem que alguma coisa demandou do seu portador recursos para além dos que ele pode, naquele momento, dispor. Eles fazem parte do sistema de alarme da saúde, porque possibilitam que o mundo externo tome conhecimento de alguma sobrexigência e busque providências. Crescimento sem sintoma é sintomático.

Se prestarmos atenção nas incomensuráveis diferenças entre um bebê com um dia de vida e uma criança de 10 anos, nos daremos conta das exigências que o crescimento faz a um ser humano na sua primeira década de existência. Acredito que nenhuma outra década exigirá tanto de nós quanto a primeira. São muitas as mudanças e inúmeras as negociações internas que auxiliam o permanente câmbio de identidade.

Costumo comparar essa etapa de vida com a corrida com obstáculos do atletismo. Enfatizo, no entanto, e aí está a riqueza desta metáfora, as diferenças entre a corrida do desenvolvimento e a corrida do atletismo: na corrida do desenvolvimento, os obstáculos não estão colocados a intervalos regulares e o tamanho de cada um deles não é universal. Nela, cada atleta é que estipula o tamanho de determinado obstáculo para ele, o que exige uma leitura particular sobre o peso de cada evento na vida de cada indivíduo. Na corrida do desenvolvimento, seriam obstáculos todos os momentos curriculares de passagem - permuta do peito pela mamadeira/colher/garfo, troca dos dentes, perda do berço, começo da deambulação, controle dos esfíncteres, início da escolaridade, um certo grau de inabilidade em algum tema, etc. - e, também, os extracurriculares - nascimento do irmão(ã), troca de escola, morte da vovó(ô), desemprego do papai, perda da babá querida, entre outros.

 

EXISTEM DISFUNCIONALIDADES QUE FICAM SOBREVALORIZADAS PELO MOMENTO DE VIDA DE SEU PORTADOR E POR SEU CONTEXTO

Enquanto as crianças transitam pela corrida do desenvolvimento, nossa cultura exige que elas ingressem na vida acadêmica para aprenderem, todas, as mesmas disciplinas e para produzirem, todas, um resultado semelhante, traduzido em notas. Requer essa cultura que indivíduos de uma mesma faixa etária tenham as mesmas habilidades para aprender e produzir o que lhes é proposto. Essa cultura categoriza como inábeis todos aqueles que, por qualquer motivo, não alcancem os resultados esperados. Esse período da vida de todos nós (ensinos fundamental e médio), que precede a época em que poderemos eleger os temas aos quais nos dedicaremos a estudar (ensino universitário), propõe uma homogeneidade de possibilidades para todos os indivíduos. Essa proposta contraria o mosaico constituído pelos caracteres biopsicossociais que nos compõem e que desenham, em cada um de nós, distintas possibilidades.

Abordado dessa maneira, é assustador e doloroso o que culturalmente propomos para as nossas crianças. Para algumas delas são esses os sentimentos que as acompanham durante esse percurso - o temor e o sofrimento. A grande maioria das disfuncionalidades é diagnosticada na infância, pelo fato de implicarem em inabilidades denunciadas pelas demandas desta etapa de vida. Ou melhor, algumas inabilidades só são assim caracterizadas por serem instrumentos-padrão para alcançar o que a cultura demanda, de acordo com os parâmetros exigidos por essa mesma cultura.

Tenho ainda na memória uma terapia realizada com um menino que adorava bichos de toda natureza e possuía enorme habilidade para diferenciá-los, categorizá-los, seguindo os critérios de semelhança e de diferença, mas que tinha encantamento zero e inabilidade dez com as letras e os números. Ele sabia o que ninguém sabia e não sabia o que todos, supostamente, sabiam. Lembro-me de conversar com seus pais a respeito de como seria se ele não pertencesse à cultura Rio de Janeiro, zona sul. Quando seria que suas habilidades poderiam ser mais valorizadas do que suas inabilidades? E quando esse dia chegasse, que qualidade de auto-estima ele teria para acreditar que era excepcionalmente hábil em alguma coisa?

 

EXISTEM INABILIDADES QUE FICAM SOBREVALORIZADAS PELA MANEIRA COMO LIDAMOS COM ELAS

A necessidade de homogeneizar os grupos, em algum ou em muitos níveis, para com eles lidar, deixa-nos pouca permissão para tratar as diferenças como diferenças e não como disfunção/menor habilidade. Criamos para as crianças, para os educadores, para os pais e a família a obrigação de tentar ser, ou ajudar a ser, mais um elemento dentro do padrão.

Outras vezes, são as disfunções/inabilidades dos adultos que os fazem lidar de maneira disfuncional com as disfunções da criança. Nessa retroalimentação positiva chegamos a um ponto em que não é mais possível separar o joio do trigo. É difícil decidir que intervenções priorizar e é fácil identificar a presença de elementos quase que comuns a todos os integrantes dessa dança, que busca seguir o ritmo da maioria: a frustração, a baixa auto-estima, o cansaço. E já que estamos falando em retroalimentação positiva, vale afirmar que a frustração, a baixa auto-estima e o cansaço são ingredientes que não só ampliam como ajudam a construir inabilidades/disfuncionalidades.

 

QUE REPERCUSSÕES TRAZEM PARA A FAMÍLIA AS INABILIDADES DE TODOS NÓS?

Não é simples ser um inábil - adulto ou criança. Não é simples sentir-se responsável, objetiva ou subjetivamente, pela(s) inabilidade(s) do outro. Algumas inabilidades trazem a necessidade de um redesenho da organização familiar. Outras impõem formas de funcionamento que fogem ao padrão, exigindo de todos que integram o contexto maior flexibilidade e tolerância.

As repercussões de uma inabilidade sobre os contextos dos quais seus portadores participam, em especial o contexto familiar, podem ser positivas e negativas, na direta medida de sua aceitação ou não-aceitação, e na direta medida da presença de um manejo mais ou menos adequado da sua existência. Gosto de diferenciar aceitação de concordância; podemos discordar que um evento tenha que existir em nossas vidas mas, se ele não puder ser removido, teremos que aceitá-lo e, para o nosso próprio conforto, bem manejá-lo.

Também gosto de convidar as famílias a exercitarem o manejo de diferenças e a capacidade de flexibilização a partir dos próprios eventos/disfunções que integrem as suas histórias. O que podemos aprender (e conseqüentemente nos enriquecer) com o manejo de diferenças pode superar em muito a frustração, a baixa auto-estima e o cansaço que costumam acompanhar as disfunções, a peregrinação por distintos profissionais e os tratamentos multidisciplinares por meses ou por anos a fio.

 

QUE ATITUDES PODEM SER MAIS FAVORECEDORAS NO TRATO COM SUJEITOS DISFUNCIONAIS E COM SUAS INABILIDADES?

É reconhecimento universal que uma das mais prestigiadas habilidades do homem deste início de século é a capacidade de bem lidar com a diferença. Esta é uma habilidade que integra o escopo do que entendemos por competência social, neste início de milênio. Auxiliar as nossas crianças a bem lidarem com aquilo que as faz diferentes é tarefa nossa, mas que só pode ser bem exercida por quem pratica o bem lidar.

Na linha do bem lidar, gosto de distinguir as situações para as quais usamos o verbo ser e para as quais usamos o verbo estar. Aquilo que é transitório precisa ser assim caracterizado. Vale o cuidado de, ao adjetivar as disfunções das nossas crianças, privilegiar o verbo estar. Nossa voz, a voz dos cuidadores, está revestida de muito poder para a percepção infantil. O nosso olhar e a nossa fala fazem parte do conjunto de elementos que ajudam a formar a identidade daqueles que cuidamos e com quem interagimos.

Devemos aceitar a possibilidade de intervir positivamente em nosso relacionamento com o portador de disfunção, assim como no relacionamento do portador com a própria disfunção. Todos aqueles que lidam com o portador devem entender o que é a disfunção e podem tornar-se parte de sua administração.

A postura com relação à disfunção e a forma de lidar dos cuidadores é a intervenção mais eficaz que podemos oferecer ao seu portador.

 

 

Correspondência:
Rua General Venâncio Flores, 305/911
Leblon - Rio de Janeiro - RJ - 22441-090
e.mail: mediare@mediare.com.br

Artigo recebido: 06/09/2007
Aprovado: 11/11/2007

 

 

Trabalho realizado no MEDIARE - Centro de Administração de Conflitos, Rio de Janeiro, RJ.

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