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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.14 no.3 Rio de Janeiro Nov. 2009

 

ARTIGO CIENTÍFICO

 

Algumas observações sobre o não verbal: neurociência da memória e clínica psicanalítica

 

Neuroscience of memory and psychoanalytic clinic: some remarks on the non-verbal

 

 

Flavia Sollero-de-Campos

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

 

 


RESUMO

Os atuais estudos neurocientíficos sobre o funcionamento da memória podem dialogar com a psicanálise. Os diferentes tipos de memória estudados pela neurociência e, especificamente a memória implícita (não verbal), já têm sido tema consistente de interesse da psicanálise desde a formulação da teoria kleiniana. A concepção da memória como processo a coloca não como um registro fiel do acontecido, mas como Freud já a definia, como uma mistura singular da lembrança com o momento presente. Como cada lembrança é construída, modificada e ampliada a partir do momento presente, pode gerar novas redes de significados e possibilidades de mudança psíquica.

Palavras-chave: memória;não verbal; neurociência; psicanálise.


ABSTRACT

The neuroscience of memory may enrich our understanding of psychoanalytic theory. Recent studies show that memory is a process activated by a retrieval cue. Freud and others had already shown that each memory is constructed, transformed, and expanded anew leading to new networks and change Therefore, it can expand and create new meanings and psychic changes. These aspects of psychoanalytic theory are confirmed and expanded by the neuroscience of memory, Implicit memory, lacking symbolic content, may be an underutilized component of psychoanalytic attention but may be attained through transference.

Keywords: memory; non-verbal; neuroscience; psychoanalysis


 

 

"Um psicanalista francês dizia que se
deve fazer algo darwiniano em psicanálise...
Que ela seja mais forte, que resista.
Apesar de não sabermos o que é ser mais forte..."
(Cesar Botella, 2007)

 

Introdução

Nos estudos psicanalíticos sobre a contemporaneidade, tem-se feito sempre referências à especificidade das "novas patologias". Uma das características mais marcantes desses sujeitos, e de suas dificuldades, seria o predomínio do não verbal, do corporal, do "curtocircuito da palavra", do irrepresentável. A partir dessas preocupações são propostas novas formas de prática clínica, visando acolher tais aspectos, incluir no campo do simbolizável aquilo que lhe escapa; como lidar com o não verbal, que em alguns casos pode constituir-se exatamente como algo não passível de simbolização na medida em que, do ponto de vista da psicanálise, não se inclui na dimensão do recalcado.

Tais tentativas de ampliação do campo psicanalítico, visando incluir os aspectos não verbais do psiquismo, no entanto, já existiam. No presente artigo, pretendemos abordar esse tema também sob o ponto de vista de alguns estudos atuais sobre o funcionamento da memória. Essas pesquisas podem ajudar-nos tanto a complexificar aquilo que os neurocientistas denominam de memórias implícitas, quanto aquilo que seria do domínio do que a psicanálise chama de "não verbal". A aproximação do ponto de vista da biologia não deve ser entendida no sentido de uma redução do psíquico ao biológico - como seria uma concepção dualista -, e sim como uma outra visão de certos aspectos do funcionamento psíquico dos analisandos (Sollero-de-Campos, 2000) . Neste sentido, não é nosso propósito investigá-los à exaustão, mas circunscrevê-los, destacando algumas discussões que possam interessar à prática clínica. Gostaríamos também de reinserir o tema do não verbal não exatamente como uma novidade, e sim como um registro já existente na constituição de algumas vertentes da psicanálise e, mais especificamente, na teoria das relações de objeto.

Para a psicanálise existe uma dimensão não-representacional no aparelho psíquico, já assinalada por Freud na Carta 52 (1896/1975), no Projeto de uma neurologia para psicólogos (1896/1975), e alcançando sua mais completa tematização em Além do princípio do prazer (1920/1975). Para além do princípio do prazer existe algo, que não se submete a este princípio, mas que é parte indispensável do campo psicanalítico. A pulsão de morte, sem objeto, e a compulsão de repetição, tentativa de construir uma trama representacional que permita o acesso ao simbólico, assinalam a impossibilidade de representação de algumas vivências e a consequente angústia frente ao irrepresentável.

A esse respeito cabem duas observações. Primeiro, é fundamental reconhecermos a existência dessa área no espaço psíquico, do resíduo resistente à representação, que se apresenta como singular e atinente ao não simbólico, diferenciando-as daquelas memórias arcaicas pré-verbais, passíveis de representação. É também relevante considerar que comportamentos não verbais - gestuais, por exemplo - não devem necessariamente ser tomados como elementos não simbolizados do ponto de vista da psicanálise. Por exemplo, a conversão histérica, embora se apresente no corpo, está dentro do campo do simbolizado.

Férenczi (1912/1992, 1913/1992) já apontava para a necessidade de a clínica psicanalítica incluir os aspectos relativos a memórias pré-verbais resistentes à representação, discriminando-as das conversões histéricas. A teoria das relações de objeto, iniciada por Melanie Klein, sempre destacou e até privilegiou os elementos não-verbais na análise. Para Klein (1970) a criança teria precocemente fantasias inconscientes independentes da percepção e da linguagem, procedentes do âmbito constitucional. Estas fantasias precoces do bebê são por vezes descritas por Klein (1970) como sensações corporais relacionadas a vivências fragmentadas do corpo. Isaacs (1982) afirma que a origem de tais fantasias está situada nas sensações somáticas e no funcionamento pulsional. Esta também seria a origem do que Klein define como "objeto". Para Baranger (1994: 44), o objeto "[...] encontra-se arraigado no sistema de fantasias inconscientes, prévias à experiência [...] constitui a própria matéria do mundo interno." O estatuto do objeto, da fantasia inconsciente e de mundo interno não é do escopo do presente trabalho, mas cabe observar que no pensamento kleiniano, as sensações corporais são fundamentais para a construção da fantasia. A fantasia inconsciente desempenha papel crucial na formação psíquica; ela é o lugar do registro da "memória em sentimentos", e que Cintra e Figueiredo (2004) chamam de "memórias em sensações". Kristeva (2002) denomina de "semióticos" tais elementos pré-verbais, compostos de sensações imagens, defesas, e objetos, "[...] mas constituindo uma organização da experiência que já comporta um sentido. A esses elementos pode vir a se juntar a linguagem, seja para formular as fantasias, trazendo-as ao plano consciente, seja para modificá-las" (Cintra e Figueiredo, 2004: 151).

Assim, Klein certamente é uma das primeiras formuladoras da importância das sensações, das imagens e dos sentimentos pré-verbais - isto é, do que assinalamos acima como a dimensão do não verbal, abrangendo também o irrepresentável e o inominável - para o trabalho analítico.

A partir de Melanie Klein, um grupo de psicanalistas constrói acréscimos e modificações na teoria kleiniana, propondo o que será depois denominado especificamente como "teoria das relações objetais". Wilfred Bion (1966) é um dos psicanalistas que propõem a necessidade de os analistas se mostrarem mais receptivos aos estados mentais de seus pacientes. Em sua teoria do funcionamento psíquico, Bion (1973) destaca a importância da função continente do analista, a qual seria responsável por boa parte dos benefícios de uma psicanálise: a capacidade do analista silenciosamente escutar, tranquilizar e ser continente para as projeções do analisando, estabilizando-o e, talvez, diminuindo seus sintomas - sem se constituir como uma fuga para a saúde ou uma questão transferencial de alívio sintomático.

Diretamente relacionadas ao objeto do presente trabalho, as propostas de W. Bion (1973) quanto à existência de elementos por ele denominados de "beta" constituem uma nova teorização da possibilidade de inclusão do não simbolizado no campo do verbal. De acordo com o autor, pelo trabalho analítico, os elementos beta - basicamente, impressões sensoriais e emoções - devem progressivamente transformar-se em elementos "alfa". Isto é, os elementos beta devem poder tornar-se elementos passíveis de serem guardados, transformados em pensamentos e pensados a partir da viabilização da função alfa. Quando estas impressões sensoriais e essas emoções primitivas não são transformadas pela função alfa - de pensar - tornam-se elementos beta, podendo originar um funcionamento psicótico (Bion, 1983).

Mais recentemente, Botella e Botella (2001) propõem o conceito de figurabilidade - neologismo a partir do conceito de representação na psicanálise - para explicar que o irrepresentável não pode ser apreendido psiquicamente pelos mesmos processos que permitem o entendimento das representações. Como os autores dizem, os modos de inteligibilidade são diferentes. Neste sentido, a figurabilidade é um modo específico de percepção interna que decorre de um movimento "retrogressivo" do analista na busca da possibilidade de representação daquele estado psíquico do paciente: o que é necessário para acompanhar o seu psiquismo. A figurabilidade tem um caráter de instantaneidade, de transitoriedade, de realização veloz - como nos sonhos. Também é fundamental reconhecer a influência marcante, sobre esses autores, dos trabalhos de Klein, Winnicott, Bion, bem como de André Green1. Cesar e Sára Botella consideram que a figurabilidade do analista dá acesso a um estado de mémoire sans souvenir (memória sem lembrança). Como os autores afirmam, "[...] a ausência do conteúdo representável não significa ausência de um acontecimento." (Botella e Botella, 2001: 206). Esta afirmação parece aproximar-se do que Winnicott (1963/1994) chama de "medo do colapso": o medo clínico do colapso é o medo do colapso que já foi experimentado.

 

Algumas concepções contemporâneas de memória

Os neurocientistas apresentam a memória como um processo extremamente complexo. Existem vários tipos de memórias que se dividem em duas grandes categorias: a memória implícita e a explícita. A memória explícita refere-se a informações acessíveis à consciência, passíveis de serem evocadas voluntariamente e de serem expressas verbalmente. Já a memória implícita é formada pelas coisas que sabemos, ou fazemos, sem termos a experiência consciente do recordar. Estas memórias podem ser muito simples (um cheiro, um toque) ou muito complexas (dirigir um automóvel). A memória implícita abrange desde a memória inata (como um susto ao se ouvir um barulho muito alto) até reflexos condicionados, ou padrões motores aprendidos (andar de bicicleta). Estas memórias podem também ser chamadas de procedurais, ou de procedimento, apesar de sabermos que as memórias implícitas envolvem muito mais do que ações. Não podem, portanto, ser expressas em palavras e independem da recuperação consciente das experiências. São, por natureza, inconscientes.

Já as memórias explícitas, ou declarativas, são aquelas que podem chegar à consciência, sendo, portanto, simbolizáveis: passíveis de verbalização. Dividem-se em semânticas - de fatos ou de conceitos -, e episódicas, que são memórias de eventos dos quais a pessoa participou, isto é, que pertencem à sua própria história pessoal. Constituem a memória autobiográfica, detalhadamente apresentada do ponto de vista neurocientífico e neuropsicológico por Frank e Landeira-Fernandez (2006). Esta memória é crucial para a estruturação da noção de identidade, e para a manutenção dos sentimentos de permanência e de continuidade do eu. Outra característica marcante da memória autobiográfica é ser acompanhada de um sentimento de familiaridade em relação ao vivido e das emoções acopladas à vivência rememorada (ou esquecida). Os autores abordam o sistema de memória autobiográfica, enfatizando o processo subjetivo de rememoração e relacionando-o à ativação de um substrato neural próprio: as vias corticais extensas cujo ponto de convergência encontra-se na região frontal e em suas interconexões, culminando na área orbitofrontal. Enfatizam também a complexidade do processamento neural envolvido, que integra diferentes aspectos da evocação, tais como auto-identidade, controle, seletividade e emoção, e apontam para a importância tanto do estresse quanto da psicoterapia para a modificação de tais aspectos da memória autobiográfica. E é esta que apresenta-se como a matéria básica da qual a psicanálise é feita.

As memórias semânticas, as episódicas e as implícitas estão localizadas em diferentes partes do cérebro. Quando uma memória é ativada, ela por sua vez ativa alguns dos outros sistemas que estavam operantes no momento em que aquela memória foi registrada. Assim, o recordar pode envolver áreas cerebrais visuais, olfativas, gustativas. Pode envolver, também, os acontecimentos vividos e o contexto emocional - a história pessoal - em que aquele acontecimento relembrado se deu.

Assim, temos aqui uma complexidade de áreas cerebrais em interação: uma memória explícita é formada no hipocampo; por sua vez, a memória semântica vai ser registrada em certas áreas próximas ao hipocampo; as memórias implícitas motoras - procedurais - vão formar-se nos gânglios basais, e as memórias emocionais mais precoces são registradas no sistema límbico, especialmente a amígdala (Pally, 1998).

As memórias nas quais revivemos uma emoção podem ser definidas inicialmente como implícitas. Mas também existem aspectos bastante complexos, e que são bem conhecidos dos psicanalistas; podemos nos sentir tristes "sem razão": o conteúdo da memória não chega à consciência, mas o sentimento relacionado à memória é percebido. E a tristeza "sem razão" pode ter sido desencadeada por uma pista implícita, não percebida conscientemente (por exemplo, um odor, um som, ou uma música, uma certa luminosidade daquele dia)2.

Essa última dimensão da memória implícita é bastante interessante para a teoria e a prática psicanalíticas na medida em que implica a existência de um núcleo inconsciente diferente do recalcado. O inconsciente não recalcado não resulta do embate de forças dinâmicas, contendo experiências pré-simbólicas que não são passíveis de expressão verbal. Já em 1915 Freud (1915/1975, vol XIV: 191) afirmava que "[...] todo o reprimido tem de permanecer inconsciente, mas [...] o reprimido não recobre todo o inconsciente." O "não reprimido" remete ao que não pôde ser representado, mas que deixou marcas no inconsciente originário; poderia ser o que em neurociências se denomina de memória implícita.

 

Memória implícita

Desde o nascimento, o bebê é capaz de registrar lembranças sensoriais, motoras e emocionais (Stern, 1992; Pally, 1998). Essas experiências ficam registradas em termos de padrões e de procedimentos que constituem o tipo de memória disponível nessa etapa do desenvolvimento. Como sabemos, esses tipos de memórias não são acessíveis diretamente à consciência; ainda não se desenvolveram formas simbólicas de pensamento. Portanto, tais memórias são estocadas nas várias áreas subcorticais citadas acima. Elas não são acessíveis à consciência, pois carecem de registros simbólicos.

Damásio (1996) tem uma interessante teorização sobre essas experiências precoces, que envolvem as emoções. Ele as denomina de "marcadores-somáticos", pois seriam vivenciadas como estados corporais ligados a emoções específicas, construídas no decorrer da história de experiências daquele indivíduo. No caso do ser humano, estes registros tornam-se posteriormente mais complexos, pela presença da linguagem.

Para Damásio (1996), o que é percebido conscientemente como sentimento consiste, em parte, de estados corporais registrados como marcadores somáticos. Existem, portanto, reações emocionais (os equivalentes somáticos dos sentimentos) ligadas aos valores estabelecidos na história de vida daquele ser. No decorrer da vida de um ser humano, no entanto, estas reações emocionais básicas entrelaçam-se com as experiências vividas e se modificam conforme surgem emoções mais complexas, que utilizam áreas corticais.

Os bebês humanos nascem munidos de capacidades inatas para a interação social (Stern, 1992; Beebe e Lachmann, 1997; Siegel, 1999a). Eles demonstram, por exemplo, uma nítida preferência por rostos humanos, ou por configurações que os imitam; buscam ativamente discriminar padrões, explorar seu meio-ambiente, localizar contingências3, e integrar todos esses dados. Além disso, os bebês humanos mostram uma incrível capacidade, registrada em vídeos e gravações de áudio de vários estudos sobre a interação bebê-cuidador (Stern, 1992; Beebe e Lachmann, 1997), de apresentar grande riqueza de respostas préverbais, pré-representacionais, tanto a interações em sintonia quanto a sequências de rompimentos das interações bebê-cuidador (a esse respeito, ver exemplos em Stern, 1992). A história da relação de cada bebê com seu ambiente gera estratégias adaptativas singulares que constituirão os detalhes de seu conhecimento relacional implícito. Por sua vez, este será o alicerce sobre o qual a vida emocional e afetiva se construirá.

Existem algumas sequências de interação prototípicas tais como o brincar de esconde-esconde, ou cócegas. O mais importante é que essas sequências de interações bebê-cuidador são gradativamente registradas na memória de procedimento daquele bebê como procedimentos do self com o outro. Esta memória implícita permanece como registros de padrões de reação do bebê, desencadeados a partir de certas pistas do ambiente; tornam-se, assim, parte da maneira característica de reação daquele bebê, perdurando até na idade adulta. Entrelaçam-se, no decorrer da vida da pessoa, memórias procedurais, reações emocionais, e um conjunto de comportamentos observáveis. Na clínica, podemos defrontar-nos com situações semelhantes, quer na transferência, quer na maneira do analisando relatar algumas de suas experiências e até, de revivê-las na sessão4.

Stern (2006) propõe o conceito de "conhecimento implícito relacional", baseado em suas investigações sobre bebês e sobre os neurônios-espelho. Os bebês recordam-se das situações sociais e afetivas e formam representações (no sentido neurológico do termo, e não no sentido psicanalítico de representante simbólico de um conteúdo recalcado) antes que possam expressá-las através do funcionamento verbal e simbólico. Este conhecimento não se modifica com a aquisição da linguagem; para Stern (2006), é um campo separado da experiência que continua se desenvolvendo ao longo da vida, e inclui os sentimentos e as intenções a ela associados. Para o autor, os analistas devem considerar a possibilidade de que talvez os aspectos mais importantes do ponto de vista psicodinâmico se expressem através de processos não simbólicos.

É claro que durante toda nossa vida continuamos a formar memórias implícitas. Como pretendemos assinalar, elas envolvem vários níveis de experiência - consciente e inconsciente, procedurais e emocionais, entretecidas ou não, na linguagem verbal. Cabe observar, também, que a sessão psicanalítica pode configurar-se como uma ocasião em que se pode explicitar o que estava implícito, ou modificar certas reações ligadas a estas memórias implícitas.

 

Memória explícita

A memória explícita, ou declarativa, refere-se à lembrança consciente de acontecimentos, pessoas, rostos, lugares, em resumo, tudo que "[...] pode ser potencialmente declarado, ou seja, trazido à mente de uma forma verbal ou como imagem mental" (Squire e Kandel, 2006: 83).

Do ponto de vista neurológico, a memória explícita está baseada nas áreas corticais do cérebro, e no hipocampo, e começa a se formar quando as conexões neuronais que envolvem essas áreas se desenvolvem, desde os primeiros meses de vida. Quanto mais conexões se formam, tanto mais poderão se formar memórias complexas, envolvendo inúmeras associações.

Ampliando o ponto de vista anatômico-morfológico, Damásio (1996) afirma que à medida que o córtex cerebral se desenvolve, começam também a se desenvolver emoções mais complexas - que ele denomina de emoções secundárias - as quais integram as memórias implícitas e as explícitas. Como estas últimas integram funções corticais e a possibilidade de consciência e de simbolização, podem incluir as memórias implícitas numa rede mais ampla de significação. Assim, novas memórias podem se constituir; elas são novas na medida em que passam a conectar dinamicamente os aspectos implícitos, explícitos e verbais das experiências emocionais. Porém, não são exatamente novas, pois trazem consigo os registros emocionais iniciais implícitos.

Esse tipo de memória é aquele com o qual os psicanalistas estão mais familiarizados, pois envolve a simbolização e a verbalização. Porém, como estamos falando aqui de tipos de memória, que estão dinamicamente entretecidos, os aspectos não verbais mencionados na literatura contemporânea como importantes aspectos das patologias atuais, ou das afecções psicossomáticas, podem apresentar dificuldades na abordagem técnica psicanalítica mais comum.

Do ponto de vista do presente artigo, é importante avaliar como uma memória pode ser ativada em algum desses múltiplos sistemas de memória. O analista certamente pode ser uma pista para evocação no analisando: desde sua aparência física, o gestual, a expressão facial, o tom da voz, o odor, até o consultório (com tudo que lá está), a rua, entre outros. Porém, o próprio paciente também pode se constituir como uma pista. Siegel (1999a) mostra como algum aspecto da experiência do analisando pode evocar uma lembrança que a partir daí integra-se à vivência com o analista, ou ao contexto da relação analítica. A lembrança pertence ao analisando, e traduz sua própria experiência. Porém, ao mesmo tempo, ela foi ampliada e transformada pela experiência com o analista, o que pode desencadear um processo de mudança psíquica.

 

Modelos de memória de redes neurais

Os modelos de redes neurais, ou conexionistas, também podem nos oferecer maneiras interessantes de se pensar a memória. Segundo estes modelos, o cérebro estoca padrões de atividades que codificam fragmentos da experiência pelo aumento da força das conexões entre aqueles neurônios que disparam durante a experiência (Schachter, 2001; Siegel, 1999b). O padrão das conexões neuronais forma, então, as memórias; estes padrões são distribuídos e são armazenados em vários neurônios, e até em várias partes do cérebro. Segundo esta visão, nosso cérebro funciona segundo processamento paralelo, e nossas memórias são criadas em nosso cérebro através da formação de padrões de conexões neuronais.

Para estudar a memória, os neurocientistas usam estes modelos, além dos estudos da morfologia do cérebro. O mais interessante é que uma rede neural pode discernir, em nível neuronal, padrões e suas modificações. Assim, ela "aprende" espontaneamente, acompanhando as mudanças nos padrões de conexões neuronais. As mudanças nas sinapses são, simultaneamente, alterações nas conexões neuronais. Isto é, essas transformações nas redes neurais geram padrões diferentes que são aprendidos de maneira implícita, sem instruções explícitas. Os modelos conexionistas referem-se a redes de neurônios, porém também podem ser um modelo interessante de explicação de como bebês, crianças, e adultos, formam memórias de maneira implícita, não verbal.

Por exemplo, como uma criança reconhece um padrão e forma, digamos, a categoria "gato"? Primeiramente, existem inúmeros tipos de gatos, de diferentes tamanhos, cores, temperamentos; a partir de toda essa variabilidade, ela deve formar a categoria de maneira a que não inclua coelhos, ou cães pequenos, ou filhotes de cães. Além disso, e simultaneamente, a criança também constitui a categoria incluindo os aspectos emocionais vinculados às suas experiências com representantes dessa categoria: os gatos seriam agradáveis? Carinhosos? Perigosos? Ameaçadores? Aceitariam aproximação? E, com o devido cuidado, o mesmo pode aplicar-se às pessoas com as quais a criança entra em contato. Em termos clínicos, podemos dizer que sempre formamos categorias a respeito de pessoas, acontecimentos, lugares, animais, e outros, a partir do reconhecimento de padrões construídos no decorrer de nossas experiências individuais, no curso de nossa vida. E esses aspectos são fundamentais para formarmos nosso entendimento das pessoas com as quais convivemos.

Israel Rosenfield (1994) aproxima as concepções freudianas de memória com as contemporâneas, especificamente aquelas propostas pela teoria do darwinismo neuronal, de Gerald Edelman (2000). Rosenfield (1994) apresenta a memória não como um depósito de lembranças, e sim como um processo dinâmico de reconstrução destas: ao nos lembrarmos de alguma coisa, a memória já vem entretecida por outras recordações, o momento presente, a pessoa que nos faz recordar, etc. Como propõe Edelman (2000), o cérebro é, antes de tudo, um sistema semântico-valorativo. Isto é, a capacidade humana para produzir conceitos está estreitamente ligada à capacidade para atribuir valores diferenciados à experiência, de acordo com os aspectos emocionais a ela relacionados.

Dentro dessa concepção, o aspecto de fundamental importância para o clínico consiste na característica das recordações serem sempre reconstruídas a cada vez em que são lembradas. Mesmo quando aparentam ser as mesmas, as lembranças foram recuperadas a partir de pistas diferentes; seguiram diferentes caminhos associativos para sua evocação. Portanto, dependendo do contexto, do momento presente daquela pessoa, sua lembrança poderá vir mesclada de novos elementos, novas colorações emocionais, novas configurações. Ou, como também vemos na clínica, o indivíduo também poderá buscar a cada evocação a confirmação da categoria à qual aquele registro pertence, de maneira estereotipada e rígida. Nesse sentido, o psicanalista poderia ser descrito como alguém que viabiliza outras possibilidades de buscar novas associações para aquela experiência de vida.

 

À guisa de conclusão

Podemos sugerir dois aspectos nos quais os estudos neurocientíficos da memória podem encontrar-se com a psicanálise, tanto na teoria quanto na prática clínica.

Em primeiro lugar, tais estudos indicam que a memória é um acontecimento intersubjetivo. Do ponto de vista da psicanálise, Winnicott (1978) define a situação analítica como um espaço potencial no qual analista e analisando criam, a partir da realidade externa e interna, uma realidade nova que emerge dessa interação, e que é irredutível entre elas. Ogden (1996) completa que a interação, a conversação, o processo transicional criado, a vida de fantasia e de criação de significados, emergem no processo da interação e da intersubjetividade. Nenhum desses aspectos está determinado a priori a partir da infância, pois em cada encontro (analítico) podem ser criados novos significados. O analisando, ao recuperar uma lembrança, está realmente construindo uma rede de associações a partir do analista como pista de evocação. Constrói-se uma nova experiência a partir desse encontro entre a lembrança (antiga) e a experiência (atual) com o analista. Criam-se, assim, outras experiências, novas expectativas, novas redes associativas. E a possibilidade de outros insights.

O segundo aspecto que consideramos relevante, no que se refere a possíveis diálogos entre a neurociência e a psicanálise, consiste na importância dada à memória implícita. A memória implícita, e especificamente a procedural, não é simbólica, nem verbal. No entanto, pode oferecer pistas fundamentais de como a pessoa experiencia a si própria e ao outro. Isto porque essas memórias apresentam-se através da expressão de estados emocionais e de sequências motoras (Stern, 2006), tais como sensações e posturas corporais, tom de voz, sequências de interações implícitas, expressões faciais e corporais das várias emoções, fuga e afastamento do olhar.

Psicanalistas franceses como Piera Aulagnier, André Green, Pierre Fédida, propõem a valorização da dimensão pré-representacional, ou implícita, na constituição do psiquismo. Por sua vez, psicanalistas ligados à escola inglesa como Wilfred Bion, Michael Bálint e Thomas Ogden valorizam o papel da contratransferência do analista quanto à possibilidade de constituir um sentido que transforme o percebido/ não representado em representacional. Dentro dessa dupla inserção, Botella e Botella (2001) propõem que o não representado pode ser alcançado através de um trabalho de elaboração psíquica por meio da figurabilidade, entendida como o retorno ao modo originário do funcionamento psíquico (Aulagnier, 1975) que seria o modo alucinatório, ou o da elaboração onírica não como realização do desejo e sim como acesso indireto à possibilidade de simbolização.

O conceito de "conhecido não pensado", de Christopher Bollas (1992) é outro exemplo de modos de apresentação clínica da memória implícita, e das dificuldades encontradas pelo analista para percebê-la e ter acesso a ela. O conhecido não pensado é "[...] como uma experiência recorrente do ser - um conhecimento mais existencial, em oposição ao representativo" (Bollas, 1992: 28). Aqui ele fala de experiências muito precoces, muito intensas, e que devido às características do aparelho psíquico do bebê, são armazenadas de maneiras diferentes da via representacional.

Ser sensível a esta dimensão da experiência do outro (e de si mesmo) pode propiciar uma abertura em nosso entendimento clínico, e uma diversificação de nossas intervenções, no sentido de incluirmos de maneira consistente o trabalho com os aspectos não verbalizáveis de nossos analisandos. Reconhecer essa dimensão pode significar torná-la acessível; algumas vezes poderá ser através da interação verbal. E quando não, que possamos não somente abrir espaço para outros tipos de intervenção, mais criativos e espontâneos, como também possamos incluir essa dimensão em nossas teorizações.

As referências acima ao campo psicanalítico da teoria das relações de objeto podem fazer-nos pensar numa aproximação, ou até convergência tanto com os trabalhos de Daniel Stern e outros pesquisadores das interações precoces, quanto os de neurocientistas no que diz respeito às características da memória implícita, ou procedimental.

A memória baseia-se numa síntese singular que cada um de nós faz do encontro da lembrança com a experiência atual, propiciando transformações e ampliações de significados na vida de ambos os participantes da relação, favorecendo aquilo que, em psicanálise, chamamos de elaboração. E a neurociência da memória é uma interessante abordagem do tema, considerando de outro ponto de vista o que acontece, e como o processo de recordação - ou não - se dá.

 

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Submetido em 19/10/2009
Aceito em 23/11/2009

 

 

Notas

(1) Poderíamos nos perguntar até que ponto o conceito de figurabilidade se aproximaria dos elementos beta propostos por Bion, e a relação entre o trabalho de figurabilidade e o desenvolvimento da função alfa.
(2) As memórias traumáticas não estão sendo incluídas aqui, dada a complexidade da situação envolvida. Certamente os aspectos explícitos e implícitos são fundamentais; a revivência de um episódio envolve a lembrança do fato, e dos indicadores não-verbais. Às vezes, é um aspecto do ambiente que desencadeia a memória.
(3) No sentido de Gould (1995), contingência é aquele evento que não é nem acaso nem necessidade
(4) Fontes (2002) relata algumas situações em consultório que poderiam ser identificadas como sequências de interações organizadoras da experiência.

F. Sollero-de-Camposé Psicóloga Clínica (PUC-RJ) e Doutora em Psicologia Clínica (PUC-RJ). Atualmente é Professora Assistente no Departamento de Psicologia (PUC-RJ). Endereço para correspondência: Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea, Rio de Janeiro, RJ 22.453-900, Brasil. E-mailpara correspondência: fsollero@puc-rio.br.

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