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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.30 no.44 São Paulo June 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM I

 

“Mesmo que não comunique nada…”

 

“Even if it does not communicate...”

 

Yeda Saigh*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora oferece algumas reflexões propositivas sobre as relações entre langue [fr.], linguagem e psicanálise, considerando a experiência cotidiana em que nos confrontamos com a “vida das palavras” na fala de todos os dias e, também, com referência ao uso que Lacan deu às intuições lingüísticas de Ferdinand de Saussure.

Palavras-chave: Lacan. Língua. Linguagem. Psicanálise. Saussure.


ABSTRACT

The author offers some propositive reflections on the relations between langue [Fr.], language and psychoanalysis, considering our social experience confronting the “life of the words”, and also considering the use that Lacan made of the linguistic intuitions by Ferdinand de Saussure.

Keywords: Lacan. Languages. Language. Psychoanalysis. Saussure.


 

 

Mesmo que não comunique nada, o discurso
representa a existência da comunicação;
mesmo que negue a evidência,
ele afirma que a palavra constitui a verdade;
mesmo que seja destinado a enganar,
ele especula sobre a verdade, no testemunho.
Jacques Lacan, 1956.

 

Neste artigo proponho algumas associações entre psicanálise, linguagem e língua e as inúmeras confusões que podem ocorrer entre esses campos, se os conceitos não são adequadamente interpretados. O que está em foco é a ambigüidade das palavras com seus muitos sentidos. Para que todos esses conceitos, construídos em diferentes campos de estudo, sejam adequadamente interpretados, são necessários muito tempo, paciência e atenção – virtudes que se esperam da psicanálise, que é baseada essencialmente na escuta da palavra, das falas.

Para escrever este artigo, pus-me a “divagar” pela Internet, à procura de uma ponta de fio à qual me agarrar, no mar proceloso das questões de língua, linguagem e psicanálise. Nessa procura de flanneuse, minha atenção foi fisgada, primeiro, por um artigo publicado numa revista de lingüística da Universidade das Ilhas Maurício, assinado por Emmanuel Richon. As ilhas Maurício, um protetorado francês, são ilhas perdidas no mapa, no meio do oceano Índico. Emmanuel Richon é lingüista ilhéu, formado na França. O artigo, interessantíssimo, serve para nos libertar um pouco dos temas sempre explorados, e nos convida a outras explorações: Psychanalyse et langue créole (Richon, 2007).

Nesse artigo, o autor comenta o surgimento de algumas palavras “novas” na língua falada nas ilhas Maurício,1 em inúmeros momentos em que essa língua passou a ser escrita em francês (depois de ouvida pelos franceses) e então, após ser escrita, “voltou” a aparecer, já transformada, também na fala dos ilhéus não letrados.

O processo é fácil de entender: algumas palavras da língua falada na ilha jamais haviam sido escritas e só existiam na fala dos ilhéus, até os franceses chegarem. O mesmo, aliás, aconteceu na América e na África, quando as línguas nativas foram expostas às línguas de colonização (e vice-versa, é claro). Nas ilhas Maurício, os franceses ouviram as palavras que ainda não haviam sido escritas e as escreveram. Em seguida, passaram a usálas em sua fala, de acordo com a forma em que eles mesmos as escreveram – isto é, como as ouviram. Os ilhéus por sua vez ouviram a fala dos franceses, que assimilaram as palavras novas faladas na ilha. E assim elas se reincorporaram, assemelhadas, mas modificadas, à fala dos mauricianos.

Assim aconteceu, por exemplo, que “le ‘kouloupa’ malgache deviendra le ‘court pas’ français” (Richon, 2007), quer dizer, a fruta chamada “kulupa”, passou a chamar-se algo como “proibido correr” para designar, é claro, a mesma fruta. Pode-se dizer que a kulupa perdeu para sempre seu nome histórico e “ganhou” um nome novo, que, totalmente sem história, nada significaria nem para os ilhéus nem para os franceses, embora todos, de algum modo, a associassem à mesma fruta. Contudo, no espaço-tempo de uma geração, essa palavra já seria para muitos “a palavra primeira” a partir do momento em que a primeira criança a ouvisse dos lábios da mãe ou de algum dos adultos de sua tribo, depois de a palavra nova já estar (re)incorporada à língua diária dos falantes adultos.

Nunca saberemos que espécie de significado não-significado se perdeu para sempre, quando a palavra original sumiu da língua malgaxe e foi substituída pela nova palavra. Apesar disso, quando esta apareceu aos ouvidos das crianças que a ouviam pela primeira vez, nada estava propriamente perdido, e a palavra foi “refundada”, pessoalmente, para cada um. Até aqui ainda não se cogita a psicanálise, mas essa história “de palavras” nos ajuda a constatar como é sempre complexa a relação dos humanos com as palavras, para começar.

Lembrei-me também de uma história que ouvi a respeito de um banquete no Rio de Janeiro, em época de Carnaval, quando Getúlio Vargas, então presidente da República, iria receber um político francês muito importante e pediu que perguntassem ao convidado o que ele gostaria de comer. O francês respondeu que gostava muito de moules (mariscos). No dia do banquete, não se encontraram os pedidos moules, e Getúlio desculpou-se com o francês, dizendo que não era a melhor época para essa iguaria. Respondeu então o francês: “Que m’importe que les moules manquent? Je viens ici pour roseter”.

O verbo roseter jamais existiu em francês, nem então, nem antes ou depois. O francês apenas “afrancesou”, naquele momento, na fala, o verbo “rosetar”,muito usado, no Brasil coloquialmente, e que decerto o francês ouvira com o significado de “namorico malicioso”, quase o verbo “transar”, que usamos hoje. Em seguida, toda a fala do francês foi “retraduzida”, pelo mesmo mecanismo informal, e resultou em “Que me importa se a mula é manca, eu vim aqui pra rosetar”, imediatamente divulgada para todo o Brasil, pelo rádio, numa famosa marcha de Carnaval muito conhecida até hoje.2

Essa reflexão, por informal que seja, basta aqui para demonstrar que não se controla a vida das línguas, entregues, sempre, aos seus falantes e às vicissitudes da vida. Poucas palavras têm “certidão” de nascimento, e podem ser rastreadas até a primeira vez em que foram usadas. Alguns dicionários – chamados etimológicos – registram, em geral, quando uma palavra surgiu em texto escrito.Mas se pode dizer que as palavras já viviam antes, na fala de homens e mulheres, jamais repetidas, e sempre com a necessidade de serem decifradas. A psicanálise, também se pode dizer, é um dos meios conhecidos para decifrar os significados ocultos em todas as palavras – e significados que só muito raramente coincidem por completo com aqueles que se lêem nos dicionários.

Todos, psicanalistas e não-psicanalistas, temos histórias “de palavras”, e, sim, elas ajudam a entender o quanto há de oculto em todas as palavras e em todas as falas humanas. Anoto aqui duas das minhas histórias, colhidas fora de qualquer situação de análise – e muito claramente eloqüentes, para fazer ver o mesmo fenômeno de que se alimentam também as falas psicanalíticas, e o campo em que se dão todas as interpretações.

Minha prima viajou e deixou suas duas filhas, de três e cinco anos, com a avó. Essa avó dedicada tomou todos os cuidados com as netas e as ensinou a rezar antes de dormir. No final de cada reza, dizia: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém”. E as meninas repetiam todos os dias a oração, até o final.Um dia, porque prestou mais atenção e ouviu melhor, a avó percebeu que as meninas, ao final da oração, diziam: “Em nome do Pai, do Filho e do Sílvio Santos. Amém”.

Uma senhora das minhas relações perdeu um filho, que foi cremado. Uma noite, pouco tempo depois, de repente, no meio de um jogo de cartas, uma de suas netas lhe perguntou: “Você prefere ser cremada ou enterrada?”. E a avó respondeu: “Acho que prefiro ser cremada, mas não pensei ainda muito sobre isso. Por quê?”. E a menina lhe disse: “Eu já pensei muito e não quero ser cremada. Deus me livre de me passarem creme pelo corpo todo e depois me tocarem fogo!”.

Essas duas lembranças pessoais e muito singelas mostram, da vida da língua propriamente dita, antes de qualquer consideração psicanalítica, o quanto a fala humana manifesta do fundo mais fundo de homens e mulheres, tantas vezes contra qualquer bom senso, que subverte toda e qualquer palavra tomada em “estado de dicionário”, como disse Drummond.

Um belo pequeno parágrafo das memórias de Theodor Adorno nos ajuda a conhecer um pouco mais dessas relações complexíssimas. Entre 1938/1946, quando estava exilado, desterrado também da língua alemã – sua línguamãe –, disse o filósofo:

Uma noite de tristeza incomensurável, surpreendi-me ao usar um subjuntivo ridículo, de um verbo errado, inadmissível no alemão culto, e que fazia parte do dialeto falado na minha aldeia natal. Eu nunca mais ouvira e nunca mais utilizara aquele verbo errado e familiar, desde a mais tenra infância, desde o tempo da escola primária. A melancolia que me arrastava de volta para a saudade da infância despertou em mim aquela ressonância tão antiga, que esperava, impotente, no fundo. Como um eco, a linguagem me expôs toda a humilhação do meu presente adverso, atropelando tudo quanto eu cheguei a ser (Adorno, 1951/1991, pp. 106-107).

Até aqui se falou de língua – porque, assim como todos nascemos em alguma espécie de comunidade humana e em algum território-paisagem física, todos nascemos também dentro de alguma língua, seja um ilhéu malgaxe iletrado, seja um eruditíssimo filósofo alemão. Mas Adorno tenta explicar-se para ele mesmo, vendo-se como se tivesse sido apanhado numa espécie de armadilha da língua, da linguagem e da memória. Assim, o filósofo decifra-se também para si próprio. É fácil ver que só até aí já há campo vasto para as reflexões da psicanálise.

Mudando do campo da língua para o campo da linguagem– e são campos muito diferentes! –, todos conhecemos o lugar central que Lacan dá aos estudos da linguagem. Relembro-o aqui, numa mínima seleção de frases clássicas, que comento muito rapidamente, para anotar algumas das dificuldades que muitos psicanalistas encontram quando se trata de interpretar os saberes e os dizeres lingüístico-psicanalíticos teóricos de Lacan. Para ele, por exemplo, “o sintoma resolve-se inteiramente numa análise de linguagem porque o sintoma, ele mesmo, é estruturado como uma linguagem” (Lacan, 1966, p. 269). Dizer que “o sintoma é estruturado como uma linguagem” é dizer – como sabem os lingüistas – que o sintoma é estruturado como sistema; e isso equivale a dizer que (como na língua) todos os significados são relacionais. Surgem daí inúmeras dificuldades de leitura, porque se sabe que a idéia de sistema foi muito mais explorada por Saussure em associação à língua do que à linguagem. Em Saussure, a linguagem é definida como uma faculdade humana; e é “a língua [que] é um sistema (de signos distintos correspondentes a idéias distintas)” (Saussure, 1969, p. 18). Essa idéia se repete várias vezes ao longo do Cours, como, por exemplo, em “A língua é um sistema de signos que exprimem idéias” (Saussure, 1969, p. 24). Para ele, a idéia de sistema – de fato, a idéia de “estrutura” – define a língua, não a fala nem a linguagem. Contudo, os signos podem ter diferentes naturezas (há signos gráficos e signos sonoros, por exemplo), que variam conforme a natureza do significante (do suporte físico da significação). Os diferentes signos podem, sim, constituir diferentes linguagens, como as visuais (que se manifestam na pintura, nas chamadas artes gráficas, em cartazes, por exemplo), as sonoras (que se manifestam numa sinfonia ou num sambinha, por exemplo) ou as da dança (que se manifestam numa coreografia de balé).

O xis da questão – que permite que Lacan “salte” do sistema da língua para um sistema das linguagens sem com isso violente a teoria lingüística de Saussure – é que, para este último, a língua é o sistema-base, o sistema-modelo, que permite que se constituam e se codifiquem todos os demais sistemas e, portanto, todas as demais linguagens.

A idéia de que a língua é sistema (e sistema fechado) é contra-intuitiva, nem sempre assimilável sem dificuldades por quem não tenha training de lingüista. Ela pode ser entendida, no entanto, mediante a análise de alguns exemplos simples. Por exemplo: a sílaba “ba” é facilmente identificável pelos falantes da língua portuguesa como uma sílaba possível no sistema dessa língua; mas uma sílaba como “xtqa” será de imediato rejeitada por seus falantes e considerada não possível. Os falantes possuem competência lingüística para saber o que é possível e o que não é possível na nossa língua. Para Saussure, tal competência resulta do fato de a língua ser um sistema que todos introjetamos durante seu aprendizado – mesmo que não saibamos nem o que introjetamos, nem que introjetamos algum sistema.

Chomsky (1966), por exemplo, que desenvolveu várias intuições sobre as quais Saussure também refletiu, vê nessa competência lingüística – advinda da introjeção, pelos falantes, do sistema da língua aprendido na primeira infância – a única explicação possível para a evidência de que os falantes são capazes de entender e interpretar frases que nunca ouviram. Para Chomsky, então (exatamente como para Saussure), uma frase jamais ouvida pode ser compreendida porque, mesmo que ainda não tenha sido construída e ouvida, esteve o tempo todo prevista no sistema da língua, razão pela qual os falantes têm capacidade de compreendê-la, não obstante a estejam ouvindo pela primeira vez.

Nessa linha teórica, a afirmação, como a de Lacan, de que o sintoma é estruturado como linguagem permite a interpretação de que o sintoma só é interpretável porque também está estruturado como linguagem, vale dizer, como sistema. Assim, analisando e analista sabem – mesmo que não tenham noção de que sabem – o que o sintoma “diz”, o que ele “não diz” e, claro, também o que o sintoma existe para dizer. A decifração psicanalítica é, portanto, uma espécie de busca pelo significado que o sintoma encobre, e só é possível porque o sintoma não significa “qualquer coisa”, que tenha de ser “adivinhada”. Nada disso. Se, como diz Lacan, o sintoma está estruturado como sistema, no qual há significados tanto possíveis como impossíveis, a análise visa descobrir (não adivinhar) os significados que o sintoma mostra e, igualmente, os que ele não mostra e os que ele existe para ocultar.

Por isso também, adiante, Lacan dirá que “a análise tem por objetivo o surgimento3 de uma palavra verdadeira” (Lacan, 1966, p. 302). A “verdade” dessa palavra, para cujo surgimento a psicanálise existe, como método, não é verdade lógica, nem factual, tampouco histórica; ela terá o mesmo conteúdo de verdade que tem, por exemplo, a certeza absoluta, indiscutível, com que um falante da língua portuguesa aceitará a sílaba “ba“ e rejeitará a sílaba “xtqa”: é um convencimento interno, absoluto, e sempre pessoal. Do mesmo modo, um analisando dirá, em estado de atônita descoberta da verdade: “É mesmo! Minha mãe é aquela onça!”.Outro dirá: “É mesmo! Minha mãe não é aquela onça (do meu sonho)!”. Ambos saberão que, sim, chegaram à palavra verdadeira que a psicanálise busca.

Esses poucos exemplos têm de bastar aqui, para que se registre que há também complexas relações a estudar no que diz respeito às relações entre psicanálise e língua (por um lado) e entre psicanálise e linguagem (por outro). E há importantes diferenças entre os conceitos de língua e de linguagem, se considerarmos o climat d’opinion dentro do qual Lacan operava, a saber, o da lingüística saussuriana.

Nesse campo, não se deve deixar de registrar que a chamada lingüística saussuriana nasceu e desenvolveu-se a partir das anotações feitas por dois alunos desse pensador genial durante as aulas ministradas por ele em 1901. Porém, seu único trabalho publicado – Cours (1969) – saiu do prelo somente em 1916, três anos depois de sua morte e dezesseis anos depois das aulas que lhe deram origem. Tratase de intuições que não chegaram a ser desenvolvidas e aprofundadas pelo autor em corpo propriamente de teoria.

Sobre essas intuições de um gênio, aplicaram-se mais tarde as intuições de outro gênio, quando Lacan se pôs a ler e interpretar o inconsciente humano também “como linguagem”. As dificuldades, aí, não são pequenas. Não raro – sobretudo porque Lacan incorporou o sistema gráfico de notação que era então usado pela lingüística e pela semântica estrutural de sua época –, ante algum escrito de Lacan, fica-se como diante de uma espécie de obra de arte, tão impressionantemente clara para a intuição quanto impressionantemente incompreensível para a razão ou para a leitura e o comentário. Em alguns casos falta saber de psicanálise; em outros, saber de lingüística. Alinho aqui algumas dessas dificuldades, como convite a mais discussão e mais estudos.

Foi também Saussure (com importante aporte de Roman Jakobson, outro lingüista importantíssimo) quem propôs, para a lingüística, o modelo cartesiano dos eixos (eixo do paradigma e eixo dos sintagmas; ou eixo da metáfora e eixo da metonímia), incorporado, explorado e desenvolvido por Lacan para a psicanálise. Por exemplo, quando ele ensina que “tratar o sintoma como um palimpsesto é, na psicanálise, uma condição de eficácia. Os efeitos de substituição metafórica do significante aparecem na dimensão sincrônica do discurso. Os efeitos de combinação metonímica do significante aparecem na dimensão diacrônica do discurso” (Lacan, 1966, pp. 799-800).4

Se tomarmos o mesmo exemplo da “onça-mãe” (um analisando dirá: “É mesmo! Minha mãe é aquela onça!”. Outro dirá: “É mesmo! Minha mãe não é aquela onça (do meu sonho)!”), constataremos que estão em operação tanto um mecanismo metafórico (a onça é a mãe, ou não é) como um mecanismo metonímico (o todo “mãe” é mostrado pela parte “onça”, ou vice-versa). Interpretar essas falas como ocorrências lingüísticas ajuda a ver que o analisando selecionou, no eixo das metáforas, uma das muitas palavras que ali estavam disponíveis no inventário de sua língua: ele dirá “onça” onde poderia dizer “cadeira”, “livro”, “mandioca” ou “urso-polar” e muitíssimas outras coisas. Esse inventário não é infinito, porém é muito amplo e inclui todos os substantivos existentes em cada língua – os já construídos e também os ainda não construídos, mas previstos, previsíveis e possíveis. Feita essa primeira seleção, o analisando encadeou o substantivo “onça” na cadeia seqüencial, diacrônica, do seu discurso, de sua frase.

O sintoma, afinal, não se explica exclusivamente nem só pela seleção de palavras (que gera metáforas) nem só pelo encadeamento de palavras (que gera metonímias): ele é constituído no cruzamento desses dois processos – mecanismo que o plano cartesiano, incorporado por Saussure e aproveitado também por Lacan, descreve muito bem,muito claramente.

Por fim, é preciso enfatizar que toda a reflexão de Lacan – exatamente como toda a reflexão de Saussure – é construída a partir de um conceito-chave: o conceito de signo. Para Saussure, a palavra é um signo – “uma entidade psíquica de duas faces”, semelhante a uma moeda, em que um som (chamado “significante”) se associa a uma imagem mental (chamada “significado”):

[esse conceito] não deve dar a idéia de que o significado dependa da livre escolha do que fala, [porque] não está ao alcance do indivíduo trocar coisa alguma num signo, uma vez esteja ele estabelecido num grupo lingüístico; queremos dizer que o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade (Saussure, 1969, p. 83).

Essa definição de signo obriga a ver, em primeiro lugar, que, embora o falante (e o analisando, para Lacan) não psicótico possa dizer muitas coisas, as mais inimagináveis e surpreendentes, ele jamais dirá alguma coisa que seja impossível no sistema de sua língua. Isso porque só nesse sistema é que os signos estão construídos, inventariados e pactuados, contratualmente, para todo o conjunto de falantes de cada língua. Só no sistema da língua – e só nele – é que há signos, mesmo que estejam em estado virtual, ainda não construídos; apenas nesse sistema é que há todos os signos possíveis em cada língua. Nenhum analisando não psicótico usará, absolutamente, algum não-signo; ele jamais dirá, em nenhum caso, por exemplo, uma palavra em que ocorra a nossa sílaba impossível, “xtqa”. Por isso é que os lapsos de língua e os atos falhos são interpretáveis. Se o sintoma não estivesse construído como sistema lingüístico, o sintoma (e os atos falhos) seria tão interpretável quanto uma infinita repetição de “xtqa”, “xtqa”, “xtqa”...

Por outro lado, se a associação que liga as duas faces da moeda chamada signo é imotivada, arbitrária, não há caminho fácil que permita falar em palavra “verdadeira” no plano lingüístico, embora, sim, se possa falar em palavra “verdadeira” por critérios que caberá à psicanálise (ou, talvez, melhor dizendo: ao analisando) estabelecer. A psicanálise teórica pode até vir a estabelecer uma palavra verdadeira, mas na clínica é tudo sempre diferente e bem mais difícil.

O psicanalista tem que estar muito atento para o significado das palavras que seu analisando fala para não as interpretar de modo que não se explique, nem no sistema da língua geral, nem no sistema da língua individual do próprio analisando. E, além disso, cria-se igualmente entre analista e analisando algum tipo de “língua de dois”, a qual, apesar de jamais ser independente do idioma que ambos falam, vem sempre carregada dos sentidos que também se constroem, por contrato psicanalítico, entre analista e analisando. Se isso não for feito com a máxima atenção às armadilhas da língua e da linguagem, tudo pode acontecer, mais ou menos como acontece nas falas cotidianas: a fruta que trocou de nome, a falta de marisco que virou mula manca, o Espírito Santo que virou Sílvio Santos, o ato de cremar que virou o ato de passar creme, o filósofo que, em momento de profundo sofrimento, se viu devolvido a um verbo usado grosseiramente durante sua infância iletrada (como são todas as infâncias).

Todas essas questões (e inúmeras outras) estão ainda, em boa medida, abertas à interpretação. E não há dúvidas de que existe um importante campo de reflexão interdisciplinar entre a lingüística e a psicanálise, que haverá de iluminar, simultaneamente, esses dois campos da reflexão mais contemporânea, hoje, em todo o mundo.

Que essas linhas, ainda tão superficiais, aqui fiquem, pelo menos, como isca que tente, atraia e fisgue tanto os psicanalistas como os lingüistas brasileiros!

 

Referências

Adorno, T. (1991). Minima Moralia (E. Kaufholz & J.-R. Ladmiral, trads.). Francfort-sur-le-Main: Suhrkamp. (Trabalho original publicado em 1951).        [ Links ]

Chomsky, N. (1966). Cartesian linguistics: A chapter in the history of rationalist thought. New York & London: Harper & Row. [Chomsky, N. (1972). Lingüística cartesiana (Francisco M. Guimarães, trad.). Petrópolis: Vozes].        [ Links ]

Lacan, J. (1956). Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse. La Psychanalyse, 1, 81-166.        [ Links ]

Lacan, J. (1966). Écrits. Paris: Seuil.        [ Links ]

Lacan, J. (1977). C’est à la lecture de Freud. Cahiers Cistre, 3, 9-17.        [ Links ]

Richon, E. (2007). Psychanalyse et langue créole. (Recuperado em http://www.potomitan.info/ki_nov/moris/psychanalyse.php).        [ Links ]

Saussure, F. (1969). Curso de lingüística geral (A. Chelini, J. J. Paes & I. Blikstein, trads.). São Paulo: Cultrix; USP. (Trabalho original publicado em 1916).        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Yeda Alcide Saigh
Rua Alemanha, 659 – Jardim Europa
01448-010 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3083-5795
E-mail: ysaigh@uol.com.br

 

 

* Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo.
1 A língua falada nas ilhas Maurício é o malgaxe, genericamente chamada de créole, termo que designa várias línguas ditas “mestiças”.
2 Eu quero é rosetar, de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, Carnaval de 1947.
3 No original, l’avènement, palavra que, em francês, pode ser traduzida, dentre outras, pelas seguintes acepções: “acesso”, “aparição”, “chegada”, “começo”, “eclosão”, “elevação”, “introdução”, “nascimento”, “vinda”.
4 A tradução desse trecho foi feita pela autora.

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