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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.44 no.4 São Paulo 2010
ARTIGOS
Recordar, repetir, elaborar e construir: a busca do objeto materno na análise de uma menina adotada
Recordar, repetir, elaborar y construir: la búsqueda del objeto materno en el análisis de una niña adoptiva
Remembering, repeating, working-through and constructing: The search for the maternal object in the analysis of an adopted girl
Gina Khafif Levinzon1
RESUMO
Este trabalho examina o recordar, repetir e elaborar na análise, e enfatiza a dimensão do construir condições necessárias para o desenvolvimento primitivo de pessoas que apresentam falhas iniciais básicas. É relatado o caso clínico de uma menina adotiva que apresentava, na transferência, material bastante regressivo, pré-verbal, e buscava introjetar um objeto materno consistente. A adoção e as angústias dos pais adotivos aparecem como pano de fundo na evolução do processo analítico e são também comentadas.
Palavras-chave: recordar, repetir e elaborar; construção; adoção; regressão; objeto materno; análise de crianças.
RESUMEN
Este trabajo examina el acto de recordar, repetir y elaborar, y destaca la dimensión de construir condiciones necesarias para el desarrollo primitivo de personas que presentan fallas iniciales básicas. Es relatado el caso clínico de una niña adoptiva que presentaba un comportamiento bastante regresivo, preverbal, y buscaba insertar un objeto materno consistente. La adopción y las angustias de los padres adoptivos aparecen como telón de fondo en la evolución del proceso analítico.
Palabras clave: recordar; repetir y elaborar; construcción; adopción; regresión; objeto materno; análisis de los niños.
ABSTRACT
This paper examines remembering, repeating, and working-through in analysis, emphasizing the importance of the construction of necessary conditions for the early development of people who present initial basic faults. A clinical case is described in which an adopted girl presented through transference a very regressive and pre-verbal content and sought the introjection of a consistent maternal object. The adoption and the adoptive parents' anxieties appeared as a backdrop in the development of the analytic process, and are also analyzed.
Keywords: remembering; repeating and working-through; construction; adoption; regression; maternal object; children analysis.
1. Recordar, repetir e elaborar
Em seu primoroso trabalho "Recordar, repetir e elaborar", no qual descreve fenômenos que estão na base do pensamento psicanalítico, Freud (1914/1980) observa que o paciente repete no relacionamento com o analista comportamentos e atitudes característicos de experiências iniciais. Ele assinala que "o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu ou reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o. Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente saber o que está repetindo" (p.196). A análise permite com que fantasias e pensamentos que nunca foram conscientes também possam ser rememorados, ou seja, cria condições para representações simbólicas e compreensões de seus significados.
Na análise, o paciente desloca para a figura do analista sentimentos, pensamentos e comportamentos originalmente experenciados em relação a pessoas significativas de sua infância. A transferência, como palco privilegiado onde são encenadas as repetições, promove um ponto de encontro permanente entre o passado do indivíduo e o presente, com suas semelhanças e diferenças.
Cada vez mais tem se evidenciado a importância dos primeiros tempos de vida da pessoa na formação de seu psiquismo. Nesta fase são erigidos os principais pilares de seu mundo psíquico e afetivo. A experiência clínica mostra que expressões de uma fase préverbal da vida ocorrem na relação analítica, especialmente em pessoas que passaram por dificuldades importantes nesta fase. Muitas vezes estão associadas a momentos importantes de regressão na análise e dependem de um observador sensível a elas para que se manifestem e sejam compreendidas.
Em algumas pessoas, temos a impressão de que pontos essenciais não foram construídos, e houve um esforço de sobrevivência que pode ser comparado à construção de uma casa disposta por cima de grandes vácuos. Nesses casos, a análise parece ter a função de ajudar o paciente a construir algo que deveria estar lá, mas está dramaticamente ausente. Poderíamos dizer que em tais pessoas há também algo que se repete e é atuado na situação analítica? O que ainda não foi construído pode ser rememorado?
Pretendo, neste trabalho, refletir sobre estas questões que me parecem essenciais, a partir da discussão do material clínico obtido na análise de Raquel, uma menina adotada. Abordarei também pontos que estão relacionados ao universo da adoção e que muitas vezes estão na base das dificuldades apresentadas por pais e filhos adotivos.
2. Raquel
Os pais de Raquel me procuraram, num estado de desespero, quando ela estava com 12 anos de idade. Relataram que a filha estava apresentando uma série de comportamentos antissociais, como roubos, mentiras e falsificações. Outra queixa dos pais era o fato de ser bastante gorda. Raquel comia com extrema voracidade, especialmente doces e alimentos que engordavam.
Nas nossas conversas iniciais, os pais da paciente pareciam estar decididos a colocála num colégio interno. Achavam que "ela não tinha mais jeito". Apesar disso, procuraram a minha ajuda, o que mostrava que ainda havia uma esperança de reencontro com a filha, embora tênue. A relação de Raquel com a mãe era especialmente difícil. Esta última falava da filha com muita animosidade. Parecia não "suportá-la". O pai era mais afetuoso e próximo da filha, mas também parecia perdido com o estado das coisas.
Creio que havia um ponto bastante importante como pano de fundo inconsciente de tamanho desencontro: Raquel era mulata escura, enquanto que seus pais e irmã menor eram loiros. A diferença física gritante parecia potencializar as diferenças entre ela e os integrantes da família. Os pais procuravam reprimir, sem sucesso, a decepção por terem uma filha com uma cor de pele associada intimamente a uma situação desprivilegiada e pejorativa. A mãe de Raquel queixou-se com raiva de que a filha "vivia no quarto da empregada", o que evidenciava a ligação associativa que era feita com a cor de pele da menina. Inconscientemente, a mãe sentia que Raquel mais parecia filha da empregada do que sua própria filha.
O estudo da dinâmica psicológica de famílias adotivas aponta evidências de que grande parte dos pais e filhos adotivos quer se parecer fisicamente. Desta forma, podem manter a ilusão de que não há um hiato biológico entre eles (Levinzon, 1999; 2004). Do ponto de vista dos pais, há um anseio de se perpetuar por meio de sua descendência biológica, como forma de elaborar a percepção da transitoriedade da vida. Muitas vezes há dificuldades inconscientes em relação à esterilidade do casal ou de um de seus integrantes, e diferenças físicas gritantes funcionam como um lembrete constante de que houve um fracasso na função reprodutiva. Do ponto de vista da criança, a disparidade na aparência física intensifica suas dúvidas quanto à solidez do elo com os pais adotivos. É como se, não sendo parecida com eles, não houvesse garantias de que eles a "amariam para sempre". Além disso, a diferença física também funciona para a criança adotada como uma marca inexorável de que houve "uma outra mãe e um outro pai", perdidos no passado, e envoltos em um mistério assustador sobre sua origem. Nestes casos, pode-se falar em intensificação de uma ferida narcísica tanto no que diz respeito aos pais quanto à criança adotiva.
Os pais de Raquel decidiram adotar uma criança depois de tentarem por muitos anos ter um filho biológico. Parecia-me haver, especialmente por parte da mãe, uma situação de uma má elaboração da impossibilidade de gerar filhos, em decorrência da condição de esterilidade do marido. Raquel foi adotada com 1 mês de vida. Até então foi cuidada por pessoas intermediárias. Era um bebê saudável, que não dava trabalho. Recebeu muita atenção dos pais, até que adotaram outra menina dois anos depois, que ficou muito doente no primeiro ano de vida. Este evento parece que foi um divisor de águas para Raquel, que passou a ficar com muitos ciúmes da irmã, loirinha como os pais.
Raquel soube desde pequena que era adotada. Seus pais lhe disseram que sua mãe biológica havia morrido no seu parto. Acreditavam que dessa forma estavam protegendo sua filha de sofrimento, de fantasias de ser abandonada. Além disso, evitavam com que ela quisesse procurar a família biológica quando crescesse. Era uma forma de "colocar uma pedra sobre esta história". Na realidade, havia um medo inconsciente de perdê-la, como se a ligação entre pais e filha não tivesse consistência, por não apresentar um elo consanguíneo.
Encontramos na história de Raquel fatores potencialmente patogênicos no que se refere às condições boas de desenvolvimento de uma criança. A paciente sofreu um trauma precoce ao ser separada de sua mãe biológica por volta de seu nascimento. Sabemos que, já no ventre da mãe, a criança tem um registro sensorial do cheiro, do andar, da respiração da genitora, e a separação precoce instaura um hiato afetivo no momento em que a criança não tem um aparelho psíquico capaz de compreender e processar o que se passou. Em seguida, nesta fase tão crucial de vida, a bebê esteve entregue a "pessoas intermediárias", elementos anônimos e passageiros, quando precisava de um cuidado especial e profundo do ponto de vista afetivo. Felizmente, encontrou um lar adotivo, e pais que se ocuparam dela, apesar das decepções relacionadas com a esterilidade e as diferenças físicas. Aos dois anos de idade, a perda da atenção dos pais em função da séria doença da irmã funcionou como outro trauma, que poderia ser comparado ao que Khan (1977) denominou "trauma cumulativo". Este autor enfatiza a função da mãe como escudo protetor, que constitui o ambiente normal adequado às necessidades primitivas do bebê.
Penso que a dificuldade que os pais de Raquel, e especialmente a mãe, passaram a ter na forma de lidar com ela diante dos comportamentos mais impetuosos e turbulentos que passou a apresentar, continuou a sucessão de falhas ambientais a que estava sujeita. Raquel demonstrava, no entanto, por meio dos comportamentos antissociais, a esperança de encontrar condições ambientais adequadas às suas necessidades. Como afirma Winnicott (1956/1988b), a privação de necessidades essenciais da criança pode se manifestar por comportamentos antissociais como roubo e destrutividade. Com seus sintomas, Raquel "amolava" os pais forçando-os a se encarregar de seu manejo. Havia nas suas reações a expressão de grande carência afetiva, mas também muita força própria, por não se conformar com uma situação de vida que lhe era tão insatisfatória.
O encontro analítico: corações em sintonia e ligações de pele
Quando conheci Raquel, me surpreendi ao me deparar com uma menina, já com traços de puberdade, expansiva, inteligente, e cheia de vida. Sua aparência física de fato destoava muito da aparência dos pais, e era bastante gorda. Reclamou dos pais dizendo que eles privilegiavam sua irmã, e logo anunciou que estava decidida: iria para um colégio interno. Achava que desta forma não iria mais brigar com a mãe. Parecia que tinha a fantasia de que era muito destrutiva nas suas relações, e que o colégio interno seria uma forma de contenção. Os desencontros constantes com os pais adotivos e a informação incorreta sobre a morte da mãe biológica no seu parto contribuíam para corroborar esta fantasia.
Raquel lançava mão de um processo defensivo: saía, antes de ser mandada embora, como imaginava que ocorreria. O medo de ser abandonada novamente estava sempre pairando no ar, e ela apresentava um temor de se ligar de forma mais próxima a outras pessoas e sofrer novamente o sentimento de desamparo próprio de sua condição inicial de vida.
O começo do nosso processo analítico foi pautado pelo temor de Raquel de se ligar a mim e se decepcionar novamente. Insistia em ir para um colégio interno, o que impediria que pudéssemos continuar nos encontrando. Ao mesmo tempo, aos poucos se aproximava, embora com cautela.
Quando eu falava sobre adoção com Raquel, ela se mostrava muito irritada. Não queria tocar no assunto. No entanto, embora este assunto fosse proibido de ser mencionado verbalmente, logo percebi o quanto passou a ser vivido por nós no palco que é construído pela relação analítica.
Raquel invariavelmente chegava às sessões queixando-se de fome, e muitas vezes trazia sacos de doces para as sessões, que comprava na padaria em frente ao meu consultório. Dizia: "Deve ser bom ter uma padaria aí do lado...". Começou a pedir para guardar seus doces comigo, na sua caixa lúdica ou na minha geladeira. Raquel parecia um bebê esfomeado que vinha "mamar" nas nossas sessões. Eu sabia que o que de fato lhe fazia falta era um tipo de contato sintônico, que pudesse lhe proporcionar uma sensação de saciedade poucas vezes alcançada em sua vida. A "padaria" que lhe fazia falta precisaria ser encontrada na nossa capacidade de nutri-la simbolicamente. Comecei a notar o quanto os doces de que tanto gostava tinham nomes de sentimentos afetuosos: beijinhos, bombocados, suspiros, sonhos...
Após um período em que me pareceu que fui "suficientemente testada" quanto à minha confiabilidade, Raquel me pediu que lhe fizesse desenhos com meus dedos em suas costas. O primeiro desenho por ela solicitado foi um coração. Eu tinha que fazer diversos desenhos nas suas costas, e ela tentava adivinhar o que era. Eu tocava suas costas de várias maneiras: mais forte, mais fraco, em círculos, em determinados pontos, e assim por diante. Raquel ficava extremamente atenta, e parecia ficar extasiada. Eu tomava cuidado para que estes toques não tivessem uma conotação erotizada, pois me parecia que nesse caso estaríamos saindo de limites que precisavam ficar claros. A brincadeira de "toques" passou a fazer parte rotineira de nossas sessões. Às vezes me era impactante observar aquela menina que parecia querer ter certeza de que poderíamos estar juntas, sem a referência visual, mas por um contato de pele. Uma das maiores angústias da paciente, que estava sempre presente nas sessões, era o temor de perder quem ela amava. Sentir meus toques em suas costas parecia dar-lhe uma dimensão concreta de que eu estava de fato ali com ela, que nosso vínculo era real, e era isso que eu lhe falava enquanto estávamos na brincadeira. Numa sessão em que guardou o material que estava utilizando dez minutos antes do fim do nosso horário, angustiada com a separação que iria ocorrer, pediu-me para fazer a brincadeira dos toques. Nesse dia tinha chegado com uma cesta de quindins. Ao tocar suas costas com os meus dedos, eu ia lhe dizendo que o que ela queria mesmo era preencher o coração que havia dentro dela, como o que eu estava desenhando, de quindins-amor, quindins-afeto, doces-intimidade, e que ela sentia uma fome muito grande de tudo isto. Raquel, muito atenta, completava as minhas frases, parecia "sorver" minhas palavras, e especialmente os toques. Instalou-se entre nós um clima de muita emoção...
Eu pensava na sua separação em relação à mãe biológica, e no quanto lhe faltou poder ter um contato de pele com ela, dando continuidade à sua vivência intrauterina. Imaginava que a paciente poderia estar procurando estabelecer esse contato através da transferência, como se desta forma pudesse recuperar um objeto perdido, ou então construir algo que não se deu. O jogo de adivinhação parecia se referir a um tipo de comunicação não-verbal que poderia se estabelecer entre nós, própria do bebê pequeno com a mãe, nos seus primeiros tempos de vida. O coração desenhado poderia estar falando de amor, e estar associado à ideia de reencontro com a mãe biológica perdida. Poderia também indicar a adoção que ela esperava que fosse feita por mim. Afinal, não é usual se chamar o filho adotivo de filho do coração?
Num momento posterior do processo psicanalítico, quando Raquel já estava bastante ligada a mim, tivemos uma sessão que me pareceu estar associada a conteúdos bastante regressivos. Num certo momento da sessão ela pediu para ir ao banheiro, que fica ao lado da minha sala de atendimento. Após algum tempo, para minha surpresa, ouvi: "tum, tum, tum". Parecia alguém batendo na parede do banheiro que é contígua à minha parede. Aguardei um pouco, e novamente: "tum, tum", o som se repetia. Compreendi que Raquel queria me comunicar algo, e resolvi entrar na brincadeira. Bati na minha parede, no mesmo ritmo: "tum, tum". Tive a impressão de que a minha interlocutora ficou feliz, pois logo bateu: "tum, tum, tum, tum". Respondi: "tum, tum, tum, tum". Ela continuou: "tum... tum... tum.....". Devolvi: "tum... tum... tum.....". Assim, por cerca de 15 minutos, ficamos batendo na parede, cada uma de um lado, em diversos ritmos, eu sempre acompanhando o ritmo que ela iniciava. Eu não podia vê-la, mas parecia-me um momento de beleza mágica, um exercício de sintonia. Assemelhava-se a uma forma de se comunicar à distância, de verificar se podíamos existir uma para a outra sem que estivéssemos fisicamente juntas. Vinha também à minha mente a associação com as batidas de dois corações, separados por uma bolsa amniótica simbólica, a parede que estava entre nós. Assim como na brincadeira dos toques, Raquel parecia estar buscando a mãe biológica perdida, de quem talvez tivesse retido, como uma "lembrança sensorial", o barulho das batidas do coração. Havia ainda neste bater concatenado outro ponto importante: eu me adaptava às batidas dela. Era ela quem imprimia o ritmo e a intensidade das batidas, e eu a acompanhava. Instaurava-se entre nós a presença da mãe que é "criada" pelo bebê, conforme descreveu tão bem Winnicott (1971/1975). Nesta sessão, ao voltar para a minha sala, Raquel me perguntou: "você ouviu?". Indicava com isso que ainda lhe era muito difícil assimilar e manter a ideia de que era eu a pessoa com quem se comunicava num nível tão primitivo. Parecia-lhe mais um sonho com a mãe perdida ou idealizada, do qual acordava ao me ver concretamente.
A partir dessa sessão, frequentemente Raquel repetia as batidas na parede. Eram momentos de tamanha beleza, que poderiam corresponder ao que Bollas (1992) denominou "momento estético": um momento de comunicação subjetiva profunda com um objeto. Segundo esse autor, momentos como esses são sentidos como familiares, sagrados, e se sobressaem à coerência cognitiva. São registrados mais no ser do que na mente, porque expressam experiências de comunicação primordial com o outro, num nível pré-verbal.
Compartilhávamos, Raquel e eu, o sentimento de que estávamos experienciando algo imponente, especial. Eu havia sido "proibida" por ela de falar explicitamente sobre o tema da adoção, mas quando Raquel voltava para a sala, eu comentava coisas como: "puxa, nós estamos nos comunicando por uma outra língua, a das batidas... é como se pudéssemos estar tão juntas, quase grudadas, mas também separadas por essa nossa parede... sabemos que uma continua existindo para a outra, mesmo que não nos vejamos... parece até uma mãe com seu bebê, quando ele está na sua barriga...". O tema da relação mãe-filha, da separação e falhas precoces podia ser tratado baseado na observação da nossa relação, sem que nesse momento tivéssemos que citar diretamente sua história de vida. Seu passado estava lá, presente no nosso contato, vivo, e modificado pelo que a dupla analítica peculiar estava experimentando...
O processo analítico de Raquel possibilitou-lhe uma melhora substancial nos seus sintomas. Seu rendimento escolar melhorou, conseguiu fazer uma dieta e emagreceu vários quilos, as brigas com os pais diminuíram sensivelmente assim como o medo de dormir sozinha. Nas sessões, tornou-se mais competitiva e menos "boazinha". Começava a experimentar a minha possibilidade de sobreviver a seus impulsos mais instintivos. A cada passo, no entanto, surgia o temor de que eu não a suportasse ou de que algo acontecesse e resultasse numa separação traumática. Nestes momentos, Raquel recorria às brincadeiras dos toques e das batidas, como forma de se certificar de que continuávamos juntas.
A análise foi posteriormente interrompida de forma abrupta pelos pais, que enalteceram as visíveis melhoras da filha, mas alegaram dificuldades financeiras. Sentiam-se extremamente enciumados e ameaçados pela ligação que esta última estabeleceu com a analista, como se Raquel tivesse reencontrado a mãe biológica que viria retomar a filha. As fantasias de roubo encontraram terreno fértil para se desenvolver.
Raquel e eu pudemos nos encontrar mais uma vez. Aconteceu afinal o que ela tanto temia: um processo de separação traumático, precoce. Repetia-se entre nós a história de sua vida, parecida ao que viveu com a separação da mãe biológica. Essa vivência também despertava em mim sentimentos, como se a houvessem arrancado de mim, como uma mãe que perde subitamente o seu bebê, num momento em que este necessita primordialmente dela.
Raquel escreveu-me um bilhete, ao encerrarmos nosso trabalho:
"Fico chateada por sair, mas não vou esquecer de você e nem você de mim, eu espero".
Apesar de termos vivido a amputação de uma relação que vinha trazendo muitos frutos, o bilhete de Raquel mostrava que o trabalho feito havia deixado resultados consistentes, que ela levava consigo. Ela pôde reconhecer que estava chateada com o fim da análise, não precisando recorrer tão maciçamente a defesas maníacas como ocorria anteriormente. Além disso, expressava a esperança de que apesar de estarmos separadas, algo importante se mantinha, e não seria esquecido. A parede que nos separava tinha se tornado muito mais grossa, mas ela esperava que as nossas batidas ficassem gravadas como objetos bons solidamente internalizados...
4. Recordar, repetir, elaborar e... construir
Encontramos no processo analítico realizado com Raquel as observações feitas por Freud (1914/1980), sobre a tendência a repetir na análise os sentimentos, afetos e fantasias, referentes às experiências iniciais que não foram bem integradas. A paciente pôde utilizar o espaço e a presença da analista para trazer à tona aspectos cruciais de seu psiquismo, como a grande carência de um objeto materno consistente, sua fixação oral, a magnitude de suas angústias de perda e separação das pessoas a quem estava ligada.
Em certos momentos das sessões, por meio da transferência estabelecida, a analista representava para a paciente a mãe biológica perdida, de quem ouvia as batidas concatenadas do coração, ou sentia o toque da pele. Em outras ocasiões, a analista fazia o papel de uma mãe adotiva que poderia recebê-la com toda a sua continência e carinho. Por vezes, Raquel projetava ainda a figura de uma mãe idealizada, dona de uma grande "padaria" simbólica, fonte inesgotável de leite e satisfação. Havia ainda um fantasma que se repetia e era identificado com a analista, especialmente ao se aproximar o fim das sessões: a pessoa que a abandonaria e a faria sofrer muito. Mais ainda, quando já havíamos caminhado bastante na análise, surgia ocasionalmente na transferência o personagem de uma mulher com quem se comparava e competia.
Podemos observar que os diversos pontos tratados provinham de diversos extratos da mente, desde os mais primitivos, até os mais evoluídos em termos de desenvolvimento mental, como aqueles que tinham como tema a competição. Todos eles, como um mosaico, representavam algo que se repetia, em busca de elaboração. Não se baseavam apenas em fatos vividos ou sentimentos reprimidos. Havia as experiências traumáticas, como o abandono da mãe biológica, e as dificuldades com a mãe adotiva. Ao lado delas, se encontravam as fantasias e sentimentos de Raquel, entrelaçados com seus impulsos e desejos peculiares.
As brincadeiras de toques e das batidas na parede podiam ser consideradas rememorações de experiências passadas, abortadas na sua continuidade, e traumáticas. Pareciam se referir a comunicações de uma época em que as palavras e os pensamentos ainda não existiam. Estavam sendo repetidas na situação analítica, indicando que provavelmente houve um registro mnêmico em algum nível sensorial. O setting analítico permitiu que pudessem ser recuperadas e passassem a ter um significado compartilhado.
A análise de Raquel incluiu momentos de muita regressão, que iam ao encontro das observações de Winnicott (1954-1955/1988a) que afirma que o indivíduo defende seu self contra o fracasso ambiental específico por meio de um congelamento da situação de fracasso. Há uma convicção inconsciente, que pode se tornar uma esperança consciente, de que em algum momento surgirá a oportunidade de uma experiência que descongelará a situação de fracasso. O indivíduo, por meio da regressão, reexperimentará essa experiência, mas agora em um meio ambiente que fará a adaptação adequada. Neste caso, a regressão faz parte do processo de cura.
Podemos pensar que Raquel conduzia a analista a pontos de congelamento de fracasso ambiental, ao evocar experiências intrauterinas ou de contato primitivo de pele. Esperava poder recuperar uma chave que foi perdida, a da existência de uma mãe com cheiro, cor, som, coração familiares. Mas havia algo que ia além da rememoração. Ela esperava que algo acontecesse, algo que lhe faltava, que era essencial, mas não sabia o que era... Algo precisava ser construído, e dependia do outro para isto.
Quando brincávamos com os toques na parede, havia um detalhe importante: era Raquel quem imprimia o ritmo e a intensidade deles. Desta forma, ela criava a analista. Era alimentada a ilusão, primordial na construção do psiquismo do bebê, de que ela era a responsável pelo aparecimento e desaparecimento do objeto, de que a existência e ação dele dependiam dela. É desta forma que o indivíduo saudável se apropria do mundo numa fase primitiva da vida e se sente vivo e criativo. Raquel necessitava de um espaço que lhe permitisse cada vez mais, pelo tempo necessário, viver a experiência de encontrar um objeto que pudesse se adaptar a ela, acompanhando-a no seu ritmo, e na sua intensidade. Algo que não havia acontecido de forma satisfatória precisava acontecer. O que se repetia neste caso era a sensação de que faltava algo primordial a ser construído...
O recordar na análise, descrito por Freud (1914/1980), parece, a meu ver, apoiar-se na concepção de que algo já presente no indivíduo será trazido à tona, algo que ele já é capaz de representar inconscientemente. Numa contribuição interessante, Roussillon (1999) ressalta que a atividade representativa inconsciente resulta de um processo psíquico: é uma produção que só ocorre se algumas condições intrínsecas e extrínsecas são reunidas. A psique, mesmo nos seus aspectos inconscientes, depende de condições ambientais. Ela se forma a partir da interação com o objeto externo, como na brincadeira a dois.
Para Winnicott (1962/1983), o desenvolvimento emocional ocorre na criança seguindo uma tendência inata para o amadurecimento, mas ele só se dá de fato quando se provê a ela condições ambientais suficientemente boas. Só dessa forma o bebê desenvolve um sentimento de integração e de existência própria. Esse é um longo caminho, que permite à criança a construção gradativa do seu self, e a sensação de ser real. Como afirma Dias (2003), "mesmo quando as estruturas biológicas e cerebrais estão intactas, o ter nascido, simplesmente, não garante que sejam alcançados o sentimento de estar vivo, de sentir-se real e de poder fazer experiências sentidas como reais" (p. 97). É a interação primitiva adequada entre o indivíduo e o ambiente cuidador que permite a construção paulatina de um si-mesmo integrado.
Na situação analítica é criado um espaço potencial que permite ao sujeito se desenvolver criativamente ou restabelecer uma "área de brincadeira" comprometida pelo impacto de uma zona traumática. O analista oferece ao analisando o ambiente suficientemente bom, que permite a esse último retomar o curso crescente de seu desenvolvimento emocional. Ao lado da recordação do que foi reprimido, abre-se espaço para a construção dos aspectos de si mesmo que ficaram como que congelados, à espera de um entorno adequado para este processo vital.
A brincadeira dos toques na costas de Raquel, por exemplo, podia ter o sentido de permitir que ela construísse, com o auxílio da analista, uma estrutura psíquica capaz de conter de forma mais integrada as partes do seu self. Autores como Esther Bick (1968) e Anzieu (1985) apresentam importantes metáforas da construção das primeiras formas de diferenciação do eu, comparando-as à delimitação dada pela pele aos conteúdos internos do corpo. No estado não-integrado primitivo, a criança necessita encontrar um objeto continente que é aos poucos introjetado, e permite desenvolver uma "pele psíquica". Ao sentir os toques de meus dedos em sua pele, pele com pele, Raquel parecia estar em busca deste objeto, desta delimitação de si mesma a partir do contato com o outro.
O "recordar, repetir, elaborar e construir" expressa de forma magistral a riqueza da clínica psicanalítica. Ela permite com que o passado, presente e futuro possam ter uma maior integração, ao abrir espaço para a restauração do que já foi vivido mas ficou danificado, e para a construção inesgotável dos elementos que formam um ser humano mais pleno.
Referências
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Gina Khafif Levinzon
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Arthur de Azevedo, 243 | Cerqueira César
05404-010 São Paulo, SP
e-mail: ginalevizon@gmail.com
[Recebido em 23.2.2010, aceito em 21.8.2010]
1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Doutora em Psicologia Clínica. Professora do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica USP.