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Ciências & Cognição
On-line version ISSN 1806-5821
Ciênc. cogn. vol.14 no.2 Rio de Janeiro July 2009
ARTIGO CIENTÍFICO
Síndrome de Down: estudo exploratório da memória no contexto de escolaridade
Down Syndrome: exploratory study of memory in the context of education
Susana C. LimaI; Cândida SousaII; Rafael Bender das Chagas LeiteI; João C. AlchieriII; Regia H. SilvaI; Fabíola S. AlbuquerqueI
IPrograma de Pós-Graduação em Psicobiologia, Departamento de Fisiologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, Rio Grande do Norte, Brasil
IIPrograma de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia, UFRN, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil
RESUMO
Indivíduos com síndrome de Down (SD) são cada vez mais incluídos no sistema regular de ensino, no entanto, poucas pesquisas foram realizadas para investigar a influência no desenvolvimento da memória e o tipo de matrícula. Este estudo compara nove indivíduos com síndrome de Down matriculados em escolas especiais (grupo EE) e nove indivíduos no sistema regular de ensino (grupo ER). Os testes utilizados para a análise dos sujeitos foram o span de dígito, o de recordação livre e de reconhecimento de palavras e subtestes do WISK-III. Os indivíduos do grupo ER obtiveram maiores pontuações no teste de span de dígito (p=0,001) e nos subtestes do WISK-III. Nos testes de recordação livre e de reconhecimento de palavras nenhuma diferença foi encontrada. No entanto, os dois grupos demonstraram comportamentos diferentes em relação ao teste de reconhecimento de palavras. No total dos testes, o tempo de reação (TR) entre o estímulo auditivo e a resposta do sujeito no grupo ER apresentou uma média de 2.041ms, enquanto o grupo EE alcançou uma média de 4.306ms. Essa diferença foi estatisticamente significativa em algumas etapas do teste . Este estudo indica que o tipo de matrícula pode influir no desenvolvimento da memória dos indivíduos com SD e claramente aponta para a necessidade de futuras investigações.
Palavras-chave: síndrome de Down; memória de curto-prazo; educação especial.
ABSTRACT
Individuals with Down syndrome (DS) are increasingly more included in mainstream schools but, little research has investigated whether the kind of school attended influences memory development. The present study compared nine individuals with DS attending a special school (group SS) and nine individuals in mainstream schooling (group MS). Subject analysis obtained data for Digit Span, Verbal Free Recall and Verbal Recognition tests (short-term memory tests) as well as the WISK-III subtest. The individuals in group MSs achieved significantly higher scores for the digit span test (p = 0,001) and WISK-III subtest, however for both the free recall test and the recognition test, no difference was found. This being said, both groups demonstrated different behaviors concerning the word recognition test. Overall, the reaction time (TR) between auditory stimulus and subject response in group MS demonstrated an average of 2.041ms, while group SS reached an average of 4.306ms.This difference was found to be significant in some phases of the test. This study indicates that the kind of school attended may influence memory developing in individuals with Down syndrome and clearly points to necessity of further investigating this link.
Keywords: Down syndrome; short-term memory; special education.
1. Introdução
O movimento pela integração no sistema regular de ensino das pessoas com necessidades educacionais especiais tem-se caracterizado por uma abordagem quase que totalmente humanista e que se explicita nos documentos oficiais como
"A idéia de uma sociedade inclusiva se fundamenta numa filosofia que reconhece e valoriza a diversidade, como característica inerente à constituição de qualquer sociedade. Partindo desse princípio e tendo como horizonte o cenário ético dos direitos humanos, [o Estado] sinaliza a necessidade de se garantir o acesso e a participação de todos, a todas as oportunidades, independentemente das peculiaridades de cada indivíduo e / ou grupo social." (Brasil 2004: 8)
Este movimento tem-se mostrado particularmente favorável para as pessoas com síndrome de Down (SD), já que apresentam, na sua maioria, habilidades tanto sociais, quanto emocionais, que facilitam a sua interação em ambiente diverso como escolas, igrejas, clubes, etc. No Brasil, o censo do IBGE/ 2000, contabilizou 300 mil pessoas com a SD e calcula-se que, baseado na proporção por nascimento, a cada ano acrescenta-se mais 8.000 pessoas (Silva e Kleinhans, 2006).
A SD é uma desordem cromossômica que se caracteriza pela existência de um cromossomo extra ou parte de um cromossomo extra, causando uma triplicação ao invés da duplicação do material genético referente ao par cromossômico 21 (Kozma, 1986). O desequilíbrio originado da carga genética extra irá persistir e incidir sobre determinadas funções da pessoa com SD imprimindo diferenças que serão reconhecidas como típica da síndrome e outras de caráter individual, de acordo com as interações específicas de cada indivíduo com seu ambiente ao longo de toda sua vida (Flórez, 2000). A organização das áreas sensoriais específicas, associativas e pré-frontais do córtex cerebral resultante do desequilíbrio genético influenciará todo o processamento da informação dentro do sistema nervoso, como seu recebimento, estruturação de um significado imediato e esquema temporal, assim como a organização de uma resposta (reação motora), se necessário e com um período de latência maior (tempo entre o estímulo e a resposta) (Flórez, 1992). Segundo Nadel (2003), este quadro de alteração será o responsável pelo déficit intelectual apresentado pelas pessoas com SD, pois afetará o desenvolvimento de habilidades cognitivas que utilizam os recursos da linguagem, como pensar, raciocinar e relembrar, tornando a dificuldade de aprendizagem e de memória parte do fenótipo da síndrome.
A crescente matrícula das pessoas com SD na escola regular a partir dos movimentos pró-inclusão na década de 80 estimulou pesquisas que permitissem fundamentar a discussão escola especial versus escola regular numa abordagem científica. Estudos realizados no Reino Unido registraram que o desenvolvimento cognitivo e sócio-afetivo é melhor nas pessoas que estudavam na escola regular. Especificamente, elas apresentavam melhor desempenho nos testes relativos à linguagem e à memória e na habilidade de comunicação (Laws et al., 2000; Buckley et al., 2002). Estes estudos foram e são importantes fontes para discussão entre pais e professores na hora de decidirem pela melhor opção sobre o tipo de escola que estas pessoas devam freqüentar e para nortearem as políticas públicas educacionais desenvolvidas pelos países. As pesquisas desenvolvidas no Reino Unido (Cunningham et al.,1998; Laws et al., 2000; Bochner et al., 2001; Buckley et al., 2002; Turner et al., 2008) têm apontado uma relação entre o tipo de matrícula e o desenvolvimento dessas pessoas. Cunningham e colaboradores (1998), em um trabalho de revisão das matrículas em um período de 35 anos, indicaram uma relação entre melhor desenvolvimento acadêmico e maior autonomia das pessoas com SD matriculadas nas escolas regulares, soma-se a este resultado, o encontrado por Buckley e Sacks (19871, apud Buckley et al., 2002), indicando baixo desenvolvimento acadêmico com pouca ou nenhuma habilidade para leitura, escrita e para compreensão de números e dinheiro em 90 jovens com SD matriculados em escolas especiais. Este estudo foi considerado determinante, segundo as autoras, para o implemento da matrícula nas escolas regulares no condado de Portsmouth no Reino Unido (Buckley et al., 2002). A inclusão também é apontada como fator que favorece o desenvolvimento da linguagem, especificamente na leitura (Bochner et al., 2001), assim como a manutenção das habilidades básicas (leitura, escrita e operações matemáticas simples) após a idade escolar (Turner et al., 2008). No Brasil, são desconhecidos, até então, trabalhos comparativos sobre a memória de pessoas com SD incluídas ou não na escolar regular.
As alterações neuroanatômicas fenotípicas das pessoas com SD são tão variadas quanto dispersas e por sua vez, distintos problemas nas áreas do comportamento e da capacidade cognitiva podem ser identificados (Flórez, 2003). A importância da relação entre o contexto escolar e o desenvolvimento dessas pessoas recai exatamente nos estudos que apontam para maior desenvolvimento cognitivo por parte dos alunos incluídos. O trabalho de Laws e colaboradores (2000) sobre o desenvolvimento da linguagem e da memória indicou que as crianças com SD da escola regular levavam uma vantagem de dois anos no desenvolvimento da linguagem em relação àquelas da escola especial. A linguagem e a memória estão no centro dos problemas mais discutidos na SD, fazendo parte da sua biologia. No processo de desenvolvimento dessas funções, o meio ambiente indubitavelmente faz a sua parte. Os resultados dessas pesquisas sugerem que o tipo de educação é um fator importante, sendo a inclusão o sistema que demonstrou melhores efeitos.
A vantagem da educação inclusiva aos poucos perde seus apelos exclusivamente éticos, filosóficos e morais e se alicerça em dados científicos à medida que novas pesquisas vão sendo desenvolvidas. Esta mudança paradigmática fundamenta-se na compreensão que todo o processo de aprendizagem e de educação é baseado em mudanças neurofisiológicas que induzem o cérebro a vários tipos de transformação que podem ser observadas nas respostas ao meio-ambiente. Daí o sucesso do ensino afetar diretamente a função cerebral por mudar a sua conectividade (Goswami, 2004; Fidler e Nadel, 2007). É o que sustentam e reforçam as pesquisas que apontam para uma modificação no fenótipo comportamental na SD.
"O desenvolvimento do indivíduo portador da SD é, tanto quanto o de qualquer não portador, resultante de influências sociais, culturais e genéticas; incluindo-se aí as expectativas havidas em relação às suas potencialidades e capacidades e os aspectos afetivo-emocionais da aprendizagem." (Bissoto, 2005: 87)
Neste ponto a neurociência apresenta-se como uma área de pesquisa de grande contribuição para a educação. É imprescindível que esta ligação seja realizada e que seus resultados revertam para a prática dos professores.
Sabe-se que a memória é uma das funções cerebrais imprescindíveis para que a aprendizagem se processe de forma satisfatória e que os indivíduos com SD apresentam um déficit significativo na memória de curto-prazo (Broadley et al., 1995; Bird e Chapmam, 1994). A memória de curto-prazo (MCP) é considerada como a habilidade de "manter na mente" uma informação por curto período de tempo (Jarrold e Baddeley, 2001). Neste trabalho tomamos como referência para a memória de curto-prazo, o modelo de memória operacional desenvolvido por Baddeley e Hitch (1974) e ampliado por Baddeley (2000) por considerar que este modelo possibilita a separação das variadas fontes dos estímulos a serem retidos temporariamente na MCP (Jarrold e Baddeley, 2001).
Segundo Baddeley (2003), a memória operacional está intimamente ligada à codificação de novas informações para a memória de longo prazo e também à recuperação de informações já armazenadas. Este sistema teria a função de manter e manipular informações durante a realização de tarefas, sendo o responsável por sustentar os processos do pensamento humano. Estaria composto por subsistemas responsáveis por tarefas distintas, porém relacionadas. Assim, ter-se-ia um componente de execução, o executivo central responsável pela coordenação do fluxo de informações, pelas estratégias de recuperação de traços da memória de longo prazo e pelo raciocínio lógico e aritmético. Dois outros sistemas subsidiários, a alça fonológica e o rascunho visuoespacial, responderiam respectivamente pela captação de sons lingüísticos e pela informação visual com seus atributos físicos e sua relação com o espaço. A alça fonológica, por sua vez, seria constituída por dois subcomponentes: o armazém fonológico, com a função de guardar a informação e com capacidade de retenção de informação limitada e a alça articulatória responsável pelo processo de ensaio subvocal possibilitando a manutenção das informações durante o período necessário ao desempenho da função (Baddeley, 1998). Um terceiro subsistema foi acrescentado posteriormente, para responder a função de integração das informações, o retentor episódico. Este teria o papel de formar episódios integrados a partir das informações dos dois outros subsistemas, a alça fonológica e o rascunho visuoespacial, e de se relacionar com a memória de longo prazo (Baddeley, 2000).
Vários estudos têm demonstrado que pessoas com SD apresentam uma capacidade de MCP menor que indivíduos com desenvolvimento típico (Bower e Hayer, 1994; Broadley et al., 1995; Jarrold e Baddeley, 1997; Seung e Chapman, 2000 Jarrold et al., 2002; Purser e Jarrold, 2005). A capacidade da MCP nas crianças com SD não se desenvolve com a idade e com a velocidade com que ocorre com o resto da população (Gathercole et al., 2004). No teste clássico para MCP, o span de dígito, as crianças com desenvolvimento típico aos três anos são capazes de repetir, em média, uma seqüência de três dígitos obedecendo à ordem dos itens e aos 16 anos, sete a oito dígitos. Nas crianças com SD esta aquisição é mais lenta e pode nunca alcançar o máximo de uma criança não afetada pela síndrome (Mackenzie e Hulme, 1987; Gathercole, 1998). Observa-se que o déficit na MCP nas pessoas afetadas pela síndrome, refere-se mais a memória verbal (alça fonológica), do que à visual (rascunho visuoespacial) (Jarrold e Baddeley, 1997).
Jarrold e colaboradores (2002), com base nos resultados de testes realizados entre grupos com SD e grupos controles pareados pelo vocabulário receptivo, atestaram que o déficit na MCP observado foi mais específico para a memória verbal. Apontaram que não se tratava de uma simples conseqüência de uma dificuldade auditiva, mas sim um problema específico da capacidade de armazenamento da alça fonológica, mais do que uma ineficiência no ensaio articulatório. Brock e Jarrold (2005) confirmaram esta premissa utilizando-se de testes inovadores de reconstrução de série dígitos e de reconstrução espacial. Concluíram que o déficit não poderia ser explicado por dificuldade na fala, por um problema de audição ou por baixo conhecimento dos itens. O déficit da memória verbal de curto-prazo nos indivíduos com SD poderia advir de uma lentidão no processo da fala (speeking rate). Seung e Chapman (2000) investigaram aspectos que poderiam estar relacionados com o baixo span de dígitos nos indivíduos com SD, como a velocidade da fala, a latência para as respostas e a duração das respostas. Nesta pesquisa não foi encontrada diferença significativa entre os grupos pesquisados (dois grupos de crianças com desenvolvimento típico, pareados, um pela produção lingüística e outro pela idade mental, com o grupo de indivíduos com SD) em relação à velocidade da fala. A conclusão foi de que os resultados apóiam parcialmente a hipótese do déficit na alça fonológica, com comprometimento maior do armazém fonológico do que do ensaio articulatório, e que o déficit na MCP nos indivíduos com SD estaria na produção da linguagem.
Pesquisas sobre o déficit na memória de curto-prazo em indivíduos com SD (Bower e Hayer, 1994; Broadley et al., 1995; Jarrold e Baddeley, 1997; Seung e Chapman, 2000; Jarrold et al., 2002; Purser e Jarrold, 2005), baseadas no modelo de MO proposto por Baddeley e Hitch (1974), utilizam a comparação entre indivíduos com desenvolvimento típico ou com indivíduos com deficiência intelectual de outras etiologias sem, no entanto, aterem-se no tipo de escolarização que estes indivíduos receberam ou recebem. Neste trabalho propomos realizar uma análise exploratória sobre o desempenho em testes de memória de curto-prazo em pessoas com SD comparando aquelas que freqüentam ou freqüentaram escolas especiais com aquelas que freqüentam ou freqüentaram escolas regulares.
2. Metodologia
Dois grupos de pessoas com SD foram formados com base no tipo de escola, cada grupo com nove participantes com idade semelhante, entre 15 e 30 anos [t(16) = 0,58; p = 0,571]. O grupo da escola regular (ER), com três mulheres e seis homens e o grupo da escola especial (EE), com cinco mulheres e quatro homens. Foi considerado ponto de corte, o sujeito que apresentou na idade da matrícula escolar, história de complicações médicas graves ou características de transtornos invasivos do desenvolvimento. Todos os sujeitos da amostra não possuem histórico de problemas de linguagem ou déficits auditivos. Estas informações foram coletadas através de depoimentos dos familiares, já que nas escolas não se encontra nenhum registro referente a estes aspectos.
Em um primeiro momento, o sujeito foi esclarecido juntamente com seu responsável sobre os objetivos da pesquisa e os métodos aplicados, assim como os riscos e benefícios. A seguir, assinaram o "Termo de Consentimento Livre e Esclarecido" e responderam a uma entrevista estruturada sobre a vida escolar e os atendimentos de reabilitação que o sujeito recebeu.
Em ambos os grupos, as tarefas foram realizadas de forma individual, em ambiente calmo, no horário em que o sujeito considerou melhor para seu bem-estar. Antes do início de cada tarefa foi realizada uma demonstração para que o sujeito compreendesse o funcionamento do teste, sendo os resultados desconsiderados para efeito de análise. Foram realizadas três tarefas auditivas: o span de dígitos, o teste de reconhecimento de palavras e o de recordação livre, respectivamente nesta ordem. As tarefas de reconhecimento de palavras e de recordação livre foram elaboradas a partir do software SuperLab Pro e aplicadas com o auxílio de fones de ouvido. Na tarefa de span de dígito, os itens foram ditados pelo experimentador. Segundo Marcell e colaboradores (1988), não há diferença em relação aos resultados nos testes para MCP, se o estímulo foi apresentado por fones de ouvido ou não, uma vez que a dificuldade na SD não é um problema auditivo. As palavras utilizadas nos testes consistiam de substantivos comuns concretos de duas a quatro sílabas.
A tarefa de span iniciou com séries de dois dígitos, com duas repetições para cada série. O erro em ambas as repetições de uma mesma série interrompia o teste, sendo considerado como resultado do span o tamanho da série imediatamente anterior. Na tarefa de recordação livre, 10 palavras foram apresentadas auditivamente e imediatamente depois de concluída a apresentação, era solicitado ao sujeito recordar livremente quais haviam sido as palavras ouvidas, independente da ordem de sua apresentação. Os sujeitos tiveram o tempo livre para realizar essa tarefa. O registro das tarefas de span de dígito e de recordação livre foi feito pelo examinador através do preenchimento de uma folha de respostas à medida que o participante respondia às tarefas. A tarefa de reconhecimento consistiu em três séries (S1, S2 e S3). Em cada uma delas, o sujeito ouvia uma lista de 10 palavras-alvo, apresentadas uma a uma, seguida do teste, quando eram apresentadas 20 palavras (10 palavras-alvo mais 10 distratores) para o sujeito julgar se a palavra havia sido ouvida na lista ou não. A resposta era fornecida através de um teclado adaptado, no qual apenas duas teclas estavam disponíveis, uma que representava o SIM para itens da lista (palavras-alvo) e a outra, o NÃO para as distratoras, sendo registrado automaticamente o tempo de reação para cada resposta. Nas duas séries seguintes, o mesmo procedimento era repetido com a mesma lista-alvo e com novos distratores.
Além dos testes descritos acima, foram selecionados de acordo com os objetivos da pesquisa cinco subtestes da escala de execução das Escalas Wechsler de Inteligência para Crianças (WISC-III), a fim de delinear o perfil psicológico característico dos participantes do estudo. As Escalas Wechsler foram desenvolvidas de acordo com uma perspectiva de inteligência como uma entidade agregada e global, sendo considerada como uma "capacidade do indivíduo agir com propósito, pensar racionalmente e lidar efetivamente com o seu meio ambiente" (Wechsler, 2002: 01). A partir da escala de execução, é possível, então, mapear de maneira geral o modo de funcionamento cognitivo dos participantes, principalmente no que se refere às tarefas executivas. Vale salientar que, apesar da padronização do instrumento utilizado ser referente a pessoas com até 16 anos de idade, optou-se pela sua utilização devido ao conteúdo ser mais acessível aos sujeitos da pesquisa em razão do déficit intelectual apresentado pelos mesmos. Os subtestes escolhidos da escala foram:
Completar Figuras - um conjunto de figuras coloridas de objetos e cenas comuns, cada um com uma parte importante faltando, a ser identificada pelo sujeito;
Arranjo de figuras - um conjunto de gravuras coloridas, apresentadas em ordem misturada, que o sujeito reordena em uma estória com seqüência lógica;
Cubos - um conjunto de padrões geométricos bidimensionais, feitos com cubos ou impressos, que o sujeito reproduz usando cubos de duas cores;
Armar Objetos - um conjunto de quebra-cabeças de objetos comuns, cada um apresentado em configuração padronizada, que o sujeito junta para formar um todo significativo;
Labirintos - um conjunto de labirintos progressivamente mais difíceis, impressos em um protocolo de respostas, que o sujeito resolve com um lápis (Wechsler, 2002).
A comparação dos resultados entre os grupos foi realizada através da do teste t e da ANOVA. A comparação dos resultados do teste de reconhecimento de palavras nas séries de aprendizagem utilizou a MANOVA. Para comparação dos contrastes foi utilizado o teste t.
3. Resultados
Os resultados da avaliação dos testes da escala de execução das Escalas Wechsler de Inteligência para Crianças - WISC III apontaram melhor desempenho do grupo ER comparado ao EE. A análise referente à comparação entre sujeitos dos grupos ER e EE nos subtestes Completar Figuras e Labirintos, aponta diferenças significativas tendo o grupo ER apresentado média superior ao grupo EE nesses subtestes (p < 0,05). No que concerne à comparação inter-testes, verificou-se uma correlação mediana entre Cubos e Completar Figuras (r = 0,582). Os resultados da avaliação dos testes referentes ao WISC-III apontaram melhor desempenho do grupo ER comparado ao EE na média de todos os subtestes, sendo significativa a diferença de desempenho nos subtestes Completar Figuras e Labirintos (p < 0,05).
Na tarefa de reconhecimento de palavras, foi calculado o desempenho (d = freqüência das respostas corretas - freqüência dos alarmes falsos) para cada série em cada grupo (tabela 1). Esses resultados foram submetidos a uma MANOVA de medidas repetidas com um fator de tratamento dentre os participantes (série: S1, S2 e S3) e conduzida entre os grupos (ER e EE). As diferenças não foram significativas. A mesma análise foi conduzida para a média do tempo de resposta (TR) para cada item nas três séries e para cada grupo (tabela 1), também não identificando diferenças significativas. A comparação da média do TR para todos os itens através da ANOVA indicou uma diferença significativa entre os grupos (F(1,16) = 4,687, p = 0,046). Considerando apenas o grupo EE, na comparação entre as três séries foi encontrado diferença significativa entre o TR de S1 em relação a S2 e a S3 (t(8) = 2,63; p = 0,030 e t(8) = 2,57; p = 0,034, respectivamente). Na tarefa de recordação livre, o grupo ER recordou em média 3 palavras, enquanto o grupo EE a média de 2, diferença que não foi estatisticamente significativa (t(16) = 1,02; p = 0,321). O resultado do teste de span de dígito foi significativamente diferente, tendo os indivíduos do grupo ER alcançado maiores pontuações (t(16) = 5,34; p < 0,001), com média de recordação de séries de 3 dígitos, enquanto o grupo EE, recordou em média séries de 2 dígitos.
4. Discussão
Esta pesquisa colabora com a idéia de que o ambiente educacional das pessoas com SD exerce uma influência determinante no fenótipo comportamental. Este tipo de abordagem, que compara os indivíduos com SD entre si levando em consideração o ambiente, aponta para resultados importantes em áreas fundamentais de desenvolvimento comportamental cognitivo e sócio-afetivo, por exemplo, como a habilidade na linguagem expressiva e leitura, na memória de curto-prazo e na autonomia (Fidler e Nadel, 2007; Cunningham et al., 1998; Buckley et al., 2002; Bochner et al., 2001; Laws et al., 2000).
Os resultados obtidos acompanham aqueles descritos na literatura, indicando a inclusão na escola regular como fator de desenvolvimento de importantes funções cognitivas das pessoas com SD. Os subtestes WISK-III que requisitam a memória visual confirmaram o fenótipo de que SD apresenta pouco ou nenhum problema com a MCP visual (Jarrold e Baddeley, 1997). Ainda assim, houve superioridade nos resultados do grupo ER, reforçando todos os resultados favoráveis à inclusão.
O melhor alcance na média do span de dígitos no grupo ER corrobora os dados encontrados por Laws e colaboradores (2000). Entretanto, o alcance do grupo EE foi aquém do encontrado na literatura. O span de dígitos é um teste clássico sobre o armazenamento e manipulação de material na alça fonológica (Baddeley, 2007), subsistema da memória operacional responsável por atividades importantes principalmente na área da linguagem (Mackenzie e Hulme, 1987), de tal maneira que o desempenho na MCP se correlaciona fortemente com desenvolvimento da linguagem (Laws e Gunn, 2004). A ligação desses dois domínios é extremamente importante para as pessoas com SD, sendo fundamental o aprofundamento de pesquisas sobre esta questão.
Na tarefa de recordação livre, não houve diferença significativa entre os grupos. Considerado um teste mais difícil em relação ao de reconhecimento de palavras (Bower, 2000), o tempo é um fator preponderante para o esquecimento dos itens neste tipo de teste. A maior latência para responder a estímulos, característica da SD, pode ter influenciado nos baixos resultados. Este aumento da latência nas respostas motoras nos indivíduos com SD parece advir de um atraso nos dois processos: o de reconhecimento do estímulo e da organização da resposta em si (Flórez, 1992). Interessante destacar que durante a recordação livre, muitos sujeitos de ambos os grupos incluíram itens não pertencentes à lista. A maioria das inclusões guardava associação semântica com itens-alvo, por exemplo, a recordação da palavra "pássaro" (não existente na lista), possivelmente associada a "papagaio" (palavraalvo). As associações também ocorreram entre itens incluídos, por exemplo, a palavra "macaco" foi seguida de "banana", ambas não existentes na lista.
Na tarefa de reconhecimento que utilizamos, foi possível avaliar alguns aspectos envolvidos com o processo de aprendizagem próximo de uma situação real, onde as palavras distratoras funcionaram como interferência. Os sujeitos foram submetidos à repetição de uma lista de palavras por três vezes. Sujeitos adultos normais facilmente alcançam o máximo do desempenho na terceira série em listas com 10 palavras (Barbosa, 2005; Bezerra, 2005) ou com 15 palavras (dados não publicados de nosso grupo). A expectativa com os sujeitos da pesquisa era que houvesse uma melhora no desempenho da primeira para a terceira série, mas que ele fosse mais expressivo no caso do grupo ER. Estatisticamente, as variações encontradas não foram significativas, portanto a melhora do desempenho do grupo ER na terceira série poderia ser decorrente do acaso. Por outro lado, devido à variabilidade característica nos trabalhos com seres humanos, a amostra pode ter sido pequena (9 sujeitos) para expressar o efeito. No caso dessa hipótese, o melhor desempenho do grupo ER comparado ao grupo EE poderia ser decorrente de um melhor controle das interferências que bombardeiam a codificação de uma informação, experimentalmente representada pelos distratores. A capacidade em se sobrepor as interferências entre as várias informações parece ser uma das mais importantes habilidades cognitivas dos indivíduos. Quanto maior a capacidade da memória operacional, melhor integração no processamento das informações a serem trabalhadas e, por conseguinte, melhor desempenho na habilidade de inibir as interferências (Jonides e Nee, 2005). Estaremos investindo para ampliar a pesquisa na tentativa de esclarecer se as variações encontradas foram realmente ao acaso.
Ainda que o desempenho não tenha sido estatisticamente diferente entre os grupos, identificamos uma diferença no tempo de reação (TR). Sujeitos do grupo EE levaram quase o dobro do tempo que o grupo ER para responder a um item. Essa é uma medida (TR) que pode demonstrar maior velocidade no processamento das informações com maior agilidade entre o comando e execução de uma ação nas várias etapas envolvidas em uma tarefa cognitiva pelo sistema nervoso central. A lentificação deste processo é considerada uma característica da SD (Flórez,1992), assim como do processo normal de envelhecimento (Baddeley, 2006) e também é característica nos processos patológicos como a doença de Alzheimer (Charchat et al., 2001). No entanto, esta constatação da diferença do TR entre os grupos EE e ER, necessita de maior investigação. A diminuição no período de latência para respostas motoras nas pessoas com SD é importante porque acarreta uma melhora na sua habilidade de comunicação.
Um resultado importante e interessante foi a redução do tempo de reação do grupo EE da primeira para a terceira série. Embora ainda mais lentos do que o grupo ER, os sujeitos conseguiram reduzir praticamente pela metade o tempo que utilizavam para executar a resposta a um item. Estes dados podem apontar uma aprendizagem do desenvolvimento da tarefa, facilitando a tomada de decisão do reconhecimento do item, diminuindo o tempo de processamento da informação e de latência da resposta.
Para os sujeitos da nossa amostra foi constatado que a escolha do tipo de escola na matrícula inicial, quando crianças, foi decisão da família. A escolha pela escola especial, principalmente a dos indivíduos acima dos vinte anos, foi uma escolha considerada inevitável na época. Porém, na mesma época e na mesma cidade, outras famílias faziam escolhas diferentes, optando pela escola regular mais próxima da sua residência. As crianças, segundo depoimento dos pais coletados no momento da entrevista, apresentaram desenvolvimento psicomotor (sentar, engatinhar, andar, etc.) dentro dos padrões de desenvolvimento típico de uma criança com síndrome de Down. Todos relataram atraso significativo no surgimento da fala nos seus filhos (média de 4 anos) e que a entrada na escola favoreceu a linguagem dos mesmos, não havendo diferença dos relatos entre os pais. Estas informações apontam para uma igualdade de condições entre os indivíduos dos grupos no período da decisão da matrícula escolar. Este instrumento foi utilizado uma vez que nem todas as escolas possuíam uma avaliação inicial dos alunos. As semelhanças favorecem ainda mais a importância da inclusão para a obtenção do máximo possível do desenvolvimento dessas pessoas. Acredita-se que não só o ambiente mais restritivo, como também uma deficiência no currículo desenvolvido pelas escolas especiais (Buckley et al., 2002) sejam os verdadeiros motivos para diferenças de desempenho como as que encontramos. A parceria com pares que apresentam o desenvolvimento típico da idade pode funcionar como verdadeira alavanca para o exercício das funções cognitivas dos indivíduos com SD, ainda que estas sejam limitadas.
Mais pesquisas sobre o desenvolvimento da memória e especificamente da MCP nos indivíduos com SD devem ser realizadas, considerando-se o viés do tipo de escolarização que os sujeitos estão ou foram submetidos (Laws et al., 2000), principalmente no Brasil. Nossos dados e outros de pesquisas realizadas em outros países reforçam a certeza de os danos cognitivos decorrentes do arranjo genético na SD podem ser atenuados ao longo do desenvolvimento dos indivíduos através da educação. Este é o princípio fundamental na determinação de um comportamento, ou seja, que ele resulta da interação entre genes e ambiente.
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Submetido em 18/03/2009
Aceito em 20/07/2009
Apoio financeiro
Deptartamento de Fisiologia, Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia; Rafael Bender das Chagas Leite é bolsista PIBIC/CNPq.
Nota
(1) Buckley, S. & Sacks, B. (1987). The adolescent with Down syndrome: Life for the teenager and family. Portsmouth, UK: Portsmouth Polytechnic.
S.C. Lima é Pedagoga, Professora e Doutoranda em Psicobiologia (UFRN). E-mails para correspondência: susanalima@ufrnet.br e scclima@gmail.com.
F.S. Albuquerque é Mestre em Psicobiologia e Doutora em Psicologia (Psicologia Experimental). Atua como Professor Associado I do Departamento de Fisiologia (UFRN) e Coordenadora do Laboratório de Estudos de Memória - LEME, que faz parte da Base de Pesquisa Psicobiologia dos Processos Cognitivos. Endereço para correspondência Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Biociências, Departamento de Fisiologia Lagoa Nova, Natal, RN 59078-970, Brasil. Caixa Postal 11511. Telefone para contato: +55-843215-3409, ramal: 222. Fax: +55-84-3211-9206. E-mails para correspondência: fabiola@cb.ufrn.br e fabi-albuquerque@uol.com.br.
Agradecimentos
Os autores agradecem a Associação de Síndrome de Down do Rio Grande do Norte e a Associação de Pais e Amigos de Excepcionais - APAE - de Natal pelo acolhimento recebido, e em especial a todas as pessoas com síndrome de Down que participaram da pesquisa.