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Temas em Psicologia
Print version ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.18 no.1 Ribeirão Preto 2010
Atribuição de causalidade e reações de mulheres que passaram por episódios de violência conjugal
Causal attribution and reactions of women who have experienced episodes of marital violence
Tânia Mendonça MarquesI; Marilia Ferreira Dela ColetaII
IUniversidade Federal de Uberlândia
IIUniversidade Federal de Uberlândia
RESUMO
Foram avaliadas as atribuições causais para o primeiro e o último episódios de violência conjugal em uma amostra de 71 mulheres que procuraram uma unidade da Delegacia da Mulher para registrar queixa-crime contra o parceiro. Ciúmes, nervosismo, agressividade, uso de álcool e desconfiança foram as causas percebidas com maior freqüência para explicar as agressões. Para análise das causas foi utilizado o modelo atribucional de ação proposto por Weiner. As atribuições causais foram classificadas pelas mulheres como internas para a primeira e a última agressões, caracterizando-se para a maioria como instáveis e controláveis para a primeira, e estáveis e incontroláveis para a última. As mulheres que atribuíram causas internas estáveis e incontroláveis para o último ato de violência do parceiro tenderam a perceber maior culpa nele e maior intenção de agredir, a ter mais sentimentos negativos dirigidos contra ele, expectativas de que a situação ficaria pior caso permanecessem na relação e positivas se o deixassem e intenção de romper o relacionamento, além de terem comparecido à Delegacia para registrar a ocorrência, o que não aconteceu quando sofreram a primeira agressão. Esses resultados dão suporte aos modelos psicossociais que relacionam atribuições a comportamentos e, particularmente, ao que foi proposto neste estudo.
Palavras-chave: Violência Contra a Mulher, Atribuição de Causalidade, Relacionamento Conjugal.
ABSTRACT
Causal attributions for the first and the last violent episodes were evaluated in a sample of 71 women who went to a unit of the Women's Police Station to press charges against their partners. Jealousy, anger, aggressiveness, alcohol abuse, and suspicion were the most frequent perceived causes to explain the aggressions. The attributional model of action, proposed by Weiner, was employed to analyze the data. Causal attributions were classified by women as being internal for the first and the last aggression, and were characterized as unstable and controllable for the first and stable and uncontrollable for the last. Women who reported stable internal causes to the last partner's violent act, tended to blame him more, to perceive more intention of harm, to have more negative feelings towards the partner, more expectancies that the situation would be worse if they remained in the relationship, and positive expectancies if they left, and to present intention of ending the relationships. Furthermore, they had gone to the Police Station to register the occurrence, which did not occur when they suffered the first aggression act. Results offer support to social-psychological models which assume that attributions are related to behaviors, particularly in regards to the model proposed in this study.
Keywords: Violence Against Woman, Causal Attribution, Marital Relationship.
A vida conjugal tem sido investigada há muito tempo, por meio de diversos conceitos: ajustamento, satisfação, estabilidade, sucesso, qualidade ou felicidade conjugal. É possível verificar as transformações que ocorreram no relacionamento de casal a partir das pesquisas dos anos 1940 e 1950, que revelavam casamentos bastante funcionais com papéis sociais bem definidos e inquestionáveis. Brehm (1985) observa que os anos 1960 foram marcados pelas tentativas de romper com as estruturas sociais tradicionais, nos anos 1970 as pessoas concentraram-se em preencher desejos individualistas (a década do "Eu") e nos 1980 (a década do "Nós") houve uma procura pela estabilidade do relacionamento de casal e pelo significado de vida através das relações íntimas.
Em 1973 Mischel sugere que os pesquisadores estudem características cognitivas dos membros do casal, revelando uma tendência que permanece atualmente não só nos estudos sobre o relacionamento conjugal ou íntimo, mas também na própria psicologia social.
Entre as teorias e conceitos com abordagem cognitivista em psicologia social, uma área com produção significativa e crescente é a que se refere às teorias de atribuição de causalidade, cujo desenvolvimento coincide temporalmente com as novas propostas teóricas e questionamentos sociais no campo do relacionamento de casal (Bradbury & Fincham, 1992). A atribuição de causalidade é o processo pelo qual o indivíduo busca explicações acerca do porquê das ocorrências, das causas do fenômeno, formando uma relação unitária entre sua origem e suas consequências. Os estudos que deram origem ao que hoje se denomina atribuição de causalidade tiveram suas bases, principalmente, nos textos heurísticos de Heider de 1944 e 1958 (Dela Coleta, J.A. & Dela Coleta, M.F., 2006), que definiu, a princípio, dois fatores básicos aos quais as pessoas dirigiriam a atribuição de causalidade dos fenômenos que observassem: as forças do ambiente (atribuição externa ao sujeito envolvido na ação, causas impessoais, situacionais) e as características das pessoas (atribuição interna ao sujeito envolvido na ação, causas pessoais, disposicionais). Esta linha experimentou grande desenvolvimento a partir da década de 1970, com novas propostas teóricas e grande número de estudos aplicados a diversas situações interpessoais.
As teorias de atribuição de causalidade têm fornecido importantes conhecimentos sobre os processos atribucionais e sobre as causas reais e percebidas dos conflitos, desentendimentos e comportamentos interpessoais de casais que vivem relações íntimas, bem como sobre as percepções e atribuições dos casais felizes, estáveis e satisfeitos com seu relacionamento (Dela Coleta, J. A. & Dela Coleta, M. F, 2006). Karney, McNulty e Frye (2001) destacam que as atribuições são os processos cognitivos mais estudados na literatura sobre relacionamentos íntimos.
Os primeiros estudos baseados na teoria de atribuição de causalidade aplicada a este tema buscaram identificar as causas percebidas para o bom e mau funcionamentos da relação de casais e verificar as divergências atribucionais intra e entre casais (Dela Coleta, 1991). Segundo Bradbury e Fincham (1992), duas questões que guiaram quase todas as pesquisas em atribuições conjugais referiam-se a buscar uma associação entre as atribuições dos cônjuges para eventos conjugais e satisfação conjugal e a verificar se essa associação seria causal.
Outro tema que emerge na investigação das atribuições no contexto do relacionamento conjugal é a violência conjugal, com várias pesquisas buscando, em particular, compreender o fenômeno da culpa e sua relação com eventos violentos ocorridos nos relacionamentos (Andrews & Brewin, 1990). Segundo Sillars (1981), o conflito interpessoal é uma área de estudo onde a teoria da atribuição tem muitas implicações por serem as atribuições extremamente evidentes em tal situação. Diferenças na atribuição de causas entre ator e parceiro são provavelmente mais comuns e pronunciadas em conflitos interpessoais do que na maioria dos contextos sociais. Os sujeitos-atores tendem a interpretar mal a intenção do parceiro, a superatribuir responsabilidade pelos conflitos ao parceiro e a superestimar a estabilidade dos conflitos. As dimensões de atribuições - lócus da causa, estabilidade da causa e intenção - afetarão tipicamente a escolha da estratégia de resolução do conflito pelo indivíduo. Brehm (1985) destaca a importância da controlabilidade da causa atribuída ao conflito interpessoal na determinação das emoções (culpa, raiva, etc.) e no comportamento subseqüente. Quando o sujeito acredita que o parceiro é o culpado pelo conflito no relacionamento, provavelmente sentirá raiva, especialmente se pensar que o parceiro poderia ter controlado seu comportamento, porém não o fez.
Fincham, Bradbury, Arias, Byrne e Karney (1997) descrevem estudos que evidenciam a importância das variáveis cognitivas nos modelos mais recentes de casamento e violência conjugal.
Junto a outros graves problemas sociais, a violência contra a mulher requer estudos e intervenções concentrados em esforços bem planejados para minimizar as conseqüências físicas e psicológicas decorrentes de agressões de diversos tipos causadas pelo companheiro de vida, sem mencionar os danos que extrapolam o corpo da mulher, podendo chegar aos filhos e outras pessoas, aos bens materiais, ao emprego, etc.
Diversos estudos relatam a extensão e a profundidade do problema. Embora seja necessária certa cautela com relação aos resultados de pesquisas epidemiológicas, por diversas razões metodológicas, estima-se que um quarto das mulheres de todo o mundo seja vítima da violência em seus próprios lares (Williams, 2001). Dados específicos de outros países apresentam altos índices de violência contra a mulher: até 50% na Tailândia, 60% em Papua, Nova Guiné e Coréia e 80% no Paquistão e no Chile (Grant, 1995). No Brasil não há dados confiáveis, mas algumas pesquisas revelam que 70% dos crimes contra mulheres acontecem no âmbito doméstico e os agressores são os maridos ou companheiros. Em uma pesquisa do Ibope de 2006, 51% dos mais de 2000 entrevistados declararam que conhecem uma mulher que já foi agredida pelo parceiro. O relatório da ONU intitulado "O estado das cidades no mundo: 2004-05", afirma que a violência sexual no Brasil está entre as maiores no mundo.
Apesar do progresso em direção à compreensão das atribuições dos cônjuges em relacionamentos violentos, permanecem questões fundamentais com relação ao seu real impacto para os comportamentos futuros, incluindo a permanência da vítima nesse tipo de relacionamento. De fato, uma das perspectivas no estudo das atribuições em relacionamentos conjugais violentos busca uma explicação para o que leva as mulheres a permanecer ou não no relacionamento, examinando até que ponto as associações entre violência conjugal e atribuições são alteradas quando a mulher decide romper o relacionamento.
Em vista das ligações teóricas propostas por Weiner (1985) entre atribuições e afetos, seria útil determinar se certas atribuições preveem diferentes expressões afetivas e mudanças nas expectativas no âmbito do relacionamento conjugal. Uma associação entre atribuições e comportamento na interação conjugal parece plausível, ainda que somente uns poucos estudos tenham tratado este tema (Bradbury & Fincham, 1992). A literatura sugere que as dimensões de lócus, estabilidade e controle da causa, intenção, evitabilidade e culpa do sujeito da ação são necessários e importantes para a avaliação das atribuições causais relativas à violência conjugal e para a permanência ou não da mulher no relacionamento.
Considerando os dados mundiais que revelam a alta freqüência da manutenção do relacionamento conjugal, mesmo após diversos e contínuos episódios de agressão, este trabalho teve como foco principal analisar as cognições e afetos relacionados ao processo decisório de insistir em manter ou desistir do relacionamento conjugal abusivo. As análises focalizaram as atribuições, sentimentos, reações, expectativas e ações de mulheres agredidas pelos companheiros, por ocasião do registro da queixa contra o agressor na Delegacia da Mulher, através do Termo Circunstanciado de Ocorrência - TCO.
Para este objetivo foi adotada como base teórica a atribuição de causalidade e, como referência, o modelo proposto por Weiner (1972) e as sugestões de Sillars (1981) e Brehm (1985) a respeito do efeito da controlabilidade da causa atribuída ao conflito na determinação das emoções (culpa, raiva, etc.) e do comportamento subseqüente.
Weiner (1972) sugere que um modelo de ação atribucional geral deva incorporar a influência da atribuição causal no afeto e na expectativa, assumindo a forma conforme a Figura 1.
O modelo de Weiner indica que um estímulo provoca as cognições sobre as causas de um resultado comportamental e as cognições determinam respostas afetivas e expectativas de meta assim como comportamentos subseqüentes.
Neste estudo foram analisadas as atribuições de causalidade (locus, estabilidade, controlabilidade e intencionalidade da causa percebida), sentimentos (tipo e direção), expectativas e comportamentos (estilo de enfrentamento e intenção de manter ou não o relacionamento) das mulheres agredidas pelo companheiro conjugal, sendo a agressão o estímulo desencadeante das cognições, emoções e comportamentos.
Método
Participantes
Fizeram parte do estudo 71 mulheres que buscaram espontaneamente a Delegacia Adida ao Juizado Especial de Uberlândia para registrar uma queixa sobre os parceiros íntimos agressores. Após o atendimento padrão na Delegacia, as mulheres que aparentemente estavam em condições físicas e emocionais para tomar decisão e manter um diálogo eram conduzidas até o local da entrevista, onde eram informadas dos objetivos e do caráter anônimo e voluntário da pesquisa e solicitadas a participar da mesma, respondendo a um roteiro de entrevista semi-estruturado. Aquelas que estavam bastante fragilizadas pela agressão eram conduzidas aos serviços especializados e não eram solicitadas a participar do estudo.
As 71 mulheres, vítimas de violência conjugal, tinham idades entre 17 e 59 anos (média de 34,69 anos), apresentavam níveis de escolaridade diversos, mas a maioria (53,5%) tinha o primeiro grau incompleto e eram residentes em 29 bairros de Uberlândia, sendo 65% deles da periferia (52% em imóveis alugados ou cedidos), e apenas 31% eram naturais da cidade. Quanto ao estado civil, as participantes dividiram-se entre as que se declararam casadas oficialmente (50%) e as amasiadas (45,1%), ainda que 5,6% declararam-se solteiras, apesar de conviverem maritalmente com o agressor. A média de filhos por casal foi de 2,37 filhos, sendo encontrado desde participantes sem filhos até participantes com oito filhos, que eram, em sua maioria, do relacionamento atual. A média da renda pessoal foi de R$ 264,13, variando de nada a três mil reais. As profissões foram bastante diversificadas (estudante, professora, comerciante, vendedora, gari, bordadeira, costureira, faxineira, entre outras), podendo ser observadas maiores freqüências para a opção do lar (22,5%) e domésticas (18,3%). Houve um predomínio da religião Católica (53,5%) seguida pela Evangélica (21,1%), além de outras seis religiões e de 10% sem religião, porém quase a metade das participantes (47,9%) declarou-se não praticante. Em relação à moradia, 47,9% das entrevistadas residiam em casa própria, 39,4% em imóvel alugado e as demais (12,7%) em imóvel cedido. Considerando o tempo de convivência do casal em coabitação, a média observada foi de 13,31 anos, variando entre o mínimo de menos de 1 ano a 37 anos.
Instrumento
Foi elaborado um roteiro único de entrevista contendo questões fechadas de múltipla escolha e outras abertas, que foi previamente submetido à análise semântica, quando se verificou a clareza e adequação das questões para o público-alvo. O roteiro, elaborado desta forma, permitiu às participantes maior liberdade para expressar seus pensamentos e emoções, ao mesmo tempo em que forneceu as informações pretendidas. O conteúdo versou sobre dados pessoais, com doze questões sobre as características sócio-demográficas e outras oito questões para identificar a atribuição de causalidade às agressões, tendo em vista: atribuição de causalidade (lócus, estabilidade, controlabilidade da causa), intencionalidade percebida no agressor, possibilidade estimada de que o agressor poderia ter evitado a agressão, responsabilidade atribuída aos envolvidos. Além destas, seguiam-se quatro questões para identificar os sentimentos experimentados após a agressão, a direção destes sentimentos (se a si própria, ao agressor, ou sem direção), as expectativas de vida diante das possibilidades de manter e de romper a relação e a intenção de manter ou de romper a relação. A segunda parte do instrumento era composta por perguntas relativas à primeira agressão por parte do parceiro, e igualmente se perguntava as causas percebidas, o lócus, a estabilidade e a controlabilidade da causa, a intencionalidade e culpa atribuída a cada pessoa envolvida e as reações comportamentais da entrevistada após a primeira agressão, sendo estas reações classificadas segundo estilos de enfrentamento, podendo este ser focalizado no problema, focalizado na emoção ou de evitação. A semelhança das questões relativas à última agressão na primeira parte do instrumento e à primeira agressão, na segunda parte, tinha como objetivo comparar as atribuições causais, emoções e comportamentos nos dois momentos.
A maioria das questões que envolviam intensidade ou freqüência era respondida em uma escala de 5 pontos. A medida dos sentimentos foi composta por uma lista, elaborada a partir da literatura, com 16 itens que objetivavam estabelecer a presença ou ausência de tais sentimentos. Os sentimentos foram avaliados pelas entrevistadas, que indicaram se eram dirigidos a ela própria, ao parceiro ou se eram sentimentos que não eram dirigidos a ninguém. Algumas questões eram abertas para permitir a livre expressão da respondente.
Procedimentos
O roteiro de entrevista passou por uma fase de validação semântica, sendo aplicado a um grupo de 10 mulheres que procuraram a Delegacia da Mulher. Estas entrevistas iniciais transcorreram sem que houvessem dúvidas na compreensão das questões.
O local das entrevistas foi uma sala privativa na Delegacia Adida ao Juizado Especial de Uberlândia, onde ocorreram sem interrupções, no dia e hora em que a mulher compareceu à Delegacia para registrar sua queixa. Todas as mulheres que aceitaram colaborar foram entrevistadas individualmente pela pesquisadora, que permaneceu de plantão na Delegacia, no período da tarde, de segunda a sexta-feira, durante três meses, sendo considerada ótima a adesão das participantes em colaborar com o estudo.
As entrevistas não foram gravadas devido às resistências observadas na sondagem inicial. Assim, foram feitas anotações mediante o consentimento das entrevistadas, buscando-se anotar os relatos na íntegra e preservar as palavras da forma mais fiel possível.
Após as explicações sobre o estudo e a aceitação da participante, confirmada com a assinatura do Termo de Consentimento, a entrevista era realizada com uma duração média de duas horas e cinquenta minutos, incluindo o tempo necessário para se estabelecer a confiança da entrevistada e obter dados confiáveis e válidos. De acordo com Walker (1984), mulheres espancadas precisam de tempo para perceber a entrevistadora como interessadas nelas e para serem capazes de falar sobre a violência que experimentaram.
Ao final da entrevista a participante era encaminhada para a equipe de atendimento, que oferecia orientações e encaminhamentos necessários de acordo com a demanda de cada uma delas.
Foram realizadas análises descritivas para as respostas às perguntas fechadas e análise de conteúdo com criação de categorias a posteriori para cada uma das questões abertas, a partir da semelhança das respostas das entrevistadas. A análise de conteúdo (Bardin, 1988) foi utilizada para, no relato da entrevistada, identificar o núcleo das respostas, que seriam as causas atribuídas às agressões. A categorização das causas seguiu o critério teórico proposto por Weiner (1972) a respeito das dimensões causais internalidade x externalidade, estabilidade x instabilidade, controlabilidade x incontrolabilidade, sendo posteriormente lançadas na planilha de dados para cálculo de frequências.
Para a análise de relações e comparações entre grupos foram utilizados: correlação r de Pearson, Análise de Variância F de Snedecor (ANOVA) e Qui-quadrado.
Resultados
Atribuição de causalidade, intenção e culpa para a violência conjugal
Para as 71 mulheres entrevistadas por ocasião de sua ida à Delegacia para dar queixa dos companheiros conjugais, as causas gerais percebidas para as agressões foram "por ciúmes" (70%), "ele é nervoso" (58%), "ele é agressivo" (55%), "por uso de álcool" (51%), "ele tem problemas psicológicos" (32%) e discussões por motivos diversos, entre as mais citadas. Os tipos de agressão sofridos durante o relacionamento conjugal também foram avaliados, sendo mais freqüentes empurrões (94,4%), tapas (85,9%), socos (71,8%), estrangulamento (66,2%), entre várias agressões físicas e humilhação (90,1%), xingamentos (87,3%), ameaças de morte (81,7%) e falsas acusações (78,9%), entre as diversas agressões psicológicas relatadas. Tais episódios ocorriam todos os dias para 43,7% das entrevistadas ou semanalmente para 45,1% delas.
Para análise das variáveis do modelo proposto, era solicitado às mulheres um relato da primeira e da última agressão sofrida, do que aconteceu, porque ele fez isso, e logo em seguida elas mesmas deveriam apontar as categorias relacionadas ao locus e à estabilidade da causa da violência, conforme definidas por Weiner (1979): interna estável (ex: personalidade, caráter, gênio), interna instável (ex: estado emocional, nervosismo, estado de saúde, alcoolizado), externa estável (ex: família dele ou dela, os filhos) e externa instável (ex: falta de dinheiro, emprego ruim,vizinhança, a situação). É importante ressaltar que o locus da causa, seja interno ou externo, foi julgado pelas participantes com relação ao companheiro agressor, sendo interno quando se referia a causas pessoais dele e externo quando a causa estava fora dele.
Os dados na Tabela 1 mostram que o tipo de causa mais frequentemente percebida na primeira agressão foi a interna instável, com 81,7%. Estes resultados indicam que em relação à primeira agressão, o locus da causa da violência está no parceiro e, quanto à estabilidade, a causa é percebida como uma conseqüência do estado de ânimo do parceiro, estado emocional, perda de controle, ou outros estados momentâneos.
Os resultados relativos à atribuição decorrente da última agressão mostraram que 66,2% das mulheres identificaram a causa como interna estável, contra 9,9% das causas igualmente atribuídas à primeira agressão. Assim, no segundo momento analisado, as mulheres modificaram sua percepção sobre a estabilidade da causa da violência, atribuindo-a a características estáveis da personalidade do parceiro, ao invés de instáveis. No que se refere ao locus da causa, de seis entrevistadas que na primeira agressão percebiam a causa como externa, na última agressão apenas uma das entrevistadas ofereceu esta resposta.
Sobre a atribuição de responsabilidade pela agressão, a maioria das mulheres agredidas (79%) fez um julgamento avaliativo de total imputabilidade ao parceiro, com 69,0% para a primeira agressão e 78,9% para a última agressão sofrida, culpando-o pela ocorrência, enquanto avaliaram a si mesmas como nada culpadas. Estes resultados foram confirmados pelas médias das avaliações. As médias de 4,45 (DP= 0,95) e 4,68 (DP= 0,75), respectivamente, relativas à primeira e última agressões, se destacam quando comparadas com as médias das outras opções de resposta, cujos valores variaram de 1,61 a 1,23 em uma escala de 1 a 5 pontos.
Com relação à dimensão controlabilidade, que diz respeito ao grau em que a causa é considerada controlável ou incontrolável, verificou-se que a maioria das entrevistadas (94,4%), na época em que sofreram a primeira agressão, acreditava ser possível controlar a causa da violência do parceiro. Entretanto esta tendência inverte-se em relação a última agressão, com a maioria (81,7%) considerando a causa incontrolável, não mais acreditando serem capazes de modificar a causa da ocorrência da violência. Apenas 9,9% das mulheres manifestaram que a causa era controlável e 8,4% não souberam responder. Esse resultado mostra a diferença entre a primeira e a última agressão, passando de controlável a incontrolável, resultado semelhante ao que ocorreu a respeito da dimensão instabilidade/estabilidade.
Sobre a percepção de intenção no agressor, para a primeira agressão, 59,2% das mulheres atribuíram intenção total por parte do agressor, isto é, a agressão foi realizada propositalmente, sendo decorrente de um ato deliberado, cujo objetivo final foi provocar danos à parceira. Para 28,2% da amostra o companheiro não teve intenção de agredir.
Quanto à intencionalidade do último episódio de agressão, verifica-se que 85,9% das mulheres atribuíram intenção total ao parceiro, sugerindo que este o fez com propósito, índice superior ao da primeira agressão (59,2%). A média para a intenção atribuída ao parceiro para a primeira agressão foi de 3,69 (DP=1,78) e para a última foi de 4,55 (DP=1,19) em uma escala de 5 pontos.
Com relação à percepção de evitabilidade, observa-se que houve aumento das respostas das mulheres, com 57,7% indicando que ele poderia ter evitado a primeira agressão e 71,8% afirmando o mesmo a respeito da última agressão. Considerando-se a escala de 5 pontos, obteve-se uma média de 3,49 (DP= 1,47) e 3,94 (DP=1,75), respectivamente na primeira e na última agressão.
Sentimentos relacionados à ocorrência da violência conjugal
Considerando-se os sentimentos consequentes às agressões sofridas, a primeira e a última, foram observadas, respectivamente, altas frequências dos sentimentos de angústia (82% e 80%), de revolta (76% e 79%), de tristeza (68% e 53%), de raiva (66% e 82%), de mágoa (65% e 68%) e de medo (61% e 70%). Foram, ainda, assinalados os sentimentos de ansiedade, ódio e depresão (entre 35% e 50%), entre outros menos frequentes.
Com a ajuda da entrevistada, procurou-se verificar se tais sentimentos teriam um alvo, uma direção, que poderia ser o agressor, outra pessoa ou até ela mesma, chegando-se a uma classificação. Na primeira classificação feita pelas mulheres dos sentimentos suscitados pelo ato de violência no passado verifica-se que o sentimento sem alvo apresentou-se em 50 das 71 entrevistas (70,4%), seguido pelo sentimento contra ele, com 13 dos 71 casos (18,3%) e por fim os sentimentos auto-dirigidos, com 11,3% dos casos (8 em 71).
Tratando-se dos sentimentos relativos à última agressão, observa-se que 71,8% das entrevistadas classificaram seu sentimento relacionado ao agressor (ex: medo dele, raiva dele), enquanto 16,9% apontaram sentimentos referentes a si mesma (ex: culpa) e 11,3% indicaram os sentimentos sem alvo (ex: tristeza, angústia). Aqui ficou evidenciado que à medida que a violência se repete a maioria dos sentimentos, que inicialmente se caracterizavam como não tendo alvo específico (70,4%), passa a ter uma direção, cujo alvo é o parceiro (71,8%).
Reações comportamentais à ocorrência da violência conjugal
Considerando que as mulheres entrevistadas foram até a Delegacia para dar queixa do companheiro agressor, é possível concluir que tal ação foi consequência comportamental do episódio de agressão. Buscando-se compreender as reações à primeira agressão ocorrida na vida conjugal destas mulheres, perguntou-se o que fizeram naquela ocasião. A análise das respostas revelou que das 71 mulheres entrevistadas na delegacia, apenas uma havia anteriormente dado queixa por meio do Termo Circunstanciado de Ocorrência, que inicia o inquérito policial e intima o acusado a comparecer diante do juiz, e onze haviam feito o Boletim de Ocorrência, que é o simples registro da ocorrência de agressão, em geral feito pelo policial que atende o chamado no local para evitar maiores consequências. Esta diferença de registro mostra o baixo índice de notificação criminal após a primeira agressão.
No que se refere a outras ações decorrentes da agressão, observou-se que 31% das mulheres procuraram dialogar com o companheiro agressor, enquanto 32% não apresentaram nenhum tipo de reação frente à primeira agressão sofrida. Algumas procuraram apoio social (13%) junto à mãe ou uma amiga, outras reagiram agressivamente contra o agressor (14%) e poucas (8%) tentaram deixar o companheiro.
Com relação às estratégias de enfrentamento, que se referem à ação de enfrentar uma ameaça ou perigo, estas foram classificadas em três categorias (Lazarus & Folkman, 1984): focalizado no problema, focalizado na emoção e evitação. Verificou-se que o esforço da maioria (66,2%) concentrou-se no problema a fim de modificá-lo, ou seja, as mulheres relataram tentativas de mudança no comportamento do parceiro. Esta estratégia, quando adotada, envolve a negociação e uma esperança que está ligada à redução ou eliminação de problemas futuros, de modo coerente com a crença de 88,7% das mulheres, naquela ocasião, de que a situação poderia melhorar, e com a percepção de que era possível controlar a causa das agressões. Já as crenças atuais em relação à permanência no relacionamento conjugal mostram que as expectativas de vida da maioria (88,8%) são negativas e referem-se a continuar sofrendo muito (26,8%), correr risco de vida (26,8%), piorar o sofrimento (25,4%), um matar o outro (8,4%), até ela cometer suicídio (1,4%). Apenas 8,5% das mulheres têm a expectativa de que o parceiro mude o comportamento.
Quanto às outras estratégias de enfrentamento, poucas entrevistadas focalizaram na emoção (11,3%), em uma tentativa de aliviar o estado afetivo associado ou resultante da agressão e 21,1% utilizaram as estratégias de evitação, que se contrapõem ao enfrentamento de aproximação e resolução do problema e inclui processos de afastamento físico. De acordo com Holahan, Moos e Schaefer (1996), a estratégia de evitação e a focalizada na emoção são menos eficientes e ativas, exceto nos casos em que a pessoa carece de controle sobre o evento estressor, ainda que o enfrentamento focalizado no problema conduza a um melhor ajuste e adaptação ante os eventos estressores.
Não obstante, seria possível concluir que o padrão de enfrentamento adotado pela maioria foi pouco efetivo quanto a diminuir ou eliminar o comportamento violento do parceiro, pois em todos os casos houve recorrência. De fato, os dados sobre as agressões revelam que o tempo médio de vida conjugal com violência foi de 12,2 anos (σ = 9,18 anos), com o mínimo de menos de 1 ano e máximo de 38 anos, com frequência diária ou semanal para a maioria (89%).
Relações entre atribuições, sentimentos, expectativas e comportamentos decorrentes da violência conjugal
Considerando os subgrupos formados em função do tipo de causa atribuída à mais recente agressão, a amostra foi dividida nas seguintes categorias causais: causa interna, estável e incontrolável - 41 mulheres; causa interna, instável e incontrolável - 16 mulheres; causa interna, instável e controlável - 5 mulheres. O restante da amostra (9 mulheres) não constituiu grupo por falta de homogeneidade.
Através de análises de variância one-way foram comparadas as médias de culpa, intenção e evitabilidade para os dois grupos maiores, de acordo com a classificação das causas em internas estáveis (N= 41) e internas instáveis (N= 16). Os resultados indicaram que a causa interna estável, em comparação com a causa interna instável, está relacionada a culpar mais o agressor (F = 5,24; p<0,05), a atribuir menos culpa a si mesma (F = 12,32; p<0,01), à atribuição de intenção na agressão (F = 10,61; p<0,01), à atribuição de evitabilidade da agressão (F = 5,42; p<0,05), a expectativas negativas para a continuidade do relacionamento (quiquadrado = 7,27; p<0,01), à decisão dela de não continuar no relacionamento (quiquadrado = 7,45; p<0,05).
O cruzamento dos sentimentos experimentados com as demais variáveis indicou que a relação entre a direção dos sentimentos após a última agressão e a intenção de manter o relacionamento é significativa (p< 0,05), de modo que a maioria apresentou sentimentos negativos contra o agressor e não pretende continuar vivendo com ele (qui-quadrado = 13,92; p< 0,01); também as mulheres (50 em 51) apresentaram sentimentos contra o agressor (raiva e medo) e acreditavam que a situação pioraria no caso de permanecerem na relação (qui-quadrado = 17,02; p<0,001), verificando-se a relação da direção dos sentimentos com as expectativas caso continue no relacionamento. Das 63 mulheres que acreditavam que a situação pioraria se continuassem com o parceiro, 52 manifestaram a intenção de deixá-lo, mostrando que a situação já estava insustentável, enquanto 5 mulheres tinham a intenção de continuar o relacionamento e 6 estavam em dúvida. Neste caso o teste mostrou que houve relação entre expectativa e intenção, de modo que a expectativa negativa (crença em que a situação vai piorar) está relacionada com a intenção de não continuar no relacionamento (quiquadrado = 25,99; p<0,001). Em outra análise foram separadas as expectativas negativas das positivas e novamente o teste resultou significativo (qui-quadrado = 10,86; p< 0,01), indicando haver relação entre expectativas (positivas x negativas) e intenção de continuar no relacionamento (não x sim).
Os cruzamentos entre as atribuições causais, sentimentos, expectativas e ações decorrentes da primeira e última agressão sofrida pelas mulheres da amostra, bem como as outras análises deste estudo, oferecem suporte para a confirmação do modelo teórico de Weiner (1972) aplicado à violência conjugal.
Discussão e conclusões
O homem moderno enfrenta incontáveis desafios, sendo um dos mais importantes deles o relativo à violência. A violência não é um comportamento novo, ele pertence à história da humanidade e podem ser encontrados relatos na filosofia, na literatura, nas manifestações culturais e na religião.
A necessidade de buscar uma causa para o comportamento de outrem faz parte de uma tendência humana de ir além da informação disponível. Tais deduções são chamadas de "atribuições causais", que é o processo pelo qual as pessoas usam de vários tipos de informações para realizar inferências a respeito das causas de determinados comportamentos ou acontecimentos. As atribuições são uma conjectura e dizem menos respeito às causas reais do comportamento de uma pessoa do que às inferências que o observador faz acerca dessas causas (Dela Coleta, J. A. & Dela Coleta, M. F. , 2006). Portanto, a teoria da atribuição lida com causas percebidas da situação, não com causas reais.
O estudo dos mecanismos utilizados pelas pessoas para explicarem suas próprias condutas e ações e a dos outros, assume particular relevância no contexto do conflito no casamento pelo poder exploratório que este permite na análise das situações de longo tempo de permanência em um relacionamento conjugal violento. As atribuições ou explicações causais aos comportamentos e/ou eventos tornam-se, assim, ferramentas poderosas para a compreensão das reações frente à violência e ao abuso vivido em função de seu papel mediador entre os estímulos e as respostas individuais.
A análise das reações das mulheres que atribuíram causa interna instável e controlável para a primeira agressão mostrou que estas procuraram conversar com o parceiro, ou simplesmente não apresentaram nenhuma reação, acreditavam que a agressão era apenas uma crise e que passaria (instável/controlável), adotaram mecanismos de enfrentamento mais focalizado no problema, em uma tentativa de aproximação e busca de solução, apresentaram expectativas de que o relacionamento iria melhorar, não denunciaram o parceiro e declararam sentimentos sem alvo, tais como angústia e tristeza.
Os motivos alegados pelas mulheres para permanecer na relação foram, em primeiro lugar, o amor, seguido pela esperança de que o parceiro se modificasse, os filhos, os aspectos econômicos, algumas características pessoais das mulheres, os valores sociais, o medo e finalmente sentimentos de pena do parceiro. Tudo isso permite à mulher perpetuar a crença de controle da violência que se ajusta à sua necessidade de equilíbrio e interfere por um longo período nas interpretações ou explicações dadas ao comportamento do parceiro. Segundo Holtzworth-Munroe (1988) as mulheres agredidas que citaram o amor ou motivos econômicos como razões para permanecer no relacionamento violento são as que têm maior probabilidade de não deixar o parceiro. Também a respeito de amar o parceiro como motivo de permanência na relação, Strube e Barbour (1983 citado por Brehm, 1985) encontraram que as mulheres mais propensas a deixar um relacionamento abusivo não citavam espontaneamente o amor como razão para permanecer nele.
Por outro lado, observa-se uma relação entre a busca de rompimento da relação e a atribuição de causa interna estável e incontrolável à violência do parceiro, a maior culpa e maior intenção percebida no parceiro, a sentimentos negativos contra ele, a expectativas positivas se deixar o relacionamento e negativas caso o mantenha.
Consistentemente com resultados de estudos anteriores (Holtzworth-Munroe, 1988; Shields & Hanneke, 1983) mulheres agredidas são mais inclinadas a culpar o cônjuge do que a si mesmas pela violência à qual estão sujeitas (Andrews & Brewin, 1990; Frieze, 1979; Holtzworth-Munroe, 1988). A culpa e a intenção do parceiro estão relacionadas entre si, e este resultado é evidente tanto na primeira, quanto na última agressão. Vale ressaltar que a intencionalidade do ato é uma característica necessária a toda agressão (Rodrigues, Assmar & Jablonski, 2001) e que, nesse caso, a violência percebida está de acordo com os modelos de agressão hostil.
Cantos, Neidig e O 'Leary (1993) explicam que mulheres agredidas tendem a atribuir menos culpa a si mesmas e mais aos maridos e também tendem a ver as causas do abuso como estáveis se tiverem sido mais severamente feridas. Holtzworth-Munroe (1988) revela que mulheres agredidas não culpam a si mesmas pela violência do marido, mas tendem a atribuir os atos violentos deste a causas instáveis. No estudo de McClennan, Joseph e Lewis (1994), as mulheres que haviam fugido dos maridos violentos também não demonstraram sentirem-se culpadas pela violência.
Os resultados são também consistentes com a tendência geral de atribuir coisas boas a si mesmas e coisas ruins a fatores externos, enquanto para os outros, as atribuições a resultados positivos seriam predominantemente externas ao indivíduo e os negativos seriam atribuídos internamente (Heider, 1970), fenômeno posteriormente estudado e denominado de "egotismo" (Snyder, Stephan & Rosenfeld, 1976, 1978).
Além disso, a tendência de culpar os outros se caracteriza pelo fato de as pessoas darem a si próprias o mérito do sucesso e negarem a responsabilidade por suas falhas, conforme afirmações de Weiner (1972). Da mesma forma, de acordo com Sillars (1981), existe uma tendência a superatribuir a responsabilidade pelo conflito ao parceiro e a subestimar os efeitos do próprio comportamento. Cantos, Neidig e O 'Leary (1993) estudaram, de modo semelhante a este estudo, as atribuições de culpa para o primeiro e o último episódios de violência conjugal, com uma amostra de 139 casais cumprindo um programa de tratamento e encontraram altas freqüências de culpa ao parceiro nos dois momentos, tanto por parte dos homens quanto das mulheres, além de baixa concordância entre o casal a respeito de quem foi o culpado pelas situações de violência.
Diante destes aspectos, a questão que se coloca é se a violência poderia ser também resultante da relação do casal e não apenas da culpa ou das características pessoais do parceiro. De acordo com Heider (1970) uma pessoa não apenas reage ao que a outra pessoa faz, mas reage ao que ela mesma pensa sobre o que a outra pessoa percebe, sente e pensa. Além disso, Sillars (1981) sugere que os parceiros falham em perceber a causalidade mútua dos conflitos no relacionamento uma vez que esse tipo de relação interpessoal cria confusão de informações. O estudo de Byrne, Arias e Lyons (1993) verificou que a violência conjugal dos maridos de sua amostra de casais foi significativamente relacionada com atribuições de responsabilidade inapropriadas ao comportamento da esposa, e concluiu que o processo atribucional atua como moderador na relação entre satisfação conjugal e violência conjugal, de modo que os maridos insatisfeitos que fazem atribuições inadequadas tendem a maior violência. Em outro estudo (Moore, Eisler & Franchina, 2000), homens que agridem apresentaram mais atribuições negativas, acompanhadas de sentimentos de ciúmes, rejeição e abandono diante de comportamentos provocativos moderados do que homens que não agridem, sem diferença entre os grupos quando o comportamento da mulher é altamente provocativo.
Quanto aos sentimentos, especificamente ao predomínio dos sentimentos não dirigidos a si nem ao parceiro (ex: angústia, tristeza) relativos à primeira agressão, em sua maioria relacionados à atribuição interna instável, fica evidente que estes revelam a situação de infelicidade e de desamparo na qual a violência mergulha as mulheres.
Importa esclarecer que, na angústia, a reação do organismo é de paralisação e a precisão com que a pessoa capta o fenômeno é diminuída (López-Ibor, 1969, citado por Sierra, Ortega & Zubeidat, 2003). A angústia é um sentimento vinculado a situações de desespero, e sua característica principal é a perda da capacidade de atuar voluntária e livremente para dirigir os próprios atos (Sierra, Ortega & Zubeidat, 2003).
Conforme observado, os sentimentos sem alvo referem-se a um tipo de sentimento no qual os fatores cognitivos são muito reduzidos. O sentimento sem alvo ou não dirigido pode ser visto como simplesmente desviado de sua direção original. Pode-se falar, então, que existe uma tensão geral para mudar algo, mas algo indeterminado.
Assim, os sentimentos estão relacionados à decisão de denunciar ou não denunciar o agressor.
Atendo-se aos dados relativos aos sentimentos decorrentes da última agressão em que as mulheres atribuíram causas internas estáveis à violência, verificou-se a manifestação de sentimentos contra o parceiro, caracterizados pela raiva, revolta, medo, rejeição e nojo que, diferentemente dos sentimentos sem alvo, levaram as mulheres a denunciar os parceiros na Delegacia, buscando eliminar a origem desses sentimentos.
Assim, parece que a atribuição interna estável prevê diferencialmente as manifestações afetivas das mulheres que sofrem violência conjugal. Atribuições internas estáveis preveem sentimentos contra o parceiro, intenção de romper o relacionamento e expectativas de que o relacionamento piore.
Através da análise das expectativas de vida junto ao parceiro, verificou-se que, na primeira agressão, maior intenção atribuída ao agressor relacionou-se a expectativas negativas, enquanto na última agressão maior intenção (propósito de agredir) foi relacionada com a percepção de que ele poderia ter evitado. A causa interna estável relacionou-se a expectativas de vida negativas (risco de vida, piorar a situação, continuar sofrendo), com a falta de esperança de que o relacionamento melhore, com a esperança de que o parceiro se afaste, e medo que o parceiro a continue prejudicando.
Na primeira agressão a expectativa positiva, de que a situação iria melhorar, relacionou-se a não dar queixa formal na Delegacia da Mulher e a maioria das mulheres adotou estratégia de enfrentamento focalizado no problema, acreditando que este era passível de controle, especialmente através do diálogo com o parceiro agressor.
Entretanto, ao atribuir causas internas estáveis à última agressão, a crença era de que no futuro elas continuariam a ser agredidas até de modo mais severo e de que havia esperança de uma vida digna sem o parceiro. Além disso, havia intenção de romper o relacionamento, o que levou as mulheres da amostra a denunciar o agressor.
Parece que a confiança na melhora do futuro pessoal, a crença de se estar caminhando para uma vida melhor, a crença na possibilidade de conquistas e avanços pessoais caso deixe o parceiro relaciona-se à intenção de romper a relação. As mulheres que apresentam tais expectativas futuras compreendem que é preciso tempo e empenho (trabalhar, estudar) para alcançar tais objetivos e demonstram um compromisso com o próprio desenvolvimento.
Na investigação das atribuições causais verificou-se que a atribuição causal da mulher sobre o comportamento violento do parceiro constituiu fator responsável pelo tipo de ação ou intenção de ação da mulher. Dessa forma se aceita a existência de uma relação entre a explicação causal da mulher e sua permanência ou não no relacionamento violento, que se expressa nas diferenças entre as atribuições causais relatadas para a primeira e última agressão por mulheres.
Uma explicação baseada nos processos de atribuição de causalidade para a mudança cognitiva das mulheres agredidas é encontrada em Kelley (1973). Este autor definiu quatro critérios básicos de validação para se efetuar uma inferência atribucional: distintividade, consistência no tempo, consistência na modalidade e consenso. A percepção de uma causa interna e instável como, por exemplo, de que a agressão foi devida ao estado de embriaguez do companheiro, poderá ser estabelecida se não houver agressão quando ele não está alcoolizado (distintividade), se toda vez que ele bebe, ocorre a agressão (consistência no tempo), se sob o efeito de qualquer tipo e dose de bebida ocorre a agressão, ou se as outras pessoas oferecem a mesma causa para o fenômeno (consenso). A conexão entre a bebida (causa instável) e a agressão poderá ser desfeita se não mais forem observados a distintividade, a consistência ou o consenso, restando à mulher estabelecer novas conexões causais entre a agressão e as características estáveis e imutáveis do próprio agressor. Para a maioria da amostra pesquisada ocorreu o processo de mudança nas atribuições causais que resultou na queixa criminal da Delegacia da Mulher, como forma de impedir o que agora lhe parecia incontrolável.
Embora promissores quanto ao modelo teórico adotado para explicação comportamental, estes resultados precisam ser confirmados através de outros métodos. Os relatos retrospectivos das agressões anteriores podem sofrer a ação do tempo decorrido desde a primeira ocorrência, que pode chegar até uma parte significativa da vida da mulher. Estudos longitudinais poderiam examinar violência conjugal e atribuições com diferentes intervalos entre avaliações para determinar quão vigorosa é a associação que o modelo teórico prevê. Outra tarefa para pesquisa futura é determinar o peso relativo das variáveis aqui estudadas na explicação da variância da resposta comportamental, através de medidas válidas e precisas e do uso de estatística multivariada.
Uma vez que as atribuições causais desempenham importante papel durante todo o relacionamento conjugal violento, é possível sugerir que sejam utilizadas como um componente adicional a ser investigado em intervenções terapêuticas.
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Enviado em Junho de 2009
Revisado em Novembro de 2009
Aceite final em Fevereiro de 2010
Publicado em Dezembro de 2010
Nota dos autores:
Tânia Mendonça Marques - Professora Assistente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
Marilia Ferreira Dela Coleta - Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.