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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.68 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2016

 

ARTIGOS

 

O que é o cibersexo? Uma arqueologia em três tempos

 

What is cybersex? A three time points archeology

 

¿Qué es el cibersexo? Una arqueología en tres momentos

 

 

William Araujo RezendeI; Monah WinogradII

IDoutorando. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho pretende analisar o cibersexo a partir dos contextos discursivos que o circunscreveram como conceito. Para tanto, partimos da problematização de sua especificidade por meio da análise das definições correntes no âmbito científico. Depois, traçamos a arqueologia de sua emergência no campo do saber, em três momentos distintos a partir do levantamento dos discursos veiculados pela mídia e por periódicos científicos. Num primeiro momento, analisamos sua irrupção como problemática da identidade que logo assumiu um tom pernicioso marcado pelos discursos midiáticos. Depois, verificamos como o cibersexo passou a ser conjurado pela dimensão jurídica através da perpétua suspeita de crime potencial. Por fim, investigamos sua inserção no âmbito da Psicologia, sobretudo através de discursos patologizantes. Concluímos que o conceito de cibersexo não se esgota nessa estrutura epistemológica que não permite contemplar as experiências singulares reveladoras de sua dimensão molecular.

Palavras-chave: Sexualidade; Cibersexo; Arqueologia.


ABSTRACT

This paper aims to examine cybersex from the discursive context that involves this concept. For this, we start questioning its specificity by analyzing the current definitions in science. We then trace the archeology of its emergence in the field of knowledge in three different moments, based on a survey of the discourses conveyed by the media and scientific journals. First, we analyze how it emerges as a problem of identity and soon becomes a dangerous issue marked by media speeches. Then we verify how cybersex is conjured by the legal dimension through perpetual suspicion of a potential crime. Finally, we investigate its insertion in the scope of Psychology, mainly through a pathologizing discourse. We conclude that the concept of cybersex is not limited to this epistemological framework which does not contemplate the unique experiences that can reveal its molecular dimension.

Keywords: Sexuality; Cybersex; Archeology.


RESUMEN

Este trabajo analiza el objeto cibersexo partindo del contexto discursivo que involucró el concepto. Para este propósito, partimos del cuestionamiento de su especificidad mediante el análisis de las definiciones actuales en el ámbito científico. Después, trazamos la arqueología de su aparición en el campo del conocimiento, basado en un levantamiento del discurso transmitido por los medios de comunicación y revistas científicas, en tres momentos diferentes. En un primer momento, se analiza su emergencia como un problema de identidad que luego toma un tono peligroso marcado por el discurso de los medios de comunicación. Entonces vemos cómo el cibersexo comienza a ser conjurado por la dimensión jurídica a través de la sospecha permanente de crimen potencial. Finalmente, se investiga su inclusión en el ámbito de la Psicología, principalmente a través de discursos de patologización. Llegamos a la conclusión de que el concepto de cibersexo no se limita a este marco epistemológico que no contempla las experiencias únicas que revelan su dimensión molecular.

Palabras clave: Sexualidad; Cibersexo; Arqueología.


 

 

Introdução

Dentre as inovações tecnológicas surgidas durante o século XX, a internet certamente foi a que provocou as transformações mais profundas, não apenas nos hábitos, no comércio, na propagação da informação etc., mas, sobretudo, na subjetividade humana (Nicolaci-da-Costa, 2002). Os relacionamentos se expandiram para o espaço virtual, criando aí outros modos de interação impensáveis até então. Dentre essas novas modalidades de relação apareceu a mais controversa, talvez, e a que ainda suscita discussões inflamadas: o cibersexo. Reificado por discursos que condensaram no termo uma série de práticas envolvendo sexualidade e internet, o cibersexo tornou-se alvo de escrutínio e objeto de investigação. Nas últimas três décadas, concomitantemente à proliferação da internet, surgiram dezenas de artigos, livros e reportagens (Griffin-Shelley, 2003). Enfim, uma série de enunciados sobre esse complexo feixe de relações ao qual se chamou de cibersexo.

Tal multiplicação e difusão de enunciados se deram em dois campos: no âmbito do público leigo - abastecido por artigos de jornais e revistas (Branwyn, 1993; Elmer-Dewitt, 1995; Van Gelder, 1985) e livros populares (Levine, 1998; Robinson & Tamosaitis, 1993; Turkle, 1995) - e no âmbito acadêmico, onde a discussão assumiu um tom mais específico (Cooper, 1998; Delmonico, 1997; Young, 1996). No primeiro, inicialmente, abundaram discursos maniqueístas, alertando para os perigos e associando o cibersexo às práticas a serem evitadas. Dentre muitos críticos e alguns poucos defensores, havia, de um lado os que denunciavam os grandes perigos das interações sexuais online: pedofilia, exploração sexual, perversão e dependência (Branwyn, 1993; Durkin & Bryant, 1995; Rimm, 1995; Young, 2000). E, do outro lado, havia os que versavam sobre as novas formas de relação e experimentação da sexualidade com a segurança do anonimato e da distância física (Levine, 1998; Robinson & Tamosaitis, 1993; Turkle, 1995). No âmbito acadêmico, contudo, a pesquisa aprofundou um pouco mais a discussão, buscando entender melhor o fenômeno e interrogar suas vicissitudes a partir da investigação de quem o pratica (Daneback, Cooper, & Mansson, 2005; Greenfield, 1999).

Ameaça insidiosa? Paroxismo da liberação dos costumes? Afinal, o que é o cibersexo? Ao invés de emitir julgamentos, devemos interrogar sua emergência e sua consubstanciação como conceito. Em que contexto sócio-histórico surgiu o cibersexo? Como ele foi circunscrito como objeto de investigação? De que forma as experimentações sexuais dos indivíduos na internet se tornaram ponto de problematização de certos saberes e alvo de regulação por determinados poderes? Nosso objetivo é investigar o contexto de emergência do cibersexo no âmbito discursivo, ou seja, esboçar sua arqueologia (Foucault, 2012), partindo das diversas proposições constitutivas do conceito a fim de problematizá-lo e de interrogar seu substrato epistemológico. Depois, propomos uma breve arqueologia do conceito em três tempos, visando verificar as contingências de sua emergência no campo epistemológico. Por fim, concluímos que a resposta para a pergunta sobre o que é o cibersexo não se esgota no esquadrinhamento que lhe foi imposto pelos diversos saberes, fazendo-se necessário ampliar suas fronteiras semânticas para além das atualmente concebidas.

 

Cibersexo: o problema da especificidade

O termo cybersex é um neologismo do fim do século XX, derivado da conjunção das palavras cybernetic (do grego kibernetike, a arte do piloto, do timoneiro) e sex. Em português, cibersexo designa a atividade sexual mediada por computadores ou pela internet, lugares nos quais o vocábulo cyber foi consagrado. A partir da criação do termo, seguiram-se diversas discussões sobre sua especificidade, sobre o que exatamente ele abrangia e o que o distinguia de outras práticas. Segundo Mendes (2011), desde quando começou a ser veiculado, na década de 90, o termo conheceu uma diversidade conceitual e uma rápida transformação. Decerto que tal diversidade foi influenciada pelo desenvolvimento acelerado dos computadores, das tecnologias periféricas e da capacidade de transmissão de dados na rede mundial de computadores. Porém, como veremos, se a tecnologia serviu de armação e de plataforma para o conceito de cibersexo, foi o investimento de certos saberes que lhe conferiu consistência.

O cibersexo, desde cedo, parece ter despertado o interesse de sociólogos e psicólogos, motivando-os na tentativa de defini-lo e de descrevê-lo. Alguns autores, como Blair (1998) e Noonan (1998), anteciparam-se em defini-lo como a troca, através do computador, de mensagens em tempo real, implícita ou explicitamente eróticas, contendo ou não a descrição de fantasias sexuais e concomitantes a uma estimulação autoerótica. De modo similar, Ross e Kauth (2002) caracterizaram o cibersexo como a atividade sexual remota realizada a partir de descrições detalhadas, acompanhada de excitação sexual que conduziria ao orgasmo. Para Daneback et al. (2005), o cibersexo também consistiria no engajamento de duas ou mais pessoas em uma conversa, mediada pelo computador, com o propósito de obtenção de prazer sexual, podendo ou não incluir masturbação e orgasmo. Já Cooper, Morahan-Martin, Mathy e Maheu (2002) consideraram o cibersexo uma subcategoria da atividade sexual online, definida, por sua vez, de forma mais ampla, como qualquer atividade de cunho sexual praticada online. Nessa definição enquadravam-se não apenas as interações entre duas ou mais pessoas, mas também toda e qualquer estimulação sexual mediada por computador, incluindo as estritamente individuais, baseadas em fotos, vídeos etc. Distanciando-se das definições anteriores, Aricó e Reis (2005) se limitaram a definir o cibersexo apenas como forma de masturbação, não considerando seu possível caráter interativo. Na mesma vertente, podemos incluir Van der Leun (1995) que defendeu que, embora o tema parecesse novo, o cibersexo existia desde que o homem desenvolveu a capacidade da imaginação e da fantasia, referindo-se às velhas fantasias travestidas com uma nova roupagem tecnológica.

Importa observar que, apesar de alguns desacordos quanto à sua definição, nenhum dos autores se absteve do uso do termo - cibersexo - para tentar circunscrever o que parecia ser um fenômeno novo. Se diferentes perspectivas situaram o cibersexo ora em relação a fantasias inter e intrassubjetivas mediadas pelo computador ora em relação à masturbação simultânea ou, ainda, em relação a uma interação erótica à distância, o ponto de interseção entre elas era esse supostamente novo objeto criado para designar a interação entre sexualidade e internet. Ou seja, apesar das múltiplas perspectivas e formas de abordá-lo, trata-se de um objeto comum recente. Justamente por isso, devemos perguntar: que objeto é esse formado pela interseção entre sexualidade e internet? Que lugar ele ocupa no campo epistemológico?

Problematizando as definições sugeridas pelos autores, vemos que elas repousam mais sobre a própria investigação de um novo conjunto de práticas reunidas e circunscritas, do que propriamente sobre um novo domínio ou uma nova sexualidade. Ou seja, o que define o cibersexo está mais relacionado com o conteúdo semiológico que regula sua inserção no campo do saber do que com uma característica nova e desconhecida da sexualidade humana. Partindo das definições acima, podemos extrair duas características conceituais importantes:

1) A disposição - o cibersexo não foi definido como um novo domínio ou como uma nova dimensão própria da sexualidade, cuja expressão inauguraria uma modalidade essencialmente distinta da experiência sexual: ainda se trata de fantasia e masturbação privada ou coletiva. Ou seja, ao contrário do que se poderia pensar inicialmente, as definições de cibersexo não designam uma nova prática da sexualidade. Quando muito, apenas apontam para uma nova modalidade pornográfica.

2) A diferenciação - nenhuma das definições propôs uma identidade por diferenciação, ou seja, não pretenderam estabelecer a especificidade do cibersexo por oposição a outras práticas, como ordinariamente se faz na história do pensamento (Foucault, 2007).

Nota-se, então, que a especificidade conceitual do cibersexo se resume ao veículo envolvido: a internet. Nesse sentido, as definições propostas se caracterizam mais como descrições fenomenológicas do que como montagens conceituais. É que, em verdade, o conceito de cibersexo revela uma ampliação do alcance dos discursos e um alargamento do domínio e da produção de verdades: o saber sobre a sexualidade se apropriou de um novo território. Dito de outro modo, a definição de cibersexo por certas áreas do saber serviu como legitimação destas sobre a sexualidade, experimentada agora na e através da internet. Essa produção de enunciados, a partir da perscrutação da associação entre sexualidade e internet, resultou na circunscrição de um objeto reificado: o cibersexo. Daí ser preciso recuar até o momento em que esses discursos eclodiram, quando o cibersexo entrou na pauta do dia e se tornou objeto de pesquisa. Quais foram as condições de emergência de tais enunciados no campo do saber? Para entender a inserção do cibersexo no âmbito epistemológico, propomos uma arqueologia (Foucault, 2012) de seu aparecimento em três momentos distintos. Trata-se de analisar o aparecimento do cibersexo a partir da identificação de camadas discursivas (e de seus contextos) organizadas em três tempos, conforme sua cronologia. Mas antes disso, faz-se necessária uma breve apresentação do método arqueológico de Foucault (2012).

Em linhas gerais, uma análise arqueológica é a operação pela qual se descreve regras de formação discursivas subjacentes a enunciados. Isso significa que ela não delimita a verdade dos fatos históricos, a veracidade dos discursos e a legitimidade científica, mas, antes, descreve as regras de formação discursiva que permitiram o surgimento de um conjunto de enunciados que produziram um determinado saber ou que o condensaram e fixaram em conceitos e teorias (Foucault, 2012). Nas palavras do próprio Foucault (2014):

Arqueologia - eu o empreguei como jogo de palavras para designar algo que seria a descrição do arquivo, e absolutamente não a descoberta de um começo ou a exposição à luz das ossadas do passado. Por arquivo entendo, primeiramente, a massa das coisas ditas em uma cultura, conservadas, valorizadas, reutilizadas, repetidas e transformadas. Em resumo, toda essa massa verbal que foi fabricada pelos homens, investida em suas técnicas e suas instituições e que é tecida com sua existência e sua história. Essa massa de coisas ditas, eu a encaro não pelo lado da língua, do sistema linguístico que elas colocam em ação, mas pelo lado das operações que lhe dão nascimento. Meu problema poderia enunciar-se assim: como se faz que em uma dada época se possa dizer isto e que jamais tenha sido dito? (p. 52).

Assim, uma arqueologia do cibersexo supõe encontrar as superfícies primeiras de sua emergência, suas instâncias de delimitação (instituições e campos do saber) e as grades de especificação (operações que o relacionaram com outros objetos, outros conceitos e o situaram em determinado território epistemológico) (Foucault, 2012). Não se trata aqui de discutir o alcance e as limitações do método arqueológico, nem de realizar uma interlocução com essa proposta foucaultiana, tendo em vista seu enriquecimento teórico. Trata-se tão somente de, valendo-nos da arqueologia como instrumento metodológico, esboçar uma análise introdutória da massa de discursos que pode ser encontrada sobre essa temática, e propor uma subdivisão em três momentos distintos em função tanto do limiar temporal quanto das ideias veiculadas pelos discursos.

A identificação de tal massa discursiva se deu a partir de pesquisa bibliográfica, principalmente nos meios midiáticos e portais de periódicos científicos. Para as reportagens e matérias em geral publicadas na mídia, foi utilizada a ferramenta de busca Google e analisados os resultados encontrados para as palavras-chave cybersex, compusex, netsex, websex, sex and internet e tinysex em português, inglês e espanhol. Os artigos científicos foram pesquisados através de portais de periódicos, como o SciELO, o Elsevier e o Web of Science, entre outros, tendo sido utilizadas as mesmas palavras-chave, igualmente em português, inglês e espanhol. Nossa pesquisa revelou que, no âmbito dos relacionamentos amorosos online, vários autores dissertam sobre suas possibilidades e até seus benefícios, mas, com relação ao cibersexo, sobretudo no campo da Psicologia, a esmagadora maioria dos autores se ocupa somente de sua dimensão potencialmente problemática. É o que analisaremos a seguir.

 

Primeiro tempo: ligações perigosas

Os discursos que introduziram a problemática do cibersexo tinham um cunho jornalístico e entoavam discussões sobre as novas possibilidades de interação a partir e através da internet. Na edição de outubro de 1985 da Ms. Magazine, uma revista popular americana declaradamente feminista, a jornalista Van Gelder (1985) publicou o artigo The strange case of the electronic lover, onde narrou seu encontro virtual com Joan Sue Greene, uma neuropsicóloga de 30 anos, através de uma inovadora tecnologia que se popularizou rapidamente: um serviço de chat no canal CB do provedor americano CompuServe. Eram canais de bate-papo que permitiam interação em tempo real entre pessoas que estivessem com seus computadores conectados na rede por meio de um modem. Esse foi o contexto no qual apareceu uma das primeiras menções ao que mais tarde denominou-se de cibersexo. A autora contou que frequentemente Joan se envolvia sexualmente com algumas mulheres, com as quais interagia por meio de uma prática que ela chamou, em seu texto, de compusex ou "sexo online, similar ao sexo por telefone, no qual as pessoas digitam suas fantasias mais exuberantes enquanto se masturbam (em tempos de herpes e AIDS, isso se tornou extremamente popular)" (Van Gelder, 1985, p. 6). Mais tarde, em meio a diversas intrigas quase novelescas, descobriu-se que Joan era Alex, um psiquiatra que havia criado o perfil feminino para se relacionar com mulheres pela internet. Van Gelder (1985) concluiu, então, que:

A história de Alex levanta outras questões que possuem uma ressonância especial para as feministas. A principal delas, para mim, é por que um homem precisava travestir-se eletronicamente para experimentar intimidade, confiança e entrega. [...] Talvez umas das coisas a ser aprendidas de Joan e Alex é que temos um caminho a percorrer antes que o gênero deixe de ser o principal e volátil princípio organizador humano mesmo em um meio dedicado à primazia do espírito (pp. 9-10).

O que há de tão relevante nessa história? Primeiro, a data: apesar de ter sido publicada em 1985, a história teve início em 1983, portanto bem antes da larga popularização da internet e da criação da World Wide Web (www), em 1990 (Castells, 2001). Nessa época, início dos anos 80, embora a internet fosse uma tecnologia nova, esse registro - o mais antigo a abordar o assunto - já evidenciava a articulação entre sexualidade e internet, fosse nas práticas sexuais que a autora chamou de compusex, fosse na questão que o ciberespaço levantava a respeito do gênero como constitutivo da identidade. O segundo aspecto importante é o território. Primeiramente, o território geográfico: como as tecnologias de ligação de computadores em rede tiveram seu berço nos EUA (Castells, 2001), não surpreende que esse fenômeno tenha se manifestado primeiramente por lá.

Contudo, para além da dimensão propriamente geográfica, há todo um contexto revelado pelo veículo escolhido pela autora para a publicação de seu artigo. Trata-se do movimento feminista americano, o qual se via às voltas com a questão da relação de gêneros na década de 80 (Narvaz & Koller, 2006). Não por acaso, a história não somente foi publicada em uma revista voltada ao público feminista, a Ms., como também foi escrita por uma jornalista autointitulada feminista. Daí o terceiro aspecto a ser destacado ser justamente o sujeito da enunciação, quem proferiu o discurso: o fato de a autora ser uma jornalista, acrescido ao seu estilo de narrativa, revela não se tratar de uma publicação científica. A despeito do viés político (feminista), não havia uma tentativa de explicação teórica dos fenômenos descritos, mas um relato pessoal prosaico transformado em uma dupla crítica das relações de gênero. Por um lado, denunciava a fragilidade masculina de ter de "travestir-se eletronicamente para experimentar intimidade, confiança e entrega" (Van Gelder, 1985, p. 9) com o outro sexo. Por outro lado, denunciava estar o gênero feminino preso em sua própria armadilha por, supostamente, não permitir aos homens a mesma intimidade e confiança permitidas às mulheres entre si: Alex somente criou o personagem de Joan porque como homem jamais teria a intimidade e a confiança que usufruiu como mulher.

Seja como for, percebe-se que: (1) o que mais tarde passou a ser conhecido como cibersexo eclodiu em um campo menos científico e acadêmico do que político e (2) o que apareceu como pano de fundo para sua irrupção foi a questão das relações de gênero ou, mais profundamente, a questão da identidade e da individuação. Como subversão das identidades, as ciber-relações em geral e o cibersexo em particular permitiram, de forma direta, a experimentação de outras identidades e, de forma indireta, a crítica da identidade baseada no gênero. A partir da relação com a tecnologia, com os computadores e com a internet, novas possibilidades emergiram. Tornou-se possível romper com as identidades estabelecidas e experimentar interações diversas a partir de referenciais distintos, de modo que a problemática inicial girava em torno da questão 'quem és tu?'. Na medida em que o ciberespaço emergiu como possibilidade de emulação/simulação de outras identidades, uma linha de fuga irrompeu, se tornou problema e foi posta em questão, acionando dispositivos de controle e de captura: não apenas a questão identitária foi evocada nos meios midiáticos, mas diversas suspeitas sobre os possíveis efeitos nocivos da internet sobre as sexualidades proliferaram.

Depois de Van Gelder (1985), Dibbell (1993), autor e jornalista especializado na área de tecnologia, publicou um artigo no qual narrou um episódio de estupro no LambdaMOO (um ambiente multi-user dimensions/MUD) onde os participantes constroem personagens que funcionam como avatares). Um dos personagens, chamado pelo autor de Mr. Bungle, utilizou um boneco voodoo - um programa que permite assumir o controle dos computadores dos demais participantes e, portanto, das ações de seus personagens no ambiente MUD - para estuprar e praticar outras violências sexuais contra os demais. Dibbell (1993) relatou as reações emocionais nefastas que o episódio provocou, argumentando que, embora a maioria das pessoas tendesse a minorar a importância do ocorrido, tendo em vista não ter havido violação física, para os participantes do MUD o corpo seria a mente e esta estaria personificada no personagem. Uma violação do personagem, portanto, seria uma violação da subjetividade e do próprio corpo do participante. Não por acaso, uma das vítimas entrevistadas pelo autor chorou ao descrever suas lembranças acerca do evento, mesmo depois de meses.

Aqui, vemos um pequeno deslocamento da questão identitária levantada em discussões anteriores: o 'quem és tu?' tornou-se menos importante do que aquilo que ele faz. É que, pouco depois da criação da World Wide Web, a questão do travestimento que Van Gelder (1985) denunciava se consolidou sob a forma de ambientes MUD que permitiam e estimulavam a criação de personagens, inclusive com características fantásticas. Entre as vítimas do Mr. Bungle figuravam um palhaço mau e um espírito haitiano trapaceiro. Assim, assumir diferentes identidades no ciberespaço tornou-se menos problemático do que as ações realizadas por esses personagens. Mas, mesmo nesse ambiente de personagens, como destacou o autor, uma vez maculada a identidade do avatar, uma vez violado o personagem, a própria identidade do criador era conspurcada. Não por acaso, a justiça, ou a vingança dos demais participantes consistiu não apenas na exclusão da conta do Mr. Bungle, mas também na transformação de seu personagem em um sapo, numa tentativa de esvaziar e neutralizar sua perniciosidade. No ambiente MUD, isso significa destituir o personagem de todas as suas características, tornando-o inócuo e vulgarizado, despojado de qualquer volição.

Mas, além da questão identitária que perpassava todo o relato, o autor esboçou uma discussão que se inflamou nos anos seguintes: deve um crime como o estupro, cometido no ciberespaço, ser tratado como um crime cometido fora dele? Ou, mais especificamente, deve o conjunto de leis civis e criminais ser aplicado no ciberespaço? Em que registro se inscreve esse território virtual ou essa Virtual Reality (VR), como vários autores se referem, inclusive o próprio Dibbell (1993)? A discussão sobre a natureza desse ciberespaço, sua especificidade e sua perniciosidade era anunciada e encetada nesses artigos sensacionalistas. De modo que o que vemos nesse primeiro tempo arqueológico é a massa de discursos que envolve a temática da internet e da sexualidade habitar principalmente a imprensa popular, de larga circulação. Sua forma prosaica de narrativa associada ao conteúdo instigante e sensacionalista, além do fato dos autores serem jornalistas, nos indica o propósito subjacente dessas publicações: trazer à luz a problemática que a conjugação entre sexualidade e internet colocava para a sociedade.

A questão da transmutação das identidades no meio cibernético (Van Gelder, 1985) ou dos crimes sexuais, potenciais (Branwyn, 1993) ou efetivamente cometidos (Dibbel, 1993), foi revolvida e trazida à pauta do dia pelos canais midiáticos como uma convocação à sociedade para discutir os riscos e os perigos dos novos exercícios da sexualidade no espaço cibernético. Aquilo a que mais tarde chamaríamos de cibersexo foi, portanto, inicialmente escancarado pelo discurso jornalístico que problematizou basicamente dois aspectos conjugados. O primeiro foi a questão da identidade, desde a possibilidade de vivência/simulação de outras identidades (Van Gelder, 1985) até a crítica dos gêneros (Van Gelder, 1985), desde a possibilidade de criação de novas identidades (avatares) para interação num ambiente MUD (Dibbell, 1993) até a advertência dos riscos de escamotear a real identidade para ludibriar e conquistar vantagens (Branwyn, 1993). O segundo foi a questão dos riscos das práticas sexuais no ciberespaço: compusex (Van Gelder, 1985), netsex, tinysex (Dibbell, 1993) ou virtual sex (Dibbell, 1993) que, apesar da variedade de nomes, se referiam quase sempre à mesma coisa, o sexo mediado por computador. Objeto de estranheza, receio e suspeita, o cibersexo surgiu inspirando desconfiança.

 

Segundo tempo: uma propedêutica nascente

Nos anos seguintes, a problemática da sexualidade na internet migrou do discurso jornalísticoalarmista para o âmbito científico e legal. Os discursos agora não provinham mais unicamente dos jornalistas, os quais, de fato, passaram a se referir aos estudos e às opiniões dos especialistas. Estes não tardaram a atender ao chamado da mídia e apropriaram-se do fenômeno emergente: pesquisas, artigos científicos e livros, todo um arsenal acadêmico foi posto em funcionamento. Num primeiro momento, contudo, a questão pareceu pairar no nível do coletivo e suas implicações sociais, fazendo sociólogos e especialistas do direito se apresentarem para conjurar os perigos desse novo fenômeno.

Em 1995, os sociólogos Durkin e Bryant (1995) publicaram o artigo "Log on to sex": Some notes on the carnal computer and erotic cyberspace as an emerging research frontier, numa revista interdisciplinar sobre comportamentos desviantes. No próprio título, os autores já anunciaram um campo de investigação emergente e, no corpo do artigo, sustentaram que, no ciberespaço, as fantasias sexuais, que de outra maneira seriam naturalmente extinguidas, ganham corpo e terreno para se propagar, aumentando a incidência de comportamentos desviantes. Eles advertiram ainda para o fato de que, assim como o computador começou a revolucionar a vida social, ele também poderia revolucionar certas modalidades criminosas, sendo preciso, portanto, modificar os parâmetros de compreensão dos comportamentos sexuais desviantes, uma vez que o ciberespaço era uma nova realidade com sua própria especificidade. Na mesma época, o especialista em legislação e tecnologia McGraw (1995) publicou um artigo numa revista sobre tecnologia e direito, versando sobre assédio sexual na internet e sobre a insuficiência dos dispositivos legais para tratar a questão. Nele, o autor analisou as atribulações legais de alguns estados americanos em relação à acusação de assédio, chamando a atenção para o que depende de contingências físicas para configurar um crime. Alguns estados, segundo o autor, exigem comprovação substancial de sérios danos físicos ou mesmo de morte para considerar a acusação de assédio, excluindo de seu inventário, portanto, as ameaças pela internet.

Nascia assim toda uma propedêutica destinada a identificar os riscos potenciais do exercício da sexualidade na internet, associando-o ao domínio da marginalidade. A partir daquele momento, o cibersexo tornou-se o suspeito emblemático de um crime sexual potencial, já que a internet permitia operacionalizar qualquer tipo de fantasia (Durkin & Bryant, 1995). Foi assim que esses discursos associaram quem usa a internet para práticas sexuais às figuras do assédio sexual, da pedofilia, da pornografia infantil e de toda sorte de comportamentos sexuais criminosos. Não por acaso, McGraw (1995) expôs a debilidade legal para tratar justamente dos crimes sexuais, principalmente o de assédio, no ciberespaço, deflagrando um movimento de regulação da internet. Um bom exemplo disso é o estudo de Rimm (1995), que conduziu uma controversa pesquisa sobre pornografia online em diversos países, concluindo que 83,5% de todas as imagens postadas na Usenet (sistema de redes que precedeu a World Wide Web) eram pornográficas. Rimm (1995) chamou a atenção para a facilidade do intercâmbio de imagens bizarras e até ilegais, como as relacionadas com o abuso sexual infantil. Os resultados de sua pesquisa geraram tanta polêmica que renderam uma matéria na tradicional revista Time (Elmer-Dewitt, 1995). A pesquisa, somada ao artigo da Time, aqueceu as discussões sobre a censura na internet nos EUA ao ponto do deputado Charles Grassley, baseado nos achados de Rimm (1995), ter proposto, na sessão de 26 de junho de 1995 do Congresso americano, o projeto de lei intitulado Ato de Proteção das Crianças Contra a Pornografia dos Computadores1. Apesar do trabalho de Rimm (1995) ter sido duramente criticado (Hoffman & Novak, 1995), os projetos de leis regulatórios da internet seguiram em frente. Alguns, como o Ato de Prevenção da Pornografia Infantil de 1996, foram promulgados (Sternberg, 2001).

Em resumo, o que podemos ver nesse segundo tempo arqueológico foi uma progressiva apropriação dos discursos sobre sexualidade e internet pelas ciências humanas, sobretudo aquelas que se ocupam da coletividade, como a Sociologia e o Direito. Essa inserção no campo epistemológico se deu principalmente através da problematização dos riscos e perigos dos exercícios da sexualidade na internet. As fronteiras que pouco a pouco lapidaram e delinearam essa propedêutica foram traçadas inicialmente pela marginalização das práticas sexuais online. Decerto que não estamos sugerindo uma generalização exacerbada, que criminalizava toda e qualquer prática sexual online, mas não podemos negar o surgimento de um paradigma de suspeita dessas práticas. Os perigos constantes e eminentes da pedofilia que poderiam estar no computador de casa, o fácil acesso à pornografia, a exploração sexual e o assédio online passaram a compor o campo semântico do cibersexo. Os discursos do Direito, os projetos de lei que tramitaram no congresso americano, tudo isso demonstra a mecânica de poder e de saber posta em funcionamento para gerir o cibersexo na dimensão própria da sexualidade. Tal como o modo de vida coletiva fora do ciberespaço é ou não sancionado pela legislação, também as ações e os comportamentos no ciberespaço deveriam sê-lo. Mas, não bastava incriminar e criminalizar as condutas sexuais na internet. Era preciso antecipá-las, conhecer suas motivações, esquadrinhar seus limites e estabelecer um tratamento. Isso é o que analisaremos em nosso terceiro tempo arqueológico.

 

Terceiro tempo: a compulsão do cibersexo

Foi somente em 1996 que efetivamente o termo cibersexo se consagrou, ganhando novos contornos a partir de sua captura pelos discursos psicológicos e psiquiátricos. Apesar de já ter aparecido numa publicação anterior um tanto obscura (Robinson & Tamosaitis, 1993), foi a partir de autores como Young (1996, 1999, 2000), Delmonico (1997) e Cooper (1997, 1998) que o termo passou a designar as práticas da sexualidade na internet. Mais do que isso, os discursos desses autores e de outros contemporâneos marcaram um deslocamento importante: a interiorização da problemática do cibersexo no indivíduo e sua incrustação na subjetividade. Atravessados pela massa discursiva que constituiu um campo semântico majoritariamente marcado pela suspeição e pela marginalização do cibersexo, uma série de autores se debruçou principalmente sobre os aspectos negativos dele, seu potencial problemático e patológico. Decerto que eles não foram os únicos ou seu discurso unânime, mas os efeitos subjetivos e a repercussão de seus enunciados merecem nossa atenção.

Uma das cenas emblemáticas desse deslocamento foi a apresentação, feita pela Dra. Kimberly Young (1996) no 104º encontro anual da American Psychological Association, dos resultados de sua pesquisa cuja hipótese era a existência da dependência de internet e a extensão potencial dos problemas causados por seu abuso. Young utilizou o critério de jogo patológico descrito no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM IV) para sustentar sua tese, alegando que, "de todos os diagnósticos presentes no DSM-IV, o jogo patológico foi considerado o mais próximo da natureza patológica do uso da internet" (Young, 1996, p. 2). Assim, complementou Young (1996), "a dependência de internet pode ser definida como um transtorno do controle dos impulsos que não envolve um agente tóxico" (p. 2). Young reuniu 496 sujeitos que responderam a um questionário de oito itens baseado nos critérios diagnósticos para jogo patológico, devidamente adaptado para o ambiente da internet. Aqueles que responderam afirmativamente a 5 ou mais questões foram classificados como dependentes de internet. Além da categorização, o questionário se propunha também a inventariar as práticas na internet, o tempo despendido nelas, as preferências e os prejuízos causados por seu uso.

Young (1996) concluiu que era possível confirmar a hipótese da existência de dependência de internet. Fazendo uma aproximação entre os quadros de dependência de internet e jogadores compulsivos ou alcoólatras, a autora considerou que estes se enquadravam na categoria de distúrbio do controle dos impulsos, pois não conseguiam abandonar a internet apesar das consequências negativas que ela podia trazer. Apesar do trabalho de Young (1996) não estar debruçado especificamente sobre a problemática do cibersexo, ele aparece como uma subcategoria dessa nova desordem clínica, a dependência de internet. Paralelamente a Young, outros autores também estudaram o assunto, como demonstram o volume e o tipo de publicações que surgiram à época. Em 1997, o Journal of Sex Education and Therapy dedicou uma edição especial ao tema do sexo e relacionamentos na internet (Griffin-Shelley, 2003). O Dr. Al Cooper (1997) introduziu a edição com a apresentação intitulada The Internet and sexuality: Into the new Millennium. A psicóloga especializada em sexologia Sandra Leiblum (1997) contribuiu com um artigo que tratava sobre as questões clínicas do que chamou de Netsex. Uma série de especialistas publicou seus artigos sobre temas como romance on-line (Cooper & Sportolari, 1997), intimidade (Schnarch, 1997), infidelidade (Shaw, 1997), parafilias (Kim & Bailey, 1997), interesses sexuais ego-distônicos (Newman, 1997), identidade de gênero (Weinrick, 1997) e educação sexual (Gotlib & Fagan, 1997). E dois artigos internacionais (Barak & Safir, 1997; Luni, Krazanskaya, Malikhova, Light, & Brandt-Sorheim, 1997), versando sobre a questão a partir dos pontos de vista dos contextos israelita e russo.

Com efeito, essa edição especial marcava um fato digno de nota: o escrutínio do cibersexo em larga escala. O fato de ter merecido uma edição especial num reconhecido jornal acadêmico já demonstra a importância e a amplitude que a temática da sexualidade na internet vinha tomando. Mas as diferentes abordagens dos artigos - da identidade à ética -, além das diferentes localidades de origem - do ocidente ao oriente -, marcam uma expansão de propagação. E essa expansão não se deu unicamente em publicações de revistas especializadas, mas em uma verdadeira caça aos praticantes de cibersexo. A Dra. Young, ao prosseguir com suas investigações acerca da dependência da internet e do cibersexo, tornou disponível em sua página da web, em 1998 (Griffin-Shelley, 2003) um questionário autoadministrado como primeira forma de diagnóstico de dependência de cibersexo (Young, 2013). No mesmo ano, outro psicólogo e expert em estudos sobre sexualidade, Robert Weiss (2014), também criou um teste de triagem on-line que avaliava a dependência de cibersexo (Griffin-Shelley, 2003). Além destes, podemos citar outros testes que surgiram à época ou pouco tempo depois, como o On-line Sexual Addiction Questionnaire (O.S.A-Q) de Dana E. Putnam, disponível on-line em 1997 (Griffin-Shelley, 2003), o Internet Sex Screening Test (Delmonico & Miller, 2003), disponível on-line a partir de 1999 (Griffin-Shelley, 2003), além do CyberSexual Abuse Test do Dr. David Greenfield (2014), disponível on-line desde 2001.

Assim, aparentemente de forma súbita e repentina, passou-se a buscar os compulsivos por cibersexo. Testes multiplicaram-se, bem como pesquisas esmiuçando o que Young (2000) chamou de nova desordem clínica. Nos próprios títulos dos trabalhos, escancarava-se a relação agora indissociável entre cibersexo e compulsão. Em uma edição especial da revista CyberPsychology & Behavior dedicada à questão da dependência de internet, Delmonico e Carnes (1999) publicaram um artigo chamado Virtual sex addiction: Why cybersex becomes the drug of choice. Em outra revista voltada para compulsões sexuais, Cooper (2000) publicou o trabalho Cybersex and sexual compulsivity: The dark side of the force. Outra publicação trazia como título Cybersex users, abusers, and compulsives: New findings and implications (Cooper, Delmonico, & Burg, 2000). Poderíamos citar inúmeros exemplos (Schneider & Weiss, 2001; Schwartz & Southern, 2000; Young, 2000, 2001), mas esses já bastam para ilustrar o movimento pelo qual os discursos psicológicos e psiquiátricos majoritariamente associaram o cibersexo à compulsão e ao vício, mais especificamente, à patologia.

A problemática do cibersexo se deslocou, assim, do âmbito social para encontrar suas raízes no indivíduo, na patologia individual do controle dos impulsos. Doravante, era a subjetividade que devia ser perscrutada em busca da etiologia da patologia, pondo toda uma hermenêutica do cibersexo em funcionamento. Bateria de testes, exames e recursos diagnósticos foram produzidos e tratamentos e terapias foram engendrados ou adaptados (Young, 2013; Young & Abreu, 2011; Weiss, 2014). Enfim, o cibersexo sedimentou-se como perigo constante a ser conjurado em sua dupla marginalidade: como um crime virtual e como patologia. O campo semântico do cibersexo no âmbito científico pautava-se no cerceamento e conjuração do mesmo, captura e neutralização de seus perigos.

 

Conclusão

Esta breve arqueologia identificou três tempos do cibersexo. Inicialmente, o discurso sobre o cibersexo eclodiu no âmbito jornalístico e midiático, denunciando a problemática da identidade. Depois, certos saberes, como a Sociologia e o Direito, se apropriaram do cibersexo, marcando sua inserção no campo epistemológico a partir das tentativas de regulação através de dispositivos legais, gerando a criminalização das condutas sexuais na internet. As proscrições jurídicas foram adaptadas à internet para prevenir as novas modalidades criminosas da pedofilia ou do assédio sexual, por exemplo. No terceiro momento, os saberes psicológicos e psiquiátricos conduziram às subjetividades a etiologia dos problemas potenciais do cibersexo: uma patologia individual seria a causa dessas perturbações. Assim, a problemática do cibersexo se deslocou do âmbito social para reificar-se no indivíduo, em uma patologia individual relativa ao (des)controle dos impulsos. Daí em diante, seria a subjetividade a ser perscrutada, fazendo com que toda uma hermenêutica do cibersexo fosse posta em funcionamento.

Tal como a sexualidade foi esquadrinhada no século XIX por certos saberes, como a psiquiatria (Foucault, 2005), o cibersexo foi mapeado quanto aos seus riscos, especificado quanto às suas características, avaliado quanto à sua demografia, conjurado em sua perniciosidade, de tal modo que, toda vez que o objeto cibersexo fosse evocado, todo esse campo semiológico seria acionado, remetendo à questão da patologia (atual ou potencial), da pornografia, da pedofilia etc. O objeto inicial, epistemologicamente esquálido, ganhou corpo, gravidade e volume ao ser capturado e investido pelos diversos saberes.

Mas o que é o cibersexo afinal? Nossa breve arqueologia apenas revolveu aspectos sócio-históricos da construção e da sedimentação epistemológicas desse conceito. Contudo, isso já parece suficiente para arriscar uma definição do cibersexo como agenciamento (Deleuze & Guattari, 1997) ou como uma montagem heterogênea de fenômenos materiais e da semiótica que os envolve. De um lado, fenômenos e discursos molares que circunscrevem e reduzem a experiência do cibersexo a uma dimensão preestabelecida - aqui residem o campo da patologia, da criminalização, da forma de exercício pré-fixada do cibersexo. De outro lado, sua dimensão molecular, aquela que escapa às determinações prévias e coloca o cibersexo no âmbito da experiência singular, com uma ressignificação própria que permite experimentá-lo para além de suas formatações pré-concebidas. Se nossa breve arqueologia permitiu iniciar um esboço da compreensão dessa dimensão molar do cibersexo, seria preciso doravante investigar essa dimensão molecular, a fim de enriquecer o significado e o conceito do cibersexo.

 

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Endereços para correspondência:
William Araujo Rezende. w.rezende@yahoo.com.br
Monah Winograd. winograd@puc-rio.br

Submetido em: 22/05/2015
Revisto em: 07/12/2015
Aceito em: 15/05/2016

 

 

1 Registro da sessão do congresso disponível em http://groups.csail.mit.edu/mac/classes/6.805/articles/cda/grassley-congressional-record.html.

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