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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo Jan./Dec. 2019
CONTRAPONTO: RETIRANTES, MIGRANTES, REFUGIADOS
Onde fica mesmo o centro? Notas sobre a ordem global do mal-estar e a Era dos Refugiados
Which way's down town, again? Notes about the global order of the unrest and refugees age
Francisco Foot Hardman1
Professor titular na área de "Literatura e Outras Produções Culturais" do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, onde atua desde 1987. Foi professor visitante ou hóspede acadêmico nas seguintes instituições: Maison des Sciences de L'Homme (Paris), Universidade de Roma "La Sapienza", Lateinamerika Institut da Universidade Livre de Berlim, Universidade da Califórnia-Berkeley, Universidade do Texas-Austin, Universidade de Bolonha e Universidade de Pequim. Entre trabalhos publicados, é autor de A vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna (Unesp, 2009), Trem-fantasma: a ferrovia Madeira– Mamoré e a modernidade na selva (Companhia das Letras, 2005) e Nem pátria, nem patrão! Memória operária, cultura e literatura no Brasil (Unesp, 2002) e organizador de Morte e progresso: cultura brasileira como apagamento de rastros (Unesp, 2005)
RESUMO
Se a globalização, para uma minoria bem reduzida de pessoas, corporações e instituições, continua a ser uma ilusão real irrigada pela aceleração nunca vista de capitais fictícios, consumos fugazes e altas tecnologias ferozes, para grande parte das populações, em todo o mundo, os espaços-tempos vividos continuam a ser os da marginalidade social, expulsão e miséria. Haverá conceitos pertinentes nas ciências humanas atuais para refletir sobre a realidade desses contingentes de dezenas ou até centenas de milhões de seres humanos (considerando-se os refugiados internacionais e, também, os chamados "deslocados internos"), vagando por todos os rincões do planeta e nos lançando suas vozes em tumulto e seus últimos olhares de pura tragédia?
Palavras-chave: Refugiados. Deslocados internos. Economia do abandono. Expulsão. Brutalidade. Colapso socioambiental.
SUMMARY
If globalization, for a very small minority of people, corporations and institutions, remains a real illusion irrigated by the unprecedented acceleration of fictitious capital, fleetingw consumption and fierce high technology, for the majority of the world's people, lived spaces-times continue to be those of social marginality, expulsion and misery. There will be pertinent concepts in today's human sciences to reflect on the reality of these contingents of tens or even hundreds of millions of human beings (considering the international refugees and also the so-called "internally displaced"), wandering all over the globe and throwing us their roaring voices and their last glances of pure tragedy?
Keywords: Refugees. Internally displaced persons. Economics of abandonment. Expulsion. Brutality. cocio-environmental collapse.
Independentemente das interpretações diversas que possamos adotar, parece fora de questão que, ao longo destas duas décadas de século XXI, as sociedades humanas e o planeta Terra aprofundaram-se em crises que, para muitos, atingiram o ponto de não retorno, isto é, a situação de colapso sistêmico. Se a globalização, para uma minoria bem reduzida de pessoas, corporações e instituições, continua a ser uma ilusão real irrigada pela aceleração nunca vista de capitais fictícios, consumos fugazes e altas tecnologias ferozes, para grande parte das populações, em todo o mundo, os espaços-tempos vividos continuam a ser os da marginalidade social, expulsão e miséria, isto é, posição abaixo dos índices estatísticos convencionados para determinação da chamada "linha de pobreza". Nesse cenário grave e que nos dá sinais de sua presença todos os dias, quero me fixar, por ora, na questão dos refugiados internacionais e dos "deslocados internos", estes últimos a que o padre Júlio Lancelotti referiu-se, em uma entrevista recente, como "refugiados urbanos". Haverá conceitos pertinentes nas ciências humanas para refletirmos sobre a realidade desses contingentes de dezenas de milhões de seres humanos (ou centenas, se somarmos os "deslocados internos")2, vagando por todos os rincões do planeta e nos lançando suas vozes em algaravia e seus últimos olhares de pura tragédia?
Difícil periodizar os rumos e fases desse holocausto contemporâneo, que não envolve uma única etnia, uma só crença religiosa, um só gênero humano, uma única nacionalidade, uma filiação político-ideológica específica. De mesmo modo, não se vislumbra solução individual ou setorizada. Os estados nacionais falidos como representação de coletividades circunscritas em territórios de fronteiras estabelecidas (com honrosas exceções) revelam-se ineficazes na inclusão dessas massas crescentes de sem-pátria, sem-terra, sem-teto, sem-trabalho, sem-esperança. O capitalismo global, em acelerada e selvagem acumulação de capital fictício, produz e reproduz a degradação ambiental planetária sem volta e a expulsão de seres humanos sem destino, sem função, a não ser a de párias de todas as bandeiras, a nos dizer, se pudéssemos ouvir, que o Estado do mal-estar sucedeu, de há muito, o curto interregno das democracias do pós-II Guerra Mundial, também conhecidas como Estados do "bem-estar social", cuja fragilidade desmanchou-se no ar da insensatez do neoliberalismo dos anos 1980/90 e na sucessão incontrolável de regimes de exceção pós-ataques ao Pentágono e às Torres Gêmeas de 2001. A crise econômico-financeira global de 2008 apenas selou o destino e incapacitou o sistema capitalista para responder, de dentro de sua lógica e mecanismos, ao colapso socioambiental em curso. A "loucura da razão econômica" não tem mais como obter disfarces, biombos ideológicos, máscaras de hipocrisia ou ancoradouros de boa consciência. Não há como fugir dos refugiados internacionais e deslocados internos de cada dia, de cada hora, de cada embarcação naufragada, de cada diáspora sem rumo, de cada muralha intransponível. Não há, diante disso, como continuar lecionando a mesma missa. Valem até mais os silêncios. Que possam, ao menos, captar as súplicas antes da desaparição do último náufrago, sem manuscrito em nenhuma garrafa, sem script nem melodia.
Todos os governos que hoje nos ameaçam, nos horrorizam e nos deprimem em escala nacional e global - não é necessário nomeá-los - são a mais perfeita expressão dos tempos sinistros que dominaram a cena. Não constituem casos extremos de "ameaça à ordem democrática", pois são já sucedâneos à sua completa negação. Sua emergência, em passo incrivelmente sincronizado, veio para destruir direitos, reprimir movimentos e atacar com violência os esteios culturais e pedagógicos que ainda subsistiram ao fim do ciclo do "bem-estar". A questão interna e externa dos refugiados é o grande fantasma que assola o terreno dos discursos ditos civilizatórios. Todas as espaço-temporalidades que ficaram esquecidas, submersas ou silenciadas teimam agora em escancarar suas vozes. Os donos do poder fazem que não escutam. Mas, ao mesmo tempo, redobram como nunca os gastos em armamentos, vigilância e autoguetização luxuosa. E prosseguem no desmanche das formas inteligentes de sociabilidade e imaginação. Enquanto houver audiências capturáveis e mídias com poder de manipulação, esse teatro poderá prosseguir. Mas os sinais de seu declínio incontornável já se mostram hoje altamente eloquentes, e sua violência inaudita é marca maior de sua inteira puerilidade, apesar de os danos que provoca não serem em nada pueris.
Parece mesmo que, na crise sistêmica atual, todas as ilusões cronológicas progressistas, seja da ideologia capitalista dominante, seja da esquerda evolucionista dogmática, acabam por engendrar formas de ilusões geográficas que mais cedo ou mais tarde se esboroam. Inversa e complementarmente, "utopias espacializadas" de variada ordem inspiram construções temporais imaginárias e de difícil efetividade, também. Os ambientes acadêmicos estadunidenses, bolhas de autorreferencialidade, têm sido entre os mais propícios para o surgimento de modas semânticas e léxicos modais tão atraentes quanto evanescentes. Entre os últimos modismos, está o do Sul Global. Tão ilusório quanto "periferia", "terceiro mundo" ou "nação subdesenvolvida", Sul Global apenas repõe, sob uma óptica aparentemente crítica, mas, a rigor, reificadora, a própria ideologia redutora da globalização. E agrupa, de modo aleatório, temporalidades e espacialidades diversas, sob o manto protetor da ideia de uma humanidade unificada e fadada a um futuro equalizador. Ora, o que se vê, há várias décadas, é justamente o contrário. E a história do século XXI tem dado lugar, de modo muito mais extremo, a manifestações de esgotamento das chamadas utopias progressistas e de predomínio das distopias regressivas3.
Quero aqui ressaltar a importância do trabalho de três mulheres, acadêmicas estadunidenses, que indicaram de modo radical o esgotamento de paradigmas das ciências humanas para lidar com o colapso civilizatório e a irrupção da violência desmedida no mundo globalizado do século XXI: Judith Butler, Elizabeth Povinelli e Saskia Sassen. Trabalhando em áreas diferentes, quais sejam, respectivamente, estudos culturais, antropologia social e sociologia urbana, e não possuindo nenhum laço entre suas respectivas obras, essas três autoras trouxeram aportes muito valiosos e, de certa maneira, pioneiros, ao tema de nosso interesse.
Judith Butler, professora em Berkeley, mais famosa por sua crítica política no campo de gênero e sexualidade, publicou, em 2004, uma reunião de cinco ensaios militantes que escreveu logo após os ataques aos EUA de 11 de setembro de 2001 e as sucessivas guerras no Afeganistão e Iraque, incluindo ocupação militar desses países. Deles, o artigo que mais nos instiga é o que dá título ao volume, Precarious life, e o único inédito quando o livro apareceu. Tendo como pano de fundo a Guerra do Iraque e fazendo uma leitura crítica de categorias como "face", "proibição de matar", "paz e proximidade", presentes na filosofia hebraico-humanista de Emmanuel Levinas, mas questionando-a diante dos imensos poderes midiáticos e destrutivos da máquina de guerra dos Estados Unidos, Butler conclui com uma advertência de enorme atualidade acerca dos limites e desafios da crítica cultural nesse quadro agônico: "Se as humanidades têm um futuro como crítica cultural, e a crítica cultural tiver uma tarefa no presente momento, não há dúvida que se trata de nos restituir ao humano onde nós não esperamos encontrá-lo, em sua fragilidade e no limite de sua capacidade de fazer sentido"4 (2004, p. 151).
Elizabeth Povinelli, docente na Columbia University, mas com larga atuação de campo junto a comunidades indígenas australianas, estuda a contradição entre seu pertencimento e, ao mesmo tempo, marginalidade nas estruturas do Estado-nação (ser "parte que não é parte"). Publicou, a propósito, um importante livro, em 2011, em que desenvolve, muito além do que normalmente os economistas conseguem enxergar, o conceito de "economias do abandono" como modelo dominante em países ricos tais quais EUA e Austrália. Com olhar sensível para as experiências concretas e localizadas, indaga-se sobre "os traços a serem traçados" como desenhos ou pré-história de "nova e positiva forma de vida". Mas essa aposta na resistência, é bom sublinhar, não se faz de modo arbitrário, idealista ou vagamente desejante: a autora pontua, a cada momento, as enormes dificuldades e violências, em nível nacional e global, do que considera serem as formas vigentes do "liberalismo tardio", cuja característica maior é o abandono dos despossuídos como alavanca da economia dos que possuem. E as estruturas estatais estão sempre a serviço dessa lógica5.
Sassia Sasken, socióloga urbana de origem holandesa e há muito professora na Columbia University, que se tornou reconhecida internacionalmente por seu estudo e conceituação das "cidades globais" ainda no início dos anos 1990, produziu uma importante inflexão em noções consagradas nas ciências sociais (por exemplo, a velha dicotomia "inclusão versus exclusão"), ao lançar, em 2014, o livro Expulsions, em que o princípio da expulsão de milhões de seres humanos passa a ser o motor de expansão da economia global, num mundo em que os sinais de colapso socioambiental e econômico (especialmente após a crise financeira de 2008) são por demais evidentes. Nesse contexto, brutalidade alia-se perversamente à própria complexidade "impessoal" das formas de dominação, cujo cenário preferencial é o de corporações supraestatais turbinadas pela aceleração das cadeias digitais. Entre outros casos analisados por Sasken, encontram-se o das grandes explorações de mineração, hidrelétricas e petróleo. Desastres socioambientais como os de Belo Monte, Mariana e Brumadinho, no Brasil, não a deixam mentir6.
Examinemos, em seguida, algumas tentativas de representação do tema. O romance juvenil recente Refugee, de Alan Gratz, publicado nos Estados Unidos em 2017, apenas reproduz, em sua boa intenção liberal, certo apelo editorial sensacionalista, em busca do pódio de best-seller, sempre à custa do oportunismo sentimentaloide e explorador do sofrimento infantil. Ao mesmo tempo, aponta para as limitações da representação literária nas modalidades e gêneros usuais de todos os chamados modernismos para dar conta do mundo contemporâneo em colapso.
Tentando surfar na onda de sagas infantojuvenis com que a indústria cultural tem inflado o mercado livreiro, Refugee narra, em três histórias paralelas conduzidas a partir de três protagonistas jovens individuais, separados no tempo e no espaço - o judeu Josef, a cubana Isabel e o sírio Mahmoud -, o roteiro de suas respectivas expulsões, fugas oceânicas e resgates. O problema é que a narrativa pretende pretensamente identificá-los, a partir do título-tema comum, a sugerir convergência em suas sagas desventuradas. No caso de Josef, da Berlim nazista, em 1938, até Antuérpia, na Bélgica, em seguida o Atlântico até Cuba e Flórida, e depois de volta à Europa, até Vornay, na França, 1940, onde o reencontro com a mãe e os irmãos é colocado em suspenso diante da ocupação alemã, com a oferta do soldado nazi à sua mãe para a compra da liberdade de apenas um dos seus dois filhos, cabendo a ela o dilema da escolha, um a sobreviver, outro a morrer no campo de extermínio. Já com Isabel, refugiada no episódio de grande fluxo emigratório de Havana após a crise política-econômica do regime cubano, em 1994, a narrativa "facilita" uma resolução com sua passagem por Bahamas e seu desembarque subsequente na Flórida, dando a esse capítulo-desfecho o subtítulo Home. Mesma "solução" oferecida ao refugiado da guerra na Síria, Mahmoud, que, depois de sua peregrinação pela Turquia, mar Mediterrâneo, Macedônia, Sérvia e Hungria, em 2015, chega são e salvo ao seu novo lar, também subintitulado Home, na cidade de Berlim7.
Estranhos e inverossímeis destinos! Se o termo "refugee", em inglês, é um substantivo de gênero neutro, que pode ser assimilado para designar refugiados tanto do gênero masculino quanto do feminino, já muito mais complicada é essa linha cruzada entre histórias separadas por contextos históricos-políticos bastante diversos, separados numa linha temporal de oito decênios e desencadeados por fatores atuantes em cenários próprios a três continentes distintos. Se a sorte de Josef permanece indecidível na narrativa (mas dela se podendo inferir o pior), os dois destinos só aparentemente menos trágicos ou menos graves de Isabel e Mahmoud sugerem um forte viés e o caráter artificial do conjunto das histórias, estes dois últimos personagens postos em cena quase na condição de figurantes, que por mais sofridos que sejam seus percursos, caminham para finais felizes, bem ao contrário de Josef, trajeto interrompido pela catástrofe sempre a mais sagrada e sempre a "quase irrepresentável" do holocausto do povo judeu.
Pois a história contemporânea dos refugiados, que pode ser periodizada justamente no pós-ii Guerra Mundial e no estabelecimento conflituoso do Estado de Israel e na conversão de milhões de palestinos no primeiro e principal contingente de deslocados internacionais da era de "normalização democrática", sob vigência da onu e de experiências limitadas porém reais de governos de "bem-estar social", está a nos desafiar, de modo brutal, nestas duas décadas do século XXI, acerca do esgotamento de categorias analíticas e de instituições civilizatórias, em face do mal-estar global e de regimes de exceção como regra, numa linha de ataque direto à natureza e à humanidade. A estratégia da narrativa de Refugee dilui e reduz, para além de suas possíveis boas intenções humanitárias, a questão socioambiental mais nuclear de nossa contemporaneidade a um tema de apelo sentimental e, em todo o caso, romanesco, de personagens ficcionais infantis. Apesar das coincidências e linhas cruzadas nos mapas traçados no fim, bem como da nota histórica do posfácio do autor (em que a ênfase nos fatos reais que inspiraram o romance parece sugerir uma insegurança dele próprio com o resultado), é evidente que Josef, Isabel e Mahmoud pertencem a mundos e tempos diversos, e sua reunião na rubrica generalizante de Refugee não supera o patamar da sensação. É verdade que o autor apela aos leitores, nessa mesma nota8, para contribuírem com a United Nations International Children's Emergency Fund (Unicef), entidade vinculada à onu para a infância e educação, sediada em Paris, e a organização não governamental Save the Children Fund, sediada em Londres, que atua internacionalmente desde 1919, ambas merecedoras do mais alto respeito e consideração. Mas, infelizmente, suas intervenções, por mais bem-vindas que sejam sempre, não conseguem alcançar o tamanho da catástrofe humanitária mundial de que somos espectadores, mais ou menos passivos, mais ou menos comovidos, mais ou menos conscientes, no aqui e agora que nos toca viver.
A situação, nem é preciso demonstrar, está para lá de barra-pesada, e isso nos países até aqui considerados "centrais" do ponto de vista da economia capitalista, das instituições democráticas liberais e do estado do bem-estar social. Em matéria recente, o jornalista do semanário inglês The Observer Mark Townsend denuncia a pressão indevida e ilegal do governo britânico sobre instituições de caridade e direitos humanos de modo a acessar dados relativos a imigrantes sem-teto com intuito de deportá-los9. Em outro conjunto notável de estudos, coordenados pelos pesquisadores de geografia humana, Deirdre Conlon, docente da Universidade de Leeds, Reino Unido, e Nancy Hiemstra, professora da Stony Brook University, suny (eua), os autores examinam o que definem como "economias íntimas" das políticas de detenção generalizada e crescente de imigrantes. O prolongamento controlado de sua condição de expatriados e "sem-Estado" tem sido feito com sistematicidade e cálculo por parte de países ricos e envoltos ainda na aura de liberais, bastiões dos direitos humanos e modelos de sociedades democráticas. Essa microeconomia da suspensão arbitrária e prolongada da concessão de cidadania a esses novos proletários sem pátria, postos em situação degradante em campos de detenção, num limbo que oferece alternativas entre superexploração do precariado e da informalidade ou o mero terror da deportação, incluindo a separação de famílias, demonstra à larga o quanto os conceitos das humanidades encontram-se defasados. Sobretudo ao se elencar a lista de países em que tais violências passaram a ser rotineiras como políticas de Estado: EUA, Reino Unido, Austrália, Dinamarca e Finlândia, esses são os lugares em que a nova economia da detenção de imigrantes nos é apresentada10.
O documentário contundente que o artista internacional e multimídia Ai Weiwei lançou, em 2017, intitulado Human flow, sobre o drama dos refugiados, possui o mérito de enfatizar a contradição maior da Comunidade Europeia, berço do conceito moderno de direitos humanos (que incluem o de asilo por motivos econômicos, políticos, ideológicos, religiosos, raciais e ambientais), ao colocar barreiras cada dia mais cerradas em relação à imigração desses milhões de novos sem-pátria. Seu filme, nada estetizante e muito mais documental, visita a Faixa de Gaza para registrar de perto a tragédia aparentemente sem-fim do povo palestino. E filma igualmente a fronteira México-eua, cujos conflitos e tensões só se agravaram, e muito, nestes últimos anos, depois de suas tomadas. Reconstitui, além disso, a cena em que se expôs, ao mundo, o menino naufragado no litoral turco, ao lado da praia de Bodrum, cujo corpo ficou estendido na praia, entre água e areia, no dia 2 de setembro de 2015. Tinha 3 anos de idade, chamava-se Aylan Kurdi e era refugiado da guerra na Síria. A fotografia de seu corpo sem vida correu o mundo pelas redes da internet, em aparente comoção global. Mas quem, hoje, se lembrará dele e por ele, de fato, ainda se comoverá?
Fazendo face à incompetência da União Europeia e à indiferença do mundo, Ai Weiwei, no início de 2016, em meio à fase final da filmagem de Human flow, posa para uma fotografia em branco e preto, numa praia da ilha de Lesbos, na Grécia (onde se localiza um dos maiores centros de recepção dos refugiados da guerra na Síria), na mesma posição, quase fetal, do cadáver de Aylan Kurdi. Gesto polêmico do artista dissidente chinês, controverso, a rememoração em imagem e ação estética-política do trágico evento poderá ter sido inócua, até oportunista, ou terá sido de alguma relevância em advertir para milhões de vidas precárias e mortes que aquele corpo único sem vida poderia simbolizar? Se aproximarmos essa performance fotográfica do filme todo, em que Ai Weiwei opta por cenas coletivas, nos acampamentos de refugiados espalhados pelo mundo e nos barcos à deriva, talvez tenhamos melhor visão e juízo. A identificação de todos nós com um drama social planetário, ignorado de governos e poderosos, poderia absolver a ambiguidade da autoexibição do artista, que nada tem de precário ou vulnerável. Se acrescentarmos a essa ponderação o fato de que Ai Weiwei, naqueles mesmos dias, decidiu cancelar sua mostra artística Ruptures na Fundação Faurschou, Copenhague, em protesto contra a nova lei da Dinamarca que impôs restrições financeiras ao asilo de refugiados, a questão torna-se bem mais complexa11. E, talvez, a representação "fantasmática" de uma fotografia que apenas mimetiza o horror de uma vida sucumbida, real e inaceitável do ponto de vista de qualquer moral ainda digna de humanidade possa ser acolhida.
As narrativas fictícias e pouco verossímeis de Alan Gratz, de outra parte, servem para nos relembrar que, no plano épico-dramático, o sofrimento deve ser sempre, se possível, personalizado, de maneira a produzir efeito catártico. Embora sua banalização midiática - impressa, eletrônica ou digital - possa gerar efeito sempre contrário. Além do menino Aylan Kurdi, poderíamos mencionar, aqui, para não esquecermos o desastre inominável que se abate sobre imigrantes centro-americanos junto à fronteira México-eua, de dois outros náufragos, os refugiados salvadorenhos Óscar e Valeria Martínez, ele, o pai de 25 anos, ela, a filha de 1 ano e 11 meses, que morreram afogados e abraçados, no dia 23 de junho de 2019, ao tentar atravessar o rio Grande, que separa o México do Texas, rio que também é denominado do lado latino-americano, com toda a razão, de Bravo del Norte. Valeria havia se desgarrado de seus pais e caído na água, Óscar pula no rio em sua busca e, ao encontrá-la se afogando, para não se separarem nas águas agitadas, prende o braço da filha ao seu ombro por baixo de sua camisa, e assim os dois falecem enlaçados12.
O refugiado internacional de ontem, se tiver destino melhor do que Aylan Kurdi, Óscar Martínez e Valeria Martínez, e tantos outros milhares de náufragos, será o deslocado interno de hoje, o refugiado urbano. Sua sina se ligará à de milhares de sem-teto pelo mundo afora. Sem-teto, sem-trabalho, sem-comida. Mas quem disse que a fome no Brasil não existe, é uma invenção ideológica? Ainda como tentativa de pensar nosso tema em sua dimensão mais pessoal, vale referir, por seu modo tocante, o relato da história de vida de uma moradora de rua do centro da cidade de São Paulo, Ellen Cristina Santos, de 24 anos. Órfã muito cedo, afrodescendente, adotada, foragida da família de adoção que a explorava, moradora de rua ainda adolescente, dependente de drogas, faminta crônica: eis aí uma crônica exemplar, tanto em sua indiscutível singularidade, quanto, ao mesmo tempo, em sua nuclear brasilidade: onde fica mesmo o centro?13
Não esperem de mim respostas ou fórmulas confortáveis. Nem mesmo palavras de ordem aparentemente tranquilizadoras em seu apelo "universalizante". Termino com o elogio de dois filmes recentes dirigidos por cineastas brasileiras que me fizeram renovar esperanças na arte como resistência e, a julgar pelo cenário das produções culturais contemporâneas, na representação fílmica como aquela mais capacitada a nos transportar aos confins do mal-estar e da violência global sobre todos os "barrados no baile", que continuam a constituir, entre eles os refugiados de dentro e de fora, a esmagadora maioria dos 7,6 bilhões de seres humanos na Terra. Refiro-me a Era o Hotel Cambridge (2016), de Eliane Caffé, e a Los silencios (2018), de Beatriz Seigner. Por que esses filmes me tocaram tanto? Estilos próprios à parte, que diferenças significativas revelam no tratamento do tema que nos ocupa?
Era o Hotel Cambridge é um docudrama cujo projeto de roteiro, coordenado pela designer Carla Caffé, contou com participação efetiva de estudantes da Escola da Cidade, em São Paulo, e laboratórios realizados no antigo hotel desativado do centro de São Paulo, o Cambridge, ocupado mais recentemente por movimento de sem-teto e, também, por vários refugiados internacionais, da Colômbia e Palestina, entre outras nacionalidades14. Aqui, em filmagem que teve poucos atores profissionais e onde predominaram homens e mulheres refugiados e de movimentos de luta por moradia, temos um trabalho de tomadas fechadas no próprio espaço do prédio decadente que já serviu a um hotel glamoroso e, no meio de situações tensas que beirariam o caos, forja-se uma comunidade muito bem auto-organizada e solidária. Os laços que se vão firmando espontaneamente apontam para uma possível utopia: aquela que pode vincular identidades culturais e sociais distintas em nome de uma luta maior, neste caso por um teto digno e pelo direito pleno à cidade.
Los silencios é uma ficção dramática, locada na tríplice fronteira amazônica entre Brasil, Colômbia e Peru, representada pelos municípios de Tabatinga, Leticia e Santa Rosa. Passa-se boa parte numa ilha fluvial realmente existente no Alto Solimões (em seguida, rio Amazonas) e que, na estação chuvosa, todos os anos, permanece em boa parte inundada e tem por isso muitas palafitas. Chama-se simplesmente Ilha da Fantasia. Ali se instalam e se reúnem, pelo poder da história e da câmera de Beatriz Seigner, refugiados da guerra civil na Colômbia, ribeirinhos da tríplice fronteira e membros de comunidades indígenas, em especial do povo Ticuna. Rodado com apenas uma atriz colombiana e um ator brasileiro profissionais, a trama é toda encenada por habitantes locais. O não-lugar é também povoado de mortos-vivos. No fim, o ritual funerário fluvial cantado em língua indígena sugere, além de toda a sua poesia visual e dramática, um encontro difícil, mas solidário, de comunidades étnicas e nacionais dispersas pelo poder do Estado e pelos exploradores da Amazônia, com vozes distintas e tempos distantes. Mesmo nos limites imponderáveis entre floresta, rio e cidade, entre três países tristes e atrozes, e na completa indefinição entre vida e morte, há um espaço de poesia a ser celebrado.
Foragidos de todo o mundo, uni-vos: entre um hotel abandonado e uma ilha submersa, quem sabe os cacos da resistência ganhem novos sentidos e possam imprimir novas histórias. A menos que o sentido mínimo de solidariedade tenha-se refugiado, em definitivo, de nossos olhos, ouvidos e corações.
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Endereço para correspondência:
FRANCISCO FOOT HARDMAN
R. Manoel da Nóbrega, 103/92
04001-080 – São Paulo–SP
tel.: 11 99937.2773
ffooth@hotmail.com
Recebido 24.07.2019
Aceito 03.08.2019
1 Agradeço à Silvana Rea e ao João Frayze-Pereira, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), pelo amável convite para a conferência de abertura do ano acadêmico daquela entidade, em março de 2019, o que possibilitou a primeira versão deste artigo; à colega Daniela Birman, do iel-Unicamp, por compartilhar o projeto de criação do núcleo de pesquisa exodus, em dezembro de 2018, que abriu novas fronteiras para uma reflexão cooperativa sobre literatura, cultura e política em tempos de colapso das representações das ciências humanas em escala global; ao colega e amigo Julio Ramos, da Berkeley University, pelos comentários e sugestões de leitura sempre precisos em nosso reencontro em China Town, Nova York, em julho de 2019; ao Gabriel D'Amico e à Halina Hardman, pela estadia no Colorado, em julho de 2019, que viabilizou esse desfecho; e, finalmente, ao cnpq, pelo apoio continuado de Bolsa de Produtividade em Pesquisa e patrocínio ao projeto do qual este artigo é resultado parcial. As considerações e limitações aqui expressas são de minha inteira responsabilidade.
2 Os dados mais recentes da onu falam da existência de mais de 70 milhões de refugiados internacionais em todo o mundo, desde o contingente mais antigo, do povo palestino, que se originou na expulsão de milhões de pessoas quando da criação do Estado de Israel, em 1948, e de lá para cá somente cresceu, até os milhões de foragidos das invasões e guerras na Síria, Iraque, Líbia, Afeganistão, além dos refugiados de mudanças climáticas, perseguições religiosas e étnicas, especialmente de países africanos. Na América Latina, depois do Haiti e da Venezuela, países centro-americanos como Honduras, El Salvador e Guatemala apresentam as cifras mais dramáticas de refugiados pela fronteira México-eua. São registros que impressionam também pelo seu crescimento exponencial na última década. Sobre refugiados urbanos, chegam a perto de 1 milhão de pessoas em situação permanente de homeless nos EUA, com crescimento acelerado após acrise de 2008. No Brasil, somente para a cidade de São Paulo, uma reportagem recente da Folha de S. Paulo, com base emdados da prefeitura, registrou o aumento vertiginoso de 23 mil para 105 mil no número de moradores de rua contatados por agentes públicos, entre 2010 e 2018. Entre os motivos alegados para a situação de rua, o primeiríssimo lugar é o desemprego (cf. Mariana Zylberkan, "Em 2 anos, SP vê salto de 66% de pessoas abordadas nas ruas". Folha de S. Paulo, 22 de junho de 2019, p. A17). Embora o registro de "abordagens" não possa ser estatisticamente igual ao número real de moradores de rua, estima-se que este chegue a mais de 25 mil no município paulistano, em curva ascendente e veloz ao longo dos últimos anos.
3 Cf., entre outros, no tocante à América Latina, a ótima reunião de ensaios críticos organizada por J. Corrêa Leite, Janaína Uemura & Filomena Siqueira em O eclipse do progressismo: a esquerda latino-americana em debate (2018). Critiquei o dualismo nada dialético da dicotomia centro-periferia, tão a gosto de teorias sociológicas na América Latina, no artigo: Francisco Foot Hardman. (2006). Ilusões geográficas: sobre a volubilidade da noção de periferia no espaço-tempo global. Letterature D'America (161-162), pp. 5-18.
4 Livre versão minha do inglês.
5 Cf. E. Povinelli (2011). Economies of abandonment: social belonging and endurance in late liberalism. Vide, em especial, caps. 4, 5 e Conclusion, pp. 131-92.
6 Cf. S. Sassen (2014). Expulsions: brutality and complexity in the global economy. Passim.
7 Cf. A. Gratz (2017). Refugee. Passim.
8 Cf. In A. Gratz, op. cit., os mapas das jornadas de Josef, Isabel e Mahmoud e a longa nota do autor, pp. 318-38.
9 Cf. M. Townsend (2019, 17 de julho). Braços fechados. Carta Capital (1.063), pp. 48-49.
10 Cf. D. Conlon & N. Hiemstra (eds.) (2017). Intimate economies of immigration detention: critical perspectives. Passim. Ressalte-se a análise mais geral desenvolvida no cap. 2 - "Detained beyond the sovereign: conceptualising non-state actor involvement in immigration detention" -, de autoria de Michael Flynn, diretor do Global Detention Project, centro interdisciplinar sediado em Genebra, na Suíça.
11 Cf. M. Tan (2016, 01 de fevereiro). Ai Weiwei poses as drowned Syrian infant refugee in 'haunting' photo. The Guardian, versão online.
12 Entre tantos relatos que se multiplicaram a partir de fotografia dos dois corpos abraçados na margem do rio, tirada de cima para baixo em enquadramento plongée, cf. a matéria de Georgina Zerega, repórter mexicana do El País, transcrita na edição brasileira online, 26 de junho de 2019: "Foto de um pai e sua filha afogados na fronteira mexicana ilustra drama migratório".
13 Cf. B. Jucá (2019, 20 de julho). "Passei o dia inteiro sem comer", uma história de fome no centro de São Paulo. El País, versão online.
14 Além do filme de Eliane Caffé, essencial, cf. o livro coordenado por Carla Caffé (2017), Era o Hotel Cambridge: arquitetura, cinema e educação, passim. É quase uma reportagem documental de todo o trabalho coletivo que antecedeu a elaboração do roteiro e tornou possível sua radicalidade cinematográfica.