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versión impresa ISSN 0102-7395
Reverso vol.35 no.65 Belo Horizonte jul. 2013
Da demanda de amor ao desejo do analista
From love´s demand to analyst´s desire
Messias Eustáquio Chaves
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
O presente artigo reflete sobre a demanda de amor e o desejo do analista, partindo de um fragmento clínico, através do qual o autor levanta a seguinte questão, entre outras: Como o desejo do analista em sua função de dirigir uma análise pode transformar os impasses do amor de uma analisanda em desejo de análise para a sua saúde?
Palavras-chave: Desejo, Amor, Transferência, Analista, Analisando, Impasse, Passe, Psicanálise.
ABSTRACT
This article search to reflect about love´s demand and analyst´s desire, going to clinical´s fragment, through them the author lift this question: How analyst´s desire in your function to direct an analysis can transform love´s impasses of analysand in analysis´s desire to your health?
Keywords: Desire, Love, Transference, Analyst, Analisand, Inpacient, Passe, Psychoanalysis.
Do nada, sei que nada sei, nada sendo no vazio de nada ser:
Se nada sou de nada ser e saber, alguma coisa sou pedacinho do nada.
MESSIAS E. CHAVES
O título deste artigo pode ser lido de duas maneiras: direto, sem pausa ou com pausa antes e depois do “ao”. Os efeitos serão diferentes. O que é uma demanda de amor? O que é o desejo do analista? O analista ama? O analista deseja? O que é o amor de transferência no analisando e no analista? Como o desejo do analista, em sua função de dirigir uma análise, pode transformar os impasses do amor de uma analisanda em desejo de análise para a sua saúde? Amor in-paciente e analista in-passe: do impasse ao passe na clínica da psicanálise.
Ela chega ao consultório do analista indicada pelo cardiologista. Tem 78 anos. Mora sozinha num apartamento de quatro quartos, herdado do pai. Nos dois primeiros anos de análise fala das perdas. Morte da mãe com câncer. Morte do pai com câncer. Morte do irmão por falência do fígado, morte da sobrinha por overdose de drogas. A ênfase de sua fala no terceiro ano recai no sentimento de solidão, viver sozinha e não ter ninguém. O tema da solidão se desdobra no quarto e quinto anos, com a dificuldade de ter uma empregada que more com ela, que seja honesta e afetiva, que não queira dominá-la, e sobre os sobrinhos que só a procuram para pedir dinheiro. Os parentes moram no interior de Minas Gerais, todos distantes, não lhe dão nem um “dedinho de prosa”. Começa a dizer que a morte seria um descanso. Nestes cinco anos de análise, as queixas foram repetidas, detalhadas, desdobradas e sofridas. Pode-se dizer que sempre gostou de vir às sessões e que cumpriu bem a sua função de analisanda.
No sexto ano de análise, com 83 anos, passou a se soltar mais e a dar um colorido mais intenso ao sentimento de solidão, não ter o abraço de ninguém, de ser virgem e não saber o que é sexo, de não ter beijado um homem na boca, não ter casado, não ter filhos, não saber o que é o amor. Ao mesmo tempo, falava que não iria mais às sessões, que a vida estava muito sem graça, sentindo-se muito velha, precisando de bengala para andar, indo a vários médicos o ano todo e tomando 17 tipos de remédios. Melhor seria morrer. Com uma intervenção firme e doce ao mesmo tempo, o analista disse que ela não poderia parar e que o desejo dele era seguir com a análise. Ao se despedir dela após a sessão, o analista disse: “estou te esperando na próxima sessão”. Ela retornou e foi seguindo as sessões, desdobrando os assuntos de sempre.
Começou a enfatizar mais ainda o sentimento de solidão, que tudo estava muito difícil, o corpo doía muito e sentia muita falta de um abraço. Parecia claro que a sua fala se endereçava ao analista, uma fala precavida e respeitosa, mas arriscava a dizer. Ao que o analista dava corda e respondia: “Vamos em frente, fale mais”. E ela prosseguia: “Ah, difícil, acho que não tem jeito, porque você é casado (antes só me chamava de doutor), sua mulher não vai gostar”. O analista perguntava: “De que minha mulher não vai gostar?” Ela respondia: “De você me dar um abraço, mesmo que seja só um abraço e um beijo”. E logo se assustava dizendo: “Meu Deus, desculpe, não devia estar dizendo isso, tá vendo, é por isso que eu devo parar, não dá para ficar-continuar, está errado, não devia estar acontecendo, estou morrendo de vergonha”.
O analista nunca se sentiu tão tranquilo em sua posição, fazendo um cálculo clínico da situação dela, antes de lhe dizer o que ele disse, visando produzir efeitos: “De jeito nenhum, você não vai parar, vai continuar vindo, justo neste momento tão importante para você e sua análise? E podemos até aumentar o número de sessões!”. “Mas, sua esposa vai ficar brava comigo!”. “Que nada! Ela nem está aqui! Você não lembra que a análise é sigilosa, que tudo o que você diz aqui só interessa a nós dois?”. Ela se acalmou, continuou indo, chegando bem vestida, com enfeites femininos, cabelos cortados, bem maquiada, fisionomia alegre, jovial. Distraidamente, dizia que o analista parecia muito com o seu pai e com um dos irmãos. Trouxe fotografias para lhe mostrar. Certa vez veio de blusa e saia com um corte na lateral. Não parecia intencion,l e sim que o inconsciente lhe indicava os caminhos do desejo.
Com sete anos de análise, 84 anos, ao sair da sessão perguntou, com naturalidade, se o analista poderia lhe dar um abraço. “Claro”, e o analista lhe deu um abraço tão natural quanto aquele que se dá a um parente num dia de aniversário. Ela recebeu de uma maneira especial, sorrindo, como se fosse a coisa mais importante de sua vida. Nachträglish (a posteriori), o analista percebeu que esse abraço fez bem à sequência de sua análise. Contudo, um dia ela ligou para o consultório e quem atendeu foi a analista do consultório de frente, por coincidência a mulher do seu analista, que usa uma extensão da mesma linha telefônica, juntamente com uma secretária eletrônica. A analisanda deixou um recado e, quando veio para a sessão seguinte, disse ao seu analista: “A sua mulher deve estar brava comigo. Você lhe contou os segredos”. Novamente quis parar, para não atrapalhar o “casamento” do analista.
Com naturalidade, o analista disse: “Veja, eu não falei nada com ela, não conversamos a seu respeito, pois análise é sigilosa, lembra?”. Ela seguiu com a sua análise, mas continuou com as suas preocupações, parecendo estar de olho na mulher do analista, observando o casal, tentando captar os sentimentos do analista, retardando os finais das sessões, falando rápido e mais-ainda, parecendo não querer ir embora, num misterioso colorido pessoal de ansiedade prazerosa.
É preciso dizer que o seu pai era um homem extremamente rígido, cerceador e exagerado no controle da sexualidade, a ponto de não deixá-la namorar, nem ter um amigo confidencial, a não ser talvez ele mesmo. Como virgem de um pai dominador, ela dizia que, por ser tão bravo e esquisito, a família costumava pensar que ele fosse “esquizofrênico”. Mesmo assim, com toda essa carga pesada, ela fez progressos em sua análise e conseguiu construir um saber sobre a sua história familiar, sobre os seus sofrimentos pessoais, sobre a sua vida desde a infância. Certamente, o mais importante para essa senhora de 84 anos é o fato de que através da vivência transferencial ela tenha acordado em si mesma a pulsão erótica, adormecida ou congelada, mudando o seu olhar sobre a natureza do amor, vivenciando-o de maneiras diferentes, descobrindo que se pode amar de várias maneiras sem perigo, que o amor pode ser substituído por ternura e que a ternura pode significar que o amor ama o amor.
Em seu terceiro artigo de recomendações sobre a técnica da psicanálise, Observações sobre o amor transferencial, de 1914, um texto de 08 páginas, Freud escreve 32 vezes a palavra amor e 42 vezes palavras variantes dela, totalizando 74 referências ao amor. Mostra como Freud estava envolvido na questão do amor, do amor em todas as suas formas de expressão, principalmente do amor de transferência. Desde Breuer, no atendimento a Anna até os anos 1914, seguindo em frente com todos os analistas até hoje em 2012. São 98 anos desde 1914, movimento do tempo no entre-dois da transferência, o amor em transferência, no analisando como demanda de amor e no analista como função da escuta e do desejo de conduzir a análise até o seu final. Diz do motor na construção do saber da análise, do saber do analisando sobre o seu inconsciente e seus sintomas. Mas, se o analista é capaz de escutar e desejar, certamente ele ama a sua função de analista e com coragem segue os passos de Freud.
Sabemos com Freud e com Lacan — e alguns outros autores neofreudianos —, que os impasses no andamento da análise são criados pela resistência, tanto do lado do analisando, quanto do lado do analista. A experiência ensina que na maioria das vezes é a resistência do analista que facilita o estabelecimento dos impasses. O analista é humano, assim como sua analisanda. Pode ser objeto da emergência de seus amores infantis, de maneira semelhante ao que acontece com sua analisanda. Pode ser tomado pelo amor, até mesmo pela paixão, e ambos servirem como resistência e desvio na condução da análise propriamente dita. Assim, da in-paciente ao amor erótico, o passe é negado, o acting out é negado, e do impasse resultante, o desejo função do analista trabalha para que a analisanda seja capaz de substituir o amor pelo desejo de análise. Assim, o impasse pode ceder lugar ao movimento de passar em frente, caminhar em análise, vencer a resistência.
Como é possível tratar o impasse na transferência amorosa? Quais as soluções? Primeiro: que o analista, em sua formação analítica, faça a sua análise até as últimas consequências. Segundo: que o analista deseje escutar a sua analisanda com desprendimento e sem receio do que vier pela frente. Terceiro: para que isso seja possível, ele deve se manter na posição de objeto a, posição de falta, que causa o desejo da analisanda em investir emocionalmente no trabalho da análise, falando livremente, sem medo e sem pudor. Quarto: que o analista ame atender as suas analisandas, mas que saiba substituir o seu amor em transferência pelo desejo função de analista.
Em seu texto sobre a transferência,1 Freud chama a atenção dos analistas para a existência do amor de transferência, o amor fazendo parte da análise e que esse amor é erótico, sexual, estrutural da sexualidade humana. Realidade pulsional em todo ser humano, esse amor pode provocar resistências, defesas face às fantasias sentidas como muito perigosas. O grande paradoxo é que esse amor é, ao mesmo tempo, o grande motor da análise. Se o analista escuta e aceita esse amor como uma realidade natural, a analisanda vai amar dizer tudo, vai associar livremente, com coragem e sem pudor, facilitando o trabalho analítico. O analista deve ser peça de facilitação, e não de impasse. Diz Freud: “...seria como invocar um espírito dos infernos e mandá-lo de volta sem lhe perguntar nada. Trazer o recalcado, para recalcá-lo novamente. As paixões pouco são afetadas por discursos sublimes”.2 Freud não aceita que o analista ceda à demanda da analisanda, através de um acting out nem que resista ao amor de transferência recalcando os seus anseios, promovendo um impasse. E Freud não aceita também uma posição intermediária:
Quanto mais claramente o analista permite que se perceba que ele está à prova de qualquer tentação, mais prontamente poderá extrair da situação seu conteúdo analítico. A paciente, cujo recalcamento sexual naturalmente ainda não foi removido, mas simplesmente empurrado para segundo plano, sentir-se-á então segura o bastante para permitir que todas as suas precondições para amar, todas as fantasias que surgem de seus desejos sexuais, todas as características pormenorizadas de seu estado amoroso venham à luz. A partir destas, ela própria abrirá caminho para as raízes infantis de seu amor.3
Para Freud, o amor é sexual, é erótico, e o estado de enamoramento é real, tem suas raízes na sexualidade e no amor infantil. A relação transferencial entre analista e analisanda é que o traz à tona, e o analista deve ser analisado e preparado para lidar com essa emergência do amor, em todas as suas nuances curiosas.
Freud nunca abandonou a ideia de uma tendência inata, hereditária, somada às influências sofridas nos primeiros anos de vida, produzindo o efeito inconsciente de cada sujeito construir um método próprio de se conduzir na vida erótica, estabelecendo para si precondições para se enamorar, para apaixonar, para amar. Portanto, o fenômeno de transferência implica fatores constitucionais e fatores ambientais infantis, atuando juntos para ocasionar o resultado observado na clínica dos neuróticos. Nunca devemos esquecer que o analista participa da transferência, ele faz parte do sintoma do analisando, porque ele está presente e vivo na relação entre-dois.
Lacan pergunta: “como situar o que deve ser o lugar do analista na transferência? Onde o analisando situa o analista? Onde o analista deve estar para responder a ele adequadamente?”.4 Através da leitura do Seminário 9, A transferência, podemos entender que na relação analítica, assim como no discurso analítico, o analisando está na posição de sujeito e o analista na posição de objeto, de objeto a. É assim que deve caminhar uma análise. Esse é o ensino de Lacan, tanto como é o de Freud. Lacan resgatou o ensino de Freud sobre a posição do analista na transferência e consequentemente na análise. Nesse seminário, Lacan chama a atenção para alguns desvios pós-freudianos, quando se estabeleceu a posição do analista no lugar do Eu Ideal, isto é, o analista funcionando como o Eu Ideal para o analisando, ocasionando um impasse na análise e um final de análise através da identificação ao analista.
A experiência indica que, levado por uma inquietação angustiante, alguém vai a um analista qualquer, e imagina que esse analista tem o poder de saber tudo sobre ele e os segredos do seu inconsciente, às vezes até sem precisar falar nada, assim como num golpe de mágica. Mas, a análise é trabalho, no clima latente ou manifesto do amor de transferência, trazendo a tona as experiências vividas na infância, marcas feitas como tatuagem, movimento de vaivém, tempo fora do tempo no tempo, no passo a passo do passo, indo em frente com coragem, sem medo e sem pudor, combustível do amor amando o amor, dizendo das perdas, do vazio, da solidão, da morte na vivência da castração e no desejo de saber. Lacan diz: “O analista é aquele que, ao por o objeto a no lugar do semblante, está na posição mais conveniente para fazer o que é justo fazer, a saber, interrogar como saber o que é da verdade”.5 E logo ele se pergunta: “O que é o saber? [...] a análise veio nos anunciar que há saber que não se sabe, um saber que se baseia no significante como tal”.6
Referências
FREUD, S. A dinâmica da transferência (1912). In: ______. O caso Shereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1969. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12). [ Links ]
FREUD, S. Observações sobre o amor transferencial (1915 [1914]). In: ______. O caso Shereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1969. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12). [ Links ]
LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. [ Links ]
LACAN, J. O seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. [ Links ]
Endereço para correspondência:
Rua Domingos Vieira, 348/803 – Santa Efigênia
30150-240 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: mesquioves@gmail.com
Recebido em: 05/01/2012
Aprovado em: 20/03/2013
Sobre o Autor
Messias Eustáquio Chaves
Psicólogo. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
1FREUD, (1912)1969, p. 140.
2FREUD, (1915)1969, p. 213.
3FREUD, (1915)1969, p. 216.
4LACAN, 1992, p. 319.
5LACAN, 1985, p. 129.
6LACAN, 1985, p. 129.