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Cógito
Print version ISSN 1519-9479
Cogito vol.10 Salvador Oct. 2009
Ainda sobre o humor, à luz de Freud e Pirandello
About humor, still inspired by Freud and Pirandello
Denise Maria de Oliveira Lima*
Círculo Psicanalítico da Bahia
RESUMO
Este artigo pretende tratar do humor pela via dos vícios de linguagem, tendo como moldura teórica o pensamento de Sergio Paulo Rouanet.
Palavras-chave: humor; irracionalismo; abertura de sentidos.
ABSTRACT
This article intends to bring the humor through the vices of language, with theoretical framework based on Rouanet's thinking.
Key words: humor; irrationalism; opening of senses.
"Não, por favor, nem tente me disponibilizar alguma coisa, que eu não quero. Não aceito nada que pessoas, empresas ou organizações me disponibilizem. É uma questão de princípios. Se você me oferecer, me der, me vender, me emprestar, talvez eu venha a topar. Até mesmo se você tornar disponível, quem sabe, eu aceite. Mas, se você insistir em disponibilizar, nada feito.
Caso você esteja contando comigo para operacionalizar algo, vou dizendo desde já: pode tirar seu cavalinho da chuva. Eu não operacionalizo nada para ninguém. Tampouco compactuo com quem operacionalize. Se você quiser, eu monto, eu realizo, eu aplico, eu ponho em operação. Se você pedir com jeitinho, eu até implemento. Mas, operacionalizar, jamais.
O quê? Você quer que eu agilize isso para você? Lamento, mas eu não sei agilizar nada. Nunca agilizei. Está lá no meu currículo: faço tudo, menos agilizar. Precisando, eu apresso, eu priorizo, eu ponho na frente, eu dou um gás. Mas agilizar — desculpe, não posso, acho que matei essa aula.
Outro dia mesmo queriam reinicializar meu computador. Só por cima do meu cadáver virtual! Prefiro comprar um computador novo a reinicializar o antigo. Até porque eu desconfio que o problema não seja assim tão grave. Em vez de reinicializar, talvez seja o caso de simplesmente reiniciar, e pronto.
Por falar nisso, é bom que você saiba que eu parei de utilizar. Assim, sem mais nem menos. Eu sei, é uma atitude um tanto quanto radical da minha parte, mas eu não utilizo mais nada. Tenho consciência de que a cada dia que passa mais e mais pessoas estão utilizando, mas eu parei. Não utilizo mais. Agora eu só uso. E recomendo. Se você soubesse como é muito mais elegante, também deixaria de utilizar e passaria a usar.
Sim, estou me associando à campanha nacional contra os verbos que acabam em "ilizar". Se nada for feito, daqui a pouco eles serão mais numerosos do que os terminados simplesmente em "ar". Todos os dias os maus tradutores de livros de marketing e administração disponibilizam mais e mais termos infelizes, que imediatamente são operacionalizados pela mídia, reinicializando palavras que já existiam e eram perfeitamente claras e eufônicas.
A doença está tão disseminada que muitos verbos honestos, com currículo de ótimos serviços prestados, estão a ponto de cair em desgraça entre pessoas de ouvidos sensíveis. Depois que você fica alérgico a disponibilizar, como você vai admitir, digamos, "viabilizar"? É triste demorar tanto tempo para a gente se dar conta de que "desincompatibilizar" sempre foi um palavrão.
Precisamos reparabilizar nessas palavras que o pessoal inventabiliza só para complicabilizar. Caso contrário, daqui a pouco nossos filhos vão pensabilizar que o certo é ficar se expressabilizando dessa maneira. Já posso até ouvir as reclamações: "Você não vai me impedibilizar de falabilizar do jeito que eu bem quisibiliser". Problema seu. Me inclua fora dessa".
Esse texto foi escrito por Ricardo Freire, publicitário, articulista do Estadão, em oito de junho de 2007. Não sei se é exatamente um texto humorístico, no sentido dado ao humor por Pirandello. Talvez seja apenas irônico, crítico. Circulou na internet há algum tempo atrás, muitos de vocês devem tê-lo recebido. Nem sei se está tão atual assim, mas chama a nossa atenção para a questão dos modismos da língua, dos quais muitas vezes não nos damos conta. Lembram-se do "a nível de?" Até o inevitável "colocar uma questão"? Tudo virou questão, nada de polêmica, assunto, tema, matéria, controvérsia ou simplesmente idéia! No momento, o gerundismo está atacando a nossa língua, talvez por via de traduções mal feitas do inglês.
Não vou tratar dos modismos da língua – tema importante – mas do humor que se pode construir a partir disso.
Ah, o humor!
Depois de ter pesquisado e escrito sobre o humor em Freud e Pirandello, achei que pouca coisa teria a dizer sobre isso. Os dois autores — na aproximação que fiz deles — dão conta deste tema de modo tão abrangente e tão profundo, que restaria, ao menos para mim, muito pouca coisa a ser dita. Talvez seja útil lembrá-los do que falava Freud e Pirandello sobre o humor. Mas não vou gastar muito tempo com isso, o ensaio sobre o qual me refiro está publicado na revista Cógito volume 6, de 2004.
Mas só para lembrar um pouco o que há em comum entre eles: para ambos os autores, o humor é distinto do cômico, talvez por ser rebelde; para Pirandello, é uma arte de exceção; para Freud, é um talento raro e precioso; os aspectos dolorosos da alegria e os risíveis da dor são os pressupostos filosóficos do humorismo, para Pirandello, que concebe o sentimento do contrário. E, para Freud, o humor serve para enfrentarmos as adversidades da vida: os afetos dolorosos são poupados e substituídos pela atitude humorística. Para ambos, enfim, a disposição de espírito humorístico vem da infelicidade dos homens. E, finalmente, a natureza do humorismo, para Pirandello, são todas as ficções da alma, todas as criações do sentimento e, para Freud, são as ilimitadas espécies que correspondem à natureza do sentimento.
É interessante notar que o sentimento do contrário, essencial na disposição humorística postulada por Pirandello, não deixa de estar presente na formulação freudiana do deslocamento do investimento afetivo do pólo do desprazer ao pólo do prazer, característico do processo do humor. Ao evitar um sentimento que esperávamos como inerente à situação, poupando um desprazer, isso implica em reconhecê-lo, para podermos transpô-lo, ainda que tal processo possa se dar inconscientemente.
Estive mergulhada, também, num texto que escrevi sobre o estilo shandiano, analisado brilhantemente por Sérgio Paulo Rouanet, o qual apresentei em outra jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia (publicado na revista Cógito, V. 09 - Ano 2008, sob o título "Tristram Shandy: um estilo a se considerar para o diálogo entre literatura e psicanálise") e que tem muito a ver com humor e as palavras. Falar o quê, depois disso tudo?
Mas, evidentemente, penso — como psicanalista, adepta da teoria da complexidade e da lógica paraconsistente como paradigmas atuais do conhecimento — que não é possível esgotar o que pode ser dito de qualquer tema de que se trate, por mais que inúmeros autores já tenham tratado, com seus incontáveis e diferentes pontos de vista. Sempre faltará algo, para nossa sorte!
Então, com muita resistência, fui atrás de outra abordagem sobre o humor. É difícil falar sobre o humor, tanto quanto defini-lo. Pirandello desiste de dar uma definição, conforma-se em descrever o especial processo que torna possível o humor, arte de exceção, segundo ele. Raro e precioso, segundo Freud.
Ocorreu-me tratar o humor na vertente da linguagem, embora tenha pouco conhecimento de lingüística. Ainda assim, acho que posso "levantar" ou "colocar" (outro modismo) uma questão importante, que é o mesmo que dizer "acho que posso incitá-los a pensar em algo aparentemente banal, mas que decididamente não é".
Incorporando Pirandello, diria que esse artigo que li para vocês pode ser considerado como humorístico, pois nos leva a ter o sentimento do contrário. Rimos dele — ainda que pouco, pois o humor, segundo Freud e Pirandello, não provoca muito riso — não porque achamos engraçados os modismos repetitivos e pobres da língua, mas exatamente porque prezamos muito a nossa língua, "minha pátria é minha língua", como cantou Caetano, trazendo esta frase de Fernando Pessoa. E o humor é rebelde, como disse Freud!
Gostaria de trazer aqui algumas ponderações a que nos incita um ensaio escrito em 1985, por Sérgio Paulo Rouanet (1987), onde ele discute três tendências que foram capturadas pelo irracionalismo que se iniciava no país àquela época — anticolonialismo, antielitismo e antiautoritarismo — e que, ao que parece, não se dissiparam totalmente; ao contrário, recrudesceram, nos dias de hoje, com as tendências politicamente corretas.
Rouanet diz que essas tendências, inicialmente dadas para se construir uma sociedade livre, igualitária e democrática, fundada na razão, foram capturadas pelo irracionalismo, "por ironia da história." "Não é a primeira vez que o diabo atinge seus fins utilizando as virtudes teologais", diz ele, ao afirmar que essas tendências tão racionais tenham entrado, involuntariamente, na "órbita da anti-razão" (ROUANET, 1987, p. 126).
O anticolonialismo irracionalista se manifesta em uma oposição xenófoba à cultura estrangeira, para supostamente se proteger a cultura brasileira e sua identidade cultural, ignorando que a cultura estrangeira pode contribuir para o nosso enriquecimento cultural e a nacional pode ser a mais alienante. Rouanet, ao modo frankurtiano, diferencia a cultura da indústria cultural, sustentando que é a indústria cultural, seja americana, seja brasileira, seja qual for, que "funciona como narcótico, como kitsch, como lixo" e não a cultura em si, seja lá de onde vier, a qual funciona como "fermento crítico, como fator de reflexão, como instrumento de auto-transformação e transformação do mundo" (ROUANET, 1987, p. 128).
O antielitismo irracionalista é a tendência de opor a cultura de massas à alta cultura, desqualificando-se esta (tida como herança dos velhos estereótipos da aristocracia) e glorificando-se a primeira (tida como potencial renovador dos meios de difusão cultural). Rouanet observa que a cultura de massas nada tem a ver com a cultura popular — que deve mesmo ser protegida para não desaparecer — e que esta não está em oposição com a alta cultura, nacional ou estrangeira e sim com a cultura de massas, nacional ou estrangeira. "O que ameaça a sobrevivência da literatura de cordel não é Finnegan's wake e sim a telenovela", diz ele. Digo eu: não é Mozart que ameaça a música popular brasileira, mas o axé e o pagode de péssima qualidade, pois até que existem pagodes de boa qualidade. Não é Shakespeare que ameaça o teatro popular, mas os programas de auditório de TV. (En passant, lembro a vocês que, muitas festas de aniversário de crianças da classe média, bem como festas de formatura dos nossos jovens, estão impregnadas desse tipo de "humor" provindo dos programas de auditório das TVs brasileiras. Assobios e barulhos insuportáveis, torcidas, alguém tem que ser o melhor etc.).
Não são as canções tocadas por Pablo Casals na ONU, com seu violoncelo, como "el cant dels ocells". ... que ameaçam o cancioneiro popular regional, mas Xuxa, com a difusão em massa de suas obviedades que levam à homogeneidade de comportamentos, sandálias e brinquedos!
O antiautoritarismo irracionalista é a tendência de opor teoria à pratica, no sentido de se recusar todo esforço de teorização, tido como manobra autoritária que introduz uma reflexão alienada, promovendo uma disjunção entre a prática e o saber.
Falsas oposições, diria Bourdieu! Diz Rouanet:
Liberto da hipoteca irracionalista, o antiautoritarismo significa o repúdio a um sistema social de dominação em grande parte fundado na ignorância dos dominados, mas não o repúdio à autoridade do saber; o anticolonialismo significa a exclusão da indústria cultural estrangeira, mas não da cultura estrangeira; o antielitismo significa a rejeição de uma política cultural oligárquica que reserva a arte, a literatura e a filosofia para a fruição de uma minoria, mas não a rejeição da arte, da literatura e da filosofia (ROUANET, 1987, p. 145-146).
Ele ilustra esse fenômeno do irracionalismo com três exemplos: a lingüística, a psicologia cognitiva de Piaget e a psicanálise, para mostrar como um ponto de partida irracionalista determina estratégias teóricas que em última análise vão reforçar o irracionalismo social.
À luz da análise desses irracionalismos, Rouanet tratou de uma antiga polêmica que se travava em torno da língua portuguesa, entre lingüistas que defendiam, de um lado, a sua unidade e o primado da norma culta, e, de outro, os que eram contra a hegemonia da língua culta, com o argumento de que não se tem o direito de impor uma normatividade lingüística, um código de classe social, desrespeitando o linguajar espontâneo das classes populares. Entre as duas posições, tínhamos os moderados, que defendiam a autonomia da língua brasileira, sem negar a importância da norma culta.
Talvez essa polêmica esteja agora atualizada, frente às modificações da ortografia de nossa língua, já aprovadas, visando a uniformização do português, que é falado em oito países, por uma população estimada em 230 milhões1. Atualizada também em decorrência da polêmica política do Ministério da Educação!
Rouanet, se apropriando da teoria dos códigos lingüísticos do sociólogo e lingüista inglês Basil Bernstein, mostra-nos a diferença entre o código restrito, caracterizado por um vocabulário pobre e redundante, e o código elaborado, semântica e sintaticamente mais complexo. Poderíamos pensar que um código não é inferior ao outro, mas diferentes, funcionalmente equivalentes, pois ambos servem adequadamente seus fins comunicativos. Não é assim que pensa Rouanet. Ainda fundamentado em Bernstein, sustenta que o código restrito condiciona estruturas de pensamento também restritas — concretas, auto-centradas, incapazes de abstrair, generalizar e descontextualizar. (E aqui podemos nos referir a Piaget com sua teoria das estruturas cognitivas).
Já o código elaborado ou culto,2 proporciona ao indivíduo uma capacidade muito maior para expressar-se, para compreender seu próprio contexto e contextos alternativos, para relativizar certezas, para compreender o ponto de vista do outro e refutá-lo, para manipular variáveis, para argumentar e contra-argumentar, nas palavras de Rouanet, que acrescenta: "ter acesso a esse código é uma condição necessária, embora não suficiente, para que o indivíduo possa pensar, agir, participar, como ser humano e como cidadão" (ROUANET, 1987, p. 136).
Ou seja, sem o acesso ao código elaborado, os indivíduos dificilmente terão condições cognitivas para pensar de um modo totalizante, que os possibilite a refletir sobre a complexa sobredeterminação dos fenômenos, inclusive sobre as conseqüências desta polêmica. Não se trata, para Rouanet, de manter o indivíduo somente em guetos lingüísticos — talvez necessários, em certas faixas etárias — mas de criarmos condições para que todos tenham acesso à língua culta, a usar um código mais rico, "que lhes permitam estruturar cognitivamente sua própria prática, com vistas a transformá-la".
Aqui faço uma digressão para lembrar da recente apresentação da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, uma das melhores do mundo. Com sua interpretação sensível, brilhante, fez com que pessoas como alguns de nós, que não gostamos muito de Mahler, passássemos a vibrar com suas composições!
O código da música dita erudita ou clássica é, evidentemente, mais complexo e rico do que outras composições, ainda que bonitas — e não estou falando aqui da música popular brasileira, riquíssima de exemplos de composições complexas, ou de interpretações complexas, como vemos com João Gilberto etc. Bach já foi analisado à luz da matemática, suas composições melódicas, aparentemente simples, são de uma complexidade que nós, leigos, não entendemos. Mas não é preciso entender dessa complexidade para apreciarmos a sua música.
Penso que podemos transpor esse exemplo para a literatura, para a língua. Que pode proporcionar, para todos nós, um deleite, um prazer imenso e, mais ainda, um questionamento sobre o que traz, para o indivíduo e à sociedade, aquilo que é elaborado com refinamento, sutileza, agudeza, ou seja, através de um complexo código que, ao não submergir às elaborações mais fáceis, menos trabalhosas, nos incitam a pensar o que nunca havíamos pensado!
Não sou especialista, mas, mesmo como leiga, achei interessante dar destaque a essa reflexão, já que trabalhamos com as palavras. Não só as palavras que ouvimos, escrevemos ou lemos, mas as palavras que dizemos aos nossos pacientes. E aqui tenho uma pergunta: imersos que estamos em determinada vertente teórica, correríamos o risco de empobrecer nosso vocabulário, adotando automaticamente expressões do jargão psicanalítico específico de cada escola? Mesmo entre nossos pares, que não ousam perguntar o que significa tal ou qual expressão? Apenas a repetem?
Ou seja, é possível, sem a leitura constante dos clássicos e não clássicos da literatura, termos um linguajar que possa dar conta das contradições complexas e riquíssimas, próprias de todos nós? E a última pergunta: é possível dizer, com humor, palavras que instigam à abertura de sentidos, em vez de encerrá-las em significado estanque e estéril?
Referências
FREUD, S. El humor. in: Obras Completa de Sigmund Freud. trad. Luis Lopez-Ballesteros y de Torres. Madrid: Biblioteca Nuova, 1973. [ Links ]
PIRANDELLO, L. O Humorismo. trad. Davi Macedo. São Paulo: Experimento, 1996. [ Links ]
ROUANET, S. P. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. [ Links ]
* Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia, Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA) e Doutora em Ciências Sociais (UFBA)
1 Para quem se interessa sobre a importância dos códigos linguísticos para a acultura e a sociedade recomento o livro de Edgar Morin, O Método 4. As idéias.
2 Rouanet nos lembra, com Antonio Houaiss, que toda língua culta tem hoje em torno de 400 mil palavras, enquanto nenhuma língua natural vai além de três ou quatro mil palavras.