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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.43 no.4 São Paulo 2009
RESENHAS
Resenhado por: Renato Mezan1
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Pontífica Universidade Católica de São Paulo
Rumor na Escuta
Autor: Ilany Kogan Editora: Jason Aronson, N ew York, 2007, 263p
2. Escape from Selfhood
Autor: Luiz Meyer São Paulo: Editora 34, 2009
Redescobrir, refletir, problematizar: a fina botânica de Luiz Meyer
Gostaria de apostar que uma eventual discussão vai se concentrar na misteriosa elevação presente no encaminhamento que cada um tentou dar ao momento seminal de suas vidas.2 (p. 288) Assim Luiz Meyer conclui o último artigo do seu livro Rumor na escuta (São Paulo, Editora 34, 2009). Não creio que este atento leitor das Memórias Póstumas de Brás Cubas se oponha a que o resenhista comece pelo fim da obra; há bons motivos para tal opção, e – embora isso possa soar como uma denegação – entre eles não se conta a fantasia de um sepultamento precoce do autor.
Acontece que a questão trabalhada nesse texto – como se constitui a lembrança do acontecimento que uma pessoa reputa decisivo entre todos para o rumo que sua existência tomou – oferece, a meu ver, a melhor via de acesso ao pensamento de nosso colega. Parafraseando o dito de N apoleão diante das pirâmides, podemos dizer que quarenta anos de prática e muitas horas de reflexão sobre ela nos contemplam das páginas elegantemente compostas em papel pólen desse livro extraordinário.
A "misteriosa elevação" consiste em que o fato em questão – originalmente apenas uma experiência impactante – passa por um processo ao cabo do qual se converte naquilo que "organiza a visão de mundo" daquele indivíduo, a base do seu ideal de ego e, se para falar como Sartre, do seu "projeto existencial". O modo como Luiz Meyer analisa tal processo dá a ver com clareza sua concepção do funcionamento psíquico, as fontes teóricas de que ela se alimenta, a originalidade das questões que se coloca, o rigor e a imaginação com que as trabalha, e, last but not least, o emprego que faz de duas categorias centrais no seu pensamento, das quais falaremos mais adiante: especificidade e expressão.
É possível também entender o termo "elevação" no sentido de Aufhebung, conceito com o qual Hegel definia a operação característica da dialética. Para o filósofo, cada elemento do real é habitado por uma contradição interna, cuja tensão e resolução conduzem a um patamar superior de complexidade. A resolução se dá por meio do "trabalho do negativo": o dado imediato é negado (por seu encontro com outro, pela reflexão etc.), e esta negação, por sua vez, é negada pela passagem à etapa seguinte.3 A síntese resultante contém esta história, e sua essencial instabilidade produz uma nova negação, seguida pela negação dela própria e pela síntese subsequente, num ciclo que se repõe por seu próprio movimento interno.
1. Identificações
No tipo de experiência estudado por Luiz Meyer no último capítulo do seu livro, a Aufhebung se descortina na sequência de etapas pela qual o sujeito elabora o impacto que o atinge. O texto discute três exemplos desse gênero de vivência.
A primeira ocorreu com ele, quando ainda era uma criança pequena: viajando para o Rio de Janeiro, vê pela janela do trem dois meninos pobres parados na estação, e tem a revelação contundente da injustiça social que devasta o país em que nasceu: "Fiquei a olhálos durante um tempo indefinido, tomado por um peso depressivo. Quando o trem partiu, senti, sem compreender bem, que minha vida havia mudado profundamente" (p. 276).
A segunda experiência é narrada por Joaquim N abuco em sua autobiografia: ele tem oito anos, e vive no engenho de sua madrinha. Um dia, está sentado na escada da varanda; um negro jovem corre para ele, abraça seus joelhos e lhe implora que peça à dama para o comprar do seu senhor, um homem cruel que o castiga sem parar. "A escravidão para mim cabe toda nessa primeira impressão, que decidiu do emprego da minha vida", escreve o líder abolicionista.
Da terceira – a despedida da mãe do autor da sua família, ao sair de sua Polônia natal para vir se casar no Brasil – falarei logo mais. Vamos antes acompanhar a maneira como ele estuda o destino dos dois choques infantis, cujo paralelismo evidente fornece o ponto de partida para a compreensão do efeito que a visão daqueles garotos produziu em sua mente, e depois em sua vida.
Temos aqui experiências brutais que vêm romper a existência em ambientes afetivos seguros e tranquilos, ambos espelhados no décor exterior: a alegria do pequeno Luiz na casa de Copacabana, a felicidade do pequeno Joaquim sob a proteção da madrinha e em meio à paisagem bucólica do engenho. O choque é, porém, logo seguido por uma primeira elaboração, que nega a sua imediatez e dá início ao ciclo das Aufhebungen:
… revelaram-se para mim a injustiça social e o desamparo que ela causava. Percebi que eu devia apenas ao acaso ter sido colocado do lado protegido da barreira. Era preciso corrigir isso, organizar um mundo em que todas as crianças tivessem as mesmas oportunidades. (p. 277)
Ou seja: a angústia muda recebe um sentido que a contém e ao mesmo tempo a transcende: é ligada a causas, dá origem a pensamentos ("percebi") e a intenções ("era preciso corrigir, organizar…") Eis a primeira "elevação", cujo paralelo na vivência de Joaquim Nabuco está na percepção da injustiça da escravatura e na resolução de dedicar sua vida a combatê-la. Mas, apesar disso, nesse momento o fato ainda não tem – nem pode ter, pois quem o vive é um garoto de três ou quatro anos – o valor de "divisor de águas" que adquirirá posteriormente.
É a leitura do relato de Nabuco pelo adulto em que o garoto se converteu que acarreta a mudança de estatuto daquilo que até então convivera "comodamente" com os outros "mitos pessoais" de Luiz Meyer. Além da óbvia identificação com o tribuno do Império, um detalhe do que este conta desencadeia uma série de associações inesperadas: logo após o incidente da escada, a madrinha vem a falecer, o que faz "quebrar-se em pedaços" o mundo abrigado no qual vivera. Isso porque o engenho é legado a outro herdeiro, e o menino tem que abandoná-lo para se reunir aos pais, que viviam no Rio de Janeiro.
Ao ler esta passagem, Luiz tem um insight: suas idas à mesma cidade ocorreram logo após o nascimento de uma irmã. Além da frustração de ter sido "destronado da posição de filho único", as viagens implicavam um longo afastamento da mãe, o que produzia vivências de abandono e desamparo que nem a perspectiva do encontro com a madrinha era capaz de aliviar. Nova "elevação", agora no entendimento après-coup da cena na estação:
… a visão dos meninos era a representação viva do que se passava na minha mente. Dedicar-me a eles era uma maneira de restaurar seus direitos, encontrar alívio para meu sofrimento. (p. 283)
A vírgula entre as duas partes desta frase é uma forma sutil de indicar a continuidade entre os personagens de cada lado daquela janela. Com efeito, à identificação de Luiz com N abuco porque ambos passaram por uma situação semelhante vem se somar uma outra, de natureza projetiva: os garotos da estação fornecem um continente para as emoções contraditórias que ele experimenta ao contemplá-los. A percepção deste movimento (na verdade, a sua interpretação) permite ao psicanalista compreender que Nabuco também se identifica projetivamente aos escravos: o combate para libertá-los é condição e meio "para sua própria alforria" (p. 282).
A minúcia com que estou descrevendo esse processo é necessária para entendermos o próximo passo: a "elevação" dessas vivências singulares ao plano do conceito. Sem perder de vista sua significação existencial, essa nova Aufhebung introduz no texto a perspectiva propriamente psicanalítica, no caso a kleiniana, na qual a noção de identificação projetiva ocupa o lugar que se conhece.
Estamos agora no patamar metapsicológico, que permite formular a questão em termos que transcendem a singularidade das experiências de Luiz e Joaquim: que condições presidem à seleção de um entre os inúmeros fatos que formam a trama de uma vida, sem o que ele não seria alçado à posição de "divisor de águas" dela? E antes ainda: como a mente procede à "varredura" da situação, de modo a identificar os aspectos que a singularizam de modo tão marcante?
Para responder a estas perguntas, é preciso dispor de uma concepção do funcionamento psíquico, pois é nele que ocorrem experiências – entre as quais a formação do tipo de lembrança que atraiu a atenção do nosso autor. No artigo que estamos comentando, esta exigência lógica o conduz, portanto, a expor sua visão da mente. Ela está alicerçada na sua reelaboração pessoal do sistema kleiniano, enriquecida pela contribuição de Donald Meltzer (com quem se analisou na Inglaterra) e por um leque de outras influências, das quais darei notícia mais adiante.
"As condições de constituição da lembrança devem implicar uma afinidade entre a atmosfera afetiva produzida pela trama das relações com os objetos internos (e destes entre si) e o evento que é flagrado para exprimi-la", lemos à página 286. Nesta afirmação estão contidos os conceitos de um mundo interno habitado por objetos que interagem uns com os outros e com o self, de fantasia inconsciente, de projeção e identificação projetiva, com os quais Meyer opera – e cada um deles implica outros, que não vem ao caso enumerar. Tendo dado este "passo atrás" – ou, como diz no primeiro artigo da coletânea, "deslocado o enfoque" para estabelecer um distanciamento da experiência bruta que permita pensá-la– o psicanalista pode utilizar os conceitos para designar com precisão no que consiste a afinidade em questão: trata-se do modo pelo qual os sentimentos de desamparo e exclusão derivados da angústia de separação conformam a percepção do mundo externo.
Agora podemos compreender como a experiência da mãe de Luiz vem a fazer parte deste cenário, e que função desempenha na economia do argumento. Ao entrar no trem que a levaria para longe da aldeia natal, ela ouve do pai que "com você vai embora a nossa felicidade". Pouco tempo depois, começa a Segunda Guerra Mundial, na qual a família é exterminada pelos nazistas: a culpa por tê-la "abandonado" vai emergir muitos anos depois, acompanhada pela convicção de que deveria ter ficado na Polônia e "morrido com eles".
Ou seja: uma terceira vivência de separação, que se inclui (como as anteriores) no contexto edipiano. A leitura nesta chave permite interpretá-la de modo algo diverso do que significava na consciência da mãe: "ela ficou ressentida porque seu pai nada fez para retêla. Talvez suspeitasse que o desejo dele fosse mesmo ficar a sós com a mãe e a irmã mais nova" (p. 284).
O que motiva esta interpretação não é de modo algum a aplicação mecânica dos clichês psicanalíticos, mas um dado fundamental na singularidade das recordações maternas: o acréscimo à cena de um novo episódio, "que contava com a intensa emoção. Quando o trem parou numa cidadezinha próxima, viu com surpresa o pai subir no vagão e lhe entregar um candelabro votivo" (p. 284).
Para alcançar a composição, o pai precisaria atravessar de trenó os campos cobertos de neve – e a implausibilidade de que tenha conseguido chegar à estação seguinte antes dela sugere que se trata de uma recordação encobridora. Antes, Meyer havia se perguntado se as lembranças que deseja investigar não seriam do mesmo tipo, e respondido pela negativa: as características delas não são as mesmas que as descritas por Freud para as recordações encobridoras, e, sobretudo, desempenham na economia psíquica funções claramente diversas. A entrega do candelabro, porém, se encaixa no modelo freudiano:
… remaneja a seu favor o trauma que tanto a afetava. É uma cena íntima no vagão-alcova, um têteà- tête, uma declaração de amor daquele pai. Dar-lhe o candelabro, em segredo, era entregar-lhe o cetro, era revelar-lhe o seu desejo de que fosse ela a encarregada de acender as velas do Shabat. (p. 285)4
O argumento recebe assim um novo suporte: lembremos que se trata de mostrar como o destaque dado à recordação resulta de uma confluência de várias condições, nascidas
… da organização do mundo interno do sujeito, cujo funcionamento, ao mesmo tempo em que é influenciado pelo aporte factual, confere a este último um sentido único. É esta organização que escolhe o objeto ou situação mais adequados para exprimir as questões que está enfrentando, e que foram criadas pelo seu próprio funcionamento. (p. 285)
E Meyer acrescenta uma observação que nos permitirá – uma vez ilustrado o seu modo de proceder, e justificada (espero) a escolha do capítulo para iniciar esta resenha – passar à análise de outros aspectos do livro:
… sem postular a presença de um vínculo objetal marcado pelo desejo de manter a posse única do objeto primário e de controlá-lo, e sem acompanhar o destino dado a este desejo, nossa compreensão careceria de uma dimensão metapsicológica. (grifos do autor)
Antes, porém, afastemos uma possível estranheza do leitor ao ver este kleiniano convicto servindo-se de uma categoria freudiana. É verdade que a maneira pela qual Freud concebe as recordações sobre a infância é feita para agradar os discípulos da Grande Dama, pois, atribuindo sua formação às necessidades emocionais do presente, parece sancionar avant-la-lettre a ênfase dada pela técnica dela ao que se passa no aqui-e-agora da sessão analítica. Mas, como veremos a seguir, não estamos aqui diante de uma questão de gosto, e sim de um traço essencial para a visão de Luiz Meyer do que é o funcionamento psíquico, que por sua vez fundamenta seu estilo de trabalho na clínica e a leitura que faz de muitos conceitos da teoria.
2. Especificidade e história
Quase todos os textos escolhidos para a coletânea foram originalmente apresentados em simpósios e congressos da IPA, ou seja, submetidos à apreciação de outros psicanalistas. Não me parece que essa busca de diálogo com os pares seja gratuita; ao contrário, vejo-a como um eco da forma como nosso autor concebe a psicanálise.
Ao longo da leitura, vai-se tornando evidente um traço da sua escrita: o uso da literatura especializada não apenas como fonte de documentação, mas sobretudo como recenseamento das diferentes posições existentes sobre determinado assunto, passo indispensável para que ele mesmo se situe no espaço e no tempo. No espaço significa na geografia conceitual da disciplina; no tempo, a reconstituição da trajetória que levou à configuração atual. As 12 páginas de referências bibliográficas ao final do volume atestam a constância desse esforço, cujos frutos se percebem em especial nos capítulos dedicados à formação do analista, à análise dita didática, ao uso ideológico feito em São Paulo das ideias de Bion, e ao convívio dos analistas entre si. Mesmo para os que pertencem a outras associações, são utilíssimas a clareza e a contundência com que Luiz Meyer se posiciona a respeito das dificuldades da vida institucional, pois nelas – com as variações de praxe – os problemas são bastante parecidos. Outra característica da sua escrita está igualmente relacionada à busca de comunicação, e portanto com o desejo de se fazer ouvir e compreender: o uso de metáforas a um tempo surpreendentes e evocadoras. Entre inúmeros exemplos, destaco os seguintes: a nosografia psiquiátrica é uma "fina botânica da mente" (p. 15); Dora oferece a Freud "um dedo para ser chupado" (p. 42); o método psicanalítico é como "uma luta marcial que se vale da própria força do adversário para o derrubar" (p. 57); a mente do analista tem "um fio de corte" (p. 91); um paciente se serve dos seus sonhos "como de uma bancada de laboratório" (p. 153); a postura servil de certos colegas frente aos modelos prestigiosos produzidos na metrópole faz pensar em "negros alforriados que compram escravos" (p. 203).
Tais imagens nascem, parece-me, de um profundo envolvimento com aquilo de que participa e que toma como tema de reflexão. A eficácia delas como instrumento retórico não provém apenas de que são inesperadas, mas principalmente da adequação entre o que evocam e a singularidade do que está sendo ao mesmo tempo vivido e comentado. Ora, esta é uma das categorias centrais no modus operandi deste psicanalista; por isso, vale determo-nos nela por um momento.
Já pontei a bem conhecida importância que a escola kleiniana confere ao aqui-eagora, isto é, à especificidade da relação estabelecida pela e entre a dupla analítica, assim como a cada momento dela. A base teórica para isso reside na convicção de que
… a psicanálise procede a um recorte que permite reconhecer não só o sentido expressivo da comunicação intersubjetiva, mas também aquele que levou à constituição da relação objetal. (p. 88)
Ou seja: a comunicação se refere também ao emissor, e particularmente à maneira como ele vivencia a relação: o ser humano está sempre à procura de continentes que possam absorver as emoções provocadas pela interação dos objetos internos uns com os outros e com o próprio sujeito. Vimos como isso se dá nos exemplos discutidos anteriormente; agora, é preciso acrescentar que a identificação projetiva é um processo universal e constante. Nela é possível distinguir um conteúdo e uma forma, esta aderindo àquele de maneira indissociável.5
É a apreensão desta "configuração" por meio do filtro sutil e complexo chamado "escuta analítica" que permite inferir – ou pelo menos conjeturar, até onde o analista for capaz – o processo emocional-mental que lhe deu origem, isto é, de quais conflitos e angústias ela visa a proteger o self. A interpretação se dá primeiramente na horizontal, introduzindo uma "cunha" no fluxo associativo, e portanto confrontando o paciente com a ação psíquica que, à son insu, determina o objeto desta maneira.
Segundo Meyer, porém, o que estou denominando dimensão horizontal não basta para que a interpretação atinja seu objetivo. A crítica que dirige às teorias de Antonino Ferro fundamenta-se numa concepção do funcionamento psíquico (e do processo analítico que o espelha) que concede lugar eminente à história, porque nela se encontram as causas do presente. Dito de outro modo, este não é absoluto:
… o instante relacional não é nem se esgota em si mesmo. A interpretação, articulando os vários registros da vida psíquica do paciente (e não apenas se limitando ao momento relacional) desvenda o sentido intenso que exigiu sua formação, e que abarca o aqui-e-agora da sessão. (p. 116)
A teoria de Ferro é um exemplo do que se poderia chamar "nominalismo radical" em psicanálise. N as disputas filosóficas da Idade Média, os nominalistas sustentavam que só se pode atribuir realidade à coisa singular: o universal (ou seja, o gênero, designado pelo conceito) não tem existência efetiva, é apenas um nome – de onde o termo "nominalistas" – ou ideia, no fundo convencional e artificial. Uma prática alicerçada nesta visão, argumenta Meyer, conduz a consequências nefastas, que diminuem em muito os "ganhos" por ela proporcionados, entre os quais o principal é o contínuo escaneamento da contratransferência. Que consequências são estas? Além da rarefação do contato desejado, porque a idealização do imediato o priva da sua espessura e dos vínculos com aquilo que o determina, uma talvez não tão surpreendente "certa generalização", cuja contraface é a "frouxidão interpretativa" – ambas "ligadas ao aspecto reducionista da sua teoria e técnica, que podem retardar o trabalho elaborativo" (p. 135).
O respeito que Luiz Meyer demonstra por seu interlocutor – veja-se a descrição positiva que faz da atitude dele no seminário discutido no capítulo 8 – não o impede de assinalar as divergências de fundo que os separam. Elas nascem do que eu chamaria de um equívoco no estabelecimento do foco: ora demasiado próximo, ora excessivamente distante do material do paciente, ele oferece uma imagem borrada da singularidade que pretendia captar. Entre outras dificuldades, a redução do "momento" a uma evanescência inefável cala qualquer possibilidade de comunicação entre analistas, pois transforma
…cada uma das afirmações das partes uma verdade compartimentada, incontornável e inatingível, porque nascida de uma experiência no fundo inenarrável e, portanto, impossível de ser captada pela escuta alheia. (p. 131)
Por outro lado, é obviamente estéril a crítica que brota da aplicação chapada do sistema de cada interlocutor ao material e às ideias apresentadas pelo outro. Para evitar este escolho, Meyer busca empaticamente pensar com as categorias dele: "estamos procurando trabalhar no interior do aparelho conceitual de Ferro" (p. 132); "continuemos nosso exercício tendo como guarda-chuva as formulações teórico-técnicas de Ferro" (p. 126). É de dentro desta posição, por exemplo, que ele comenta a primeira fala do analista que trouxe a sessão, e, como de costume, ne mâche pas ses mots:6
a resposta pode ser caracterizada como uma recusa da experiência emocional do paciente e do seu modo de organizá-la. O resultado é a devolução, em estado cru, da identificação projetiva, sob a forma de um enunciado acusatório", que faz o analista parecer realmente um superego perseguidor. (p. 129)
A ideia de que a especificidade/singularidade só é tal porque foi determinada desta maneira por um processo igualmente específico e singular, cujas etapas estão depositadas na forma assumida por ela – que nada mais é do que o estado presente do dito processo – é, como se vê, uma das cavilhas mestras do pensamento do nosso autor. Ela organiza sua percepção do processo analítico, que assume assim uma característica que chamarei de vertical, em complemento à horizontalidade do aqui-e-agora – e também o modo como 6 Literalmente, redige seus textos, de onde o tipo de emprego que faz do "já pensado" sobre cada assunto sobre o qual se debruça.
Poderíamos ilustrar este procedimento com amostras tiradas tanto dos relatos clínicos que pontilham o livro quanto do que tem a dizer sobre os filmes Central do Brasil e Deserto Vermelho: o percurso mental-emocional dos personagens Dora, Josué e Giovanna é minuciosamente seguido, para evidenciar como vão pouco a pouco integrando os aspectos ex-cindidos e negados de suas fantasias narcísicas e objetais. Mas prefiro me deter sobre outro exemplo, que demonstra ao mesmo tempo a capacidade deste analista de se adaptar a uma situação bastante discrepante das que se encontram no cotidiano da clínica.
Um homem que já fora analisado anteriormente lhe pede que o ajude a prosseguir em sua autoanálise, que ele realiza interpretando os seus sonhos. Meyer já fizera com Donald Meltzer uma experiência desse gênero e, considerando que o demandante satisfazia as condições para um trabalho assim, aceita "monitorar" os sonhos dele, num setting criado especialmente para isso – frequência quinzenal, sessões face a face, concentração exclusiva no material onírico. As ditas "condições" consistem em que a pessoa "tenha introjetado a função analítica, que abre caminho para a autoanálise". A esta altura do nosso percurso, não nos surpreenderemos em ler logo adiante que esta "delineia para o self o sentido que ele dá à situação que está vivendo, e quais caminhos levaram a ela, que se tornam então inteligíveis" (p. 138; grifos meus).
O primeiro sonho trazido pelo paciente o mostra num hospital, olhando atentamente para um médico, que por sua vez observa um frasco contendo um pouco da urina dele. Dois anos depois, julgando que o trabalho já havia dado seus frutos, o homem decide interrompê-lo; na última sessão, narra três sonhos, cuja íntegra pode ser lida no capítulo 9. Não os resumirei aqui; o que me interessa é apontar a utilização do conceito de singularidade- determinada-pela-história no trabalho clínico de Luiz Meyer:
O que importa nesse enquadre é rastrear o encadeamento dos sonhos, a forma como as sucessivas narrativas ao longo do tempo organizam os elementos que precisam passar pelo crivo analítico. (p. 149)
É esta colocação em perspectiva que faz o analista modificar sua primeira apreciação do material surgido neste último encontro. De início, ele ficara alarmado pelo seu conteúdo: "como deixar o paciente interromper a análise num momento em que emergiam angústias tão primitivas?" Sua preocupação expressava uma reação contratransferencial quanto a "confrontar a separação e as angústias relacionadas a ela" (p. 152), por sua vez motivada pelo conteúdo arcaico das identificações projetivas de que fora alvo. Tendo se dado conta disso, pôde entender os sonhos daquela série (em particular o terceiro) como indicando
… a presença de uma família interna provedora com a qual o paciente pode se identificar, e na qual pode confiar e depender. A última sessão, e o comportamento que a precedeu, comunicam ao analista seu desejo e necessidade de arriscar-se a viver a condição adulta, sem a rede de proteção da análise. (p. 152)
Ou seja, a urina (os aspectos mentais doentios e temidos) sai do frasco, e pode ser manipulada sem tanto medo, porque o trabalho realizado com o "monitor" lhe permitiu atingir uma compreensão mais profunda, mais ampla e mais sutil do seu próprio universo mental. Tomados apenas no "instante relacional", os sonhos não conduziriam a esta percepção: somente ser ligados à história do tratamento, e por esta via à do paciente, é que evidenciam como ele chegara a um "nível mais elevado" (sempre a Aufhebung…) em sua vida psíquica.7
O que este homem conseguiu foi precisamente aquilo em que Dora falhou. A releitura do "Fragmento da análise de um caso de histeria", estrategicamente colocada logo no início do livro,8 desempenha função análoga à da abertura de uma sinfonia: apresenta os temas que serão retomados com mais detalhe nos capítulos seguintes, expõe as ferramentas conceituais com que serão trabalhados, e demonstra como, porque Freud narra o caso de modo a permitir o diálogo, é possível a um analista contemporâneo revisitá-lo, utilizando o mesmo material para construir sua própria interpretação.
A sugerida por Luiz Meyer privilegia os avatares da sexualidade oral, entendida não como etapa do desenvolvimento, mas, à maneira de Meltzer, como um estado sexual da mente. É este tipo de relação objetal que determina o modo pelo qual Dora apreende o mundo e as relações intersubjetivas, inclusive a que estabelece com Freud: eles lhe aparecem como dominados por "violência, agressão e hipocrisia". Em virtude disso, a transferência se organiza como "um campo excitatório que mantém o objeto como fonte para sua satisfação narcísica" (p. 41). O terapeuta se converte, portanto, num duplo do pai, que se serviria da jovem para suas próprias finalidades – no caso, a "pesquisa científica" – o que a leva a viver as intervenções dele invariavelmente como invasivas e maléficas:
… o drama de Dora parece residir na inexistência da concepção de um objeto integrado, percebido na sua inteireza e na multiplicidade sincrônica dos seus aspectos. Girando a chave por dentro, ela fica impossibilitada de captar o discurso freudiano em sua globalidade intrusiva e curativa. (p. 53)
3. Método, expressão e dialética
Se o que faz a especificidade de um fragmento do real é a história que o constituiu, e se a vida psíquica é um fragmento do real, então o modo como ela se revela em cada momento da situação analítica contém as determinações que a fizeram ser como é. Este silogismo funda o método analítico em todas as modalidades existentes – freudiana, kleiniana, bioniana, lacaniana, kohutiana etc. – e em qualquer outra na qual possa vir a existir. O que diferencia as escolas é o que cada uma entende por "determinações", e o que o psicanalista faz com as que vai percebendo à medida que transcorre o trabalho.
Para os que adotam a perspectiva kleiniana, o paralelismo entre o funcionamento psíquico e sua atualização na transferência é apreendido segundo quatro categorias, ou "pontos de vista", sistematizados por Elizabeth Bianchedi num artigo que Meyer cita no capítulo 2. Resumo brevemente o que ele diz nas páginas 34-35:
• o ponto de vista " posicional" avalia a posição do self frente aos objetos internos e externos, ou seja, a configuração formada pela relação de objeto e pelas angústias e defesas a ela correlacionadas (esquizoparanoide e depressiva);
• o da "política econômica" leva em conta as estratégias que regulam a distribuição das angústias, isto é, a qualidade dos vários vínculos objetais;
• o "espacial" se refere ao mundo interno como espaço continente das fantasias inconscientes e dos objetos ditos por isso mesmo "internos";
• o "dramático" apresenta a vida mental como um enredo no qual os diversos personagens desempenham papéis, interagindo uns com os outros e com o self. 9
Exemplos de como estes pontos de vista são empregados para compreender o que se passa na clínica podem ser encontrados em quase todos os capítulos do livro, de modo que não me deterei em expô-los. Munido destes instrumentos de navegação, o psicanalista vai interpretar o discurso do paciente, "desarticulá-lo" e "rearticulá-lo", procedendo ao que Fabio Herrmann chamava de ruptura de campo (p. 57 e seg.). Mas não se trata de mera tradução, nem de exegese ou explicação, porque a fala interpretativa surge do e no campo instaurado pela transferência. Esta não deixa indene a mente do analista: produz nela um efeito de ressonância, que Pierre Fédida descreve como impregnado de angústia. O autor francês discerne naquilo que se passa então três outros momentos, que Luiz Meyer incorpora à sua teorização e cita em vários contextos: os da continência, da metabolização e da metaforização.
O que ele destaca da visão de Fédida é o momento da metaforização, que cumpre papel análogo ao atribuído por Bion à rêverie materna. Mas assinala algo congruente com o que mencionei há pouco quanto à inerência da forma no conteúdo:
O material devolvido ao analisando traz no seu bojo o trabalho de elaboração efetuado durante sua estadia no continente. Deste modo, o produto que o emissor recebe de volta está impregnado do "método" com que foi fabricado: o metaforizado devolvido contém o modelo da metaforização. (p. 62-63)
Outra forma de compreender o momento interpretativo é concebê-lo como oferta de um acréscimo ao sentido do elemento destacado no discurso do paciente, postulando que este é significativo precisamente porque exprime algo importante no seu universo mental. Isso é feito estabelecendo uma relação entre esta primeira expressão e uma segunda, que nada mais é do que a própria interpretação (Ortiguez, citado à p. 58). Ora, o uso que faz Luiz Meyer da noção de expressão é tão extenso e tão frequente, que me parece legítimo considerá-la – ao lado da singularidade/especificidade – uma categoria basilar na construção do seu pensamento.
Entre dezenas de ocorrências, veja-se a seguinte:
… o que surge é a conexão íntima entre medo-loucura-estrondo do ser, sintetizada expressivamente pela paciente e captada pelo analista. É a apreensão deste momento expressivo que, por sua vez, vai tornar a narrativa onírica expressiva e passível de ser caracterizada como edipiana. Já para o analista, vai se criando a necessidade de encontrar uma síntese afetiva que seja expressiva da compreensão emocional que vai adquirindo. A psicanálise procede a um recorte que permite reconhecer não só o sentido expressivo da comunicação intersubjetiva, mas ainda aquele [sentido expressivo], que levou à constituição do objeto. (p. 88-89)
O processo aqui descrito comporta várias etapas, que iluminam os diferentes significados do termo. Em primeiro lugar, afetos e fantasias são submetidos a uma síntese que os funde numa imagem visual ou auditiva (no sonho daquela paciente, o estrondo que a desperta): esta lhes dá, portanto, uma primeira expressão. Paralelamente, a ressonância afetiva que o relato suscita no analista é "sintetizada" (e metabolizada) numa compreensão emocional que a "expressa". Por sua vez, esta se converte no "exprimido" de uma nova expressão, agora como formulação conceitual (o material é de natureza edipiana).
Estes três movimentos, cada qual operando sobre um material diferente, implicam a transposição dele para outro meio (emoções e fantasias para o universo da linguagem), que lhe serve de veículo e permite sua comunicação ao receptor. Também se instala uma distância mínima entre o conteúdo exprimido e a forma que assume a cada momento, distância que os mantém unidos – são expressões da mesma coisa – mas não confundidos: cada nova expressão manifesta o exprimido à sua maneira.
Nada há de casual em que a mesma frase sobre o recorte a que procede a psicanálise me tenha servido como mote para falar tanto da especificidade quanto da expressão: não terá escapado ao leitor a semelhança entre as etapas do processo expressivo e as Aufhebungen ("elevações") que fazem com que cada elemento específico carregue consigo os momentos anteriores da sua história. Tampouco é acidental a analogia com a noção de estilo, definido como "o aspecto constante na forma de expressão de um indivíduo ou grupo" (p. 200; grifos meus): também aqui está presente o trabalho "metabólico", cujas marcas se imprimem no produto, assim como os movimentos da mão do artista nas pinceladas que compõem a pintura.10
A dialética do psiquismo, como a da clínica, é algo que Luiz Meyer jamais perde de vista. Uma das influências na sua formação foi a convivência com intelectuais marxistas da USP, entre os quais José Arthur Giannotti e Roberto Schwarz. Deste último, ele cita e utiliza as sutis análises sobre Machado de Assis, em particular das Memórias Póstumas. As ideias do crítico sobre o modo pelo qual as características da formação social brasileira são incorporadas na forma literária (e não apenas no conteúdo) da obra machadiana vêm, com efeito, ao encontro das concepções do funcionamento psíquico e do processo analítico próprias ao nosso autor.
O mesmo instrumental pode ser visto em ação quando ele estuda o desenvolvimento da sexualidade, por exemplo no capítulo "Trauma e pedofilia". Perguntando-se se existe uma etapa dele que forneça a base para este tipo particular de perversão, descreve as sucessivas fases pelas quais passa a criança no seu trabalho para conter e elaborar as excitações pulsionais que a acometem desde o nascimento, e sugere que há uma diferença marcante entre situação traumática e trauma. A primeira provoca dor psíquica, desequilíbrio e instabilidade, mas por isso mesmo promove a busca de sentido e o crescimento; já o trauma consiste no "fracasso operacional" da situação traumática, que não consegue evoluir e se congela na forma presente, perdendo por isso "seu potencial de metaforização e historização" (p. 259).
A hipótese de Luiz Meyer (original e instigante, diga-se de passagem) sobre o momento no qual pode se estruturar uma disposição pedofílica se ancora nesta distinção: a percepção da diferença entre as gerações, isto é, da diferença entre a sexualidade infantil e a adulta, pode assumir caráter traumático, e desse choque inelaborável a criança pode se defender afirmando uma "mutualidade idealizada, uma dupla fechada onde se erradica a diferença entre os mundos adulto e infantil. Penso que a estrutura pedófila, enquanto modelo possível de relação objetal, adquire neste momento todo o seu potencial" (p. 262).11
Ou seja, a situação traumática não é aufgehoben (negada/elevada/superada): o estancamento do movimento dialético – que Freud chamava de fixação – vai determinar um estilo específico de relação objetal, entre cujas possibilidades de materialização está a atuação pedófila do adulto em que aquela criança se terá convertido. Se isso acontecer, ela dará expressão à necessidade de reafirmar incessantemente a idealização da sexualidade infantil e o borramento da diferença geracional, "formando um par raro cuja beleza e bemaventurança é impossível de ser compreendida por uma sociedade hipócrita" (p. 262).
A leitura feita neste capítulo de um trecho dos "Três ensaios..." ilustra igualmente a forma como Meyer dialoga com o passado da psicanálise. Ela materializa sua convicção de que conhecer o trajeto percorrido – no caso, pela teoria e pela técnica psicanalíticas ao longo de seu século e pico de existência – é indispensável para se orientar em meio à dispersão babélica do presente. Daí a minúcia e o cuidado com que expõe as ideias de autores que não fazem parte da escola kleiniana, por exemplo ao comentar uma carta que Winnicott dirige a Melanie Klein (capítulo 10), ou, como vimos anteriormente, o uso feito por Antonino Ferro das teorias de Bion. Mas, se seleciona destes outros referenciais o que lhe parece útil para montar sua própria caixa de ferramentas, não se priva de assinalar o que neles lhe parece discutível, naturalmente a partir da sua própria posição.
Um exemplo da primeira prática aparece no emprego que faz da noção freudiana de fetiche. Assim como no caso do conceito de relação encobridora, há uma evidente afinidade entre a construção sintomática que Freud descreve em 1927 e as concepções que dão seu contorno à identidade analítica do nosso autor. Com efeito, o fetiche resulta da recusa das consequências que se seguiriam logicamente à descoberta da diferença sexual, recusa esta que mantém lado a lado elementos contraditórios e incompatíveis, ou seja, que ex-cinde tanto o ego quanto o objeto da sua percepção.
A semelhança desta Spaltung (ex-cisão) com o mecanismo de defesa estudado por Melanie Klein a torna facilmente incorporável ao arsenal teórico-clínico de Luiz Meyer, o que, por sua vez, o estimula a usar o conceito de fetiche para compreender fenômenos de várias ordens: a estrutura da imagem televisiva (p. 234), o papel da análise dita didática para a manutenção de feudos de poder nas Sociedades filiadas à IPA (p. 182), ou na análise de uma sequência frequentemente encontrada em filmes pornográficos (p. 214).
Essa apropriação criativa de conceitos forjados em outras províncias tem como contrapartida a consciência dos riscos presentes tanto na sistematização excessiva quanto na deliberada recusa da sistematização, que podem converter a teoria em Weltanschauung ou em ideologia. Não escapam desta crítica os próprios kleinianos, quer os do círculo mais próximo da fundadora da escola, quer um autor que nela se inspira para construir sua própria visão da psicanálise, a saber Wilfred Bion.
No primeiro caso, é Winnicott quem empresta suas palavras a Luiz Meyer, quando aponta na carta mencionada os efeitos daninhos decorrentes da transformação das ideias revolucionárias propostas por Melanie Klein em camisa de força que imobiliza o pensamento e se põe a serviço da coação política (p. 159). No segundo, a veneração de que Bion se tornou objeto por parte de alguns colegas em São Paulo é atribuída também (não apenas, mas também) a certos aspectos das ideias dele, tanto no conteúdo quando na forma que lhes deu. Por sua contundência, e porque resume à perfeição a postura do autor quanto a tópicos essenciais para qualquer prática analítica, o trecho merece ser transcrito praticamente na íntegra:
Devemos procurar na própria teoria de Bion a eventual existência de elementos que facilitaram esta forma de apreensão. Postulações como a de que a realidade última não se presta a conhecimento, mas é para ser, que seu acesso é obliterado pelos vértices sensoriais; a ascese implícita na disciplina necessária para liberar-se de desejo e memória; a cegueira como requisito para ver os elementos evoluídos de O, a ideia de que o viés causal limita a perspicácia do analista, contêm todas elas elementos de ambiguidade e indefinição explicitamente construídos, que são sua riqueza, mas também a brecha para a sua perversão, isto é, para sua transformação em cânones de um culto. (p. 169-170)
4. Apropriação e ideologia
O núcleo da crítica que Meyer endereça aos bionianos é, como vimos, que a concentração exclusiva no instante relacional impede que este seja apreendido como momento de um processo histórico, contendo em si as mediações que o constituíram e lhe deram sua feição singular. Se no plano clínico as consequências dessa postura já lhe parecem graves, quando se espraiam para outras áreas tornam-se propriamente desastrosas, porque se combinam com fatores derivados do meio cultural para engendrar intolerância e obscurantismo. 12 É o que mostra o capítulo "Psicanálise: evolução e ruptura", para o qual voltaremos agora nossa atenção.
Ele integra um conjunto de textos que se debruçam sobre o problema da apropriação. O termo parecerá menos estranho se o vincularmos, como faz nosso autor, à reflexão sobre como se adquire a função analítica, indispensável para o êxito de qualquer tratamento – e mais ainda se o analisando pretende tornar-se psicanalista.13 Neste caso, a análise constituirá o pilar central de uma formação; apropriar-se do método, ou, o que dá na mesma, identificar-se com a função que ele materializa, é requisito sine qua non para o sucesso do projeto, e portanto faz todo o sentido investigar que condições o favorecem ou o obstaculizam.
Elas são de dois tipos: umas dizem respeito à própria análise, outras à atmosfera institucional em que se dá a formação. Do exame da análise dita didática a que procede Luiz Meyer – ao cabo do qual não sobra pedra sobre pedra – falarei logo mais. Antes, é preciso delinear a perspectiva que a organiza, e para isso partiremos das suas observações sobre o que significa "apropriar-se" de algo.
O caso do bionismo paulistano oferece uma via de acesso a esta problemática, porque ilustra o oposto do que chamei há pouco "apropriação criativa". Meyer se admira de que as ideias de um pensador que tanto enfatiza a importância de o analista tolerar a dúvida tenham gerado tal rigidez e dogmatismo entre os que se declaram seus partidários (p. 169), e atribui este fato à maneira como foram acolhidas aqui:
Foram apresentadas e utilizadas como ruptura que instaurava uma inovação de tal porte, que se impunha tomá-la como não inserida na continuidade. É uma ruptura que tornava superficial e inócuo o que a precedera. O segmento de história anterior à caesura passa a ser descrito como peça museológica, perdendo sua potência dinâmica. (p. 167)
Ou seja, a concentração exclusiva no presente extravasa os limites da prática clínica, e (para usar um termo bem ao gosto dos xiitas locais) vem "contaminar" a recepção da própria teoria. Aqui, atenção: não é intuito de Luiz Meyer avaliar se seus colegas leram bem ou mal os textos de Bion, mas apontar que, quando são cortados do contexto intelectual em que foram redigidos, bem como dos debates dos quais se originaram e nos quais visavam a intervir, as afirmações neles contidas perdem o sentido de investigação e passam a ser consideradas verdades incontestáveis. Que elas mesmas sejam formuladas de modo ambíguo e por vezes oracular favorece tal leitura, que Meyer interpreta como reação defensiva frente à dificuldade do pensamento de Bion e indício de uma possível transferência negativa em relação a ele.14 O resultado é descrito em termos que – usando a tradicional categoria britânica do understatement – podemos chamar de vigorosos: "obscurantismo", "discurso apostólico", "hagiologia", "intimidação e ostracismo dos que tentassem pensar de maneira independente", "apologia imobilizante e paralisadora" (p. 168-170).
Estas palavras duras não devem, porém, ser compreendidas como invectivas de alguém enciumado com a segurança que a posse da revelação salvadora concede aos bemaventurados. O capítulo "Identidade e originalidade da produção psicanalítica" aprofunda a análise das condições de apropriação de um modelo, tanto as que conduzem a "pensar de maneira independente" quanto as que levam ao contrário disso. Servindo-se de uma passagem das Memórias Póstumas, Luiz Meyer o inicia discriminando entre dois modos patológicos de aquisição da identidade: um, o do liberto Prudêncio, erige a fonte identitária em paradigma absoluto, e cria com ela uma relação de subserviência; no segundo, o do doido Romualdo, o sujeito funde-se com o que ingere e se confunde com ele – "tomei tanto tártaro, tanto tártaro, que fiquei Tártaro, e até rei dos Tártaros. Sou o ilustre Tamerlão" (p. 198).
O que faltou a ambos os personagens, continua o argumento, foi realizar um "trabalho metabólico" que lhes permitisse ir além da mera incorporação. Aqui o foco se amplia para considerações sobre a cultura brasileira, baseadas na leitura de Antonio Candido, Roberto Schwarz e Paulo Arantes. O ponto comum entre esses autores é o exame da maneira pela qual, em seus respectivos campos de estudo (literatura e filosofia), se criou em nosso país uma produção de qualidade, dotada de estilo próprio e com relevância para além das nossas fronteiras.15
Um aspecto essencial do pensamento independente é que ele se erige a partir e contra o que o precedeu, como "contravenção a uma presença canônica" (p. 202). Tal oposição não é, contudo, gratuita: além de captar o objeto de modo novo, ela precisa compreender aquilo contra o que se exerce, isto é, refazer criticamente o percurso por meio do qual o "adversário" o construiu e pensou. Isso vale para qualquer campo do saber; no caso da psicanálise, significa fazer a "contínua experiência de descoberta-construção-reconstrução dos conceitos teórico-clínicos já existentes, um trabalho de assimilação do ingerido e não de identificação fusional com ele" (p. 202).
Ora, os psicanalistas da IPA paulistana – não só os bionianos, diga-se de passagem, mas também os que seguiam o figurino anteriormente predominante, de corte kleiniano – mostraram-se "avessos" a tal trabalho, o que os levou a não se relacionar com a psicanálise como "construção temporal permeada de convulsões, que possui uma lógica passível de apreensão (p. 203; grifos do autor). Em vez disso, optaram por uma adesão incondicional aos modelos ingleses, que acabou por esterilizar sua produção e a transformar em "imitação defensiva", em "especularidade que não deixa espaço para nenhuma mediação, mormente reflexiva" (p. 203).
Luiz Meyer sugere duas razões para tal paralisia: o desejo de ser reconhecido pela metrópole, e a dedicação primordialmente ao fomento da demanda por análise (p. 208), o que entendo como se referindo ao exercício da psicanálise como profissão geradora de prestígio e aceitação social. Para atingir esses objetivos, não era necessário (e provavelmente se mostrava contraproducente) o "trabalho metabólico" que permite se apropriar de algo de modo criativo, o que – repito – no caso de um sistema de pensamento implica refazer criticamente o percurso que levou à sua constituição.16 A passagem a seguir resume o argumento:
As fontes que nos serviram de modelos adquiriram densidade à medida que seus produtos finais resultaram de propostas e pensamentos conflitantes. Ora, nossa escolha dirige-se à adesão a correntes de pensamento, mas não ao procedimento que lhes dá origem. Tudo se passa como se o grupo descartasse a problematização do modelo copiado, que revelaria impasses e faria aflorar eventuais necessidades internas ao grupo, à própria cópia e à relação entre eles. N ão pode haver então evolução do pensamento, já que não há reflexão teórico-clínica de caráter histórico: nada se esgota, tudo se substitui. (p. 204)
Estamos agora em condições de compreender a cerrada fuzilaria que nosso autor endereça à análise dita didática, no que para mim é o capítulo mais instigante do livro. Ela não se dirige a aspectos como os mencionados acima, cujo efeito paralisante se limita aos arraiais de Piratininga: visa ao cerne da formação nos moldes da IPA, implementada nos anos vinte pelo Instituto de Berlim e – apesar de todas as críticas cuja "história melancólica" é retraçada na primeira parte do artigo – adotada em todas as Sociedades nacionais.
O motivo para essa espantosa longevidade, diz ele, não é que essa prática favoreça a formação do candidato, mas sua utilidade – talvez indispensabilidade – para perpetuar o sistema de poder vigente na instituição. Ao impô-la e geri-la, esta interfere no processo analítico de modo sutil, porém extremamente deletério, porque introduz nele um fator estranho ao desempenho da dupla e do qual esta não tem como se livrar: é preciso que a análise seja "bem-sucedida". Caso contrário, o candidato não será aceito, e seu analista perderá prestígio entre os colegas.
A lista de malefícios daí decorrentes impressiona por sua extensão e gravidade: a transferência é "atropelada" por exigências que nada têm a ver com ela; cria-se uma dependência recíproca, já que cada um está realmente atado ao outro para a consecução de seus objetivos de vida; favorece-se um tipo de identificação adesiva e idealizadora com a pessoa do analista, que inibe o pensamento independente; as projeções de ambos são desviadas para a instituição, que as acolhe de bom grado e mesmo as estimula; os afetos hostis, que poderiam questionar o caráter didático do processo, tendem a ser deslocados para outros analistas e para as ideias por eles adotadas.
Em suma, a análise dita didática é por natureza e inapelavelmente antianalítica, porque perverte a essência do processo analítico: ela "cria e mantém um gênero de transferência que a análise tout court tem como meta resolver. Procurando ocultar a contínua dicotomia inerente à sua função, vale-se de ações inconciliáveis" (p. 182), ou seja, assume a estrutura de um fetiche, no mais estrito sentido freudiano deste conceito. A castração que se busca evitar com essa Verleugnung (recusa) é a de enfrentar os limites da ação da psicanálise (p. 188), tanto em geral quanto para esta pessoa e para esta dupla.
Se no nível do par analítico o fetiche é da ordem do sintoma, ao ser reivindicado e ratificado pela instituição ele ganha foros de ideologia, ou seja, de um sistema de ideias cuja função é mascarar e justificar uma dominação – no caso, "burocrático-intelectual" (p. 184). Ao se apresentar como análise-padrão, a dita didática "impõe uma ideia de psicanálise universal e modelar, que faz tábula rasa das experiências particulares de psicanálise, sobretudo daquelas cuja produção não coincide com as teorias vigentes" (p. 185).
A solução proposta por Meyer para estes impasses é simples e radical: "extinguir toda categoria diferenciadora de análise de formação, e deixar os analisandos cuidar de suas próprias análises" (p. 192). Reconhece que, mesmo nessas condições adversas, algo da escuta analítica permanece presente e atuante – à revelia do propósito manifesto, se poderia dizer – mas é de opinião que seria bem mais útil para o candidato uma análise "civil" (termo que empresta de McLaughlin), na qual este pudesse "abrir a porta por dentro, por vontade própria e não por regulamentação", e aproveitar as sessões para a sua formação do modo que julgasse mais proveitoso (p. 181).
Que porta? Não apenas a da instituição a que deseja se filiar, mas também aquela cuja chave Dora "girava por dentro". O que a paciente de Freud fazia era trancar-se no seu próprio sofrimento, na sua realidade psíquica atravessada por ódio e ressentimento. O analisando – candidato ou não – pode fazer o oposto: abrir-se para o contato com os derivados do seu inconsciente, expor-se às angústias que isso acarreta, viver o prazer da descoberta de si e da possibilidade de funcionar sem alguns dos entraves defensivos de que precisou lançar mão para tornar viável sua existência.
Isso só pode ocorrer, porém, se quem o escuta se mantiver atento à postura analítica que, para Luiz Meyer, não é nem de tipo científico nem de índole artística. Sua natureza é no fundo ética, e seus "imperativos categóricos" são poucos e simples: colocar o analisando em contato com seu inconsciente, evitando tudo o que poderia atrapalhar esse movimento, inclusive e principalmente o narcisismo do próprio analista, a ser monitorado juntamente com as outras manifestações da contratransferência.
Os textos que percorremos testemunham a constância com que, numa prática que se conta em décadas, ele tem procurado seguir estes princípios. N osso trajeto, que começou pelo fim da coletânea, bem pode terminar pelo começo, e até antes dele: na apresentação de João Augusto Frayze-Pereira, encontramos referência a um tópico que não abordamos neste já longo percurso, a saber, a discussão de alguns aspectos da cultura contemporânea.
Referindo-se ao "totalitarismo da imagem midiática", o prefaciador cita uma frase que se encontra à p. 236: "ela não proíbe o pensamento: cria um contexto em que o pensamento é desnecessário". É contra a ameaça de barbárie contida neste fato social que, munido das concepções aqui recenseadas, Luiz Meyer desenvolve o seu combate. Parafraseando o título de um artigo de Freud, poderíamos dizer que elas o incitam a "redescobrir, refletir e problematizar" sua clínica, a teoria que a fundamenta, a disciplina da qual ambas fazem parte, e as condições socioculturais que singularizam o ambiente no qual lhe toca viver.
Para isso, é preciso mais do que inteligência: necessita-se pertinácia para escavar os fundamentos das próprias ideias e das dos outros, e coragem para enfrentar a inércia do já instituído. Somadas a uma invulgar capacidade de se exprimir com clareza e precisão, estas qualidades fazem de Rumor na escuta um dos melhores livros de psicanálise já publicados em língua portuguesa, e um guia precioso para quem se dispuser a questionar suas próprias certezas.
Endereço para correspondência
Renato Mezan
[Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae]
Rua Amália de N oronha, 198
05410-010 São Paulo
e-mail: rmezan@uol.com.br
Recebido em 18.11.2009,
aceito em 25.11.2009
1 1 Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor titular da PUCSP.
2 Ao longo deste texto, citarei vários trechos do livro, tanto para ilustrar uma afirmação quanto para oferecer ao leitor um aperitivo do que o espera se decidir mergulhar nele. Como o que me interessa ressaltar é com frequência somente uma parte da passagem, tomei a liberdade de omitir a indicação de quais elementos da frase foram suprimidos. Fique o leitor sossegado: nada de essencial foi perdido, e quem quiser saber exatamente o que está escrito pode se reportar à página em questão.
3 Convém aqui lembrar que, sob a pena de Hegel como sob a de Marx, a negação nada tem a ver com o mecanismo de defesa descoberto por Freud: não é um processo subjetivo, mas objetivo; não implica afastamento daquilo que incomoda, mas, ao contrário, sua tomada em consideração; e, longe de levar à estagnação, é o motor do desenvolvimento daquilo que a contém.
4 É a mãe, portanto a esposa do pai, quem acende as velas na parte doméstica das festividades judaicas. A propósito da lembrança da sra. Meyer, note-se que a cena também se passa num trem, e diz respeito a uma separação da qual é poupada uma irmã. Afinidades... São elas que, a meu ver, determinam a escolha das metáforas que pontilham o relato – por exemplo a da realeza: o menino é "destronado", a moça recebe um "cetro".
5 É a inerência da forma ao conteúdo que aproxima esta concepção da noção de estilo, tal como formulada por Meyer Shapiro em seu livro Du style. As propostas deste autor são utilizadas por Meyer no capítulo sobre o bionismo em São Paulo, do qual falaremos mais adiante, mas desde já fica clara a centralidade desta característica do real (psíquico, social ou conceitual) na constituição do seu pensamento.
6 Literalmente, não mastiga suas palavras – isto é, correndo o risco de desagradar o interlocutor, diz com franqueza o que pensa, em vez de se esconder atrás de eufemismos pseudocorteses
7 Outro exemplo da importância que Meyer atribui à história do tratamento pode ser encontrado às páginas 67-68, quando avalia a trajetória percorrida por um paciente desde a primeira fantasia transferencial até o que o sonho narrado na última sessão da análise indica sobre seu estado mental naquele momento.
8 Talvez esta opção seja da organizadora da coletânea, Belinda Mandelbaum, cujo trabalho primoroso merece a admiração e a gratidão do leitor.
9 A metáfora do teatro vem desde a Interpretação dos Sonhos – o outro palco, der andere Schauplatz – e percorre toda a literatura analítica. Entre os autores não-kleinianos que a empregam, pode-se mencionar Joyce McDougall, que se serve da frase colocada por Shakespeare na boca de um personagem em As you like it – "all the world is a stage" – para descrever o que se passa nos "théâtres du je".
10 Justamente por este motivo, o estudo da pincelada é um dos critérios que possibilitam atribuir a autoria de um quadro a determinado pintor.
11 O uso repetido do verbo "pode" é deliberado, porque o que se organiza neste momento – assim como em todos os demais do desenvolvimento – é uma disposição, isto é, uma virtualidade, que se atualizará ou não segundo as circunstâncias que o sujeito vier a encontrar, e segundo a maneira como elas o afetarem.
12 Não está escrito nas estrelas que isso deva ocorrer: é um fato específico que se deu em São Paulo, mas não em outros lugares onde a influência de Bion foi marcante.
13 "A construção interna do método psicanalítico é a pedra de toque a ser alcançada pela pessoa que deseja se tornar analista" (p. 189).
14 Uma análise semelhante poderia ser feita para a obra de Lacan, que, como a de Bion, tem como eixo o estudo da matriz clínica da psicose, e – embora por razões diversas – é com freqüência apresentada em termos tão obscuros quanto os do autor inglês.
15 Isso não se deu, é claro, sem dificuldades, algumas – como as "idéias fora do lugar" – inerentes à peculiar formação social do Brasil, outras específicas a cada segmento da cultura nacional. Entrar nestes particulares, porém, escapa aos propósitos da presente resenha.
16 Assinale-se o emprego do mesmo termo – "metabolização" – para designar um componente essencial do processo terapêutico. A essa altura do nosso trajeto, espero, estarão claras as razões disso: para surtir efeito transformador, o impacto do recebido precisa passar por um processo que o desarticula e rearticula, seja na escuta do analista, seja no trabalho intelectual. Isto só é possível se se levarem em conta as determinações que transcendem o presente, e que se encontram, latentes, naquilo que produz impacto. Por isso a referência, no trecho citado há pouco, às conseqüências nefastas do desprezo pelo "segmento de história" anterior a Bion, aliás reiterada na passagem citada a seguir ("sentido histórico").