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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.10 no.1 Belém Jan./Apr. 2018

https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol10(1).n04artigo27 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol10(1).n04artigo27

 

Ser travesti profissional do sexo: um olhar fenomenológico

 

Be a sex professional transvestive: a phenomenological look

 

Ser travesti profesional del sexo: una mirada fenomenológica

 

Gustavo Alves Pereira de Assis; Ronaldo Veríssimo Soares; Hinayana Leão Motta

Universidade de Rio Verde (UniRV)

 

 


RESUMO

A atividade laboral como profissional do sexo é para muitas travestis uma forma de sobrevivência e também fonte de prazer. O presente trabalho objetivou compreender as experiências de travestis profissionais do sexo. Para isso, realizou-se pesquisa qualitativa com método fenomenológico. Utilizou-se a entrevista fenomenológica, com duas colaboradoras. A coleta de dados deu-se via gravador sonoro portátil, com transcrição na íntegra. A análise seguiu os três passos da reflexibilidade fenomenológica, sendo a descrição, redução e interpretação. Foram encontradas quinze unidades de sentido, sendo que seis são constituintes essenciais. Os resultados apontam para experiências positivas e negativas em ser travesti profissional do sexo, como vivências afetivas, percepção da entrada no universo da prostituição devido à falta de oportunidades no mercado de trabalho, percepção positiva da relevância do dinheiro na profissão e consciência dos riscos da profissão. Conclui-se que as experiências das colaboradoras são vivenciadas como dualidades experienciais, constituindo uma totalidade fenomênica.

Palavras-chave: Psicologia Fenomenológica; Sexualidade; Trabalho Sexual; Travestilidade.


ABSTRACT

The work activity as a sex worker is for many transvestites a form of survival and also a source of pleasure. The present study aimed to understand the experiences of these sex workers. For this, a qualitative research was carried out with phenomenological method. A phenomenological interview with two collaborators. Data were collected via portable sound recorder, with full transcription. The analysis followed the three steps of phenomenological reflexivity, which are description, reduction and interpretation. Fifteen units of meaning were found, six of which are essential constituents. The results point to the positive and negative experiences in being a professional transvestite of sex, as affective experiences, perception of the entry into the world of prostitution due to lack of opportunities in the labor market, positive perception of the relevance of money in the profession and awareness of the risks of the profession. It concludes that the collaborators experiences are experienced as experiential dualities, constituting a phenomenal departure.

Keywords: Phenomenological Psychology; Sexuality; Sex Work; Travestility.


RESUMEN

La actividad laboral como profesional del sexo es para muchas travestis una manera de vivir y también fuente de placer. La actuación tubo como meta compreender las experiencias del travestis professional del sexo. Para eso, se llevó a cabo una investigación cualitativa con método fenomenológico. Se há utilizado una entrevista fenomenológica con dos colaboradoras. La recolección de datos se dio vía grabadora portátil, con transcripción en la integración. La análisis seguió tres pasos de reflexividad fenomenológica, siendo la descripción, redución e interpretación. Se encontraron quince unidades de sentido, siendo que seis son constituyentes esenciales. Los resultados nos muestra experiencias positivas y negativas en ser uno profesional de sexo travesti, como experiências afectivas, percepción del paso para el universo de la prostitución debido a falta de oportunidad para laburos, percepción positivo de la relevancia del dinero en la profesión y consciencia de los riegos de la profesión. Se concluye que las experiencias de las colaboradoras son vividas como dualidades experiencias, constituyendo una totalidad fenomenica.

Palabras-clave: Psicología Fenomenológica; Sexualidad; Laburo Sexual; Travestilidad.


 

 

A presente investigação tem como objetivo compreender as experiências de travestis profissionais do sexo. A escolha de tal temática se deu pelas demandas evidenciadas nas agendas de pesquisa como em Azevedo, Scorsolini-Comin e Spizzirri (2015) e Davi e Bruns (2015b), fazendo-se necessários novos estudos que objetivem análises das vivências desse público e o modo como as mesmas significam suas experiências. Essas pesquisas focadas nas vivências de travestis no mundo da prostituição rompem com pensamentos arcaicos, difundindo o debate nas diversas esferas da sociedade em torno da sexualidade humana.

A relevância deste estudo pauta-se no restrito número de trabalhos que abordam as vivências das travestis no mundo da prostituição na área da Psicologia, bem como a utilização do método fenomenológico como acesso às experiências desses indivíduos, visto que a maioria foca em temas como corporeidade, saúde/doença, gênero e sexualidade das travestis (Davi & Bruns, 2017; Davi & Bruns, 2015a). É reflexo também de demandas atuais, destacadas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), bem como pelas diretrizes da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais- LGBT.

A respeito das campanhas realizadas pelo CFP, foi lançado no dia 29 de janeiro de 2018 uma resolução que estabelece normas de atuação para psicólogas e psicólogos com o público de travestis e transexuais, um avanço importante para a sociedade tão marcada pelo preconceito e discriminação. O documento é composto por três páginas constituído de nove artigos (CFP, 2018). A Política Nacional de Saúde Integral LGBT enfatiza o modo como o preconceito tem impacto direto na saúde, marginalizando indivíduos e tornando o acesso ao sistema público precário (Brasil, 2012). Diante de tal panorama, esta pesquisa norteou-se pela seguinte indagação: Como são as experiências dos indivíduos travestis profissionais do sexo?

Inseridas em um mundo multifacetado que esconde vivências e trajetórias, têmse o público de travestis que atuam como profissionais do sexo. Um cotidiano que esconde realidades, oscilando entre prazer e sofrimento. Pelúcio (2007) aponta que a satisfação advinda da profissão do sexo está relacionada também à maneira como muitos clientes enxergam as travestis, como diferentes (mulher com pênis). Os trejeitos femininos, os cuidados "excessivos" com a aparência e a possibilidade entre ser ativo e passivo são fatores que colocam as travestis em um nível superior às mulheres ditas como comuns (com vagina), motivando ainda mais a procura por esse público. A rua possibilita ainda o estabelecimento de elos que servem como suporte no dia-a-dia. (Rodrigues, Cardoso & Ferro, 2012).

O prazer vivenciado como profissional do sexo é advindo ainda do relacionamento que muitas travestis estabelecem com seus clientes, laços conjugais e vivências afetivas. A respeito da conjugalidade, Pelúcio (2006) traz que os papéis dentro desses relacionamentos são bem delimitados. Nesses relacionamentos pautados na estrutura heteronormativa, o "'homem de verdade'' deve ser sempre o provedor (o contrário é mal visto), relacionar-se apenas com "mulheres com algo a mais" e em alguns casos assumi-las socialmente. Ainda de acordo com a autora, estar na ou em contato com a rua traz consigo outros aspectos positivos, como o dinheiro.

Pelúcio (2011) afirma que o dinheiro para as travestis tem um importante destaque na profissão, tanto para o cliente que consegue saciar seus desejos no ato do programa quanto para as travestis que chegam a cobrar mais pela realização desses desejos. Os clientes procuram o excêntrico. Por exemplo, uma travesti com possibilidades em desempenhar diversos papéis, que consuma substâncias psicoativas e que atenda os desejos mais "bizarros". Em contraponto a estes aspectos, o mercado do sexo para as travestis esconde realidades muitas vezes marcadas por riscos diários, como a violência e a possibilidade de contrair doenças sexualmente transmissíveis.

Quanto à violência para com travestis profissionais do sexo, Kulick (2008) coloca que a vida noturna para esse público esconde perigos. Neste momento, as travestis saem às ruas para realizar os programas, fato que as deixam mais vulneráveis, pois necessitam estar em pontos estratégicos para chamar a atenção de possíveis clientes. Quanto ao tipo de violência, a maioria é de cunho psicológico, seguida pela física. O autor ainda pontua a respeito da possibilidade de contrair doenças sexualmente transmissíveis, consequência de relações sexuais desprotegidas e falta de acesso ao sistema de saúde público efetivo. A consciência de que práticas desprotegidas no sexo podem ter consequências negativas não

é determinante de que o indivíduo irá se prevenir, principalmente com a evolução da farmacologia na qual o indivíduo consegue viver normalmente (Duque, 2008).

A afirmação de Kulick (2008) converge com os dados apresentados no relatório sobre violência homofóbica no Brasil do ano de 2013, para com o público de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais-LGBT, aqui de interesse o grupo de travestis. Os dados apontam que grande parte das ocorrências acontece na rua (26,8%), seguida pela casa da vítima (23,7%). Dentre os tipos de violência, destacam-se as de cunho psicológico (40,1%) que englobam humilhações, hostilizações e ameaças. Pesquisas como essa desnudam os diversos desafios em que muitas travestis profissionais do sexo se encontram (Brasil, 2016).

O exposto aludido anteriormente visou descrever de forma parcial os achados científicos sobre travestis atuantes no mercado sexual. A seguir haverá uma exposição do método, seguido pelos resultados, discussão e conclusão.

 

MÉTODO

Caracterização e Delineamento de Pesquisa

A pesquisa caracteriza-se como de abordagem qualitativa e método fenomenológico. A escolha da abordagem e método justifica-se pela natureza do objeto de investigação, a saber, experiências humanas. Nas acepções de Creswell (2010), a pesquisa qualitativa visa compreender os significados que os indivíduos atribuem a um fenômeno. O método fenomenológico mostra-se como via de acesso a subjetividade intencional dos indivíduos, às essências de um fenômeno, à experiência consciente (Gomes, 1997; Holanda, 2011).

Procedimentos

O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), e aprovado sob o protocolo CAAE 67832417.4.0000.5077. Assim, deu-se início ao recrutamento das possíveis colaboradoras. Foi realizada a técnica de amostragem em bola de neve, por mostrar-se útil para grupos de difícil acesso, como públicos vulneráveis, conforme prerrogativas de Vinuto (2014).

A coleta de dados ocorreu na Clínica Escola de Psicologia (CLIEP). O contato inicial foi realizado sob forma de acolhimento, visando o estabelecimento de vínculo positivo entre pesquisador-colaborador. Foi realizada a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e do Termo de Autorização para Gravação em Áudio das Entrevistas Fenomenológicas. Sob permissão das colaboradoras, iniciou-se a entrevista.

As entrevistas caracterizaram-se como fenomenológicas, individuais e abertas, com duração média de trinta minutos, sendo realizadas duas entrevistas com cada colaboradora. As entrevistas iniciaram com a seguinte pergunta: "Como são suas experiências como travesti profissional do sexo?". As demais perguntas surgiram da interação pesquisadorcolaborador. Os relatos foram coletados via gravador sonoro portátil em áudio MP3, que foram posteriormente transcritos na íntegra no programa Microsoft Word 2010®.

Participantes

A amostra da pesquisa constitui-se de duas travestis profissionais do sexo. Os critérios de inclusão foram ser travesti e profissional do sexo entre 18 e 50 anos. A seguir, será apresentado o perfil das participantes, com nome fictício e em gênero feminino, tal como se autodefinem.

Helen, 27 anos, alta, solteira, se autodeclara como travesti, parda e de nível socioeconômico médio baixo. Mora sozinha e faz curso técnico, atuando como profissional do sexo com clientes fixos. Fernanda, 29 anos, alta, relata ter três namorados, se autodeclara como travesti, morena e de nível socioeconômico médio baixo. Mora sozinha e atua como profissional do sexo com clientes fixos. Ambas residem em uma cidade do sudoeste goiano.

Análise dos Dados

Os dados foram analisados pelos três passos da reflexibilidade fenomenológica: descrição, redução e interpretação fenomenológicas (Andrade & Holanda, 2010; Gomes, 1997; Gomes, 1998; Gomes, 2005; Gomes, 2007).

A descrição fenomenológica consiste na descrição da experiência consciente dos indivíduos, por meio da verbalização das percepções. Assim, com a transcrição da verbalização das experiências, é possível demarcar unidades de sentido. A redução fenomenológica é o procedimento que especifica partes da descrição, agrupando as unidades de sentidos em categoriais gerais. Esta etapa permite a extração de constituintes essenciais, ou seja, aquelas unidades de sentido que são invariantes nas experiências de ambas as colaboradoras. A interpretação fenomenológica é um passo reflexivo crítico, contrastando com a literatura científica e resultando em uma síntese compreensiva (Andrade & Holanda, 2010; Gomes, 1997; Gomes, 1998; Gomes, 2005; Gomes, 2007).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise das entrevistas permitiu a extração de 15 unidades de sentido, que são: gosto em ser travesti e pela atividade profissional, percepção negativa em relação às oportunidades futuras no mercado de trabalho por ser travesti, incômodo ao vestir-se de modo masculino, desejo de não entrar no mundo do sexo, sentimento de vingança ao prostituir-se, sentimentos negativos despertados pelo contato com os clientes, prática profissional vista como pecado, preferência por homens com um padrão de beleza socialmente desprestigiado, concepção positiva do corpo natural, sentimentos negativos em relação ao preconceito social, percepção da entrada no universo da prostituição devido à falta de oportunidades no mercado de trabalho, percepção positiva da relevância do dinheiro na profissão, vivências afetivas na profissão, dissimulação de sentimentos negativos diante do cliente como meio de se manter na profissão e consciência dos riscos.

As unidades de sentido foram agrupadas em categorias/temas, sendo: experiências positivas em ser travesti profissional do sexo e experiências negativas em ser travesti profissional do sexo. A redução permitiu especificar as unidades que são constituintes essenciais, a saber: percepção da entrada no universo da prostituição devido à falta de oportunidades no mercado de trabalho, percepção positiva da relevância do dinheiro na profissão, vivências afetivas na profissão, sentimentos negativos despertados pelos clientes, dissimulação de sentimentos negativos diante do cliente como meio de se manter na profissão e consciência dos riscos da profissão.

As seis unidades invariantes serão analisadas detalhadamente seguindo os três passos fenomenológicos. Holanda (2011) afirma: "'Neste momento, "'descobre-se'', ou melhor, "'desvela-se'' o verdadeiro significado a saber que a realidade vivencial não é vivida apenas por ou para mim, mas constitui um vivido essencial que o é subjetiva e intersubjetivamente'' (p. 61).

Experiências Positivas em Ser Travesti Profissional do Sexo

Percepção positiva da relevância do dinheiro na profissão

As colaboradoras relataram que o dinheiro é percebido como um ponto positivo da profissão. Fernanda verbaliza que conhece muitos clientes que são de classe econômica alta, e que por isso sua remuneração pelo serviço é alta. Além disso, a quantidade de clientes é outro fator, visto que, quanto mais cliente maior será a remuneração. Ela declara: "'Eu gosto dessa vida, é uma vida que ganha dinheiro, que se você souber levar você fica rica, se souber levar (...)'' (Fernanda, entrevista dois). Helen percebe a profissão do sexo como modo desustento, sendo que cada vez se quer mais dinheiro. A seguir, serão apresentados outros excertos que representam essa unidade de sentido.

"'Gente, a gente conhece muito homem rico que paga bem (risos), tem vezes que você sai com cinco, seis clientes no dia e você ganha quase um salário, depende do dia também, não é todo dia que dá pra lucrar né. E é assim. '' (Fernanda, entrevista um)

"' (...) porque assim, você está ali pra se manter né, porque você já pegou aquela, aquele ritmo de ganhar dinheiro, aquele dinheiro que você sempre ganha, você não quer parar de ganhar, porque você já se mantém naquele valor. Vamos supor você ganha tantos por dia, você quer ganhar mais, se você não ganhar mais você fica ali com aquele pessimista, aí você sempre quer dá o seu melhor. '' (Helen, entrevista dois)

"'Uai assim, profissional do sexo é muito bom pelo sentido que você ganha um dinheiro fácil. Assim, dinheiro fácil moderado né, porque toda pessoa, vamos supor você mal ficou meia hora você já ganha cento e pouco, cento e setenta, por aí, "vareia'. Por esse lado da condição é bom (...). '' (Helen, entrevista dois)

As colaboradoras desta pesquisa experimentam vivências positivas em serem travestis profissionais do sexo no tocante às suas remunerações. Fernanda declara que o dinheiro foi uma forma que a fez ingressar na profissão, assim como permanecer. Helen também aponta a relevância do dinheiro, relacionando-o como forma de sobrevivência e meio para satisfazer seus desejos de consumo. Ser profissional do sexo é ser um trabalhador como tantos outros, digno de remuneração.

As percepções das colaboradoras desta pesquisa são constatadas por Oliveira, Neves, Andrade, Ferrareze e Guimarães (2015), ao afirmarem que o alto valor ganho pelo serviço sexual faz com que as profissionais do sexo se mantenham na atividade laboral. Estes autores apresentam que os clientes das travestis trabalhadoras sexuais investigadas são indivíduos que têm condições financeiras para pagar preços altos pelo serviço sexual.

Os dados da pesquisa de Burbulhan, Guimarães e Bruns (2012) também apontam a importância do dinheiro percebida pelas profissionais do sexo, apresentando-se como motivação monetária para a trabalho sexual. Os resultados da pesquisa de Costa (2014) evidenciaram que a remuneração se constituía como um fator para a permanência no mercado sexual. Deste modo, a remuneração das travestis profissionais do sexo mostra-se de extrema relevância para a prática, motivando-as no trabalho.

Vivências afetivas na profissão

Durante as entrevistas fenomenológicas as colaboradoras descreveram suas vivências afetivas. Fernanda diz que a afetividade é do humano, independentemente deorientação sexual e identidade de gênero, e que com alguns clientes há afetividade. Em suas palavras: "' (...) mas também tem o lado afetivo que querendo ou não nós somos seres humano né, a gente gosta, tem afetividade com uma pessoa e independente de ser "viado', travesti, gay, sapatão, a gente tem um coração né.'' (Fernanda, entrevista um). Helen relata que na prática há uma doação reciproca, e comenta que fora do espaço laboral alguns clientes a veem como amiga e irmã.

"'Uai, modo de dizer que eu falo me achar bem, assim, eu me sinto melhor com aquela pessoa entendeu? Eu, assim, me dou mais com aquela pessoa, porque eu tenho mais confiança nela naquele momento, por isso eu me acho bem.'' (Helen, entrevista dois)

"'Uai lá dentro é muito amor sabe, parece que eles se doam pra mim mesma assim, se solta, parecendo que eu sou a mulher dele há dez, quinze anos. E lá fora tem vez que uns olham, riem, sorriem, cumprimentam com a cabeça, tem uns que param "'aí quanto tempo, eu tenho que ir lá, a gente tem que conversar mais'. Tipo que eu sou lá fora uma amiga em comum deles, irmã. Tem uns que chegam onde eu tô cumprimentam em padaria que eu vou, chega "'ah pode deixar que eu pago pra você'. Pagam minha conta, uma coisa amorosa.'' (Helen, entrevista dois)

"'Quando rola a química, que é raro rolar a química no sexo, independente também se você transa com mulher sempre rola a famosa química. Sempre a gente se apega a alguns clientes. Os clientes se apegam a gente e a gente se apega aos clientes.'' (Fernanda, entrevista um)

Estes excertos apontam para experiências positivas em relação à afetividade com os clientes. As colaboradoras relataram que a relação com alguns clientes se torna mais íntima, ao ponto de fazerem parte de sua vida pessoal. Fernanda afirmou ter três namorados, que foram seus clientes. Hoje, eles mantêm uma relação íntima sem fins laborais. Ela diz que o apego afetivo com alguns clientes é um fenômeno natural.

Helen comenta que com alguns clientes há uma reciprocidade, uma entrega mútua na relação. Fora do ambiente laboral, ela também percebe a afetividade presente em atitudes dos clientes, quando, por exemplo, seus clientes a encontram em um lugar público e a cumprimentam ou pagam algo para ela.

A profissão do sexo, para as colaboradoras, não se deslinda apenas no ato sexual. Durante a interação colaboradoras-pesquisadores, inúmeras vezes elas declararam que muitos clientes as procuram para desabafar, para que elas façam companhia para eles. Para as participantes, estas experiências são vivenciadas de forma positiva, o que gera uma interação de carinho e respeito. As experiências de escuta são encontradas também em Burbulhan et al. (2012), ao assinalarem que as profissionais do sexo afirmaram que muitas vezes eram procuradas não para o ato sexual, e sim para conversas e desabafos.

Fernanda diz receber presentes em datas comemorativas, como páscoa e dia dos namorados. Ela os chama de amantes, assim como Helen, devido à condição de serem clientes fixos. Este achado é confirmado por Davi e Bruns (2015b) ao afirmarem que os homens concorrem para serem amantes das travestis, dando-lhes presentes e dinheiro. Helen afirma que com a interação com os clientes ela amadureceu, chegando a diferenciar uma Helen antes e uma Helen depois destas experiências. A díade profissional-cliente é permeada de afetividade nas experiências das colaboradoras. Deste modo, ser travesti profissional do sexo é relacionar-se afetivamente com o cliente.

Azevedo et al. (2015) em pesquisa com uma travesti descreve que a participante teve um relacionamento amoroso com um homem casado e com filho, durante um período de três anos e meio. Mesmo casado, ele assumiu o relacionamento com a travesti para algumas pessoas. A participante relata episódios que denotam vivências afetivas positivas. Os autores concluem que a afetividade da participante apresenta referências ao padrão heteronormativo. Estes dados se assemelham às experiências das colaboradoras desta pesquisa, que relataram vivências afetivas com seus clientes, em sua maioria homens casados com mulheres. Estas vivências afetivas, para ambas, ultrapassam o contexto laboral, perpassando outras esferas da vida.

Os dados encontrados se contrapõem aos de Giongo, Menegotto e Petters (2012), que encontraram fragilidade nas relações afetivas de travestis e transexuais profissionais do sexo, sendo que as relações com os parceiros amorosos se davam por questões objetais, resultando em sentimento de solidão na amostra estudada.

Experiências Negativas em Ser Travesti Profissional do Sexo

Percepção da entrada no universo da prostituição devido à falta de oportunidades no mercado de trabalho por ser travesti

As colaboradoras verbalizaram a percepção de que a entrada na profissão do sexo decorreu da falta de oportunidades no mercado de trabalho, devido sua identidade de gênero. Ambas as colaboradoras relataram sentimentos negativos, expressando isto como uma vivência negativa. Fernanda na entrevista um alega que "'(...) tipo, a falta de emprego, que, querendo ou não, hoje em dia existe muito preconceito né com homossexuais, lésbica e o mercado de trabalho hoje em dia não abre muito caminho pra gente. ''

Os resultados da pesquisa fenomenológica de Santana, Dutra e Salum (2016) e Davi e Bruns (2017) retratam a profissão do sexo como forma de sustento, de sobrevivência. Em Davi e Bruns (2017) há referência de buscas por outros trabalhos, como formas alternativas de sustento. Assim, o mundo da prostituição mostra-se como um modo de sobrevivência, visto que as oportunidades de emprego no mercado de trabalho são escassas, devido à exclusão social de travestis.

Carrieri, Souza e Aguiar (2014) apresentam que as travestis investigadas possuíam dificuldades de inserção no mercado de trabalho, devido à representação social negativa. Assim, trabalhar formalmente é um obstáculo para as travestis. Essa constatação foi descrita especificamente por Helen, ao não ter expectativas futuras de inserir-se no mercado de trabalho. Ela critica o preconceito social, afirmando que as pessoas não a veem como um indivíduo com capacidade profissional, e sim como uma travesti que está condenada à prostituição. Essa realidade social desperta sentimentos e percepções negativas em Helen, que afirma: "'As pessoas fecham muito as portas pra gente, pensa que a gente vai com vulgar, não vai ali como um profissional. Aí eu entrei nesse mundo. '' (Helen, entrevista dois). Fernanda gosta da profissão do sexo, porém afirma que gostaria de uma vida mais "normal', como a mesma se refere: "'Isso é ruim né, porque todo mundo assim "o mundo do sexo dá dinheiro', mas todo mundo queria um trabalho normal né, não andar pelada, uma vida social mais, digamos, mais normal né.'' (Fernanda, entrevista dois).

Essa discussão leva-nos a considerar as questões sociais presentes na contemporaneidade. Fruto de violências simbólicas, as travestis passam por um processo de exclusão e marginalização, restando-lhes a profissão do sexo como alternativa para a sobrevivência. Este fato pode ser decorrente da repressão sexual presente na sociedade (Chauí, 1992).

Sentimentos negativos despertados pelo contato com os clientes

No contato com os clientes, alguns sentimentos negativos são despertados. Ambas falam que a precária higiene pessoal dos clientes é um aspecto que desperta sentimentos negativos. Elas relatam que é fundamental que o cliente esteja higienizado, e que o contrário é percebido como desagradável. Helen enuncia: "' (...) não é um dinheiro fácil porque queira ou não você está ali com uma pessoa que não quer ficar, de repente a pessoa não tá muito cheirosa, de repente a pessoa não gosta de tomar banho '' (Helen, entrevista dois).

"'São uns caras que não tomam banho, é um cara que não tem higiene pessoal. Mas eu sou meio sincera, tem horas que eu falo e eles não acham muito bom, sabe? Porque eu acho assim: Quando você vai se relacionar com alguém, toma banho né? Perfume, se depila, é bom pra ambas as partes. Mesmo jeito que eles gostam da gente tá cheirosinha, depilada né, a gente quer eles também depilados, limpo, cheiroso né. O ser humano cheiroso é outro nível, até na hora do sexo. Você perde até o encanto quando o ser humano não está 100% limpo né, cheiroso.'' (Fernanda, entrevista um)

Para elas, este é um dos pontos negativos em ser profissional do sexo. Fernanda diz ser sincera e falar para seus clientes em alguns momentos quando isso a desagrada. Helen diz que ganhar dinheiro através da profissão do sexo não é algo fácil, e aponta a falta de higienização como um aspecto negativo. Assim, ser travesti trabalhadora do sexo é ter contato com clientes não higienizados, o que desperta reações e sentimentos negativos.

Em relação ao contato com os clientes, Costa (2014) afirma que os indivíduos pesquisados apontam como ponto negativo do trabalho sexual clientes aos quais não são vistos como atraentes e nem apresentáveis. Esse dado se assemelha a percepção das entrevistadas, confirmando os achados.

Burbulhan et al. (2012) descrevem que as participantes interrogadas relataram que os atributos físicos dos clientes são irrelevantes, o importante é o dinheiro. Os autores não relataram a presença de sentimentos negativos despertados pelo contato com os clientes, ao contrário do relato das colaboradoras deste estudo.

Consciência dos riscos da profissão

Emergiu-se nas entrevistas a noção de que a prática profissional possui riscos como o perigo de assassinatos, de contração de doenças sexualmente transmissíveis e violências. Fernanda descreve que ser uma travesti profissional do sexo é correr risco de vida. Ela afirma: "'Nesse mundo de trans a gente tem que tomar muito cuidado, com esse negócio de foto, sair com o cliente e tirar foto, mostrar para os outros, porque isso dá morte né''. (Fernanda, entrevista um). Helen relata ter consciência da possibilidade de violência e morte como riscos da profissão. O trecho a seguir descreve:

"'O perigoso que eu falo é assim, um homem que está ali pode te bater na relação, descontar o que aconteceu na família dele ou o que os amigos dele julgaram, entendeu? Ele pode até machucar a gente numa relação, ir ali pra fazer maldade, não pra ter só a sua vontade sexual''. (Helen, entrevista um)

Em pesquisa com travestis profissionais do sexo, Davi e Bruns (2015b) apontam o medo que as travestis possuem em decorrência dos inúmeros casos de violências, e reiteram: "'O tornar-se travesti é também um processo que se dá pela resistência aos perigos". (Davi & Bruns, 2015b, p. 528). Esta afirmação equipara-se com as vivências das colaboradoras, ao refletirem sobre sua jornada no mundo do mercado sexual.

A pesquisa de Santana et al. (2016) sobre experiências de travestis profissionais do sexo de um município do interior do estado de Minas Gerais apontam para a presença de violências físicas e verbais. Carrieri et al. (2014) chegam na conclusão em suas investigações sobre lésbicas, travestis e transexuais, que as travestis estão mais propensas às violências, incluindo o risco de integridade física e da vida destas.

Davi e Bruns (2015b) e Santana et al. (2016) também apontam a questão da contaminação de infecções sexualmente transmissíveis, que é uma preocupação de Fernanda. A colaboradora durante a segunda entrevista verbalizou com veemência sobre seus sentimentos em relação as doenças sexuais, desnudando episódios de sexo desprotegido e os respectivos sentimentos despertados por esta prática. O excerto a seguir ilustra: "' (...) nesse mundo do sexo também tem o lado negativo né, que é perigoso você pegar uma doença. 80% dos caras que eu vou ficar quer ficar comigo sem preservativo. E vem a questão, eu sou uma pessoa muito sincera''. (Fernanda, entrevista um).

Outros dados da literatura fenomenológica se referem aos resultados de Davi e Bruns (2017) sobre a busca por novas formas de atuação profissional por parte de travestis profissionais do sexo, como pretensão de se afastar dos riscos da profissão do sexo. Já em Davi e Bruns (2015a) tem-se o medo das violências presentes no mundo das travestis profissionais do sexo, assim como o medo de contrair doenças sexualmente transmissíveis. Para estes autores:

Viver em risco faz parte do mundo-vida travesti e neste caso a "queda" pode tomar significados particulares, por exemplo, psíquicos, espaciais, espirituais, etc. Usar drogas, contrair alguma doença, ser humilhada e violentada são possibilidades dentro deste universo onde o cair e o levantar fazem parte, no qual é necessário se arriscar para sobreviver (p. 338).

Assim sendo, ser uma trabalhadora sexual travesti perpassa pela consciência dos riscos deste universo, colocando-as em um estado de vulnerabilidade social.

Dissimulação de sentimentos negativos diante do cliente como meio de se manter na profissão

As colaboradoras revelaram que para ser profissional do sexo é necessário simular, fingir. Os trechos do material empírico ilustram esta unidade de significado:

"'Eu já acostumei com essas loucuras, porque quem é profissional do sexo tem que ter estômago, você tem que ser um pouco, como se diz, falsa, fingir que está gostando, tentar agradar o cliente se não ele não volta (...). Aí, a gente faz um pouco de como que se diz, teatro né. Teatro ajuda bastante nesse meio,atuar um pouquinho, fingir que está gostando, lindo, sendo que não é lindo''. (Fernanda, entrevista 2)

"Aí era péssimo, nessas partes era horrível, porque, assim, você tinha de entrar na palhaçada deles, igual homem que era ruim, você tinha de fingir que estava bom, né. Tinha coisas que eles faziam que a gente sentia que não estava bem. Levar um puxão de cabelo, tapa na bunda, você tinha de falar "ai tá ótimo, nossa que bom, não sei o que'. Entrar na onda, pra não apelar né, porque sempre um tapa é muito bom né, e outros que faziam graça "ai olha lá e sua, vamos fazer' '' (Helen, entrevista 2)

Para ambas a participantes, para ser travesti profissional do sexo é necessário atuar, ou seja, encenar algo que não é verdadeiro para elas. Elas percebem isso como negativo, à medida que dizem ser algo para quem "'tem estômago'' ou diz ser uma experiência horrível. Ser travesti profissional do sexo é ser uma atriz!

A dissimulação mostra-se como uma estratégia encontrada pelas travestis para suportar situações desagradáveis, e assim se manter na profissão. As profissionais do sexo dispõem de uma série de performances, de técnicas para a satisfação do cliente, de truques para driblar situações, como aponta Nieto Olivar (2011) e Pelúcio (2005). Estas técnicas são modos de dissimulação, mecanismos de atuação, como mostra os excertos das experiências das entrevistadas.

Garcia (2008) em seu estudo com travestis profissionais do sexo de baixa renda encontrou atividades ilícitas, como o furto de pertences dos clientes. Na hora do pagamento, por exemplo, os clientes não encontravam o dinheiro que havia sido furtado e as travestis simulavam, dando "bronca', fazendo com que os clientes não desconfiassem delas. Estes dados não se aplicam propriamente aos encontrados nesta pesquisa, porém inserem-se nos mecanismos de dissimulação para se manter na profissão.

O estudo de Cavagnoud (2014) evidencia que as travestis trabalhadoras sexuais simulavam um prazer não real, como estratégia para excitar e satisfazer o cliente. Também verificou-se que as travestis enganavam os clientes embriagados, inserindo os dedos em seu ânus, dando a sensação ao cliente de que ele está sendo penetrado. Este comportamento, segundo o autor, é recorrente no trabalho do sexo.

 

CONCLUSÃO

A investigação fenomenológica percorreu os meandros das vivências de ser travesti profissional do sexo. Buscou-se compreender as experiências de duas travestis profissionais do sexo, apreendendo os aspectos e significados subjacentes. A pesquisa pautase na busca de "dar voz' a um público vulnerável, vítimas do preconceito e da exclusão social. Esse processo de marginalização presente na sociedade evidencia a necessidade de pesquisas que "ouçam' as "vozes silenciadas'. É um compromisso social e ético do pesquisador científico, mais especificadamente do fenomenólogo. Este deve ir em direção ao fenômeno, em uma atitude fenomenológica, que acolha o outro em sua totalidade.

O encontro fenomenológico permitiu um processo comunicativo que desvelasse os sentidos da experiência de ser travesti profissional do sexo. A pesquisa enfocou na intersubjetividade, em sentidos e significados comuns a ambas as colaboradoras, que chamamos de constituintes essenciais ou invariantes. Estas unidades revelam a estrutura fenomênica, sua essência, respondendo à problematização de pesquisa e ao objetivo.

Com a análise fenomenológica, verificaram-se experiências positivas e negativas em serem travestis profissionais do sexo. Assim, as experiências apresentavam-se como polaridades, como dualidades experienciais. As experiências positivas complementam as negativas, estão em inter-relação. Por procedimentos analíticos, elas são separadas e categorizadas, porém, na experiência, elas são vividas em sua pureza fenomenal.

Com relação às experiências positivas, as colaboradoras descreverem a percepção positiva da relevância do dinheiro na profissão e as vivências afetivas. Ser travesti profissional do sexo é ter remuneração, pois é uma atividade laboral, mas também envolve afetividade.

Em relação às experiências negativas, a descrição fenomenológica aponta unidades de sentido, tais como a percepção da entrada no universo da prostituição devido à falta de oportunidades no mercado de trabalho, sentimentos negativos despertados pelo contato com os clientes, dissimulação de sentimentos negativos diante do cliente como meio de se manter na profissão e consciência dos riscos da profissão.

Alguns dados de pesquisa relevam questões sociais importantes. A falta de oportunidades de emprego e os riscos da profissão são exemplos de temas que merecem serem discutidos. Deste modo, espera-se que este estudo possa contribuir nas reflexões acadêmicas. Novos estudos podem investigar um número amostral maior, assim como analisar a relação profissional-cliente. Outro tema a ser investigado refere-se às técnicas de dissimulação por travestis na atuação profissional.

O universo da prostituição travesti é permeado por trajetórias singulares e ao mesmo tempo intersubjetivas, que constituem a essência fenomênica. O vivido nos traz realidades empíricas, a verdadeira sabedoria do viver humano. Ser travesti profissional do sexo é transformar-se cotidianamente, descobrindo e redescobrindo possibilidades de ser e estar no mundo.

 

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Notas sobre os autores

Hinayana Leão Motta. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Católica de Goiás, formação em Gestalt Terapia pelo Instituto de treinamento e Pesquisa em Gestalt Terapia de Goiânia (ITGT) e mestrado em Psicologia pela Universidade Católica de Goiás. Professora adjunta da Universidade de Rio Verde (UniRV). E-mail: hinayana@uol.com.br.

Gustavo Alves Pereira de Assis. Discente do curso de Psicologia da Universidade de Rio Verde (UniRV). E- mail: gustavo15assis@gmail.com.

Ronaldo Veríssimo Soares. Discente do curso de Psicologia da Universidade de Rio Verde (UniRV). E-mail: ronaldoverissimosoares@gmail.com.

 

Recebido:20/04/2018
Aprovado: 04/07/2018

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