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Ide
Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo July/Dec. 2021
EDITORIAL
O olhar de Ulisses
Anne Lise Di Moisè Sandoval Silveira Scappaticci
Em 1995 eu cursava a Universidade La Sapienza di Roma e morava no mesmo bairro, San Lorenzo. Naquela época assisti a um filme que marcaria minha vida em um cinema alternativo muito cotado entre os jovens, do lado da minha casa. A história falava sobre um cineasta grego exilado nos Estados Unidos que regressa à sua terra natal, Ptolemais, para a projeção de seu mais recente filme. Entretanto, o interesse verdadeiro do herói residia na busca de três bobinas lendárias do primeiro filme grego, realizado pelos irmãos Manakis que, no começo do cinema, percorreram incansavelmente os Bálcãs, gravando a história e os costumes da região, com um olhar distante dos conflitos étnicos de hoje.
O filme faz referência a um marco importante no entendimento da Odisseia. No início dos anos 1930, Milman Parry, professor de Clássicos em Harvard, e seu discípulo Albert Lord, procuraram testar suas teorias sobre a composição dos poemas homéricos observando as tradições vivas da poesia oral do folclore da antiga Iugoslávia. Analisaram 3500 gravações de cantores épicos. Os estudiosos tiveram um insight de que a composição e a performance são aspectos indissolúveis e se dão de maneira contemporânea, na tradição oral. Assim, o poeta cantor a cada performance se repropõe oralmente criando uma nova composição que foi sendo transmitida através de gerações. Homero, o proto-poeta, deixa de ser um autor histórico e passa a ser um autor mítico que irá renascer a cada interpretação.
Retomando, essas imagens primitivas, jamais reveladas, existem realmente? E, se existem, onde estão? Da Albânia à Macedônia, de Bucareste a Constança, descendo o Danúbio para o que era a Iugoslávia, de Belgrado a Sarajevo, nosso Ulisses contemporâneo prossegue inquieto em sua busca incessante...
Assim, o que assisti foi a trajetória de um homem que atravessa um continente quase em ruínas: uma Europa - a dos Bálcãs -, que no final do século passado, volta a sua origem como num argumento circular. Dentro do olhar trágico, o sito do filme surge como um paradigma dos últimos 100, 200 anos, pela incapacidade humana de superar os violentos conflitos nacionalistas. Mas, se esse foi o século da guerra e da intolerância, Angelopoulos nos lembra que esse também foi o século do cinema, da criatividade.
Alguma semelhança com a situação atual em que vivemos? Parece que assistimos com uma macrovisão àquilo que nos persegue interiormente: a luta cotidiana para sair de nossa tormenta, de nossos pressupostos básicos (Bion, 1961), para ir em busca de quem somos.
Todo ser humano em sua finitude carrega em si algo divino, algo que urge nele. O olhar de Ulisses, como o de Charcot - que era um visuel, nas palavras de Freud -, contempla o infinito, não algo fixo, mas móvel, efêmero. As paisagens do filme são como miragens, despertando o olhar do espectador para algo que não se encontra ali, mas que lhe é familiar dentro de si mesmo.
O filme chamava Lo sguardo di Ulisse (To vlemma tou Odyssea, το βλέμμα του οδυσσέα), fiquei tocada pelo impacto entre as culturas, na cesura das palavras que surgem como portal da alma. Para os gregos, os sentimentos eram expressos por meio da métrica. Elementos postos lado a lado, algo intrínseco, o mínimo irredutível ganhando expressão, forma. A forma é um componente fundamental do método oral de composição mais do que a narrativa em si. O aedo é como um repentista da atualidade que em seu padrão rítmico, em sua musicalidade, transmite as peripécias do herói que nasce, morre e renasce muitas vezes.
Naqueles anos da vida "peguei" o entrechoque rítmico dos vários idiomas, aquilo que abre o caminho para a poesia.
Os textos clássicos, como a Ilíada, a Odisseia, a Teogonia, as bíblias, os textos filosóficos, os textos psicanalíticos não visam responder às dúvidas, nem ao mistério. São textos para ser lidos com os olhos nus da alma. Não numa atitude elucidativa, explicativa ou racional que visa resolver o enigma oculto ou responder, desvendar seus segredos.
Escrevo aos leitores esse editorial tentando colher esse momento, alçando asas de passarinho, diante de nossa condição humana que é tão frágil, mas que pode por isso mesmo com graça despertar nossa imaginação. Escrevo como se a Ide fosse um espaço como os cadernos culturais de nossos jornais.
Gostaria de concluir com duas citações. A primeira, do escritor Italo Calvino, que iluminou minha estrada com seus épicos, e a segunda, de Evgen Bavcar
Italo Calvino, meu autor de referência naqueles anos na Itália, deixa um precioso legado a todos nós baseado sua confiança nos valores, qualidades e especificidades da literatura que são particularmente caros a ele. Valores para o psicanalista? Em seu último livro, Sei proposte per il prossimo millennio (Six memos for the next millennium), elenca: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e, a não publicada, consistência. Ao propor cada atributo, ele salienta também seu oposto. Quando fala de "visibilidade", nos faz pensar nos "modelos visuais" e no fato selecionado emergindo na mente do analista.
Quando comecei a escrever histórias fantásticas, ainda não me colocava problemas teóricos; a única coisa de que estava seguro era que na origem de cada um de meus contos havia uma imagem visual ... Uma imagem que por uma razão qualquer se apresenta carregada de significado, mesmo que eu não saiba formular em termos discursivos ou conceituais ... Na organização deste material, que não é apenas visivo, mas igualmente conceitual, chega o momento em que intervém minha intenção de ordenar e dar um sentido ao desenrolar da história. (1988, p. 104)
Evgen Bavcar, o fotógrafo cego, é doutor em Filosofia da Estética pela Universidade de Paris e teórico da arte. Esse trecho foi extraído do livro O ponto zero da fotografia.
O artista é sobretudo o mediador entre as trevas do verbo, do fundo de sua cegueira, e a evidência concreta da imagem, tal como realizada na Arte através de um ou de outro suporte material ... O verbo é, então, cego: ele nos fala do lugar em que surge uma gênese primeira da imagem. É desse modo que, se queremos ir às origens das imagens visuais, nós chegamos forçosamente ao espaço do invisível, este do verbo, e à noite que precede o dia das figuras conhecíveis. Podemos assim parafrasear São João, dizendo: no princípio era o verbo, o qual torna-se imagem, a carne do visível, o visível em carne e osso, o substrato cognitivo do olhar. (Bavcar, 1994, p. 3)
Referências
Calvino, I. (1988). Lezione Americane. Garzanti. [ Links ]
Bavcar, E. (1994). O ponto zero da fotografia. Companhia das Letras. [ Links ]
Parry, M. (1933-1935). A unique repository of Balkan oral traditions. In Milman Parry Collection of Oral Literature. Harvard Library. [ Links ]