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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo Apr./June 2011

 

RESENHAS

 

O sonho de Bion: uma leitura das autobiografias

 

 

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 

Autora: Meg Harris Williams
Editora: Karnac, Londres, 2010, 99p
Resenhado por: Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho, São Paulo

Este livro de Meg Harris Williams é, no fundo, uma "costela" de outro livro seu recém-publicado, O desenvolvimento estético: o espírito poético da psicanálise, Ensaios sobre Bion, Meltzer e Keats, que tive oportunidade de resenhar (Junqueira Filho, 2010). Ela, aliás, informa na Introdução que "este pequeno livro excedeu a cota que lhe tinha sido destinada" como mero capítulo do livro anterior, quando eu lhe solicitei que escrevesse um artigo sobre os "ancestrais poéticos" de Bion para a revista Mente-Cérebro em 2009.

Meg expõe agora uma dramatização de seu próprio modo de pensar que a modela "como pensadora", deixando implícito que o livro é uma homenagem a dois de seus principais ancestrais, seu pai, Roland Harris, e o próprio Bion. De fato, como epígrafe do livro, ela nos apresenta uma citação de cada um deles, ambas referentes à importância da formulação de perguntas e não à obtenção de respostas. Torna-se inevitável, que ela contraste sua própria educação com aquela de Bion, vítima de "pais de fachada" da Era Vitoriana envenenados por hipocrisias puritanas e patrióticas.

O plano do livro é simples, constando de três capítulos: no primeiro ela enfoca as obras autobiográficas explícitas de Bion, The Long Week End e All my Sins Remembered; no segundo, a trilogia A Memoir of the Future, obra também autobiográfica, mas elaborada como um "antisonho"; no terceiro, ela rastreia os ancestrais poéticos de Bion, com ênfase em Milton e os poetas românticos. Estranhamente, ela deixou de fora War Memoirs, o diário de guerra feito por Bion entre 1917-1919: uma explicação seria de reduzir a extensão do livro, concentrando a análise deste período aos capítulos a ele dedicados em The Long Week-End.

Neste livro póstumo, editado em 1982 por sua viúva Francesca, Bion nos descreve em tom confessional o "longo fim-de-semana" de sua infância onde, sujeito a uma série de equívocos e humilhações, ele teria desenvolvido um "exoesqueleto protetor" cuja matéria prima fora o disfarce e a mentira. Essa antieducação, o teria engessado dentro desta armadura para se refugiar de "Arf, Arfer", o Deus vingador e cruel que acabou por impedi-lo de qualquer aprendizado pela experiência. Numa avaliação retrospectiva, ele parecia "um simulacro quitinoso de menino, do qual uma pessoa tinha escapado".

Suas descrições do despreparo emocional dos pais no acolhimento dos filhos é primorosa: seu pai só conseguia amar uma imagem idealizada dos filhos, não os filhos em si; já sua mãe "sabia ter dois fedelhos irritantes, e tolerava este fato; meu pai, porém, sentia-se amargamente ameaçado por qualquer realidade que comprometesse a sua ficção". As duplas mensagens eram frequentes, como no episódio em que seu pai explicou-lhe pacientemente porque havia batido em sua irmã, mas, ato contínuo, passou a surrá-lo, gerando mais do que dor uma sensação de vacuidade desconcertante: "Oh! Deus, isso agora! Senti-me sem palavras, minha mente se derretera". Foram por fatos como este que "Arf, Arfer" nasceu, Um Deus sufocante, que o deixava arfando e mergulhado num estado de impotência.

O contato cru com a morte durante sua experiência de guerra, em vez de impelir aqueles soldados imberbes a estabelecerem contato com a realidade emocional, serviu antes para reforçar um "senso de irrealidade": "Eu me choquei diante de um companheiro que acabara de morrer, mas o choque maior foi me perceber insensível àquilo" As lembranças destes velhos fantasmas o perseguiram ao longo de toda vida, pois, como ele nos relata com fino senso de humor, "... eles preservam a sua juventude magnificamente...". Os horrores da guerra criaram para ele "uma rede claustrofóbica de ameaças aleatórias, da qual se podia escapar por meio de um ato heróico1 ou de uma fuga covarde". Daí, sua resignada conclusão: "Eu poderia ter sido recomendado, com igual relevância a uma Corte Marcial, dependendo da direção que eu tivesse tomado para tentar escapar".

Por isso, o "trauma de guerra" para Bion, representa a perda metafórica da concha do autoengano e a entrada num estado reativo de "sanificação" (going sane), onde se está mais próximo da verdade e da realidade. Ele, como muitos colegas, não sucumbiu ao colapso mental, mas teve uma experiência catastrófica ao presenciar a morte de seu estafeta, Sweeting: o jovem soldado teve o tórax dilacerado e, com o coração literalmente à mostra, pediu a Bion para escrever à sua mãe dando conta de seu trágico fim. Neste momento, Bion foi inundado por uma compaixão tão profunda quanto insuportável, levando-o a "enlouquecer" e a exclamar mentalmente: Blast you!, algo como, "Vá para o inferno!" (1982, p. 264). Em resumo, sua sobrevivência na guerra foi vivida como um desastre interno com o qual ele não estava preparado para lidar: num certo sentido, esta culpa o assombrou até o fim de sua vida.

Com este pano de fundo, é fácil entendermos porque Bion aproximou-se da psicanálise: após oito anos de análise com Melanie Klein, ele aprendeu a distinguir a centelha de sinceridade com um potencial para gerar vida, da falsa armadura exoesquelética que impede o relacionamento "sexual" entre objetos que estimulam o crescimento. Para ele, a psicanálise é uma forma de "sexualidade natural", implicando sempre em reciprocidade.

Ora, diz Bion, não há reciprocidade quando o presente é substituído pela lembrança do passado: esta ponderação, de indiscutível valor clínico, é discutida por Bion, com ironia, ao criar um analista fictício, o Dr. FiP (Feel-it-in-the-Past), por quem ele seria seduzido a pescar um trauma passado que lhe permitiria obter uma "cura rápida". No entanto, este risco ajudou Bion a precaver-se contra as ilusões desta conveniência de causalidade que, aparentemente, dispensaria o par analítico da experiência emocional do "aqui e agora": a "verdadeira voz do sentimento", na expressão de Keats, é algo vivo, assim sendo, não poderia haver reciprocidade com um analista, ou com partes de seu self, que exigissem dele o resgate de "lembranças" entendidas como meras excreções depositadas numa lixeira. A disposição de Bion de estar "lembrando" suas experiências passadas em função das "marcas que elas possam ter deixado em você, em mim ou em nós, agora" (1997, p. 38), levou Meg a intitular o capítulo 1 de "Remembering".

No capítulo 2, sobre a trilogia A Memoir of the Future, podemos reconhecer Meg não somente como a ensaísta pioneira sobre este "testamento literário de Bion" (de fato, ela publicou em 1983 o primeiro artigo que se aventurou a reconhecer um padrão subjacente em A Memoir), mas também que isto só foi possível devido à complexa aliança entre identificação e forma estética, que ela estabeleceu como leitora desta obra fascinante. O próprio Bion descreveu-a como uma mistura de poema onírico, diálogo socrático, drama beckettiano, parábola orwelliana ou dodgsoniana e "novela pornográfica". Meg denominou o capítulo de Counterdreaming (sonhar reverso), um conceito de Meltzer, sugerindo que a formação do símbolo numa análise depende de uma cooperação recíproca entre o sonho do analisando e o sonhar reverso do analista.

Num arroubo de ousadia ficcional, Meg (2005, pp. 220-240) imagina que a ama-seca de Bion foi vivida por ele como uma Ayah/Musa, a qual, através de suas confissões, nos conta de que maneira ela teria plantado sementes no útero da mente deste "filho espiritual", que germinaram produzindo formas e moldes originais, o cerne de seu pensamento abstrato (quer dizer, da sua função-α). Este DNA parece ter sido fundamental para Bion produzir um "rêverie aqui e agora", resgatando vozes de seu passado para fazer com que sua memória reviva e revise "cesuras" passadas, as mudanças catastróficas que ele sofreu durante seu penoso processo de amadurecimento psíquico. Deste modo, o passado é presentificado (por isso, o título The Past Presented do segundo volume da trilogia), por meio de uma conversa surrealista que envolve (entre outros) um Padre, um Psicanalista, um par de Dinossauros; várias idades biológicas, Pré- e Pós-natais; uma Voz vinda das profundezas, representando tanto Deus quanto o Diabo; Sherlock Holmes (o investigador prático) assessorado por seu irmão Mycroft para combater Moriarty (A Moralidade); um corte microcósmico da Sociedade Eduardiana, na forma de Robin (o fazendeiro-cientista), o casal aristocrata Roland e Alice, a empregada deles Rosemary, e, por último, o peão bronco Tom; Fantasmas da guerra; Bion pessoa física e seu alter-ego Myself, além de vários outros personagens extraídos do mundo ficcional, da história, mitologia, ciência e filosofia.

Bion orquestra suas vozes internas de modo a criar uma barreira tonal que oscila do absurdo à revelação, da vulgaridade à doutrinação, do cinismo à sentimentalidade, de um jogo de palavras invaginado à ambiguidade poética, da ejaculação "somítica" incoerente ao solilóquio formal. No entanto, num laivo autocrítico, ele mesmo se indaga (1991, p. 465): "O resultado seria um conjunto de trocadilhos forçados ou os primeiros passos de uma nova linguagem?".

Em relação ao The Dawn of Oblivion (A aurora do esquecimento), o terceiro livro da trilogia, Bion pretendeu descrever o encontro entre as personalidades pré-e pós-natais, que gera uma interpenetração criativa mediante a cesura que se estabelece através do diafragma, esta estrutura corporal que separa e une simbolicamente o meio aquoso intrauterino do meio gasoso pós-natal.

No último capítulo, Meg aproveita o artigo publicado entre nós, As musas do psicanalista (2009) para resumir a inspiração haurida por Bion num plantel seleto de poetas como Shakespeare, Milton, Blake, Homero, Virgílio, Shelley, Coleridge, Keats, Hopkins e Herbert, e essencial para assessorá-lo na descida às profundezas do inconsciente despertando-lhe assombro e reverência. Não por acaso, ela escolheu como núcleo desta exposição a descrição que nos é oferecida por Milton no Paraíso Perdido do crescimento de um "germe de pensamento" implantado por Satã na mente de Eva. Esta descrição seminal influenciou sub-repticiamente todos os poetas românticos, como por exemplo, Keats que, em sua Ode a Psiquê, equipara o aparelho para pensar com um jardim metafórico onde o poeta-sacerdote cultiva "a treliça agrinaldada de cérebro ativo", colocando-o em prontidão para deixar entrar o "amor ardente" exalado pela conjunção criativa entre Eros e Psiquê.

Na esteira do "odioso assédio dos contrários" formulado por Milton, Blake reconheceu que "os contrários são emoções apaixonadas e conflitantes" e que "atração e repulsão, amor e ódio, são necessários à existência humana". Estas ideias, com certeza, estão na base do conflito estético e da reciprocidade estética propostos por Meg e Meltzer (1988). Meg chega a sugerir que em psicanálise "o que necessitamos é um aparelho estético que mantenha diferentes vértices em tensão quando alinhados com O, o incognoscível". A vantagem desta configuração é que "a multiplicidade de vértices, simultâneos e não-sequenciais, suporta mais significado" (2010b, p. 63). Na ausência deste "aparelho" fica-se sem continente para um significado e este, portanto, não gera sofrimento, quer dizer, não é capturado na sua forma estética habilitando-o a ser pensado. Foi o que Bion descreveu (1991, p. 257) ter ocorrido em 8-8-1918, quando sua alma teria "morrido" na Batalha de Amiens, condenando seu corpo a viver eternamente em -K, negando o religioso, o científico e o estético, e sendo descrito por um interlocutor como: "A-teísta, A-temporal, A-moral e A-estético" (p. 159). A personalidade egocêntrica recoberta por elementos-β, além de ficar impedida de pensar, acaba se tornando também um objeto inestético.

Em seus livros proféticos, Blake afirmou que sua missão era "abrir os olhos imortais do homem/para dentro, para o mundo do pensamento" (1966, pp. 17-20) já que ele "se aprisionara/passando a ver as coisas através de estreitas fendas da parede de sua caverna" (p. 154), onde estaria vegetando num estado espiritual de "Ulro" (Erro), imerso num mar de impressões sensoriais sem sentido. Ulro ou Caos (a versão blakeana do inferno) exibe uma ordem aparente por ser tiranicamente orquestrada por falsos deuses (Urizen), mas, de fato, é um sistema desorganizado onde predomina a hipocrisia, a falsa intelectualidade e a imitação invejosa.

Bion, ao longo de seu trabalho psicanalítico perseguiu incessantemente a realidade emocional última de seus analisandos e, ao final, convenceu-se que o único instrumento confiável que dispunha para validar a exatidão de uma interpretação era o senso estético (1965, p. 52).

Para encerrar, gostaria de ressaltar o quanto o leitor de Meg se beneficia de sua visão "multi-ocular", para apreender a amplitude interativa das formulações de Bion. Por exemplo, quando ela sugere, usando categorias do próprio Bion, que A Memória do Futuro procura criar um modelo de "zoológico psicanalítico", cheio de "criaturas lindas e feias" (verdadeiros "asnos selvagens"), observadas pelos "grandes caçadores" da intuição psica-nalítica. A seguir, ela estabelece uma intrigante correlação entre o chocalhar ritmado que estas feras produzem nas barras de suas jaulas, com o som extraído pelo paciente gago de Bion (1977, p. 18 e seguintes, episódio do "homem de sete instrumentos"), cada um deles assumindo a fonação de uma função psíquica. Aproveitando o tema da gagueira ela nos lembra que Bion (1991, p. 568) sugere, em termos transferenciais que um analisando gago implica a presença de uma "terceira pessoa" na sessão, usando um dos componentes do par analítico como "porta-voz". Só alguém com uma sensibilidade polivalente poderia nos remeter à conjunção de elementos tão dispersos na obra de Bion.

 

Referências

Bion, W.R. (1965). Transformations. London: Heinemann.         [ Links ]

Bion, W.R. (1977). Two Papers: The Grid and Caesura. J. Salomão (Ed.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

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Bion, W.R. (1991). A Memoir of the Future. London: Karnac.         [ Links ]

Bion, W.R. (1997). WarMemoirs. F. Bion (Ed.) London: Karnac.         [ Links ]

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Blake, W. (1966). Complete Writings. G. Keynes (Ed.). Oxford: Oxford University Press.         [ Links ]

Junqueira Filho, L.C. (2010). Resenha de "O desenvolvimento estético: o espírito poético da psicanálise, ensaios sobre Bion, Meltzer e Keats". Revista Brasileira de Psicanálise, 44(2),177-184        [ Links ]

Meltzer, D. & Williams, M.H. (1988). The Apprehension of Beauty. Strathtay: Clunie Press. Reprinted 2008, HMT and Karnac.         [ Links ]

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Williams, M.H. (2009). As musas do psicanalista. In M.H. Williams, Memória da Psicanálise. São Paulo: Duetto.         [ Links ]

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Williams, M.H. (2010b). Bions Dream. London: Karnac.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Luiz Carlos Uchoa Junqueira Filho
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Helena, 170, conj. 123
04552-050 São Paulo, SP
Tel.: 11 3842-3060
mr.junqueira@uol.com.br

Recebido em 23/12/2010
Aceito em 23/3/2011

 

 

1 Ele, de fato, acabou recebendo a Victoria Cross, A Legião de Honra e o D.S.O