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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.27 Canoas June 2008

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Homem idoso: vivência de papéis desempenhados ao longo do ciclo vital da família

 

Elderly man: experiencing of roles played during family vital cycle

 

 

Ivanilza Etelvina dos SantosI,*; Cristina Maria de Souza Brito DiasII,**

I Faculdade Sete de Setembro de Paulo Afonso
II Universidade Católica de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A presente pesquisa teve como objetivo geral investigar a vivência de papéis desempenhados por idosos durante o Ciclo de Vida Familiar. Participaram 12 homens, sendo que seis pertenciam ao Grupo Reviver, da Universidade Aberta à terceira idade, de uma faculdade situada em Paulo Afonso; e seis não participavam do referido projeto. Todos os participantes são da camada média e moradores da área urbana. Eles foram entrevistados individualmente, tendo sido as entrevistas analisadas a partir dos seguintes temas: fase de aquisição, criação e desenvolvimento dos filhos, saída dos filhos de casa, fase última, percepção do tratamento dispensado ao idoso ao longo do tempo e o que gostaria de mudar em sua vida. Pode-se concluir que os idosos que fazem parte do Grupo Reviver mostraram-se mais otimistas, com planos para o futuro e vida social ativa, o que não ocorreu com o outro grupo. Espera-se que este trabalho possa contribuir para os profissionais que lidam com as questões da velhice e da família.

Palavras-chave: Idoso, Família, Teoria do Ciclo Vital da Família.


ABSTRACT

The present research had as main objective to investigate the experiencing of roles played by elderly man during family vital cycle. Twelve men participated in the research, six of those were participants of the Reviver Group, from the Open University for Third Age, in a Paulo Afonso´s college, and six were not in that project. They were individually interviewed and after the analysis of interviews content six predominant themes were focused: acquisition phase, raising and development of children, departure of children from home, last phase, perception of elderly-directed treatment through time and what would they like to change in their lives. It can be concluded that the elderly who participate in the Reviver group showed themselves to be more optimistic, with plans for the future and active social life, what did not occur with the other elderly. It is expected that this work can contribute to those interested in oldness and family issues.

Keywords: Elderly, Family, Family Vital Cycle Theory.


 

 

Introdução

O século passado foi caracterizado por profundas transformações histórico-culturais e, entre elas, algumas ocorreram nos âmbitos da família e da velhice. Hoje não podemos falar na família como um único modelo, como também a velhice se apresenta de forma multifacetada. Mudou a família, que se caracteriza mais do que nunca pela diversidade de arranjos, constituindo "famílias"; por sua vez, podemos falar de "velhices", uma vez que esta fase da vida é vivida de forma bastante peculiar, de acordo com as características pessoais, familiares e culturais que influenciam o idoso.

Nos últimos anos, as etapas da vida relacionadas à infância, adolescência e juventude tornaram-se supervalorizadas. O desafio atual é permanecer jovem o maior tempo possível, nem que para isso tenhamos que viver em busca de cirurgias, cosméticos, estilos de vida e roupas que nos tornem "juvenis". Chega-se até a infantilizar o adulto como uma maneira de não aceitar seu envelhecimento. Por outro lado, verifica-se que os idosos têm dado uma importante contribuição social, pois muitos continuam sendo os chefes e provedores de sua família e tomam conta das gerações mais jovens.

Constata-se, atualmente, que uma parcela expressiva de filhos, netos e bisnetos estão morando junto com seus pais e avós, fenômeno denominado "co-residência" (Camarano & El Ghaouri, 2003; Pebley & Rudkin, 1999). Os referidos autores apontam que este é um fenômeno mundial e os fatores que têm levado a esse tipo de organização familiar são: o prolongamento da permanência dos filhos em casa devido à necessidade de investimento em sua formação para enfrentar um mercado de trabalho bastante competitivo, a instabilidade deste e a inconsistência das relações afetivas, que ocasiona o retorno dos filhos à família de origem, por ocasião de uma separação. Acrescente-se que nos países onde a prevalência do HIV/Aids é elevada, os idosos têm tido um papel preponderante no cuidado dos doentes e dos netos.

Camarano e El Ghouri (2003) estabeleceram uma distinção entre as famílias de idosos, onde o idoso é chefe ou cônjuge, e as famílias com idosos, onde o idoso mora na condição de parente do chefe. Para as referidas autoras, as primeiras se caracterizam por serem formadas por idosos mais jovens e seus filhos, serem mais freqüentes (86% dos lares onde residem idosos são chefiadas pelos idosos), possuindo residência própria e uma renda mais elevada do que as segundas. Portanto, há idosos que cuidam e os que são cuidados.

Ao mesmo tempo em que esses arranjos podem acarretar apoio recíproco, propiciam também conflitos e dificuldades. Entre os ganhos desse tipo de família estão a maior escolarização dos filhos e netos, a redução do trabalho infantil e a ajuda que os avós dão na criação dos netos. Porém, os conflitos podem surgir devido ao referencial diferente de padrões sociais e culturais entre as gerações, interferências dos avós na criação dada pelos filhos, confusão acerca de quem detém a autoridade por parte dos netos (Camarano & El Ghaouri, 2003; Falcão, Dias, Bucher-Maluschke & Salomão, 2006).

Assim, além de contribuírem no aspecto financeiro, cada vez mais, os idosos estão cuidando das gerações mais novas, como os filhos, os netos e até mesmo os bisnetos, devido às dificuldades pelas quais as famílias vêm passando: mães que trabalham fora e deixam os filhos com os avós, pais que se separam, filhos com dificuldades de inserção no mercado de trabalho ou necessitando se preparar melhor para enfrentá-lo, entre outros. Sua contribuição é evidente, especialmente junto às crianças, para as quais transmitem a história da família e do país, valores e afeto. Quem poderia dimensionar suaimportância?

Segundo Dias e Silva (1999), em geral, os avós são o porto seguro nos momentos de crise; os transmissores da história familiar, firmando a identidade do grupo; os mediadores e fontes de apoio emocional nas relações interpessoais intempestivas vividas pelos filhos, e, para os netos, representam o equilíbrio necessário nos momentos de desânimo e depreciação de si mesmos.

De acordo com Moragas (1997), já existem estudos enfocando a velhice, tanto no âmbito físico, como social e psicológico; no entanto, existe uma carência de pesquisas que a relacionem com a família. Para o referido autor, isso é necessário, pois em épocas anteriores não houve um contato tão longo e intenso entre as várias gerações de uma mesma família como na atualidade.

Não há como negar que a velhice apresenta uma forte componente de gênero, atingindo especialmente as mulheres, embora isto não seja universal (Camarano, 2004). Por isto nosso foco se voltou para o homem. O objetivo geral deste estudo, portanto, foi investigar a vivência que o homem idoso, ou seja, com idade acima de 60 anos, tem dos papéis desempenhados ao longo do ciclo de vida familiar. Especificamente, buscamos averiguar ainda a percepção que ele tem do tratamento dispensado aos idosos, através dos tempos, e suas perspectivas de mudanças.

É nossa expectativa que o estudo das relações estabelecidas pelo idoso com a família possa contribuir para os profissionais que lidam com eles, bem como para favorecer estratégias de enfrentamento a tais questões. Para subsidiar teoricamente a pesquisa buscamos respaldo na Teoria do Ciclo Vital da Família.

Família e ciclo vital

Para Cerveny (1997), ciclo vital familiar é um conjunto de etapas ou fases definidas segundo alguns critérios (idade dos pais, dos filhos, tempo de união de um casal, entre outros) pelos quais as famílias passam, desde o início da sua constituição em uma geração, até a morte de um dos indivíduos que a iniciaram.

Cerveny e Berthoud (1997) propõem uma nova caracterização de ciclo vital diferente da disponível até o momento, proposta esta decorrente de pesquisa desenvolvida nos anos 1996 e 1997, com 1105 famílias da classe média paulistana. Essa caracterização coloca a família, ao longo do seu ciclo vital, em quatro etapas, porém as autoras chamam a atenção para a não rigidez das fases:

1. Família na Fase de Aquisição: engloba a escolha do(a) parceiro(a), o nascimento da família pela união formal ou informal do casal; a preocupação em adquirir bens; a chegada dos filhos e a vida com filhos pequenos. É uma fase que se caracteriza pela aquisição em todos os sentidos: material, emocional, psicológico (Berthoud & Bergami, 1997).

2. Família na Fase Adolescente: caracteriza-se pelo momento específico em que os filhos experimentam a adolescência em direção à idade adulta. Ela mobiliza bastante os pais, que se encontram na faixa dos quarenta aos cinqüenta anos, porque eles passam a rever sua própria adolescência e os aspectos que podem ser resgatados de uma juventude ainda presente diante de si. É uma fase que pode propiciar muitos conflitos e questionamentos, tanto por parte dos filhos, como dos pais (Luisi & Cangelli Filho, 1997).

3. Família na Fase Madura: nela estão inseridos os filhos adultos jovens e pais em plena maturidade, cuja idade estende-se dos cinqüenta a meados dos sessenta. As características dessa família envolvem mudanças como: saída de casa e/ou casamento dos filhos; inclusão da terceira geração e parentes por afinidades; cuidados com a geração mais velha, entre outras. É considerada uma fase difícil, porque o casal se depara com duas gerações precisando de amparo: a dos filhos que estão se preparando para ter sua própria família, e os pais em processo de envelhecimento (Carbone & Coelho, 1997).

4. Família na Fase Última: depende muito de como foram vividas as fases anteriores. É uma etapa que tem se estendido bastante, dada a maior longevidade humana. Ela é marcada pela reestruturação de papéis, com a saída física de alguns membros do núcleo familiar e a inserção de novos membros (noras, genros e netos). O luto pela perda de amigos e parentes trará forçosamente à tona a velhice como a fase que se aproxima da finitude pessoal e da idéia inevitável da viuvez. Nessa fase, há um fechamento de ciclo (Silva, Alves & Coelho, 1997).

Como o presente estudo enfoca o idoso, nos deteremos na última fase do ciclo vital. Segundo Silva e cols. (1997), a família na fase última se caracteriza ainda pela aposentadoria de um ou de ambos os cônjuges, a perda de autonomia e a fragilidade física. O casal volta a ficar sozinho, depois da saída dos filhos, e, dependendo do relacionamento estabelecido, isso pode ser uma oportunidade de encontro ou de solidão compartilhada sob o mesmo teto. A aposentadoria significa a parada de desempenho de uma atividade formal que foi realizada durante 30 anos ou mais e que pode gerar uma crise.

Em alguns casos, mesmo com os filhos criados, surge uma nova demanda: os filhos que, por dificuldade financeira ou por estarem descasados, retornam com seus filhos e mulheres/maridos (noras ou genros). Cerveny e Berthoud (1997) denominaram este movimento de "pais estendidos", significando cuidar dos filhos e dos netos. Nessa direção, Peixoto (2004) afirmou:

Muitos filhos divorciados retornam à casa dos pais solicitando um apoio - financeiro ou moral - para educar seus filhos. Esta é uma prática comum no Brasil, pois, como dissemos, as políticas familiares são restritas e o sistema público escolar é ineficaz. São poucas as creches e as escolas maternais da rede pública, e as escolas do ensino fundamental funcionam somente meio período, obrigando os pais que trabalham a lançar mão de sistemas informais de guarda das crianças, como as babás e as empregadas domésticas ou, ainda, seus pais aposentados. (p. 77)

Quando sós, ou por separações ou por falecimento dos cônjuges, os idosos passam a residir sozinhos ou com os filhos, tendo que se incorporar a outro ritmo de vida. Essa situação é mais complicada para o homem idoso, tendo em vista vir de uma cultura em que sua preocupação principal era a de provedor, não tendo se acostumado com os afazeres domésticos (Nolasco, 1995). Somam-se a essas dificuldades, a saúde precária e o ter que se cuidar sozinho tendo, muitas vezes, que administrar várias medicações, com dosagens e horários diferentes, e o fato de depender dos outros o leva a perder sua autonomia. Sobre esse aspecto, Warner (1998) ressalta: "As decisões a respeito das pessoas idosas, muitas vezes, não são tomadas por elas, mas por outros que decidem por elas. Então elas se acomodam, renunciam ao direito de decidir sua própria vida, pois acham que não têm capacidade e, assim, passam a viver em estado de não-participação, viver um sentimento de impotência" (p. 53).

Diante dessas reflexões, podemos perceber as transformações que a família passa ao longo do tempo como também o papel do idoso no contexto familiar. Vimos uma nova relação inter e transgeracional que se afigura a partir da longevidade humana e do contexto sócio-econômico. Além de sua importância natural, com as aposentadorias e pensões que recebem, muitos idosos resgataram seu poder como provedores diante das situações financeiras difíceis vividas por seus filhos e netos, além de serem pessoas disponíveis nos momentos de crises vividos pelas famílias.

Devido ao fato da primeira autora coordenar um grupo de idosos pertencente a uma faculdade na qual trabalha, houve o interesse em pesquisar como homens idosos, participando ou não de um grupo de terceira idade, vivenciaram os papéis que desempenharam ao longo de suas vidas. Igualmente, houve o interesse em verificar a adequação da Teoria do Ciclo Vital aos referidos grupos.

 

Método

Foram entrevistados doze homens, sendo que seis freqüentavam o Grupo Reviver (Universidade Aberta à Terceira Idade), de uma faculdade localizada em Paulo Afonso, e seis não o freqüentavam. Eles se encontravam na faixa etária compreendida entre 61 a 80 anos e, em geral, gozavam de boa saúde. A maioria era casada, havendo dois viúvos. Apenas um destes morava sozinho, sendo assistido pela filha que residia perto. Todos chegaram de cidades vizinhas para trabalhar como operários na Companhia Hidroelétrica do São Francisco. A escolaridade predominante correspondia ao antigo curso primário, havendo um que possui curso superior de Engenharia. A religião católica foi prevalente nos dois grupos. Todos são aposentados e possuem uma renda média equivalente a dois salários e meio. Todos referiram possuir: casa própria (saneada com água e luz), tv, som, geladeira e ventiladores. Alguns possuem ainda: automóvel (6), máquina de lavar (5), computador (4), ar condicionado (2), máquina de costura (1), pequeno comércio (1), propriedades na terra natal (1). Suas esposas, por sua vez, desempenharam as seguintes profissões: costureira (3), comerciante (1), funcionária da CHESF (1) e professora (1). Assim, face à comunidade na qual estão inseridos, podem ser considerados como pertencendo à classe média. Para Oliveira (2004), entre a burguesia e o proletariado encontram-se outros grupos que se movem entre as duas camadas fundamentais. Alguns desses grupos são chamados genericamente de classes médias, ou pequena burguesia. "A pequena burguesia constitui um setor muito numeroso, que abrange desde o dono de um pequeno armazém até os pequenos e médios proprietários de terra, passando por todos os assalariados que trabalham em escritórios, funcionários públicos e profissionais liberais" (p. 126).

Quanto ao critério de escolha dos participantes, utilizamos a amostragem proposital, que também é denominada intencional ou deliberada. Por esse critério, o pesquisador escolhe deliberadamente os participantes que comporão o estudo, de acordo com os objetivos do trabalho, desde que possam fornecer as informações referentes ao mesmo (Turato, 2003). Eles responderam a uma entrevista composta de questões relacionadas aos seguintes temas: fase inicial do casamento; chegada dos filhos; criação e desenvolvimento dos filhos; saída dos filhos; vivência da fase atual; tratamento dispensado aos idosos pela família e sociedade; mudanças que gostaria de fazer. Além disso, foram preenchidos os dados sócio demográficos. Eles foram entrevistados individualmente, em uma sala apropriada (em suas casas ou na associação de idosos). As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas. Vale ressaltar que eles assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, tendo sido a pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Católica de Pernambuco, e que foram dados nomes fictícios aos participantes para preservar sua identidade.

As entrevistas foram submetidas a uma Análise de Conteúdo, especificamente à Análise Temática, a qual "consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou freqüência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado" (Minayo, 2004, p. 209).

 

Análise e discussão dos resultados

Seis temas principais nortearam a análise dos dados obtidos através das entrevistas:

1. Fase de aquisição

A fase inicial do casamento se caracterizou pela preocupação do casal em adquirir bens e se estruturar financeiramente para a chegada dos filhos. Todos os participantes se viram como responsáveis pelo sustento da casa, mesmo que tivessem de trabalhar em outra cidade, em turnos desgastantes ou até em atividades insalubres, se foi somente este tipo de trabalho que apareceu. O papel do homem continuou sendo para os nossos entrevistados, o de provedor e dono de casa. A mulher, em geral, ficou responsável pelos cuidados domésticos e criação dos filhos.

Observamos, nos dois grupos pesquisados, o seguimento das normas sociais e o cumprimento dos papéis ditados socialmente, ao casarem, de acordo com o estabelecido. Os casais procuraram viver juntos e criar seus filhos. Referiram-se aos próprios pais como muito tradicionais, autoritários e representantes máximos da família, não permitindo espaço para o diálogo. Notamos a reprodução desse lugar nas famílias por eles constituídas, mesmo quando questionaram seus pais. No início enfrentaram dificuldades financeiras e, em alguns casos, foi necessário passar um tempo nas casas de parentes e amigos até adquirirem uma estrutura mais estável. Eles se preocuparam em conseguir casa, móveis e estabilidade econômica, principalmente quando surgiram os filhos. Tudo isso confirma as tarefas da fase de aquisição, conforme a Teoria do Ciclo Vital (Berthoud & Bergami, 1997). Os recortes que seguem testemunham bem a fase inicial do casamento e a nova demanda para criar os filhos, tornando visíveis os papéis de ambos os cônjuges:

(...) "com a vinda dos filhos pesou mais. Tive que sair da cidade para poder criar eles. Meus filhos quem criou mais foi minha esposa. Eu não tinha tempo para eles". (Sr. André, 61 anos, Grupo Reviver).
"Quando os filhos chegaram foi meio difícil. Pagava aluguel e na época eu ganhava pouco. A vida era dura no início. Ainda hoje eu lembro quando casei. Nem televisão tinha. Depois a gente saiu do sufoco. Eu fiz de tudo e comprei uma. Hoje não, está tudo mais fácil, mas há vinte tantos anos atrás... E também a cidade tava iniciando, era tudo mais difícil naquela época." (Sr. Lucas, 62 anos, Idoso da Comunidade).

2. Criação e desenvolvimento dos filhos

Constatamos, durante a educação dos filhos, uma reprodução da postura de seus antepassados. Alguns chegaram a bater nos filhos, mesmo quando admitiram não ter dado certo. Outros só aconselhavam, até porque não concordavam com a educação dos próprios pais, que era de bater. Houve, ainda, os que deixaram para as mulheres essa tarefa, inclusive passando a autoridade para a professora na escola. A aproximação com os filhos se dava, principalmente, quando brincavam ou iam buscá-los na escola, quando podiam.

"Quando fazia coisa errada eu sentava e conversava com eles. Nunca bati, isso era com a mãe" (Sr. Euclides, 73 anos, Grupo Reviver).
"Dava um castigozinho, mas era mais conselho. Apesar de que filho hoje não é essa grande coisa não. É diferente do outro tempo. No outro tempo bastava o pai olhar e eles já mudavam de sentido, mas hoje eles já querem reagir. Mas a maioria é errado e não se conforma" (Sr. Antonio, 71 anos, Idoso da Comunidade).

Alguns desses idosos não praticaram o diálogo e o relacionamento distante dificultou um maior contato com os filhos, a ponto de alguns entrevistados mostrarem uma insatisfação, atualmente, em relação a eles. Daí questionarmos: como poderiam exercer um relacionamento aberto, amoroso e afetuoso se não tiveram um referencial? Vieram de uma época em que o pai adotava uma postura distante e "bastava um olhar" para intimidar a criança. Desse modo, não houve espaço para o diálogo nas suas vivências na família de origem e eles continuaram reproduzindo esse modelo.

3. Saída dos filhos de casa

Com o crescimento dos filhos, outras preocupações surgiram: a escolaridade, o casamento e a inserção deles no mercado de trabalho. Constatamos os sentimentos de solidão, de saudade e muita luta para ajudar os filhos a se profissionalizarem. Um deles chegou a sacrificar seu bem-estar e até parar a construção da casa, para priorizar o sustento do filho fora de casa, até que este conseguisse se firmar como profissional.

"Quando ele saiu de casa era muita saudade, né? E um pouco de despesa também, porque nessa época a gente tava construindo aqui também. Aí eu não ia deixar ele passar fome fora, né? Paramos a construção da casa pra ele terminar os estudos. A gente morava em Jatobá, aí começamos a deixar ele morando sozinho na casa" (Sr. José, 64 anos, Grupo Reviver).
"Quando ela (filha) saiu de casa foi um horror. Porque eu fiquei só, né? (Sr. Valdemar, 75 anos, Idoso da Comunidade).

Um fato importante que pode ocorrer é a perda da companheira. Motta (2004) comentou que estudar a velhice é se deparar constantemente com a viuvez, que é uma condição social peculiar, já que é inesperada, não planejada e modificadora imediata da vida das pessoas. A viuvez representa também um rompimento inesperado do equilíbrio nas relações familiares e a urgência do estabelecimento de novos arranjos no grupo. A elaboração desse acontecimento, em geral, é muito difícil.

"Não mudou muito, só comecei a fazer as coisas em casa. E gostei porque pude cuidar da saúde de minha esposa, apesar de ter sido em vão, pois ela veio a falecer e fiquei muito triste e só. Foram 53 anos de muito amor e sem discussão" (Sr. Anchieta, 80 anos, Idoso da Comunidade).

Notamos, em alguns casos, como a proximidade geográfica com os filhos atenua os sentimentos de tristeza e de isolamento do idoso.

"Com a saída dos filhos não senti muito porque moram perto. Tem um filho que mora tão perto de mim que eu faço o café e levo pra ele e a mulher" (Sr. Jair, 70 anos, Grupo Reviver).

4. Fase última

Nessa fase, com os filhos criados, pode surgir uma nova situação que diz respeito aos filhos separados, os quais voltam ao lar paterno com seus próprios filhos. Cerveny e Berthoud (1997) denominaram esse movimento de "pais estendidos", como já foi referido. Às vezes, devido também à dificuldade financeira, há um regresso dos filhos, com seus filhos e mulheres/maridos (noras ou genros), à família de origem, confirmando a existência da "co-residência" (Camarano & El Ghaouri, 2003; Pebley & Rudkin, 1999) ou "ninho recheio" (Peixoto, 2004; Warner, 1998).

" Moro com a esposa e minha filha que voltou. Não deu certo seu casamento. Uma neta, dois netos e uma bisneta" (Sr. Lucas, 62 anos, Idoso da Comunidade).
"Moro com esposa, filha e um filho que casou, separou-se e voltou para casa" (Sr. Jair, 70 anos, Grupo Reviver).
"Ela (filha) vivia com a gente em casa e saiu. A gente não achou bom. Mas depois voltou" (Sr. Josias, 65 anos, Idoso da Comunidade).

Constatamos que vários participantes da pesquisa constituem a denominada família de idosos. Essa configuração talvez não seja interessante para nenhuma das partes envolvidas, já que vários adultos jovens gostariam de ter sua independência e a geração mais velha deseja, nessa fase de vida, paz, sossego e usufruir dos seus rendimentos em benefício próprio. Concordamos com Camarano e El Ghaouri (2003) ao concluírem que a co-residência traz mais benefícios para as gerações mais novas do que para os idosos. Para estes ela parece refletir mais uma ausência de opção.

A saída dos filhos geralmente coincide com a aposentadoria e as conseqüências advindas do processo de envelhecimento. O sentimento reinante é de falta e vazio. Eles sentem saudades e expressaram um "vazio existencial" em que, apesar do sentido do dever cumprido, não resta muito a fazer nessa fase de vida.

Para Zimerman (2000), nossa sociedade limita a pessoa com a aposentadoria, o que pode causar transtornos que levam ao surgimento de doenças, exclusão, isolamento e depressão. Ela ocasiona o afastamento dos colegas, a perda da identidade como trabalhador e a rotina diária, além de acarretar um rebaixamento nos rendimentos do idoso. Porém não podemos esquecer que outros a esperam como um evento desejado, que vai lhes propiciar realizações. Desse modo, "a aposentadoria é um determinante da diferenciação dos papéis adotados na velhice" (Tavares, Néri & Cupertino, 2004, p. 105).

"Com a aposentadoria a gente fica impaciente. Parado. Só em casa, mas aí a gente falta a paciência, aí eu vou procurar andar, né? Aí, eu ficar em casa só parado, não é boa coisa" (Sr. Antonio, 71 anos, Idoso da Comunidade).
"Com a aposentadoria mudou o dinheiro, que ficou pouco e a saúde que está fraca" (Sr. Geraldo, 72 anos, Grupo Reviver).

Os aposentados sentem falta dos amigos e dos papéis desempenhados no trabalho. Procuram se ocupar em casa, ajudando nas tarefas domésticas e a convivência com a família pode gerar conflitos. E quando estão sentindo muita falta dos contatossociais, "dão uma volta". Os idosos que participam do Grupo Reviver preenchem seu tempo com atividadessocializantes, o que contribui para reativar amizades e interesses.

"Fiquei muito em casa acomodado. Já tive até depressão, depois que me aposentei. Mas agora eu participo do Projeto Reviver e estou bem. Quero continuar ativo" (Sr. Ivanildo, 63 anos, Grupo Reviver).

A referida fala nos remete à Teoria da Continuidade, que mostra a importância da manutenção dos papéis e dos laços afetivos e afirma que aqueles idosos que não buscarem formas de se manter ativos, tendem ao isolamento e à depressão (Neri, 2002). Também a relacionamos com a questão de gênero, pois se constata que as mulheres participam mais de atividades extradomésticas, de organizações e movimentos sociais, fazem mais cursos, viagens e trabalhos temporários do que os homens (Camarano, 2004).

Apesar de tudo, verificamos em alguns o orgulho por terem sobrevivido, possuir casa própria, ter sua aposentadoria e conseguir criar os filhos. O sentimento é de dever cumprido e sentem-se vitoriosos por ter chegado aonde chegaram.

"Está bom. Saúde piorou e os amigos eram mais. Antes o dinheiro rendia mais. Hoje é tudo muito caro. Mas deu pra criar os filhos e tenho minha casa." (Sr. Lucas, 62 anos, idoso da Comunidade).
"Eu nunca pensei em minha vida chegar no ponto que eu estou hoje. Ter minha casa própria, ajudar meus filhos e netos. E nunca deixei de ajudar minha mãe" (Sr. Jair, 70 anos, Grupo Reviver).

A última fala revela o que fora colocado por Carbone e Coelho (1997), no sentido de que a geração do meio, além de cuidar dos próprios filhos e netos, também presta assistência aos pais em processo de envelhecimento.

5. Percepção do tratamento dispensado aos idosos, ao longo do tempo

Nas entrevistas ficou evidenciado como o idoso era tratado antigamente, ou seja, com respeito e consideração, mesmo quando os participantes admitiram a inexistência de uma rede de proteção e assistência social. Hoje, quando "as coisas" estão melhores nos aspectos de saúde e de previdência social, a família e a sociedade não respeitam nem consideram seus idosos, como fica evidente nas falas:

"Família respeitava o idoso, Naquele tempo, médico era difícil. Assistência Social, não tinha. Hoje está melhor". (Sr. André, 61 anos, Grupo Reviver).
"A família tratava o idoso melhor. Tinha mais respeito. Hoje não. Os pais criam os filhos e quando os pais ficam de idade eles não querem cuidar mais. Joga para o asilo. Na minha época não tinha filho que fizesse isso não. Hoje o idoso não pode nem sair pra receber seu dinheiro. Os cabras vão e toma, não tem nem respeito. Hoje tá fraco. Na época que eu era criança, o idoso sofria muito. Não tinha benefício nenhum. Depois veio essa aposentadoria do Funrural, aí melhorou cem por cento para o idoso. Hoje tá melhor. Os idosos no meu tempo sofriam muito na roça". (Sr. Lucas, 62 anos, Idoso da Comunidade).

Quando nos referimos à forma como os idosos eram tratados antigamente, todos foram unânimes em afirmar o respeito, a consideração por parte dos filhos e dos familiares para com os idosos, mesmo quando não tinham conforto e os serviços de saúde/assistência social eram precários. Atualmente, afirmam que alguns filhos não têm respeito pelos seus idosos e alguns até querem se livrar deles. Referiram-se também à violência que caracteriza nossa época e que os deixa inseguros.

6. O que gostariam de mudar em suas vidas

Mesmo com os filhos criados e tendo saído de casa, os idosos participantes desta pesquisa se sentiam responsáveis e se preocupavam com eles. A preocupação maior era que os filhos estivessem com saúde, empregados e vivendo bem com seus cônjuges. Percebemos, por parte de alguns, insatisfação com os filhos, no que diz respeito ao relacionamento familiar não ser tão harmonioso, como eles gostariam, havendo queixas quanto ao alcoolismo de alguns deles.

"Não sei o que mudaria. Tem coisas que não tem como falar, pois o meu desejo não será realizado" (Sr. João, 65 anos, idoso da Comunidade).
"Pra meus filhos não beberem muito, principalmente o mais novo" (Sr. Jair, 70 anos, Grupo Reviver).

Os idosos, especialmente os do projeto, ao responderem a essa questão, mostraram que continuam preocupados com os filhos e a família. Sonhavam em conseguir emprego para todos, em uni-los, em resolver algum problema existente. Tiraram o foco de si mesmos e sempre falavam da família. Viveram tanto em função dos outros que esqueceram seus projetos pessoais. Pode ser que alguns estejam reproduzindo e aceitando os estereótipos culturais de que o idoso não tem projetos nem sonhos pessoais (Warner, 1998). Por outro lado, pode ocorrer que as demandas provenientes dos filhos e dos netos não lhes possibilitem dedicar-se aos interesses pessoais.

 

Considerações finais

Constatamos que todos os entrevistados chegaram há muito tempo na cidade de Paulo Afonso. Vieram de outras cidades, na época da implantação da CHESF, inclusive de estados diversos _ Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. A maioria possuía baixa escolaridade, ao contrário da maioria de seus filhos, que tiveram acesso à universidade. Provavelmente a baixa escolaridade se deve ao fato de terem chegado jovens, na época da fundação da cidade, em busca de emprego. Quando conseguiram, não tiveram motivação, nem infra-estrutura adequada para continuar a estudar. Seu objetivo maior foi obtido com o emprego e a possibilidade de constituir família.

Com esta pesquisa pudemos constatar que os idosos têm importância fundamental na família, seja através da transmissão de valores e de seu papel como conciliador e agregador, como também do suporte financeiro. Entre todos, o papel como provedor foi o mais enfatizado. Assim, reproduziram o modelo adquirido de suas famílias de origem e também o que prevalecia na época. Ao mesmo tempo em que questionaram o papel dos próprios pais, não souberam exercê-lo de forma diferente do aprendido.

Quando os filhos cresceram, a percepção que os idosos tiveram foi do "dever cumprido", mesmo quando os filhos apresentaram dificuldades e retornaram ao lar, devido à falta de emprego ou por separações. Esse retorno ao lar foi facilitado pela disponibilidade dos idosos em acolhê-los, não só afetiva como economicamente, já que têm a aposentadoria, uma renda certa para manter a todos, ainda que precariamente.

A vivência dos entrevistados, quanto ao bem-estar subjetivo, fundamentou-se nos seguintes fatos: terem onde morar, os filhos estarem criados, terem o que comer, estarem relativamente saudáveis (não acamados), terem sobrevivido às adversidades da vida e chegado ao estágio atual. Todos demonstraram satisfação com a chegada dos filhos, mesmo quando admitiram a dificuldade para conseguir o sustento e terem que se deslocar para outras cidades, a fim de conseguir mantê-los bem. O objetivo de tê-los criado apareceu em todos os entrevistados.

A dificuldade enfrentada pelos jovens para ingressar no mercado de trabalho que proporcione independência e o fato de o idoso ter sua aposentadoria ou benefício são fatores que explicam a incidência de co-residência para uma boa parte dos entrevistados. A partir dessas afirmativas, podemos dizer que o idoso passou a ser revalorizado dentro da família, possibilitando uma troca de cuidados entre as gerações, embora a co-residência também possa ser fonte de conflitos. Foram enfatizados, por todos, a preocupação com os filhos e os netos, e o investimento nos estudos objetivando oportunizar uma melhor qualificação profissional e facilidade no ingresso ao mercado de trabalho.

Os entrevistados também se referiram ao tratamento dispensado aos idosos, antigamente, como de muito respeito, mas reconheceram que, nessa época, eles não eram assistidos pelos serviços de saúde, assistência social nem pela Previdência. Segundo a maioria, antigamente o idoso era valorizado na família e na comunidade. Mas, atualmente, acham que eles não detêm o mesmo respeito nesses âmbitos. Todavia, admitiram a evolução nas políticas sociais e previdenciárias, que vieram dar um melhor suporte ao idoso enfatizando a aposentadoria como uma conquista alcançada.

Quando comparamos os dois grupos pesquisados, notamos algumas diferenças. Os idosos que estão participando do Grupo Reviver mantinham-se mais ativos, dinâmicos, desenvolviam atividades, criavam laços, tinham projetos. Os idosos não participantes, que se aposentaram e permaneceram em casa, sentiam-se ociosos e apresentavam mais queixas somáticas. Isto pode ser devido a se restringirem ao ambiente doméstico e, assim, reduzirem os espaços de discussão, informação e conscientização de seus direitos e conquistas.

A nosso ver, esses idosos estão se familiarizando com as transformações sociais, familiares, econômicas e nas relações estabelecidas entre as gerações. Ressentem-se de alguns aspectos do passado que não permaneceram, ao mesmo tempo em que querem conquistas novas, próprias do momento atual. Gostariam do "respeito antigo", porém, com as facilidades e alguma estabilidade financeira de que desfrutam atualmente. Estão disponíveis para ajudar seus filhos, mas não querem abrir mãodo seu papel de "chefe de família" e norteador do comportamento familiar. No entanto, apesar desses conflitos, vislumbramos flexibilidade ao aceitarem os novos arranjos e configurações familiares de seus filhos e estarem disponíveis nos momentos de crises, tanto econômicas quanto conjugais.

Vale a pena notar que se trata de uma parcela da população nordestina, com valores e cultura próprios, diferentes, portanto, de outras regiões do Brasil. Nesse sentido, sugerimos que diferentes investigações, em contextos distintos, podem trazer mais conhecimentos sobre o tema. É fundamental que os profissionais da área divulguem e realizem projetos que levem a sociedade a refletir, informando-a sobre esse novo contexto, até para o próprio idoso se conscientizar de sua importância social e familiar.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: ivanilzasantoss@bol.com.br

Recebido em agosto de 2007
Aceito em janeiro de 2008

 

 

* Ivanilza Etelvina dos Santos: psicóloga; mestre em Psicologia Clínica (UCP); professora da Faculdade Sete de Setembro de Paulo Afonso.
** Cristina Maria de Souza Brito Dias: psicóloga; mestre e doutora em Psicologia (UnB); professora e pesquisadora da Universidade Católica de Pernambuco.
Este artigo é parte da dissertação de mestrado intitulada “Homem idoso: vivência de papéis durante o ciclo vital da família”, elaborada pela primeira autora, sob orientação da segunda.

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