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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.44 no.73 São Paulo Jan./June 2022
ODE AO DIVINO EM TI: A TRAVESSIA DO HERÓI ENTRE CRENÇA E FÉ
Passar das sereias ao canto: da voz primordial à assunção do sujeito
Passing through mermaids to singing: from the primordial voice to the assumption of the subject
Paulo Alves Parente JuniorI; Allan Ratts de SousaII; Karla Patrícia Holanda MartinsIII; Ruth Arielle NascimentoIV
IPsicanalista, Doutorando em Psicologia pela ufc e professor do curso de Psicologia da Faculdade Uninta. Fortaleza / pauloaparentejr@gmail.com
IIPsicanalista, Mestre em Psicologia pela ufc e professor do Departamento de Psicologia da Uninassau de Fortaleza. Fortaleza / allanratts@gmail.com
IIIDoutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, professora do Departamento de Psicologia da UFC e pesquisadora do CNPQ. Fortaleza / kphm@uol.com
IVPsicanalista, membro do Corpo Freudiano, Mestre em psicologia pela UFC e professora substituta da UFDPAR. Fortaleza / rutharielle@hotmail.com
RESUMO
O presente artigo tematiza a constituição psíquica mediante a apresentação de um percurso necessário à assunção do sujeito na linguagem. Assim, visa-se demonstrar como o caminho para a subjetivação é atravessado pelos encontros, os impasses e as saídas na relação com a voz, o canto originário e o ritmo. Para isso, recorre-se, inicialmente, a uma reflexão em torno de escolhidas versões da passagem pelo canto das sereias na literatura e na música brasileira para dialogar com os desafios das inicialidades da vida psíquica para a psicanálise. Trata-se, em suma, de um trabalho que apresenta uma camada de nossas pesquisas em torno da metapsicologia da voz e alça, ao final, a aproximação entre os tempos do irresistível na assunção do sujeito e na música.
Palavras-chave: psicanálise, voz, canto, ritmo
ABSTRACT
This article focuses on the psychic constitution by presenting a necessary path for the subject to assume language. Thus, it aims to demonstrate how the subjectivity path is crossed by encounters, deadlocks and exits in the relationship with the voice, the original singing and the rhythm. To do this, we initially resort to a reflection around chosen versions of the passage through the siren song in Brazilian literature and music to dialogue with the challenges of the initials of psychic life for psychoanalysis. In short, it is a work that presents a layer of our research around the metapsychology of the voice and handles, at the end, the approximation between the times of the irresistible in the assumption of the subject and in the music.
Keywords: psychoanalysis, voice, singing, rhythm
Temos um esplêndido passado pela frente?
Para os navegantes com desejo de vento,
A memória é um ponto de partida.
(Galeano, As palavras andantes)
Neste trabalho, vamos falar de música, mas de uma forma diferente de discorrer sobre o que é fruir a música. Ou, ainda, não vamos falar sobre como ocorre uma sublimação da pulsão pela música; vamos falar de como a experiência musical, vivida por todos aqueles que se deixam por ela envolver, constitui uma maneira de atravessar novamente os mares em que se deu a assunção do sujeito. A música nos informa sobre o começo da vida subjetiva e sobre o fim mais radical, ao passo que ela nos expõe aos limites do simbolizável pela palavra e do silêncio. Aqui, a música retira toda a sua força da invocação a uma alteridade. No entanto, ela desvela algo da origem e do porvir, simplesmente, porque ela nunca se dirige apenas ao outro presente, ela convoca o que ainda pode nascer, o que pode surgir.
Frisamos aqui a possibilidade inventiva rítmica do sujeito de representar na cultura seu momento mítico, esquecido, de primeira passagem pela dimensão simbólica. Ao emergir como ritmo, cria-se também laço social e formas culturais da arte vinculadas à possibilidade de criação significante de cada tempo.
Vamos iniciar a jornada deste artigo pelos mares da Odisseia, de onde o homem ocidental aprendeu que, para possuir a narrativa de sua vida, ele precisaria calar um canto original. Não sem passar pela revisão de Kafka e sua atualização nos contos de princesa da Disney. Supor um canto, fantasiá-lo, é a melhor forma de não deparar com o abismo silente da morte. Em seguida, voltamos aos autores psicanalíticos que pensam as nuances da música com a pulsão invocante e sua força subjetivante. Para além da superfície, fica demonstrado que o sujeito do inconsciente é também o sujeito a quem a música se destina.
Alguns trabalhos psicanalíticos que embasam nossa pesquisa demonstrarão que a conquista da palavra não se dá sem o esquecimento e uma consequente nostalgia do canto originário. Que o sujeito possa, entretanto, acreditar na promessa veiculada pela linguagem e realizar uma assunção, também será possível, porque ele encontrará, em terra firme, um lugar para cair na dança. O ritmo é o modo pelo qual o sujeito reata com os seus mitos de origem, enquanto desse lugar da inicialidade surge, ao mesmo tempo, um empuxo para mais adiante, em direção ao continente da palavra. A travessia aqui, então, é não apenas de uma posterior saudade do lugar imaginariamente perdido, mas de uma força pulsional inesgotável, que o leva adiante em busca da subjetivação.
Das sereias ao canto
Ao homem que parte em direção a uma guerra, não resta apenas o desafio de manter sua vida e a de seus companheiros. Pode-se dizer que seu maior compromisso será com a tarefa de construir sempre, mais uma vez, uma narrativa, uma memória dos eventos que se sucederão. Por isso o espanto de Benjamin (1987) ao observar que os soldados da Primeira Grande Guerra moderna voltavam para casa silentes, incapazes de doar o valor de uma verdadeira experiência ao que haviam vivido.
Por outro lado, a mãe de todas as narrativas, justamente aquela que tem como cerne o próprio ato de contar uma história, a própria possibilidade de resistência de sua potência transmissiva, nos chegou por meio dos cantos homéricos sobre o final da Guerra de Troia (Ilíada) e seus desdobramentos (Odisseia). Suspeita-se que, assim como são vários cantos, são outros tantos Homeros. Pode-se, contudo, afirmar que se trata do maior exemplo de sobrevivência e transmissão de uma cultura oral e poética entre gerações. Tudo indica que é seu próprio movimento de cantar e recontar essa história que a construiu desde o século ix antes de Cristo.
A Odisseia (Homero, ix-vii a.C./2014) tem um valor especial por ser a história não de uma guerra entre exércitos, mas de um retorno para casa, em que o desafio é lutar pela sobrevivência da memória. A narrativa sobre o retorno ao íntimo do lar começa por trazer falas de outras pessoas sobre o personagem principal, Odisseu, como a de seu filho Telêmaco, que almeja ser reconhecido perante os outros como filho do herói. Quando já é Odisseu mesmo que assume o lugar do narrador e encantador dos ouvintes, ele conta as peripécias pelas quais passou para que pudesse ocupar esse lugar. É no Canto xii que ele conta o episódio da passagem pelo canto das sereias. Para narrá-lo, deve ter ele mesmo travado uma batalha com o mais perigoso e subterrâneo que habita a dimensão da poesia e do musical.
O encontro com as sereias foi consequência final de outros dois encontros com uma voz feminina tão irresistível quanto mortífera. Antes de partir para a ilha das Sirenas, Odisseu havia realizado uma viagem ao mundo dos mortos, ao Hades, e lá teve notícias de um passado longínquo por meio da voz de sua finada mãe. Era grande a preocupação com o destino de Odisseu, ao mesmo tempo em que ela lhe contava todos os lamentos pelo destino de sua família. Essa voz dolorosa toca bastante o coração de Odisseu, que fica tentado a agarrar a alma da mãe em suas mãos. Por um momento, ele deseja permanecer para sempre no Hades, agarrado com carinho à alma de sua mãe. Isso é interditado por ela mesma, que se esquiva de tal captura.
Ele consegue retornar do mundo dos mortos. Segue, então, de volta para a casa da feiticeira "Circe belos-cachos, fera deusa de humana voz" (Homero, ix-vii a.C./2014, p. 325). Ao feitiço dessa mulher, jamais homem algum havia resistido, até que Odisseu, o ícone máximo da resistência, não foi por ela encantado. Não apenas por meio de suas drogas, é verdade. Odisseu, como também um ícone do novo homem racional lutando contra a antiga tradição dos deuses obscuros, só seria sugestionável pela razão. As palavras de sua, agora, amante, Circe, passam a ser suas guias maiores. Circe lhe falou sobre o caminho de Hades, para ali triunfar uma vez sobre vozes do passado e do futuro, e, em seguida, assim lhe revela os temores que estavam no seu caminho de volta aos braços de sua esposa em Ítaca:
Agora ouve como te digo, e o próprio deus te lembrará.
Primeiro alcançarás as Sirenas, elas que a todos
os homens enfeitiçam, todo que as alcançar.
Aquele que se achegar na ignorância e escutar o som
das Sirenas, para ele mulher e crianças pequenas não mais
aparecerão nem rejubilarão com seu retorno à casa,
pois as Sirenas com canto agudo o enfeitiçam,
sentadas no prado, tendo ao redor monte de putrefatos,
ossos de varões e suas peles ressequidas.
Passa ao largo e tampa os ouvidos dos companheiros
com amolecida cera melosa, para que nenhum
outro as ouça; mas tu mesmo, se quiseres, ouve
após te prenderem as mãos e os pés na nau veloz,
reto no mastro, e nele se amarrarem os cabos,
para que te deleites com a voz das duas Sirenas.
Se suplicares aos companheiros que te soltem,
que eles com ainda mais laços te prendam.
(Homero, ix-vii a.C./2014, p. 350)
Conta-se, então, que, quando se aproximaram da erma ilha, o vento abrandou e as arrepiantes cantoras surgiram com seus cantos belíssimos e fulminantes. Odisseu, siderado por tanta beleza e pelo abismo daquele canto sedutor, suplica a seus companheiros que soltem os laços que o prendem. Por sorte, os marujos estavam todos com os ouvidos tapados e, assim, conseguem partir dali e continuar a saga de um retorno ao idílico e longínquo lar. Segundo ensaio de Oliveira (2008), a estratégia do canto sirênico era ofertar a Odisseu uma rememoração, justamente, de suas aventuras até ali. Poderia Odisseu abandonar sua esperança de um porvir distante em prol de uma imagem especular que a ele se oferecia como lugar metafórico da interrupção de sua narrativa? E, para nós, não seria essa também uma questão que aflige ao analisante, quando este depara em análise com o estupor do traumático ante o desafio de atravessar a sua fantasia mais originária?
Talvez isso tenha uma representatividade no seio dos processos que constituem o próprio sujeito narrador, portanto, portador da palavra. Seria o canto das sereias, como Oliveira (2008) compreende em seu ensaio, a encenação de uma "passagem por um canto primeiro e inefável e a aceitação de sua perda em favor do acesso a um canto segundo e já agora transformado nas palavras de um conto"? (Oliveira, 2008, p. 27). Tudo indica que a palavra fica enodada à voz como a articulação inescapável da força e do sentido que movem a história da subjetivação de cada um. Tem a palavra, portanto, uma eterna dívida com a situação originária que a constitui mediante uma primeira travessia pelo canto. Um canto primordial do qual temos que nos despedir para emergir como sujeitos e como, posteriormente, nostálgicos, amantes de um novo canto.
Como, ainda, diferenciar entre esse canto unário e o segundo canto, que faz trilha sonora, bateria de significantes no melodrama do sujeito? A que está relacionado esse dito primeiro canto se não a uma dimensão real da voz? E, dessa forma, ele pode estar muito mais próximo do silêncio inefável do que da própria melodia-rítmica que se apela à música. Em um sentido freudiano, esse real da voz pode ser, na verdade, a indiferenciação primária entre o lustich (eu-prazer) e a realidade. Evocação do polo alucinatório do desejo, antes mesmo de uma ligação, uma fixação originária de um representante à pulsão.
É por isto mesmo que nos direcionamos aqui para o mito como possibilidade de leitura desse momento de passagem que entrelaça silêncio e canto, possibilitando o surgimento de um espaço e um tempo próprios ao sujeito. Por se tratar de um momento originário e de pura criação, a única forma de acessarmos uma possível transmissão desse momento primeiro é pela invenção posterior, em um segundo tempo, de uma verdade ficcional sobre a originalidade desse momento. Nesse sentido, apontamos aqui para a importância da relação entre mito e música no que tange a essa criação própria ao funcionamento do sujeito, que entrelaça vazio e preenchimento, silêncio e som e, finalmente, verdade e ficção (Azevedo, 2008; Mieli, 2013). Vale ressaltar, também, que o que marca esse momento, como já dissemos, é justamente sua possibilidade de ser recriado - como nas recontagens de mitos e remakes de músicas -, carregando ao mesmo tempo a possibilidade de produção de algo originário, mas também uma marca insistente e repetitiva de cada sujeito em seu ritmo próprio (Freud, 1920/2010).
Uma nova interpretação do mito de Odisseu parte de uma conhecida releitura, escrita por Kafka, desse mítico encontro com as sereias. A versão kafkiana inverte as coordenadas do conto e se chama O silêncio das sereias (Kafka, 1917/2014). Para o escritor, existe uma arma ainda mais letal do que o canto das sereias, e esta é seu silêncio. Se Odisseu a elas escapou, isso se deve ao fato de acreditar ter ouvido um canto, quando, na verdade, dos habitantes da erma ilha apenas emanava um terrível silêncio. Ou seja, o canto das sereias já seria um anteparo fantasístico de Odisseu ao deparar com o real traumático do silêncio mortífero.
A pertinência dessa reinterpretação dá ao psicanalista Vivès (2012) ocasião de diferenciar a pura pulsão da voz originária do canto propriamente dito, pois "a lenda nos mostra como o canto (misto de voz e fala) permite calar a voz ou, ao menos, torná-la inaudível" (Vivès, 2012, p. 83). Sendo assim, o que uma cantora possibilita, ao fazer seu canto entoar uma cadeia de sons e sentidos subordinados à lei da linguagem e ao fazer pulsar uma alternância rítmica da presença/ausência, é justamente criar o inaudível da voz. A voz, como expressão de um desejo absoluto e aglutinador do Outro, desaparece e reaparece nos volteios e melismas do canto, ao mesmo tempo subordinado e desafiador dos limites articulatórios da fala.
Existe, então, a possibilidade de deslocar o perigo das sereias do campo sonoro ao campo escópico, opção que Freud sempre fez, problematizando o pulsional. Conforme demonstra a seguinte passagem kafkiana:
Odisseu, porém, não ouviu seu silêncio, por assim dizer; acreditou que cantassem e que só ele estivesse a salvo de ouvi-las; com um olhar fugaz, observou primeiro o movimento de seus pescoços, o respirar fundo, os olhos cheios de lágrimas, a boca semiaberta, e acreditou que fizessem parte das árias soando inaudíveis ao seu redor. Mas logo tudo isso resvalou por seus olhos voltados para o longe; as sereias verdadeiramente desapareceram, e, justo quando estava mais próximo delas, ele já nem mais sabia de sua existência. Elas, por sua vez, mais belas do que nunca, esticavam-se e giravam o corpo, deixando os cabelos horripilantes soprar livres ao vento e alongando as garras na rocha; não queriam mais seduzir, mas somente apanhar ainda, pelo máximo de tempo possível, o brilho que refletia dos grandes olhos de Odisseu. (Kafka, 1917/2014, p. 616)
Há uma associação infralinguística na metapsicologia freudiana chamada de imagem sonora ou acústica (Freud, 1891/2013). O som é um fenômeno que compõe um complexo associativo tal como a imagem, pois em sua dimensão puramente sonora ele não é dividido como um significante. O som, em si, é como uma cor, uma apreensão totalizante que se dá de uma vez. O significante, por sua vez, é marcado pela diferença e pelo distanciamento da coisa referente. As dimensões do som e da imagem articulam-se aqui em resposta à perda fundamental fundante do sujeito. No que algo da voz e do olhar falta, algo se articula para responder a isso, a fala, sendo esta junção de imagem e som - significante. Essa estética da imagem e do som articulados é carregada e reconstruída nessas narrativas de forma precisa pela figura da sereia.
Outra atualização moderna do conto da sereia pode ser vista também no filme A pequena sereia, de 1989, uma animação da Disney, que conta a história de Ariel, uma sereia fascinada pelo mundo dos humanos, que se apaixona por Eric, um príncipe que vive num castelo à beira-mar, a quem ela resgata do afogamento após um naufrágio. É interessante que o que Eric retém desse evento é apenas a lembrança do canto de Ariel, pelo qual se encanta, e passa a buscar a moça que o salvou. Após uma divergência com o pai, Tritão, o rei dos mares, que se opõe veementemente a que Ariel tenha contato com o mundo dos humanos, Ariel recebe a proposta de uma bruxa do mar, Úrsula, que promete transformá-la em humana por três dias para que ela possa conquistar seu príncipe encantado. Se, contudo, até o pôr do sol do terceiro dia em terra a sereia não conseguir um beijo apaixonado do príncipe, sua alma passa a pertencer à bruxa do mar. Em troca de seus serviços, Úrsula exige, como garantia, a bela voz de Ariel (a essência da sereia, seu tesouro), que, no filme, é retratada como um objeto que se transporta de sua garganta, um feixe luminoso (como se da voz restasse a materialidade objetificável de sua perda) para uma concha do mar, ficando lá "guardada" e à disposição da bruxa por esses três dias em que a sereia tenta, muda, conquistar o beijo do príncipe, o que ela consegue a tempo, ganhando de volta sua condição de sereia, da qual, posteriormente, abrirá mão para viver em terra com o amado, mas dessa vez com as bênçãos de seu pai.
Uma semelhança entre a história de Ariel e a representação do canto das sereias por Kafka, na literatura, é que, na história deste último, Odisseu aparece com um brilho no olhar, como sugerido na passagem em que as sereias "não queriam mais seduzir, mas somente apanhar ainda, pelo máximo de tempo possível, o brilho que refletia dos grandes olhos de Odisseu" (Kafka, 1917/2014, p. 616). Assim, como também Eric, na história de A pequena sereia, após ter sido enfeitiçado por Úrsula com a pura-voz de Ariel (que aquela manipula, como explicado anteriormente, para atrapalhar os planos da sereia de conquistar o príncipe), também reflete um brilho no olhar, que some após o feitiço deixar de agir sobre ele. O momento do brilho no olhar surge, então, nessas duas histórias, como marca da sedução das sereias, ou melhor, sedução da pura-voz mesma diante do enfrentamento do sujeito e resistência para que advenham as possibilidades significantes.
No caso de Ariel, a sereia teve que perder algo da totalidade material do som dessa pura-voz, ficar muda e, logo, introduzir um ponto surdo (Vivès, 2012) para que a "esquize" da voz pudesse operar enquanto sujeito do significante, ou seja, dividido (Lacan, 1964/2008). Ressalta-se também o efeito de sideração em Eric, causado pela voz da sereia sendo manipulada por Úrsula, o que de um ponto de vista mítico impediria o sujeito de advir, já que sua constituição e o movimento de conquista da palavra vêm por um ato de resistência a essa sedução, como na Odisseia de Homero, retomada acima. Enquanto enfeitiçado pela voz manipulada por Úrsula, o estado de Eric é de "coisificação", ele não responde ao mundo enquanto sujeito, apenas obedece às imposições da voz encantadora. A manifestação do sujeito comparece também no embate entre Ariel e seu pai, Tritão, em nossa leitura, a possibilidade de advento do sujeito por intermédio de uma relação de "desobediência" ao outro, um ato de separação e perda que permeia o ser falante. Vale ressaltar, porém, que tal momento de "sedução" é necessário ao sujeito como possibilidade de convite ao enfrentamento desse tempo primordial de sua assunção. Esse tempo primeiro registra-se, então, e, ao se transmitir como história do sujeito passível de ser contada, atualiza-se incontáveis vezes no desenrolar de seus acontecimentos, tornando possível a conquista e o avanço em novas dimensões do novo da experiência.
Com isso, indicamos aqui esse enlace no imaginário cultural, em que a voz da sereia advoga por essa dimensão do som comportando um efeito avassalador que paralisa o advento do sujeito, dado que, mais para lá da voz, trata-se de um som primordial, que está numa ordem para além e aquém do significante, que é do plano do intraduzível, sendo preciso haver essa passagem e, posteriormente, seu abandono, para que o sujeito possa obter a possibilidade de produzir diversas significações, emergindo no campo do significante.
Vivès (2012) também aponta para uma interessante aproximação entre o surgimento do canto das sereias e o grunhido de um ciclope. As sereias receberam suas asas mediante um grito de desespero em apelo aos deuses quando foram raptadas ao reino dos mortos por Hades. A voz das sereias é, tal como um grito, algo do sonoro que não foi ou não pôde ser dialetizado numa relação articulatória do significante/significado. Nesse sentido, podemos continuar a destacar esse fragmento excessivo do pulsional da voz além e aquém da palavra. O canto, por sua vez, como uma mediação rítmica da voz e da fala, é o campo em que se vela e desvela esse encontro originário e constituinte.
Assim, podemos pensar, com Assoun (1999), acerca da mitologia das sereias:
As Sereias são para o gozo, pela voz, aquilo que Medusa é para o gozo, pelo olhar. Da mesma forma que a Medusa fascina e mata pelo olhar (hipnótico), as Sereias medusam pela voz. O que uma realiza pelo terror, as outras obtêm pelo "encanto". Mas uma e outra partem do mesmo ponto: o da castração, em sua dupla vertente - de angústia e de gozo. (Assoun, 1999, p. 84)
A partir de Freud (1895/1996), podemos pensar que, se existe uma dimensão originária da voz, ela não é agradável; estando ela ligada ao grito de dor e de exteriorização, apela ao surgimento do campo da alteridade e, portanto, denota o furo da homeostase mítica do que é interno. Nesse sentido, podemos continuar a destacar esse fragmento excessivo do pulsional da voz além e aquém da palavra. O canto, por sua vez, como uma mediação rítmica da voz e da fala, é o campo em que se vela e desvela esse encontro originário e constituinte.
Da voz primordial à assunção do sujeito
Em um célebre artigo chamado "Jacques Lacan e a voz", Miller (1989/2013) assinala que Lacan sempre separou os objetos pulsionais freudianos das notações do significante/significado que compõem a estrutura linguística. Por isso, ele utiliza o termo "objeto a", para não o confundir com um elemento da linguagem. Os objetos pulsionais seriam aqueles que, na clínica, se manifestam ao sujeito desde uma exterioridade radical. E questiona, então: como esse sujeito lacaniano, que será definido por uma relação entre significantes, pode estar referido ao objeto à parte da estrutura?
Para tentar resolver esse problema, Lacan precisa incluir novos objetos pulsionais, a saber, o olhar e a voz. No Seminário 11, Lacan (1964/2008) apresenta um modelo de "esquize", que visa subverter uma relação especular que materializa a imagem a partir do próprio corpo que lhe suporta. Existiria uma cisão entre o olhar e o órgão da vista para demonstrar que o desejo vai além, ou melhor, rompe com a função biológica que sustentaria a sua fruição. Nesse sentido, Miller (1989/2013) convida-nos a trazer essa esquize para o campo da voz, separando-a como objeto da pulsão do registro sonoro, sendo ela, essencialmente, uma função a-fônica.
É acerca do referido paradoxo que a versão a-fônica das sereias em Kafka (1917/2014) nos expõe também, pois o que Lacan parece apontar sobre a voz como objeto da pulsão não está no mesmo nível de algo da entonação da voz. A dimensão rítmica e melódica da voz, a sua linguística da entonação, está totalmente do lado da linguagem e de suas possiblidades de fazer sentido, mesmo no pré-verbal. Entretanto, isso que é da pulsão invocante pode indicar algo de um excesso residual que, mesmo no sonoro ou no silêncio, pode sobreviver totalmente fora do sentido.
Segundo Miller (1989/2013, p. 6), a voz pode ser "tudo que, do significante, não concorre para o efeito de significação". Portanto, a voz que acalanta, que fisga e humaniza o infans não é, ela mesma, a voz enquanto objeto da pulsão. Para Vivès (2012), a busca da voz como objeto ocorrerá a partir de um ponto surdo. O tempo lógico da constituição psíquica não se completa sem o esquecimento do timbre originário da voz do Outro. Certa surdez é necessária ao relance do circuito pulsional, assim como certa cegueira é fundamental para o recalque da cena primária.
Ainda segundo Vivès (2012), o canto é o que mantém a voz a distância, ele é um doma-voz, assim como o quadro é um doma-olhar, o que caracterizaria a música, segundo Miller (1989/2013), não como a exemplificação da voz sendo objeto da pulsão, senão como a forma pela qual se doma a pulsão. Para o autor, nós fazemos e ouvimos música para esquecer o que merece ser chamado de voz como objeto a. Ou seja, não se trata, na música, de um operar com o objeto voz, mas fazer o luto de sua separação. Para Vivès,
Esse velamento da voz, todavia, tem consequências, pois é ele que permite ao sujeito advir. Com efeito, sem esse velamento primeiro, ponto de possibilidade para tocar a voz, o sujeito se encontra submetido às ferozes injunções da voz do Outro, então percebida no real. Em outras palavras, a voz do Outro invoca o sujeito, sua fala o convoca. É num certo desapossamento de seu grito que o infans simultaneamente perde e encontra sua voz. Desde então, a voz é o real do corpo que o sujeito consente em perder para falar ... (2012, p. 88, grifo do autor)
Acontece também que a psicose e suas alucinações verbais demonstram que essa separação do objeto voz, mediada pela castração, merece mesmo é uma comemoração. Catão e Vivès (2011) parafraseiam Winnicott (1971/1975) para afirmar que é na voz do outro que a criança primeiramente se escuta. Portanto, se, conforme Winnicott, uma parte do rosto materno deveria permanecer numa zona indiscernível, uma parte da voz também deveria permanecer esquecida.
O canto traria um banho de significação para a voz, para o grito primordial, através do desejo do Outro, que demanda. Naquilo que a voz tem de irrepresentável, no que escapa à lei da significação, a música tenta significá-la. A voz é o lugar por excelência da ligação que ex-siste ao dito. Daí que a relevância não esteja no que se diz na letra da música, por exemplo, pelas sopranos, o que importa "é o modo como a música é levada a um ponto no qual estas vozes atingem notas demasiado agudas, confundindo-se com um grito, e levando comumente a efeitos que beiram ou o êxtase ou o estranhamento no ouvinte" (Azevedo, 2008, p. 203). Dessa forma, é possível fazer uma aproximação estética entre o cantar e a voz primordial do Outro que convoca o sujeito a advir, o que gera no ouvinte, segundo a autora, um limiar entre o êxtase e o estranhamento, a um gozo, que os convoca como sujeitos, da ordem daquilo que não é possível ser nem mesmo simbolizado.
Assoun (1999) explica ainda que a voz das sereias são vozes em estado puro e que elas, as sereias, representam a encarnação de voz em mulheres, elas são seres vocais que reenviam ao enigma da voz em sua relação com o desejo e com o gozo. O canto das sereias está para além da lei significante, logo, é mortífero, dado que é a lei que perpetua o desejo humano. O canto da sereia, não estando sujeitado à lei significante, evoca no sujeito esse retorno ao arcaico da relação do sujeito com esse tempo mítico de sujeição ao desejo do Outro, em que não era necessário desejar, aparece então, no canto da sereia como pura vocalização sonora que indica: "Goza, nós te ordenamos!" (Vivès, 2012, p. 85). Mas, ao mesmo tempo, por estar além, remete ao aquém, recriando um início que inspira uma continuação, em outras palavras, que inspira a própria música.
Azevedo (2008) compara então o sujeito que canta com o sujeito do inconsciente, que só toma ciência da voz no ato de cantar, com base no gozo que ele evoca e do qual é evocação. A voz é, então, nessa perspectiva, a paga do corpo para que a palavra se produza. É preciso que a voz desapareça por detrás da fala na emersão do sujeito. E é justamente essa a função da fala, uma vez que ela "faz calar a voz ou, mais precisamente, permite torná-la inaudível. A linguagem fura o corpo, marca o vivente e implica a apropriação do sujeito pela linguagem mais do que o seu contrário" (Vivès, 2012, p. 88).
Azevedo (2008) explica que, desde a entrada do bebê na linguagem, a sexualidade aponta para a impossibilidade de satisfação absoluta, dada a parcialidade pulsional. Dessa forma, o real se presentifica por meio da castração, real este que pode ser simbolizado pelo sujeito e, a partir daí, pode organizá-lo psiquicamente. É o que o músico tenta fazer com seu trabalho, mesmo que não de forma consciente: "o que o músico dá a ouvir, inconscientemente, na obra não passa por uma compreensão racional. O que faz com que o ouvinte seja capturado pela obra de modo a tomá-la como causa de desejo" (Azevedo, 2008, p. 206). O que acontece, explica-nos a autora, é que somos capturados pela voz nessa armadilha criada pela obra. A música remete ao campo da intraduzibilidade, uma vez que toca o ser humano numa dimensão que está também para além das palavras, posto que está, ao mesmo tempo, aquém.
A música é uma tentativa de "positivar" isso que é da ordem do que não se diz. Ou seja, tais quais os marinheiros na embarcação de Odisseu, somos seduzidos por algo de real na música que é da ordem do intraduzível e que não se significa, que está para uma aproximação com o canto da sereia, que seduz. Com o mito de Odisseu, todavia, aprendemos que o que está em jogo é muito mais algo da ordem do que não se escuta, um ponto surdo (Assoun, 1999). A conquista da palavra, a passagem com ritmicidade que pode produzir linguagem - e música - é marcada por uma nostalgia da perda, sim, mas também - e principalmente - pela criação dessa possibilidade de advento do futuro. Como apresenta a versão de Odisseu recontada por Kafka (1917/2014), a partir da criação de um ponto surdo - o objeto: (a) cera nos ouvidos - que se engendra a nostalgia de um passado com base em uma promessa de continuação da aventura do herói, ou seja, um futuro.
Nesse ínterim, a atração pelo musical se dá, justamente, pela promessa de satisfação pulsional por meio da alucinação, e da representação desta pela música, entendida, em Azevedo (2008), como esse contorno pulsional que se constitui em torno do vazio deixado pela queda da voz como objeto a, sendo possível, por isso, ser tomada pelo ouvinte como causa de desejo.
O surgimento do sujeito está diretamente ligado ao momento em que a voz se reveste de simbólico, é recoberta por essa imaterialidade que marca uma perda. Logo, para se constituir sujeito, é preciso, como Odisseu, resistir ao canto das sereias, perdê-la, deixá-la cair, essa voz primordial, pura-voz, alienante, siderante, e seguir em frente, assumindo o preço dessa perda, da voz como objeto, para se inserir no campo da linguagem, submeter-se à lei significante, e fazer parte da cultura.
Assim como na brincadeira do Fort! Da!, o netinho de Freud (1920/2010) elabora a ausência da mãe, representando-a no jogo do carretel. Simultaneamente, ele mesmo conquista um lugar na linguagem, agenciando-se no jogo rítmico. A criança de 1 ano e meio empresta ao movimento de desaparecimento e reencontro de seu brinquedo a contínua emissão vocal do "o-o-o-o", traduzido pela mãe do garoto como Fort, o "lá" alemão. Com o ritmo binário mais simples, a criança canta a saudade, não perdendo seu próprio eu no desaparecimento do objeto. Nas palavras de Assoun (1999, p. 66), é" ouvindo-se ritmar seu jogo de esconde-esconde que a criança mantém seu sentimento de existir e povoa sua solidão".
A música não deixaria de nos remontar ao luto (e à nostalgia - do grego nostós, que significa regresso a casa, e álgos, que significa dor) pela perda da voz materna. No entanto, a elaboração desse luto, mediada pelo ritmo musical, não se dá pela via da rememoração. De acordo com Didier-Weill (1999), "o impacto da música não é rememorar, e sim comemorar o tempo mítico desse começo absoluto pelo qual um 'real', tendo se submetido ao significante, adveio como essa primeira coisa humana" (Didier-Weill, 1999, p. 16). Para o autor, a música é a melhor expressão do que Lacan chamou de "extimidade". Na música, especialmente por meio da dança, o corpo dá lugar íntimo ao que era absolutamente exterior na origem. No movimento de se lançar a uma dança, há uma resposta de sujeito a algo que o afetou na exterioridade; assim, tomando a causa da movência para si, inclui-se na lei do ritmo.
Ainda segundo o autor, diante da emoção de uma canção, pensamos escutá-la, mas depois descobrimos que é ela, na verdade, que nos ouve. Há um receptor íntimo que recebe o apelo musical e convoca um circuito pulsional que responde a este apelo por um desejo de se fazer ouvir também. Por meio de uma identificação primordial, a criança é capaz de se interrogar pelo desejo. Para isso, presume-se uma travessia na qual a criança emerge como sujeito, supondo que há um Outro disposto a se regozijar com seus significantes. Assim como Odisseu, ao pensar que escuta a música das Sereias, passa a ser ele mesmo escutado, de forma invertida, na música que se antepara aos olhos lacrimejantes que o convocam ao abismo.
Didier-Weill (2014) tem, na proposição de uma nota azul, a referência a um ponto virtual em que a pulsão invocante pode convocar o sujeito do inconsciente a ir em direção a. A nota azul não aponta meramente para um passado harmonioso, ou à reiteração dele: ela é a chave para o porvir, para o retorno a um caminho do ritmo uma vez abandonado em prol da fixação do recalque. O recalque a serviço da lógica do princípio do prazer buscava estancar o devir humano, fazê-lo esquecer sua origem na indeterminação. No entanto, a nota azul aponta, novamente, para esse devir do desejo, para o além do prazer de se redescobrir habitado por uma estranheza. É ali onde ele pode se sentir mais em casa, ao sentir que a música não é estranha à sua própria estranheza, à sua própria não identidade, fundamental.
Talvez seja como sentir saudade de casa estando em uma terra estranha e, ao mesmo tempo, não querer voltar, pois o único lar possível para o sujeito do desejo é aquele que ele ainda não habitou. Tal aspecto seria o que moveu a profícua criação musical dos negros na escravidão. O blues americano e o samba brasileiro são filhos de uma esperançosa nostalgia. Didier-Weill (1999) inspirou-se, ele mesmo, no blues para falar sobre a nota azul, a música que, para os escravos, permitiu uma passagem da alegria e da esperança por meio de uma nota triste. O prazer musical é, então, essencialmente, como a alegria de estar triste e a esperança de ter saudade. Foi ninguém menos que Roberto Carlos quem soube nos traduzir isso em canção, ali, na música Outra vez, ele canta: "você é a saudade que eu gosto de ter". De modo que essa tristeza não é desoladora, é estrategicamente fantasiada, montada como anteparo ao real. Assim também nos ensinou Odisseu ao apelar à fantasia de ouvir a música ante o silêncio desolador das sereias (Kafka, 1917/2014).
Caetano Veloso condensa, na poesia cantada de Desde que o samba é samba, uma versão brasileira desse ponto virtual na música, por onde somos convocados por essa nota azul que faz o sujeito do inconsciente ser filho do porvir, concernido em uma obra que ainda vai nascer:
A tristeza é senhora
Desde que o samba é samba é assim
A lágrima clara sobre a pele escura
A noite e a chuva que cai lá fora
Solidão apavora
Tudo demorando em ser tão ruim
Mas alguma coisa acontece
No quando agora em mim
Cantando eu mando a tristeza embora
O samba ainda vai nascer
O samba ainda não chegou
O samba não vai morrer
Veja o dia ainda não raiou
O samba é pai do prazer
O samba é filho da dor
O grande poder transformador (Veloso, 1993)
Com isso, a relação entre a palavra e a música pode ser assim compreendida pela psicanálise: a palavra está sujeita à lei do a posteriori, ela sempre remete ao passado que deixa atrás de si; a tudo aquilo que ela precisou transcrever. A música não aponta, contudo, para a origem como uma memória e tradução: ela tem o próprio instante simultâneo em que a anterioridade se articula com a posteridade. Por possuir a origem em si, estando à margem do dia que ainda vai nascer, e tendo, contudo, já desabitado a noite, lança o sujeito na travessia de sua subjetivação.
A chegada à praia em ritmo de calipso
Ainda sobre a música, conclui-se, então:
Nesse âmbito, o musical é também uma conquista que passa pela simbolização da voz, ou seja, pelas suas possibilidades representativas; nele resiste, todavia, uma insistência repetitiva não rememorativa, de um estado originário em que o humano desafia sua condição informe, de onde emerge pela pura voz - o grito.
(Parente, 2017, p. 34)
A cultura é atravessada por uma infinidade de exemplos que ilustram o valor atribuído à voz, seja na literatura, na música ou em outras formas de manifestações artísticas, presentificando algo do real que é da ordem do intraduzível, mas a que o homem visa dar sentido ou um contorno a esse buraco que o estrutura e o faz seguir adiante.
No campo da música popular brasileira, o episódio de enfrentamento do canto das sereias é bastante representado e, para ilustrá-lo, citamos "Porto Alegre (Nos braços de Calipso)", letra de Péricles Cavalcante, musicada pela cantora Adriana Calcanhoto:
Amarrado num mastro
Tapando as orelhas
Eu resisti
Ao encanto das sereias
Eu não ouvi o canto das sereias
Eu resisti
Mas chegando à praia
Não fiz nada disso
Então caí
Nos braços de Calipso ...
(Cavalcante, 2008)
A letra ganha certa conotação cômica no fato de ser possível resistir ao (en)canto das sereias, avassalador, enfeitiçante e, ainda assim, em um tempo posterior, sucumbir ao apelo de Calipso, que, no Brasil, pode ser pensado não só como a mitológica ninfa do mar, com quem Odisseu se encontra após enfrentar as Sirenas (contado na própria Odisseia, de Homero), mas também como o ritmo musical que recebe tal denominação. Na versão musicada por Adriana Calcanhoto, os próprios acordes sugerem um ritmo singular e a voz da sereia (cantada por Marisa Monte) também acompanha essa ritmicidade dançante peculiar, como se a própria sereia embalasse essa passagem em torno de seu canto pelo ritmo de Calipso, nessa versão que consideramos uma outra possível leitura para esta narrativa.
Apontamos, nesse modo de recontar a travessia pelo canto das sereias, assim como na respectiva posterior sucumbência ao ritmo de Calipso, a originalidade de tal ritmo musical em relação à cultura brasileira. A história da origem desse gênero cultural remonta a uma mixagem de ritmos provenientes de diferentes povos (africanos e americanos, por exemplo), assim como remontam à tentativa de produzir laço social entre os escravos que buscavam formas de resistência diante de sua condição. Isso nos levou a apontar também para o paralelo que há entre nossa discussão em torno desta travessia com a constituição subjetiva, já que a conjuntura da escravidão remete à dimensão de resistência, ou seja, às tentativas do sujeito de advir e se constituir. É nesse sentido que elegemos aqui dois tempos, que, embora não sejam cronológicos, necessariamente, nos indicam, de algum modo, tempos lógicos do sujeito. (Lacan, 1998). O tempo do primeiro momento irresistível, na música, a decisão de não ouvir o canto das sereias e fazer uma passagem, isso nos remete a um tempo mítico de assunção do sujeito à fala. Já o segundo tempo, posterior irresistível da música em questão, que indica a impossibilidade de resistir a um ritmo, o de Calipso.
Faz-se interessante ressaltar que, na letra de Péricles Cavalcante, o personagem de Odisseu aparece "tapando as orelhas", o mesmo acontecendo na versão de Kafka, que tapa os ouvidos do herói: "a fim de se proteger das sereias, Odisseu entupiu de cera os ouvidos e mandou que o acorrentassem com firmeza ao mastro" (Kafka, 1917/2014, p. 615). Tal fato não acontece na versão de Homero, em que o herói, de fato faz a travessia acorrentado ao mastro, mas apenas os outros tripulantes da nau estão com os ouvidos tapados com cera derretida, pois o herói permite-se desfrutar do canto das sereias, sendo submetido então a esse gozo mortífero ao qual só é possível resistir acorrentado e impossibilitado de mover-se e jogar-se em direção à morte, representada pelo abismo oceânico.
Em outras palavras, apontamos o fato de que foi preciso resistir às sereias para não ser possível resistir ao Calipso. Não resistir ao ritmo de Calipso possibilita uma espécie de metáfora da chegada à praia, ou seja, à própria possibilidade do laço social, em oposição, por exemplo, ao mítico abismo oceânico. Este abismo seria a imagem mítica, consequência da não resistência ao canto das sereias, momento este que o sujeito que escuta a música não é capaz de reproduzir, ou acessar novamente - posto que existente apenas após sua passagem -, mas, apenas, inventar.
Tratar-se-ia aqui do que Balbo (2009, p. 167) chamou de "suicidança", "o balé infernal porque é mortal"? Estamos evocando aqui, até mesmo, esta questão clínica fundamental que vai se depreender a partir dos momentos específicos em que os sujeitos se encontram nessa travessia e de que modo fazem essa passagem, continuamente, em sua invenção musical e rítmica própria ao conquistarem a dimensão da palavra.
Referências
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