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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo July./Dec. 2017

 

EM PAUTA | INTERPRETAÇÕES DA CULTURA

 

Penetráveis: arte na clínica1

 

Penetráveis: art in the clinical practice

 

 

Dora Tognolli

Psicanalista da SBPSP, mestre em psicologia social (Universidade de São Paulo), docente do Instituto de Psicanálise da SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora parte de um pequeno relato clínico que anuncia a interrupção de um processo de análise para problematizar a metapsicologia e os caminhos que as pulsões atravessam, do corpo à palavra, até atingirem a comunicação e a transferência a objetos disponíveis, entre os quais o analista. A busca de tratamento reativa restos perdidos no tempo, que colocam a paciente em estado de sofrimento e criam impasses diante de um novo circuito de representações. A produção artística de Hélio Oiticica dos anos 1960, intitulada Penetráveis, é utilizada como metáfora de experiências limites: os labirintos que Oiticica constrói dependem da participação ativa do espectador, na busca de novos caminhos de expressão. Atravessar os Penetráveis é tomado aqui como rito de passagem - transformação que passa pelo corpo e pelo simbólico. O texto trata de temas como o corpo, a sensorialidade, as barreiras, a experiência estética e o estranhamento que acompanham o processo analítico.

Palavras-chave: Corpo. Estranho. Fronteiras. Metapsicologia. Sofrimento psíquico.


SUMMARY

The author departs from a clinic narrative that announces the interruption of a analytic process in order to examine metapshychology and the path of instincts from the body to the speech, until they reach communications and the transference of available objects, among which is the analyst. The search of treatment reactivates reminiscences lost in time, which cause the patient to suffer and create impasses in face of a new circuit of representations. The artistic work of Hélio Oiticica in the 1960s named Penetráveis is used as a metaphor for border experiences: the labyrinths that Oiticica builds depend on the spectator's active participation, in the search of new ways of expressions. The crossing of the Penetráveis is compared to a rite of passage - a transformation of both the body and the symbolic. The text approaches subjects related to the body, sensitivity, barriers, esthetic experience and disruptions that are inherent to the analytical process.

Keywords: Body. Uncanny. Borders. Metapsychology. Mental suffering.


 

 

Cada homem leva em si a forma inteira da condição humana.
(Montaigne)

 

Contexto

A clínica apresenta situações banais e paradoxais que nos fazem pensar e fazer uso de dispositivos da metapsicologia, da cultura, da arte, da vida. Certas experiências reverberam em busca de um caminho de entendimento que permita que nosso trabalho prossiga, nem sempre com o mesmo paciente que suscitou nossa angústia e nos deixou sem palavras. A escrita pode ser uma via de acesso.

O presente texto poderia ser ilustrado por atendimentos que propiciam aberturas, travessias, visitas a temporalidades distintas. Nossa clínica nos oferece diversas experiências em que essas passagens ocorrem. Um atendimento que se interrompe, uma motivação inicial significativa que logo se esvai, como aqui ilustrado, pode ser útil para pensarmos o método, as ferramentas, as dificuldades de nossos pacientes e as nossas.

A mensagem que ora transcrevo, deixada através do Whats-App, introduz a situação que, anos depois, motivou a produção deste texto.

Desculpa a demora. Esta semana não tenho disponibilidade nesses horários. Agora, mesmo que tivesse, não me sinto motivada a continuar. Eu tinha uma expectativa e a nossa conversa acabou tomando outro rumo. Não sei se é meu momento, venho de perdas sucessivas, incluindo meu pai recentemente, e não estou a fim de me olhar por dentro neste momento. Até sofrimento tem limite. Minha preocupação era minha filha, mas nossa conversa me fez perceber que o que é aparentemente um problema para mim, para ela de repente está tudo bem. Desculpe a franqueza mas estou me dando o direito de não ultrapassar meus limites nesse momento. Fiquei muito mal depois de nossa conversa: não quero ficar assim, não agora. Lhe devo duas consultas. Me passa o valor e os dados para depósito. Quem sabe no futuro, num outro momento, eu consiga retomar do ponto onde parei. Desculpa mais uma vez por qualquer inconveniente que eu tenha causado. E desde já agradeço por sua compreensão. Obrigada e abraços.

Tomo essa mensagem como pretexto para tematizar as travessias implicadas no processo psicanalítico, a partir do dispositivo do método que envolve a atenção flutuante e a livre associação. Trata-se de um exemplo clínico marcado por um impasse, uma vez que, após duas sessões iniciais, a paciente decide inter-romper o trabalho.

* * *

Maria procura atendimento para a filha de 8 anos, preocupada com seu jeito fechado e quieto. No contato telefônico, diz que teme pela apatia da menina, que "puxou" o pai, também quieto e reservado: "acho que o pai não precisa vir na primeira entrevista. Não terá nada a dizer... aliás, minha filha é um clone do pai...".

Maria vem sozinha. Destaco seu aspecto desajeitado, seu corpo irregular e obeso. É uma mulher de meia idade, perto dos 50 anos. Chega aparentando cansaço, apressada, e tem muita dificuldade para sentar, respiração ofegante, estrutura muscular frágil e em desarmonia.

Nas duas sessões que tivemos, conta da vida profissional, do sucesso: "primeira mulher e primeira brasileira a ocupar posto de tanto destaque numa grande corporação...", da gravidez tardia, da quase não maternidade. O casamento e a maternidade são tratados como necessidades diante da idade que avançava, decisões mais operativas do que emocionais; "estava quase ficando solteira..."; "se esperasse mais, não poderia engravidar, pela minha idade)".

Num primeiro momento, o desejo de ter filhos foi expresso pelo marido, e ela o tomou para si: "Por que não?".

Gostaria que eu atendesse a filha para avaliar até que ponto suas características de personalidade representarão entraves futuros. As hipóteses sobre a esquisitice e a apatia da menina, trazidas por Maria como ponto de partida, não se sustentam no seu próprio relato. Durante nossa conversa, ela se pergunta se realmente a filha precisa de análise e se não é ela que está angustiada.

Temos um segundo encontro, para o qual ela vem atrasada, pois participava de uma reunião importante na empresa. Nesse encontro, conta detalhes da gravidez: fertilização in vitro, duas tentativas mal-sucedidas, muito sofrimento. Mas foi persistente e conseguiu levar a gravidez até o final. Não gostaria de frustrar o marido, que tanto investira no projeto de terem ao menos um filho. Ele, filho único, desejava ardentemente deixar ao menos um herdeiro.

Maria relata que há alguns anos fez terapia para lidar com conflitos familiares. Naquela época, quando estava com 30 anos de idade, queria sair da casa dos pais e morar sozinha, motivo de muitas brigas no núcleo da família, mas a terapeuta convenceu-a de que não era necessário mudar-se: poderia permanecer na casa dos pais, para não os fazer sofrer. Ela sai de casa quando decide casar, aos 42 anos.

Perto do término da sessão, ao falar da filha, Maria usa novamente a expressão que define a menina: "clone do pai". Comento que essa expressão, utilizada por ela mais de uma vez, chama a minha atenção. Ante o meu comentário, Maria "despenca" de si: abandona o corpo na poltrona e entra num choro copioso e intenso. Sou testemunha de um colapso físico e emocional que dura alguns minutos. Aos poucos, acalma-se e relata que precisa me contar algo, um segredo, que só seu marido conhece: diante da dificuldade no processo de fertilização, Maria questionou o médico se seria possível fazer uso do banco de óvulos da clínica, uma vez que tudo indicava que os seus óvulos não eram bons. Tal procedimento foi adotado, e Maria encarou uma gravidez marcada por angústias. Seria mãe da sua filha? O uso de óvulos de outra mulher a autorizaria a ocupar o lugar materno? Talvez não... A dor é imensa, não cabem palavras, e Maria deixa a sala com o rosto inchado de tanto chorar. Despede-se com um terno abraço e diz que ligará para marcarmos outro horário.

A mensagem que abre o texto encerra nossa curta temporada.

Restam perguntas: o que foi tocado, que fechou a passagem? De que dinâmica se trata? Como o aparelho psíquico reagiu ao outro? O que se reatualizou da vida psíquica de Maria, a partir do aspecto traumático de uma gravidez advinda de um óvulo de outra mulher ou de outro corpo? Que tipo de transferência emergiu e não pode ser sustentada?

Para pensar essas questões, seguem aqui alguns aportes da arte contemporânea e da metapsicologia.

 

Penetráveis

Escolher Hélio Oiticica (1937-1980) e a série Penetráveis não é fortuito. Emerge de uma memória antiga, que havia ficado no meu mapa interno, em busca de uma possível via de tradução.

Nos anos 1980, houve uma exposição na Oca (Parque do Ibirapuera, São Paulo) repleta de nomes importantes da arte contemporânea. Entre eles, Hélio Oiticica, representado por uma das versões da série Penetráveis, que consistia numa montagem simples e lúdica: diversos cômodos, ligados por corredores, separados por cortinas plásticas, onde o visitante era convidado a entrar. Precisava tirar os sapatos para experimentar as diversas texturas do solo: água, pedra, areia, espuma etc.

Essa instalação atraía famílias e crianças, que se divertiam diante da irreverência do convite. O que me tocou? Presenciei um homem, acompanhando sua família, que ficou bloqueado diante da primeira porta desse labirinto lúdico. Insistentes convites de seus filhos deixavam-no cada vez mais acuado, aparentando um grande mal-estar. Essa cena me tocou: de um lado, o jogo irreverente e prazeroso dos visitantes que encaravam o labirinto descalços, num outro território, um homem que não entra, fica na soleira, inibido e angustiado. Essa modalidade de estar no mundo me veio como modelo para pensar nossa paciente fugidia.

Gostaria de contextualizar o papel e a importância de Hélio Oiticica para pensarmos questões do nosso tempo.

Artista performático, pintor e escultor, natural do Rio de Janeiro, num determinado ponto de sua trajetória, Oiticica abandona as produções bidimensionais e passa a criar relevos espaciais, tendas, mantas, capas, estandartes, bólides e penetráveis. Encontrava-se em busca de novos caminhos de expressão, que implicavam ir além da mera observação contemplativa de objetos. As produções aqui mencionadas não fazem parte do clima do museu, da exposição, buscam o espaço cotidiano e banal da vida, procurando envolver as pessoas em situações semelhantes a sua vida ordinária. Em vez de tematizar a existência, essas obras sugerem a própria existência, em sua simplicidade e banalidade.

Porém, não se trata de um mero espelhamento da realidade. Através da combinação de diversos materiais, cores, texturas e luminosidades, promovem-se experiências com alta carga de tensão, a partir da convocação dos sentidos e da movimentação muscular. Vestir um manto ou parangolé (um neologismo criado por Oiticica, a partir de contatos com homens comuns, moradores das ruas, nome que passou a utilizar para identificar suas capas, cujo sentido é algo como "abobrinha"), a proposta do artista é provocar o espectador, que deixa de ser um mero observador passivo, e a vida da obra depende de sua interação com ela. Se a fruição artística convencional é íntima e recolhida, silenciosa e comportada, os objetos de Hélio Oiticica não oferecem nada de tranquilizador e calmo: operam no registro da ação, da movimentação, dos sentidos.

Entre as décadas de 1960 e 70, Hélio Oiticica propõe a série Penetráveis - espaços em forma de labirinto, nos quais o espectador é convidado a entrar e viver experiências sensoriais. Ele constrói os Penetráveis em vários materiais e dimensões, sempre com a mesma proposta: obras para serem vivenciadas, e não meramente observadas. Sua característica implica convocar o corpo: saindo da ideia clássica de obra de arte, amplia a pintura para o espaço, que será desvendado a partir da entrada do indivíduo em cena.

Sem essa incursão, os Penetráveis não fazem sentido: reduzem-se ao estatuto de objeto morto, sem vida. Sua vida depende da entrada do espectador, que compõe a obra: portanto, obra em movimento, lugar de percurso, topológico e não tópico.

Há relatos de experiências de estranhamento e recusa, diante do convite para adentrar esses espaços, que deslocam o sujeito de um lugar passivo, conduzindo-o a rupturas e ao desconhecido. Aqui reside um aspecto ambíguo da proposta: convoca à intimidade e ao mesmo tempo ao êxtase e ao delírio. Ou seja, o campo que se apresenta é tenso, pouco harmônico, muitas vezes rudimentar.

No texto "O escritor e a fantasia" (1908/2015), Freud se pergunta de onde o escritor/artista tiraria o material de suas produções, que nos emocionam intensamente, e diz do que sentimos e vivemos, de forma tão criativa e eficaz. Diante da obra de arte, reconhecemo-nos e alcançamos um prazer estético que fala diretamente à nossa psique, ativando fantasias íntimas, nem sempre tão tranquilas e prazerosas. Vale destacar que a arte contemporânea opera prioritariamente no registro do estranho, do disforme, do perturbador.

A série Penetráveis problematiza espaços, travessias, interioridade e o corpo. Da mesma forma que muitas pessoas se congelam diante do convite para adentrar um espaço, ficando estagnadas, assustadas, empobrecidas, nosso corpo também é um território de barreiras, passagens, recalques, que opõe resistências de dentro para fora e de fora para dentro.

No artigo "O ego e o id" (1923/2011), Freud representa o aparelho psíquico de uma forma complexa e repleta de espacialidades que se imbricam, interpenetram-se ou interrompem. Uma imagem não só geográfica, mas dinâmica e econômica, com movimentações inusitadas.

A partir do desenho do aparelho psíquico proposto por Freud, podemos considerar que a fixidez, a dificuldade de ultrapassar barreiras, o domínio de uma região sobre a outra, estaria na raiz do adoecimento, do sofrimento e do empobrecimento psíquico. Se é possível uma analogia com a obra de arte, nosso corpo pode ser visto como um penetrável particular, que nos convida e ao mesmo tempo resiste a entradas, saídas, circulação.

O pequeno trecho que Maria relata apresenta vários penetráveis, alguns no nível do corpo bruto: a fertilização artificial, o óvulo de outra mulher, a gravidez; e outros, mais simbólicos: a filha enigmática gerada em sua barriga; e a analista, que entrou muito rápido?

 

Metapsicologia e espacialidade psíquica

Desde "Projeto para uma psicologia científica" (1895/1989a), Freud deixa uma questão importante: como algo somático, do corpo, transforma-se em psíquico? Escreveu diversos artigos metapsicológicos, que derivaram de "Projeto para uma psicologia científica", da correspondência com Fliess, dos rascunhos que datam dessa época. Acompanhando seu raciocínio, deparamo-nos com grandes questões que retornam na clínica e colocam os conceitos para trabalhar.

Em "Três ensaios" (1905/1989c), Freud localiza na relação primordial com o seio da mãe, o primeiro tempo do sexual, em que se encontram em jogo a sexualidade precoce da criança e a sexualidade da mãe, que também carrega mistérios e enigmas. Fonte contínua de excitação, as primeiras experiências sexuais deixam marcas importantes. Vale destacar a intensidade das pulsões, reativadas no adulto quando do surgimento de um bebê, no plano da fantasia, do desejo, e depois, com a chegada desse novo ser.

Para permanecer vivo, o bebê revela um enorme apetite pela vida, que se manifesta corporalmente por meio da fome, do choro misterioso e incompreensível, da imobilidade do corpo que se agita em bloco, e depende de um acolhimento sensível para ser entendido e atendido.

Freud contrapõe a sexualidade do adulto, enigmática e assustadora, ao infans que chega ao mundo. Confusão de línguas, invasão, perturbação.

Diante do exemplo de Maria, de como se engendrou sua gravidez e a angústia que essa montagem gera até hoje, cabem algumas hipóteses sobre suas fantasias, que não tiveram nem tempo nem espaço para serem apresentadas e trabalhadas.

A insígnia clone aponta para a ideia de um bebê gerado de um DNA, que se duplicou, que não foi marcado pela matéria de Maria. Um bebê clone deve conter algo de assustador, um estranho que habitou sua barriga e ganhou intimidade em seu corpo durante nove meses e depois veio à luz.

No caso de Maria, os fatos objetivos se passaram de tal forma que atravessaram o terreno já confuso e tenso das fantasias que a chegada de um bebê ocasiona. Seguem as perguntas: havia desejo? Ou Maria foi estuprada pelo desejo do marido de ter um filho? Cedeu seu corpo para abrigar um ser que não foi gerado nela, só protegido em sua pele? Parece um pouco traumática essa história, principalmente se ela não tiver como andaime o desejo e a flexibilidade de trânsito no ambiente psíquico.

Maria também não conseguiu dizer não, lá nos seus 30 anos, aos pais rígidos e controladores: mesmo ganhando um bom dinheiro, foi "aconselhada" pela terapeuta a não sair de casa. Não fez essa passagem. Morou até os 40 anos na casa dos pais, e só deixou o lar de origem para se casar.

O rito do namoro merece ser citado: ela fora madrinha de um casamento formando par com seu marido atual, que era casado, na época. O que significa que eles se conheceram no altar de uma igreja, não representando um casal de fato. Anos depois, ela o reencontra; eles recordam do casamento do qual participaram. Maria é informada de que ele se separou e estava disponível. Sem ritos, sem amor, casam-se. Um casal burocrático, factual, mas erótico? Ou não? Mais uma vez, não localizamos o desejo de Maria: apenas seu desespero e necessidade de cumprir um pacto, para se afastar de uma possível angústia, de ter sobrado sozinha, sem ninguém.

Na insígnia clone, podemos conjeturar um casal pai-filha, do qual Maria está excluída: ela ocupa o lugar da criança que observa o casal, um casal definido com claras identidades, um espelhando o outro, ambos calados, inteligentes, seguros, segundo Maria relata no nosso segundo encontro.

Em contraponto ao par pai-filha, Maria é trabalhadora, incansável. Seu corpo dá mostras de desgaste e maus tratos. Uma análise seria suportável? Quiçá um artigo de luxo, para alguém tão precário...

 

O infantil

Breves relatos, trazidos na análise, desenham uma paisagem da infância. Através da associação livre, pensamentos latentes, vestígios de experiências muitas vezes contradizem e entram em tensão com a fachada do que é apresentado (Darstellung - apresentação). Em Interpretação dos sonhos (1900/2012), no capítulo que trata do infantil como fonte dos sonhos, ao analisar seu sonho com o Conde Thun, Freud compara as fantasias evocadas pela visão do Conde Thun com fachadas de igrejas: "essa fantasia [...] é apenas como a fachada de uma igreja italiana, que não tem ligação orgânica com a construção atrás dela; aliás, diferentemente dessas fachadas, ela é lacunar, confusa e elementos do interior irrompem em muitos pontos" (Freud, 1900/2012, p. 232).

Num salto de quase 30 anos, quando Freud propõe a chamada segunda tópica, cujo desenho demonstra várias fronteiras e atravessamentos, refere-se à fachada do ego, seu lado revelado, que pode ser associado à ideia arquitetônica da igreja. Penetrar em seu interior nos revela surpresas e enigmas nem sempre acessíveis e fáceis de decodificar.

As cenas primitivas, fontes de excitação, que conduzem a representações errantes ou se recusam à ligação com representações outras, levam uma vida clandestina, secreta, no fundo da memória, num território híbrido do aparelho psíquico.

Nos "Estudos sobre histeria" (1893-95/1989b), há relatos de Freud que o fazem pensar numa temporalidade particular: o presente interferindo, ativando e carregando o passado - este, sim, de cunho sexual. Cabe lembrar o caso Emma, que tinha um sintoma fóbico, que ela relacionava à ironia que sua passagem despertava, ao entrar num comércio: dois homens riam de suas vestimentas, o que a fez desenvolver um medo que a impedia de entrar sozinha em lojas. Freud denomina essa cena de A: a cena A, posterior no tempo e anterior na lembrança, encobre a cena B, esta recalcada, que data de uma idade mais precoce, e é carregada de conteúdo sexual. Emma, com idade próxima a 8 anos, ao entrar sozinha num armazém, tem seus órgãos genitais tocados por cima das vestes pelo dono do armazém, uma espécie de atentado sexual que marca a jovem.

Se esse for um esquema útil, podemos pensá-lo no caso de Maria: a cena A, traumática, o segredo de ter sido receptáculo para um óvulo de outra mulher, que a faz despencar na sessão, mediante o simples relato à analista, poderia estar ligada a uma cena anterior no tempo, ao tempo da infância, traumático e sexual.

Para Freud, as vivências sexuais infantis não cessam de impregnar a vida do sujeito, e é disso que ele se defende. Os sintomas, nesse modelo teórico que prioriza o infantil sexual recalcado, seriam a marca de uma lembrança de um trauma sexual tangente, não rememorado, mas sexualmente ativo.

Quando a análise prossegue, a alavanca é a transferência, que vai colocar em movimento o aparelho psíquico em sentido regressivo, da fachada para o interior. A análise seria um convite ao encontro da fantasia recalcada, e não da lembrança, esta sempre encobridora e perdida no tempo.

O resto inconsciente seria a fonte pulsional ativa e inesgotável - no caso de Maria, uma usina de sofrimento da qual ela quer se evadir, mas não consegue.

O retorno a essa fantasia e à cena infantil, qualquer que seja ela, provoca desprazer e promove mais força de recalque. Assistimos a um movimento rápido e intempestivo.

Os sonhos e as obras de arte nos convidam a converter em linguagem expressiva essas pulsões, sempre tão primitivas. Maria não sonha , dorme pouco e mal, à base de remédios. Não tem tempo para se distrair, já que participa, o tempo todo, de reuniões importantes que garantam sua ascensão: conversar, ler, ver filmes e tirar férias não fazem parte de sua rotina, rotina de CEO (Chief Executive Operator) - título sofisticado e valorizado para um trabalho que não permite ócio.

Na nossa breve conversa, entra uma cena que a emociona e toma seu corpo, efeito catártico e assustador, que se apresentou na sala de análise (Darstellung), mas não pode ser representada (Vorstellung) - quer dizer, não pode servir de matéria para metáforas, câmbios, aquisições de sentidos novos.

Bion, no trabalho "Atenção e interpretação" (1970/1991), refere-se a pacientes que não sofrem o sofrimento e também não sofrem o prazer. De forma paradoxal, é como se esses pacientes sentissem o sofrimento sem sofrê-lo, e, assim, essas experiências de dor não gerariam o acervo de representações, disponível para trânsitos psíquicos. Alcançar a palavra, no sentido da representação, seria ultrapassar esse modo primitivo de operar, que descarrega excitações, mas não constrói acervo psíquico. Bion denomina elemento-beta as formações do inconsciente que se apresentam de forma bruta, mas não ganham a rede associativa que ultrapassaria as barreiras Ic- Pcs - C. Esses elementos-beta não são incluídos na rede do pensar. Clone, aqui tomado como um sintoma do sofrimento de Maria, pode ser entendido como um objeto bizarro, elemento-beta que não é metaforizado e cuja sombra recai sobre o ego da paciente, empobrecido e pressionado.

 

Fronteiras

Uma das rupturas atordoantes que enfrentamos parece acontecer com nosso corpo, supostamente familiar, mas que não passa de mais um estranho que precisamos decodificar ao longo de nossa existência. Embora nosso corpo se pareça conosco, paradoxalmente, o estranhamos inúmeras vezes: no espelho, na dor, nas rupturas que a vida propõe, no encontro com outro corpo.

Nosso idioma interno, a partir da metapsicologia inventada por Freud, parece não ter palavras. Movimenta-se em busca de passagens até ganhar representação e expressão.

Green, no livro Sobre a loucura pessoal (1972/1988), propõe a ideia de metapsicologia do limite, na qual inclui, de forma criativa, a noção freudiana de clivagem, bem como ideias de Winnicott e Bion. Nesse trabalho, explora o tema do pré-consciente e de processos que ele denomina terciários, em complemento aos dois princípios do funcionamento mental, primário e secundário.

O tema das fronteiras e limites nos permite pensar angústias intensas, de perda e intrusão, que marcam a transferência de certos pacientes, como Maria, aquém da ideia de transferência negativa. Os processos terciários, segundo Green, seriam uma criação da dupla, durante o tratamento, na tentativa de ampliar o campo e o acervo psíquico das representações.

A própria ideia de Freud, de que o ego é sobretudo corporal, remete-nos aos limites que o corpo oferece. A pele, ou invólucro corporal, e as zonas erógenas são exemplos desse limite corporal, lugares de trânsito, defesas, inibições, descargas. Segundo Green (1972/1988, p. 67), no caso da insanidade ou da patologia,"a fronteira da insanidade não é uma linha; é, antes, um vas-to território sem nenhuma nítida divisão: uma terra de ninguém entre a sanidade e a insanidade".

Em "Análise terminável e interminável" (1937/1989d), Freud trata da ideia de transições e estágios intermediários, forma mais adequada de abordagem do psíquico, em contraposição à classificação das defesas ou das neuroses. Transições, movimentações, deslocamentos, interessam-nos metapsicologicamente muito mais do que categorias rígidas. Ainda nesse artigo, Freud enfatiza a crença na importância dos traumas arcaicos, que levam a distorções, fixações, e limitação da atuação do ego sobre os produtos que emergem do sistema inconsciente.

O conceito de relação objetal, trazido à luz por Melanie Klein e todos seus seguidores, abala a ideia de mundo externo x mundo interno, pensada na filosofia. O objeto interno é um amálgama das vivências arcaicas do bebê que ganham um estatuto no seu inconsciente e estabelecem padrões de relações particulares, para cada constituição psíquica. Cabe a pergunta: como a assembleia de objetos internos interfere na vida de Maria? Que tipo de vínculo ela estabelece com o mundo externo, que veicula suas fantasias inconscientes que carregam a marca do narcisismo?

Na metapsicologia, o conceito de fronteira e limite ganha outra dimensão, e surge na clínica colocando desafios para cada um de nós. O conceito fundante da metapsicologia - pulsão - é definido por Freud como conceito limite, fronteiriço, entre o psíquico e o somático, nem consciente nem inconsciente, o representante psíquico das excitações do interior do corpo.

Na clínica, quando um paciente traz um relato, o faz através de palavras, já transformadas, distorcidas, transferidas. Esse é o ponto de partida do analista, que embarca nas ambiguidades, nas frestas, nas associações que ele e o paciente lançam, em busca de novos circuitos e trajetos.

 

Conclusões inconclusas

No livro Grande sertão: veredas (1956/2001), acompanhamos a trajetória do jovem Riobaldo pelo sertão mineiro até que ele se torne jagunço. O interesse de Riobaldo é dominar o mundo misturado e violento que o cerca. Perdido no sertão, Riobaldo caminha até fazer o pacto com o diabo, que lhe permitirá enfrentar a violência do mundo. "Viver é perigoso", frase magistral que é evocada em vários momentos da longa narrativa. Viver também é sofrido, como diz a mensagem de Maria que interrompe a travessia da análise.

Quando Riobaldo faz o pacto com o diabo e transforma-se em jagunço, ele para de sonhar. Quantos de nós, durante nossa existência, não fazemos também pactos fáusticos, no trabalho, no amor, na religião, na profissão? Para não transitar pelas dúvidas, pelas incertezas, que geram angústia, aderimos a pactos rígidos, que empobrecem a vida e impedem novas trajetórias.

Maria é uma executiva, inserida na dinâmica do mundo corporativo. Embora um caso particular, pode representar parte dos seres contemporâneos que vivem em estado agônico de fibrilação, ou seja, de movimentos tão intensos que se perde a capacidade de sístole e diástole. Seu corpo surge como um coração cansado, que não dá conta dos fluxos que entram e saem.

A análise pode se apresentar como um Penetrável, um espaço disponível ao paciente, em estado de expectação, ou de transferência, que não está pronto, mas sugere que seja adentrado, invadido, penetrado. Nesse sentido, a análise seria um território de exceção, na medida em que propõe lógicas que não obedecem ao princípio regulador do mundo corrido e operacional que toma conta dos sujeitos.

Uma das lógicas perturbadoras é a da angústia: Maria sofre um ataque de angústia, diante da narrativa que traz seu segredo e sua falha: sua filha não veio de seus óvulos. Maria se cercou de dispositivos reguladores, que funcionaram para tamponar suas forças pulsionais, que em psicanálise denominamos recalque. Só que o recalque sempre deixa restos e dá notícias, cobrando trabalho psíquico.

Na sociedade contemporânea, os dispositivos foram se sofisticando a tal ponto que prometem dar conta da morte, da vida, da procriação, das falhas dos nossos corpos. Maria pode engravidar graças a um desses dispositivos da ciência moderna, a fertilização in vitro, combinada com o acesso a banco de óvulos, facilitada através de recursos econômicos, que ela possui.

Porém, o pulsional, o psíquico, o anímico, assombra: assombra o corpo desarmônico que Maria apresenta; e assombra a alma, uma vez que a impede de sofrer. Diante do sofrimento, da angústia, do choro preso, ela se retira.

O mundo pulsional nos assusta: sua força é perturbadora. Impõe trabalho, atravessamentos, estranhamentos. O desamparo surge: Maria menciona um pai que morreu, surge como uma filha desamparada, que não pode ser olhada com calma e amor. Mera força de trabalho e operária do mundo corporativo.

Mas nem tudo está perdido: em algum lugar, vivemos uma experiência similar à dos Penetráveis, e com esse resto figurado, encerro o texto.

No primeiro contato, a imagem que acompanha o WhatsApp de Maria, que chega e penetra em meu celular, é um ambiente corporativo: mesa, janela, computador; seu local de trabalho, quiçá, inabitado e anônimo. Quando comunica que não virá mais, noto que a imagem é outra: amplifico e vejo duas mulheres: mãe e filha. A imagem emociona: duas mulheres sorrindo, abraçadas, apresentando-se ao mundo. Maria é mãe: pode atravessar o fantasma da morte, do vazio, da expropriação dos óvulos de outra mulher?

Não temos respostas nem certezas, mas a ideia de que algum movimento se instalou, a partir de um terceiro, o analista, que pôde dar lugar a uma angústia profunda e desoladora.

 

REFERÊNCIAS

Bion, W. R. (1991). A atenção e interpretação. O acesso científico à intuição em psicanálise e grupos. (P. D. Corrêa, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1970. Título original: Attention and interpretation. A scientific approach to insight in psycho-analysis and groups).         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
DORA TOGNOLLI
Alameda Rio Negro, 911/712
06454-000 – Barueri – SP
tel.: 11 4191-6936
dorat.g@terra.com.br

Recebido 07.08.2017
Aceito 12.09.2017

 

 

1 Artigo inspirado em trabalho apresentado em reunião científica na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), em 27 de maio de 2017.

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