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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.1 no.1 Ribeirão Preto Apr. 1993

 

Construindo noções escolares na aprendizagem. Estratégias cognitivas de alunos de 1ª série*

 

 

Maria Lúcia F. Moro; Verônica Branco

Universidade Federal do Paraná

 

 

As idéias ora propostas à discussão vêm da análise de resultados parciais de uma pesquisa sobre o papel das interações sociais de crianças, agrupadas em trios, na aprendizagem construtivista de duas noções de iniciação escolar no 1º grau: o sistema da adição/subtração e o sistema de escrita alfabética.

Baseada no quadro da epistemologia genética, a pesquisa teve como sujeitos alunos de 1ª série de uma escola pública da periferia urbana de Curitiba.

Aqueles resultado advêm da análise qualitativa das estratégias cognitivas expressas pelos sujeitos de três dos seis trios examinados, na primeira de seis sessões de aprendizagem organizadas para cada uma das noções escolhidas.

São estratégias cognitivas, as formas próprias das crianças de solucionarem as tarefas de aprendizagem propostas pelo adulto. Em sua progressão e conforme a perspectiva adotada, essas estratégias configuram o próprio processo de aprendizagem que ali estaria ocorrendo.

Ao estudarmos situações de aprendizagem construtivistas, apoiamo-nos em resultados de estudos dirigidos por Piaget sobre a aprendizagem de estruturas operatórias, a partir dos quais o autor concebeu essa aprendizagem como inserida no processo amplo do desenvolvimento, regida pelos seus mesmos fatores e mecanismos (Piaget e Greco 1959).

A aprendizagem foi então vista como intervenção específica e intencional relativa a uma noção específica a ser incorporada pelo sujeito às suas estruturas cognitivas, só ocorrendo se a estrutura a ser aprendida encontrar no sujeito apoio em outras, mais elementares na sequência da construção, em uma relação de assimilação ativa (Piaget, 1964).

Logo, a aprendizagem acarreta reestruturações cognitivas como condição necessária ao processo de desenvolvimento, em conjunto com os demais fatores, mas não é condição suficiente para provocar aquele processo (Piaget e Greco, 1959).

Organizamos nossas situações de aprendizagem do sistema da adição/subtração inspirados na literatura de Genebra sobre a epistemologia do número (Greco, Grize, Papert e Piaget, 1960; Greco e Morf, 1962; Greco, Inhelder, Matalon e Piaget, 1963).

Assim, a primeira situação de aprendizagem centrou-se na composição das quantidades naturais de 1 a 10, com modificações posteriores dessas quantidades mediante sua recomposição e decomposição em quantidades diferentes, e seu retorno à série de 1 a 10, sempre segundo o princípio da ação iterativa (+1) (-1), e com o emprego da correspondência termo a termo.

Conforme essas idéias, a adição e a substração, como operações inversas de um sistema, devem ser trabalhadas ao mesmo tempo pelas crianças, com base em ações infantis tão naturais como a de pôr elementos e a de retirá-los de coleções quaisquer.

Nessa situação de aprendizagem foram também pedidas às crianças a produção de notações sobre o realizado nas tarefas práticas anteriores e a explicação dessas notações. Para tanto, baseamo-nos na hipótese que dá relevância à expressão gráfica da criança das noções matemáticas por ela trabalhadas no plano da ação, como objeto de conhecimento a ser também construído, e à interpretação que ela faz de seus grafismos, como outro plano necessário de elaboração das relações ali envolvidas (Sinclair e Sinclair, 1986; Sinclair, 1988a; Sinclair, 1988b).

Na organização das situações de aprendizagem do sistema da escrita alfabética, apoiamo-nos em importante veio de estudos da literatura contemporânea sobre as hipóteses da criança na compreensão desse sistema: as pesquisas de Emilia Ferreiro e colaboradores (Ferreiro e Teberosky, 1984; Ferreiro, 1988).

Assim, a primeira situação de aprendizagem foi organizada com o principal objetivo de verificar a consistência das hipóteses dos sujeitos sobre a escrita alfabética, para possibilitar-lhes avanços na compreensão desse objeto de conhecimento em seus níveis de contrução, e das escritas de nível fonético para o ortográfico.

A primeira tarefa dos sujeitos naquela situação foi a de compor palavras com o alfabeto móvel por meio de palavras cruzadas; a segunda, a de compor quaisquer palavras também com o alfabeto móvel, e a terceira, a de produzir escrita em papel comum aos três sujeitos do trio e, depois, ler as produções.

Logo, essa proposta de aprendizagem parte da concepção de que a alfabetização é o processo de compreensão e de utilização da lecto-escrita como sistema de intercomunicação, e não mera reprodução e decifração de escritas sem significado para as crianças, como ocorre na tradição escolar.

Portanto, nas situações de aprendizagem das noções escolares focalizadas, nossa intenção foi a de ativar os fatores atuantes na construção individual daqueles objetos de conhecimento, desafiando os processos mentais típicos das crianças, segundo nossa concepção de uma intervenção pedagógica na linha adotada.

Os dados obtidos das realizações dos sujeitos foram analisados qualitativamente, em diferentes níveis de descrição interpretativa para identificar tipos de estratégias cognitivas, para categorizá-los e, quando possível, hierarquizá-los.

 

Estratégias cognitivas relativas ao sistema da adição/subtração

No caso da adição/subtração, a análise das estratégias nas diferentes categorias em que foram elas agrupadas permitiu, em geral, caracterizá-las como pré-operatórias, revelando noções ou quase estruturas numéricas específicas à construção do número (Greco et ai 1960; Greco e Morf, 1962).

Para as diversas tarefas, tanto no plano da sua realização prática como no da sua explicação ou notação, as soluções dos sujeitos puderam ser hierarquizadas em um patamar inicial marcado pelos aspectos figurativos; depois, em um patamar caracterizado pela presença da noção de quotidade e, por fim, em um patamar com indícios preliminares da noção de quantidade numérica.

Durante as tarefas, nas diversas categorias de estratégias, identificamos sinais de progressão das realizações dos sujeitos entre os três patamares definidos.

Logo, a situação de aprendizagem parece ter oferecido uma experiência com o objeto que provocou nos sujeitos esquemas, soluções próprias envolvidas na sua construção, permitindo-lhes algum avanço na reestruturação desses esquemas.

Na explicação desses resultados, a análise das estratégias evidenciou o papel da alternância das tarefas de execução com as de explicação do executado, em toda a situação, quando os sujeitos compunham concreta e graficamente coleções numéricas e, em seguida, eram solicitados a refletir sobre suas ações e sobre o que delas resultava.

Havíamos planejado essa alternância de tarefas, guiados pela seguinte hipótese: a idéia de Piaget (1974a, 1974b) de que a progressão cognitiva ocorre em uma sequência psicogenética da ação para sua conceitualização, por abstração refletidora, e mediante a tomada de consciência das ações e de seus resultados, levando àquela conceitualização e a novas ações. Então, na relação sujeito-objeto, o sujeito só conhece agindo sobre os objetos e estes só se tornam conhecíveis por causa do progresso das ações sobre eles exercidas pelo sujeito.

Examinando o papel daquela alternância entre as tarefas na relativa progressão das estratégias, temos, por exemplo, os resultados da análise das estratégias dos sujeitos de composição/decomposição de coleções e de explicação dessas realizações na primeira parte da situação:

- na primeira tarefa (tarefa A) predominam estratégias de explicação com marcas figurativas e as relativas à noção de quotidade, com alguma correspondência entre essas estratégias e as respectivas de composição. Mas, nessa tarefa e intensamente nas seguintes, ao compor coleções os sujeitos passam a controlar suas ações de acrescentar/retirar e com crescente eficiência. A necessidade de verificar, de antecipar, de planejar suas ações e composições intensifica-se, mostrando a preocupação em atribuir às coleções um numeral denominador correto (a quotidade).

- na segunda tarefa (tarefa B), as explicações dos sujeitos para as alterações nas composições pelos acréscimos efetuados já evocam as ações de acrescentar.

- na terceira tarefa (tarefa C), as explicações partem de configurações, mas referem-se à ação de retirar e às suas consequências, com o uso dos quantificadores "mais/menos".

Se nas tarefas A e B, alguma correspondência evolutiva entre as estratégias de composição prática e as de explicação dessas realizações aparece, vemos em C diminuir essa correspondência, quando as de realização parecem adiantar-se às suas respectivas estratégias de explicação. Atribuímos essa leve assimetria ao que as explicações relativas às tarefas anteriores trouxeram às realizações em termos de planejamento das ações dos sujeitos, de antecipação mais clara dos resultados dessas ações.

- na quarta e na quinta tarefa (tarefas D e E), o mesmo ciclo se repete em linhas gerais: nas realizações práticas crescem a verificação e o planejamento das ações; nas explicações, o uso de quantificadores e a evocação das ações de acrescentar/retirar intensificam-se e afinam-se, sinais de que o sujeito passa a avaliar as coleções como composições quantitativas resultantes daquelas ações.

Mas, em D e E, avançando a verificação da quantidade pela contagem, diminui a assimetria a favor das estratégias de realização prática, sendo apontadas, nas explicações, diferenças quantitativas entre coleções diversas. Há uma leve assimetria favorável a essas explicações, que em D mais se referem às ações de retirar/acrescentar como responsáveis pelas coleções.

No entanto, se as realizações práticas da tarefa E revelam novamente a força dos critérios figurativos, é curioso ali mesmo observar como, de realizações baseadas naqueles critérios, vem a necessidade do controle das ações de acrescentar elementos via contagem, entendidas as alterações das coleções como resultado de ações iterativas de retirar/acrescentar.

- na sexta e última tarefa da primeira parte (tarefa F), as realizações práticas são mais adiantadas: os aspectos transformacionais das ações ficam mais nítidos, com emprego mais elaborado das formas de controle para verificar e prever as composições. Porém, as explicações das coleções guardam marcas figurativas, com alguma regressão, e são menos adiantadas que as realizações, atestando novamente a assimetria a favor destas.

Logo, há sentido no argumento de que ocorre, muitas vezes, uma execução mais organizada no plano da ação sem que o sujeito possa, de imediato, por abstração refletidora, retirar das ações relações interpretativas de ordem superior. Mas, a esse argumento acrescentamos outro: além de haver momentos em que as explicações parecem mais adiantadas que as realizações práticas, estas só se tornam mais adiantadas a partir das explicações sobre tarefas anteriores, menos adiantadas, então, apenas em relação às realizações práticas da mesma tarefa.

Também a análise das estratégias de notação das realizações e as de suas explicações mostra o quanto a alternância da ação e de sua interpretação pode ser relevante na explicação dos resultados:

- os tipos de notação, em geral, são menos adiantados que as realizações da tarefa F. Assim, após todas as realizações anteriores, de imediato não há dos sujeitos um grafar em níveis mais adiantados do que os daquelas realizações.

A notação das realizações parece trazer aos sujeitos dificuldades de construção que pareciam superadas no plano das realizações práticas anteriores. Porém, a análise mostra também que a assimetria apontada é, às vezes, fragilizada pela presença de grafismos indicando interpretações mais avançadas, pertinentes ao antes realizado.

- as estratégias de explicação das notações em sua maioria ou evocam a configuração produzida antes ou são circulares, reportando-se descritivamente às realizações anteriores. Como reelaboração da representação gráfica das realizações anteriores, as explicações surgem então sobretudo como menos avançadas que as notações, mostrando a assimetria entre notações e suas interpretações.

Porém, esboçam-se explicações quantificadas, e algumas notações, somente quando interpretadas, assumem sentido relativo às tarefas. Embora tímida, aquela assimetria aparece às vezes a favor das explicações, sugerindo o movimento pendular entre a notação e sua explicação. Este movimento atesta novamente o papel da relação circular da ação e de sua conceitualização, via tomada de consciência das ações e de seus resultados, relação inerente à dinâmica cognitiva do sujeito em função da equilibração.

 

Estratégias cognitivas relativas ao sistema da escrita alfabética

A análise das estratégias cognitivas expressas pelos sujeitos na situação de aprendizagem da escrita alfabética revelou que, nas diferentes tarefas dessa situação, eles puderam expressar formas próprias de solucioná-las, conforme suas hipóteses sobre a escrita, correspondentes aos diferentes níveis de construção desse objeto presentes na literatura. Encontramos, assim, estratégias de lecto-escrita: pré-silábicas, silábicas, silábico-alfabéticas e alfabéticas, na acepção de Ferreiro e Terebosky (1984).

A situação de aprendizagem teria sido então favorável a tais manifestações, ativando as elaborações infantis próprias à construção do objeto focalizado, amplificando-as e transformando-as na passagem entre níveis e subníveis diferentes, e permitindo ao observador captar sinais dos conflitos cognitivos vividos pelas crianças quando a situação lhes proporcionou confrontos favoráveis para tal.

Em princípio, os resultados também tendem a mostrar que foi fundamental, para aquelas ocorrências, termos oferecido, em cada parte da situação, tarefas que levaram os sujeitos a escrever conforme seus modos próprios e, na sequência, a refletir sobre suas produções por meio da leitura. A esta leitura, por sua vez, novas escritas ou reformulações das já presentes se seguiram.

É significativo constatar que, além de termos proposto a alternância de tarefas de lecto-escrita, os sujeitos empregaram, por si próprios, a leitura como controle da produção escrita durante esta produção. E, por seu lado, a própria escrita serviu-lhes como referência e estímulo para a interpretação do escrito pela leitura.

Esse ciclo "escrita x leitura x escrita" foi observado em todo o transcorrer da situação e de parte de sujeitos de diferentes níveis de compreensão da escrita, atestando a necessidade e a tendência cognitiva da criança de agir e de interpretar suas ações. Assim sendo:

- na primeira parte da situação, em geral a tarefa inicial foi a de os sujeitos fazerem a leitura das figuras presentes no material. Esta é uma leitura figurativa que orienta a decisão para a escolha do que escrever e, depois, das letras necessárias para fazê-lo. Segue a produção de escritas pré-silábicas, silábicas, silábicoalfabéticas e alfabéticas pelos diversos sujeitos que, conforme seus níveis, sempre se utilizam da leitura/controle como guia para busca e colocação das letras.

Uma vez prontas essas escritas, o ciclo continua com a leitura da produção, ainda do tipo preditivo: o sujeito lê o que escreveu conforme seu nível e, assim, muitas vezes lê o que pensa ter sido escrito, guiado ainda pela idéia da imagem. Mas, esta leitura conduz a algumas re-escritas no sentido de substituição ou acréscimos de letras, fazendo avançar o nível da composição escrita em alguns casos. Completando o ciclo nessa tarefa, os sujeitos fazem novas leituras, parte delas ainda preditivas, com algumas já avançando para o nível alfabético.

Quando as escritas são de nível elementar, pré-silábico ou silábico, os sujeitos passam a manipular o alfabeto, estratégia que também se apresenta com características de ação e de interpretação dessa ação: categorizando letras, os sujeitos fazem a "leitura" possível dos sinais gráficos, interpretando seus traçados.

- na segunda parte da situação, o ciclo prossegue. Os sujeitos compõem palavras com o alfabeto móvel e se utilizam da leitura/controle durante suas produções. Resultam escritas de diferentes níveis, exceto do pré-silábico, com indícios de algum avanço nas produções de tipo nominativo, de inspiração escolar.

Segue a leitura dessas produções, sobretudo do tipo alfabético em comparação a algumas preditivas. Em alguns casos, elas resultam no abandono de escritas de inspiração escolar a favor de palavras da experiência própria, com progressos, mediante a lecto-escrita constante de produções do nível silábico-alfabético para as do alfabético.

- na terceira parte, o interjogo "leitura x escrita x leitura" é demonstrável pelas produções escritas que mudam de nível em direção ao alfabético, com leituras agora já alfabéticas e que se encaminham, pela re-escrita, ao refinamento de escritas e leituras ortográficas.

Essa relação entre a escrita e a leitura, em termos de ação x reflexão x ação, demonstra principalmente que a ação do sujeito é essencial porque consiste na sua própria experiência na busca e na manutenção de significados atribuídos à produção escrita. Salienta-se, assim, do próprio processo do sujeito, uma dimensão importante da compreensão da função da escrita no mundo cultural, a de representar significados.

Logo, e como no caso da adição/subtração, também na situação analisada de escrita alfabética, desencadeou-se o processo construtivo das crianças: pela leitura, elas puderam tomar consciência de suas produções durante e após as executarem. Dessa tomada de consciência, elementos foram por elas extraídos para reelaborar e fazer avançar suas escritas.

Se o ciclo da lecto-escrita tem seu significado linguístico como interpretação da escrita (pois esta só assume sentido então quando interpretada), ocorre-nos propor que essa relação assim acontece e tem seus frutos porque apoiada no ciclo necessário "ação x conceitualização da ação" do processo cognitivo do sujeito, na dinâmica da equilibração.

Em síntese, da análise das estratégias cognitivas de nossos sujeitos, vemos as possibilidades infantis de empregar esquemas pertinentes às duas noções focalizadas, de superar esses esquemas descobrindo outros a partir das tarefas de aprendizagem.

A discussão aponta para a natureza dinâmica dos progressos de aprendizagem dos sujeitos. Por mais limitados que tenham sido tais avanços, vêmo-los como construtivos, pois partiram das próprias elaborações infantis sobre as propostas, os desafios oferecidos na situação, fazendo-as avançar até onde assimilações significativas puderam ocorrer.

Para essa progressão, destacamos o papel da alternância entre tarefas de realização, de produção prática, e tarefas de explicação, de interpretação daquelas realizações.

Essa alternância assume sentido diante do que essa relação representaria do ponto de vista do processo cognitivo da criança. Nessa perspectiva, mantém-se válido o que Piaget (1974a; 1974b) propôs sobre o ciclo psicogenético contínuo "ação do sujeito e conceitualização dessa ação e de seus resultados", e o lugar da tomada de consciência nesse ciclo, fazendo com que, por abstração refletidora, ocorra o processo cognitivo em um modelo circular da relação sujeito-objeto.

 

Referencias Bibliográficas

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* Agencia financiada pelo CNPQ.

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