Services on Demand
article
Indicators
Share
Arquivos Brasileiros de Psicologia
On-line version ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.60 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2008
ARTIGOS
A periferia de Freud & do pai freudiano ao objeto lacaniano
Freud’s suburbs & Freud’s father and the lacanian object
Marcus André Vieira
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Examinam-se as diferentes leituras empreendidas por Freud em um momento seu de vertigem, aos 48 anos, em Atenas. O artigo apresenta o modo como Lacan aborda aquele momento: como o de um encontro com o ponto extremo do desejo, que se apresenta estruturalmente entrelaçado com a interdição. Articula-se o termo Pai, nome que esse nó entre desejo e proibição ganhou no edifício freudiano, com conceito lacaniano de objeto a. As relações entre o desejo e seu limite serão ainda descritas com base em uma passagem de MV Bill, em que este conhecido rapper brasileiro promove a psicanálise em seu texto, em um momento de vacilação subjetiva que será aproximado da vertigem freudiana. O artigo explora, assim, a partir das coordenadas de leitura lacanianas, de que modo os textos de Freud e de MV Bill situam o encontro do sujeito com o objeto a como o de uma abertura. Dele brota a possibilidade de que a localização disso que até então se situava em exterioridade com relação ao ego possa reescrever um destino.
Palavras-chave: Psicanálise; Freud; MV Bill; Periferia; Hip-Hop; Gozo.
ABSTRACT
The article examines how Freud describes his visit to Athens in his texts. This encounter is marked by a certain sense of vertigo, and how, according to Lacan, it represents the interlacing of the extreme point of desire with the function of interdiction. Once a limit is fixed by a ‘no’ to the unlimited jouissance, new possibilities may present themselves. The relationship between desire and interdiction is touched from the point of view of MV Bill, a brazilian rapper. Once attained the social status of celebrity, the rapper seems also subject to a certain vertigo. He doesn’t seeks Freud’s orientation nor explanation, but something else. The same obstacle that presented itself to Freud on the Acropolis now presents itself to the rapper, this encounter with the point in which success seems failure, in which a man´s top achievement make way to anguish. Thus, the article examines, from a Lacanian perspective in which the encounters of Freud and MV Bill can be seen as encounters with the object ‘a’, the possibility to find a place to that that is structurally outside, or in Lacan´s terms, ex-sisting.
Keywords: Psychoanalysis; Freud; MV Bill; Suburbs; Hip-Hop; Jouissance.
A vertigem de Freud e o objeto lacaniano
Acroponto
Freud está com 48 anos. Vai à Itália e acaba encontrando-se, quase inesperadamente, na Grécia, mais precisamente na Acrópole em Atenas. Tomado por uma vertiginosa sensação de surpresa vê-se pensando: “isto não é real”. Essa desrealização da cena será entendida como reação à brutal diferença entre dois regimes de existência, o da crença (na beleza da Acrópole, aprendida na escola) e o da realidade, da “irremediável autenticidade do visível”.1
Freud agora, tem 69 anos. Ele retorna a esse momento de perturbação na Grécia e à leitura que dele fez na época (FREUD, 1927-1971). O ocorrido será então entendido como o momento da realização de um desejo muito especial, que até então insatisfeito o havia movido e de certa forma sustentado. Conhecer a Acrópole, mais do que uma vontade entre outras, era aquele desejo que, fora de acesso, o mantinha em movimento. Em vez de recuar ou de criar para si um novo desejo, uma meta mais alta, que o levaria provavelmente à superegóica exigência perpétua de auto-superação, Freud retoma novamente o episódio integrando-o à sua teoria como uma demonstração: o desejo só pode ser satisfeito se for trabalhado, torcido pela censura ou desrealizado. Sempre que houver desejo realizado, haverá desrealização, como naquele momento em Atenas.
Aos 80 anos Freud visita uma vez mais aquele momento (1936-1985). Descreve a Romain Rolland suas peripécias na Grécia, trinta anos antes. Dá-se, agora, conta de que não se tratava somente desse ou daquele desejo, de sua realização ou censura, mas de um encontro com o que Lacan (1992, p. 197) definiu como a “dimensão do desejo”. É possível, segundo ele, distinguir o desejo, intransitivo, da demanda, essa sim desejo disto ou daquilo. No caso de Freud essa dimensão se apresenta a partir de sua relação intrínseca com a interdição. É que o desejo é indissociavelmente ligado ao que o torna proibido. A interdição eleva o objeto proibido a uma função fundamental que põe o desejo em marcha: a de assegurar que há algo ainda por alcançar.
Naquele episódio, Freud teria estado frente a frente com o que Lacan (1988, p. 217) denomina “nó estreito entre o desejo e a Lei”, que se apresenta como um limite. Ao assinalar um “não” ao gozo absoluto, este lugar-limite torna possível o desejo. A partir dele o impossível é fixado, o que, por isso mesmo, abre o horizonte do possível. Para bem distinguir o desejo da demanda Lacan nomeará, a partir de Freud, este objeto do desejo como objeto absoluto e inalcançável em si, das Ding.
Na teoria freudiana, o nome deste objeto é “Mãe”, e o da instância que articula proibição e desejo, com a qual se encontra Freud na Acrópole, “Pai”. Como conceito, ele distingue o genitor de sua função. O Pai define menos essa ou aquela proibição do que um lugar de origem, o de um “não” mítico que garante, para cada um, um impossível de base que, como vimos, é condição para o desejo. O sujeito freudiano é o sujeito do conflito. Ele é dividido, mas não somente pela conjuntura familiar repressiva, que imporia tendências conflituosas com relação à Mãe e ao Pai. Ele é dividido estruturalmente por um desejo que só pode se satisfazer com a condição de fazer o mundo desaparecer.
Teoria e realidade se entrecruzam na Grécia quando Freud se lembra que a Acrópole não marcava apenas o objeto maior de seu imaginário de viagem, mas igualmente o limite que seu pai não conseguira alcançar. De fato, Jacob Freud sempre sonhara em ir à Grécia, mas nunca pode fazê-lo. A vertigem vinha assinalar, assim, que era possível ir além de seu pai, mas da função paterna, talvez não.
50 e 100
Estamos agora em 1956, ano em que Freud completaria 100 anos. “Um centenário evoca a sobrevida”, afirma Jacques Lacan (1956-1998, p. 460), constatando a importância de Freud na cultura. Sua questão, porém, é “sobrevida de quê”? Lacan se preocupa com o fato de que nos últimos cinqüenta anos a teoria freudiana vinha sendo cada vez mais lida como cartilha, em que “conceitos”eram lidos como “preceitos”. Tudo acontecia como se Freud tivesse fixado as regras da técnica para a eternidade, sem que seus seguidores se dessem conta da lição do mestre. Não contam tanto, para a psicanálise, os mandamentos e interdições, mas sim a função da Lei. O objetivo não é encontrar a boa prescrição, aquela que diria o que se deve ou não fazer de forma mais ou menos universal e mais ou menos aceitável, mas, para cada um, circunscrever o modo como a função de limitação dá sentido a seu desejo e o torna possível.
Para demonstrar a leitura lacaniana com relação ao desejo e a maneira como ela dá lugar a Freud em nossos dias, gostaria de destacar uma afirmação de MVBill (SOARES et al., 2005, p. 36), um dos mais importante rappers do Brasil, filho das periferias, onde ainda mora. Ele afirma: “acho que vou montar um projeto social que providencie sessões de análise nas favelas” e acrescenta “eu seria o primeiro da fila”. Não é de surpreender que se pense em psicanálise mesmo em uma favela, dada a amplitude da presença freudiana na cultura. Seria, porém, o suficiente para dizer que Freud continua vivo no sentido de Lacan? Não poderíamos reconhecer neste voto de MV Bill um apelo à normatização? Não seria a frase do rapper apenas o apelo endereçado a um pretenso manual psicanalítico do desejo? Ao famoso “Freud explica” que viria dizer o quê e o porquê das coisas estarem dando errado, assim como fornecer seu sentido correto?
Ora, MVBill não pede a Freud nem explicação, nem orientação, mas sim outra coisa. Basta examinar o ponto em que se apresenta a referência à psicanálise em seu relato. Estamos em meio a uma narrativa autobiográfica, exatamente no momento que acabamos de tocar em um ponto crucial da vida do rapper, algo que Lacan chamaria de sua divisão subjetiva. No ponto máximo da celebridade ele é tomado de vertigem e afirma: “É preciso pensar uma nova estratégia para o movimento” [do qual faz parte]. É que seu nome foi feito a partir de um jargão de bandido, fazendo valer o que seria a voz da periferia e sua revolta. Ele se dá conta, porém, de que isso era só um meio, não o objetivo: “Eu pensava naquele momento que ficar fazendo cara de mau é coisa do passado”. Não é possível apenas fazer ouvir a raiva. Isso não vai longe. Pior, pode ter o efeito de amplificar a violência. “Não dava mais para ficar vivendo de bico; chega de blefe”. É sua vida e profissão que estão em questão (SOARES et al., 2005, p. 36).
Do Pai ao gozo
Não foram poucos (e não pouco importantes) os que encontraram na leitura de Freud um psicanalista que provê seu paciente de um sentido apaziguador, ou regula sua sexualidade conforme ideais eróticos vigentes.2 Para Lacan, porém, a idéia de que “Freud explica” não está em sintonia com a teoria freudiana. Caso estejamos de acordo sobre o que foi avançado até aqui, a saída não será pedir ajuda ao Pai como a alguém que ajude a organizar as idéias. O importante será situar o limite a partir do qual o caminho traçado ganhava até então sentido.
O próprio Freud destaca o quanto esse limite dado pela função não se constitui de explicações, sentidos ou lições. Tal como reza o mito freudiano da horda primitiva, ele é feito de gozo (Freud, 1913-1992). O texto põe em cena uma tribo primordial em que um macho dominante submetia todos seus filhos a seu jugo e usufruía das fêmeas com exclusividade. Em um dado momento, em vez de um dos filhos vencer o pai em um confronto individual e assumir seu lugar seguindo a lei da natureza, os irmãos decidem associar-se para matá-lo. Teria surgido assim a primeira forma de contrato, assinalando com isso o nascimento da comunidade humana.
Apesar do Pai e de sua Lei darem corpo ao limite em que desejo e defesa se enlaçam, o ponto em que esta junção se encarna será marcado por algo que não é lei e ordem. O limite imposto pelo pai ao filho é materializado, segundo Freud, exatamente pelo gozo do pai, que se impõe ao filho exatamente por sua onipotência. O pai barra o acesso à mãe por gozar dela.
Retomando este texto a partir de Lacan e de suas coordenadas estruturais, destaca-se o impasse lógico colocado pelo mito freudiano. Todos os filhos buscarão o lugar paterno e seu gozo superior, mas nunca o encontrarão. Morto o pai, ninguém mais pode ser Pai, pois se a premissa de base rezava que “para se tornar Pai é preciso derrotá-lo em um combate singular”, e se o pai está morto, como se tornar pai? Evidentemente, um dos filhos pode desfazer a aliança com os outros, por ser mais forte ou mais vil, tornando-se eventualmente um tirano, mas sempre estará em outra posição que não a do Pai primevo. Em um outro extremo, um filho pode ainda se tornar líder espiritual, amado por todos, mas, igualmente, sempre carregará consigo a sensação de impostura e de culpa fundamental que é inextinguível.
Dessa forma, o gozo paterno se localizará sempre em algum lugar além, ou aquém, nunca no presente. Em algum espaço pré-histórico teria existido um pai primevo, no espaço da vida humana, porém, ele não existe, apenas sua lembrança que, muito mais poderosa que a realidade, obriga os filhos, que somos todos, a se submeterem aos limites por ela impostos. O assassinato estipula que a lembrança do gozo paterno o manterá presente como exceção constitutiva e reguladora entre os filhos, que só poderão se manter juntos se jamais gozarem como ele. A figura paterna carregará consigo este ponto em que a falta de gozo e seu excesso se encontram instituindo uma impossível conjunção. Por outro lado, e isso talvez seja o mais importante, é exatamente porque gozar de das Ding é impossível que é possível se manter no desejo. É o que permite que se obtenha uma medida de razoável satisfação parcial com as coisas do mundo. Neste sentido, é a limitação ao gozo da Mãe que permite aos filhos, agora limitados, desejar.
Do gozo ao objeto
O desejo do pai de Freud, Jacob, era estar na Acrópole. Nunca o conseguiu, mas não foi a lembrança de sua impotência que trouxe a Sigmund a vertigem. No momento em que vai além de onde o pai pudera chegar, Freud é acossado, ao contrário, pelo que teria sentido seu pai se lá estivesse. É o gozo do Pai que se materializa na Grécia e parece impedir Freud de continuar a ser.
É bem verdade que o gozo do pai de Freud, aqui, está longe daquele figurado pelo pai da horda, mas não é necessário que seja assim. O gozo paterno, definido agora apenas como um Outro gozo, que limita o gozo de cada um, não precisa nem mesmo ter a figura paterna como apoio obrigatório. Esta talvez seja a contribuição maior de Lacan, separar o gozo que, externo ao corpo, faz função de causa do desejo e torná-lo um objeto, o objeto a(Miller, 2005b). Vejamos como.
Ao constituir, para cada um, as regras da interdição, o Pai proscreve uma série de combinações bastardas. Ao longo de uma vida, cada ocorrência inadmissivelmente híbrida será deslocada para uma espécie de terra de ninguém, os confins do recalcado. Figuras sem lugar na versão oficial de uma existência, elas permanecem impregnadas de um valor especial de verdade, pois são, para cada um, links para outras possibilidades de ser que não ganharam lugar. Terão sempre um caráter obsceno com relação ao ideal paterno, por acenarem com um gozo que não pode vir à tona sob pena de derrubar sua função de limitação.
Estas versões piratas de nós não deixam de nos orientar. Apesar da sustentação do desejo ser garantida pela função ideal do Pai, função de delimitação de um impossível, o desejo terá nelas seu motor, algo próximo ao que Freud figurava como a Mãe, Das Ding, tudo aquilo que está “fora de questão”, mas que acena com a possibilidade de realização do desejo. O pai, morto, leva consigo o segredo do seu gozo que será subtraído de cada filho. Este gozo só poderá ser recuperado em experiências marginais. Nessa periferia brilha tudo o que é bastardo, prova viva de que o pai não era assim tão santo, presença entre nós de um gozo que, supostamente perdido, garante ao Pai seu papel de Ideal regulador. Estas figuras residirão nos interstícios das coordenadas oficiais da existência. Dessa forma, em vez de erigir um belo personagem tecido com as insígnias do ideal, uma imagem de si “analisada”, livre de suas determinações, a análise é dirigida por estes estranhos seres, colagem de restos que ficaram à margem de uma história.
Esse é o objeto da psicanálise, segundo Lacan. Sem forma ou figura fixa, ganha o nome de uma letra vazia, objeto a, “pequeno amontoado” (petit tas) de restos (LACAN, 2005, p. 357). É inteiramente montagem de ocasião, bricolagem daquilo que ocupou em algum momento o lugar do impossível, da inexistência do Pai. Para cada um, contudo, é único, singular e absolutamente necessário, pois insufla a vida artesanal nos contornos industriais de uma existência. Dessa forma, a experiência do inconsciente nos desvela como seres determinados e, ao mesmo tempo, delineia em nosso horizonte a liberdade do encontro com a absoluta contingência dessas determinações.
O gozo como Outro gozo, bastardo, objeto a, é o que teria acossado Freud na Acrópole. De que modo? Para isso será preciso um último retorno à Acropole.
Última vez
O retorno ao episódio aos 80 anos, no texto “Um distúrbio de memória na Acrópole” (FREUD, 1927-1985), será para Freud o último. Desta vez ele articula a cena da Acrópole com a cena atual, em que tece suas considerações. Coloca-se, então, com relação a Romain Rolland para quem endereça seu relato, exatamente no lugar do pai. Exibe-se para ele, dez anos mais novo tal como seu irmão que o acompanhara na época, como um pai ultrapassado, impotente. Um velho com a “produção esgotada”, “que precisa de indulgência e que não pode mais viajar” (FREUD, 1927-1985, p. 221). Neste texto não brilha o severo Moisés, ao contrário, desponta o pai impotente. Não seria exatamente este pai que muitas vezes assombrara Freud? Não inscreve Freud com sua própria figura algo do velho Jacob Freud, que diante do filho silenciosamente buscara seu chapéu na sarjeta, após ter sido vítima da humilhação imposta por jovens anti-sionistas?3
É bem verdade que esta última releitura da cena da Acrópole parece ter contornos melancólicos. Mas seria essa a estrutura do texto? Não poderíamos ver, nele, uma liberação? É a hipótese de J. A. Miller (2005a): Freud só teria encontrado um ponto de basta para a vertigem desse episódio no momento que pode figurar este velho alquebrado. É exatamente esta operação que o liberta daquilo que chama de sua “piedade filial” e que, segundo ele, causara aos 48 anos sua vertigem. Aqui ela é a mola do texto, apenas um objeto de gozo.
A operação freudiana extrai um objeto até então oculto e lhe dá uma nova forma, remanejando a estrutura do desejo. Somos levados a nos deparar nesse último texto com o objeto a a partir da imagem do Pai impotente. Irrepresentável e fora do enquadre, seu lugar no exterior como verdadeiro ponto de fuga sustentava a cena do desejo.4
Talvez possamos melhor perceber o que significa esta liberação se a afastarmos de nosso imaginário da terceira idade e colocarmos o impasse que o texto resolve no plano quotidiano. Em uma civilização como a nossa, em que o gozo se apresenta como acessível e, por isso mesmo, obrigatório, coloca-se a questão: onde estamos com relação ao objeto que, interdito, nos permitiria desejar? Momentos de desaparecimento do desejo, que é também um desaparecimento subjetivo, pela possibilidade de sua satisfação, se mostram freqüentes. É o que atormenta o executivo que já conquistou tudo antes dos 40, ou ainda a criança que ultrapassa o saber dos pais assim que começa a navegar pela internet.
Este é, de certa forma, o impasse de MV Bill. Em suas próprias músicas não encontra mais apenas revolta da periferia, mas a inesgotável voz de sua urgência infinita. Diante dela tudo o que se fez até ali parece sem sentido. Como atravessar essa vertigem?
Evidentemente, MVBill, aqui, é apenas um personagem. Tecido com algumas linhas de texto, ele nada diz sobre a pessoa de carne e osso. Fornece, porém, um acesso o mais direto possível à experiência psicanalítica, que lida com um mundo de detalhes de uma história, com várias versões de uma mesma lembrança, por exemplo, de modo quase incompreensível para quem não acompanha todo seu desenrolar. “MVBill” para nós delineia o retrato de um momento decisivo. Em lugar da psicanálise ensinar sobre o que faz MVBill, é ele que aqui ensina sobre o que faz a psicanálise.
Caso o leitor aceite prosseguir com esta especulação sobre o personagem, seu movimento é digno de nota. Ele simplesmente prossegue. Não se deixa levar pela vacilação e não deixa de lado nem o rap, nem a pesquisa que o levara à vertigem. Essa pesquisa, conduzida por seis anos com Celso Athayde, produzirá, entre outros, um documentário único, Falcão, sobre os meninos do tráfico do Brasil. Tendo acesso às favelas graças ao seu papel de ídolo, MVBill pôde por em cena essas crianças em sua intimidade, sob um ângulo normalmente proibido. O documentário permitiu à classe média partilhar deste outro olhar, distinto daquele que até então a movia − do mais puro horror ao tomar este meninos como o mal em si.
No estranho sentimento que engendra o texto de Freud, de forma análoga ao que realiza o documentário, somos confrontados com aquilo que − pelo medo, prazer ou ideal − tanto limitava nossos desejos quanto impulsionava nossos sonhos. Assombra-nos a vertigem, horror de haver chegado a um ponto além do qual nenhuma realização seria possível. Ora, o objeto dos objetos nunca é o real em si, nunca é inteiramente cru. Ali, assim como com os meninos do tráfico, encontra-se sempre um pedaço de ficção, um grão de história, que permite deslocar o que parecia ser a vertigem do fim dos tempos, reorientar o desejo e reescrever um destino.5 Freud, que faria 150 anos caso ainda estivesse entre nós, não terá idade enquanto formos capazes de aceitar esse desafio.
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, M. História da sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 1977. [ Links ]
FREUD, S. Interpretação dos sonhos. Edição standard brasileira,v. IV, cap. V, parte B. Rio de Janeiro: Imago, 1900-1969. [ Links ]
______. L’avenir d’une illusion. PUF: Paris, 1927-1971.
______. Un trouble de mémoire sur l’Acropole. Lettre à Romain Rolland. In: FREUD, S. Résultats, idées, problèmes II. PUF: Paris, 1936-1985. p. 221-230.
______. Totem e tabu. Edição standard brasileira, v. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 13-163. [ Links ]
LACAN, J. A ética da psicanálise. O seminário livro 7. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1988. [ Links ]
______. A transferência. O seminário livro 8. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1992. [ Links ]
______. Situação da psicanálise e formação do analista em 1956. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1956-1998. [ Links ]
______. Télévision. In: ______. Autres Ecrits.Paris: Seuil, 2002. [ Links ]
______. A angústia. O seminário livro 10. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2005. [ Links ]
MILLER, J.-A. Silet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2005a. [ Links ]
______. Introdução à leitura de O Seminário 10 de Jacques Lacan (A angústia). Opção lacaniana, São Paulo, n. 43, p. 7-82, 2005b. [ Links ]
SOARES, L. E.; BILL, MV; ATHAYDE, C. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. [ Links ]
WITTGENSTEIN, L. Leçons et conversations. Paris: Gallimard, 1992. [ Links ]
Endereço para correspondência
Marcus André Vieira
E-mail: mav@litura.com.br
Recebido em:21/12/2007
Aprovado em:16/03/2008
Revisado em:14/04/2008
1 Expressão utilizada por J. A. Miller, cuja análise do texto de Freud orienta nossa leitura (cf. MILLER, 2005a, p. 295; LACAN, 1988, p. 217).
2 Wittgenstein (1992, p. 87), por exemplo, considerava que a interpretação freudiana era um poderoso instrumento para produzir efeitos de verdade com base em informações aleatórias. A crítica endereçada por Foucault à psicanálise é também conhecida. Em vez de libertar o paciente de seus grilhões imaginários, ela faria parte dos dispositivos de coerção e disciplina, com o agravante do controle neste caso ser erigido em um espaço interno (FOUCAULT, 1977, p. 123).
3 O episódio é narrado por Freud (1900-1969, p. 226-227) no capítulo V da Interpretação dos sonhos.
4 Seguimos aqui a hipótese de J.-A. Miller (2005a, p. 295) que situa o objeto a nesta cena no olhar apolíneo, grego, emanando da brancura da Acrópole em que aqueles dois pequenos judeus aparecem como penetras. O judeu alquebrado seria assim o contraponto imaginário deste olhar severo.
5 Lidar com esse objeto da psicanálise é, segundo Lacan (2002, p. 544), o próprio da psicanálise. Esse objeto sem o qual, em suas palavras “o médio nunca é mais do que mediocre”.